Acessibilidade / Reportar erro

Pesquisa em sepse pediátrica em países de baixa e média renda: superando desafios

INTRODUÇÃO

A carga da sepse pediátrica

A sepse representa uma das condições clínicas agudas mais frequentes em unidades de terapia intensiva (UTIs) e uma das principais causas de morbimortalidade em crianças.(11 Weiss SL, Fitzgerald JC, Pappachan J, Wheeler D, Jaramillo-Bustamante JC, Salloo A, Singhi SC, Erickson S, Roy JA, Bush JL, Nadkarni VM, Thomas NJ; Sepsis Prevalence, Outcomes, and Therapies (SPROUT) Study Investigators and Pediatric Acute Lung Injury and Sepsis Investigators (PALISI) Network. Global epidemiology of pediatric severe sepsis: the sepsis prevalence, outcomes, and therapies study. Am J Respir Crit Care Med. 2015;191(10):1147-57.) A maioria dos óbitos ocorre em países de baixa e média renda (PBMRs), especialmente na África subsaariana e no sul da Ásia, e é decorrente de doenças passíveis de prevenção.(22 Liu L, Oza S, Hogan D, Chu Y, Perin J, Zhu J, et al. Global, regional, and national causes of under-5 mortality in 2000-15: an updated systematic analysis with implications for the Sustainable Development Goals. Lancet. 2016;388(10063):3027-35.,33 Chisti MJ, Salam MA, Bardhan PK, Faruque AS, Shahid AS, Shahunja KM, et al. Treatment failure and mortality amongst children with severe acute malnutrition presenting with cough or respiratory difficulty and radiological pneumonia. PLoS One. 2015;10(10):e0140327.) Dados publicados em 2020, derivados do Global Burden of Disease de 2017, estimaram 48,9 milhões de casos de sepse e 11 milhões de mortes, representando 19,7% entre todas as causas de óbito. Mais da metade dos casos de sepse (25,2 milhões) ocorreu em crianças e adolescentes, com 3,3 milhões de mortes.(44 Rudd KE, Johnson SC, Agesa KM, Shackelford KA, Tsoi D, Kievlan DR, et al. Global, regional, and national sepsis incidence and mortality, 1990-2017: analysis for the Global Burden of Disease Study. Lancet. 2020;395(10219):200-11.) Revisão sistemática, com 15 estudos de 12 países - a maioria países desenvolvidos -, relatou prevalência de sepse e sepse grave em crianças de 48 casos e 22 casos/100 mil pessoas/ano, respectivamente, e mortalidade entre 9% e 20%.(55 Fleischmann-Struzek C, Goldfarb DM, Schlattmann P, Schlapbach LJ, Reinhart K, Kissoon N. The global burden of paediatric and neonatal sepsis: a systematic review. Lancet Respir Med. 2018;6(3):223-30.) Outra revisão sistemática e metanálise, que incluiu 94 estudos e 7.561 pacientes pediátricos com sepse e disfunções orgânicas, mostrou tendência decrescente na letalidade no período de 1980 a 2016, mas também demonstrou que a letalidade ainda é elevada (25%), sendo maior em PBMRs: a chance de uma criança com sepse morrer em países em desenvolvimento é quatro vezes maior do que em países desenvolvidos.(66 Tan B, Wong JJ, Sultana R, Koh JC, Jit M, Mok YH, et al. Global case-fatality rates in pediatric severe sepsis and septic shock: a systematic review and meta-analysis. JAMA Pediatr. 2019;173(4):352-62.)

Ainda não se conhece completamente o impacto da sepse pediátrica. Acredita-se que os poucos dados relatados na literatura estão subestimados, sobretudo em PBMRs. Diante disso, em 2017, a Organização Mundial da Saúde (OMS) reconheceu a sepse como um problema de saúde pública e passou a demandar dos países-membros medidas de prevenção, diagnóstico e tratamento.(77 Reinhart K, Daniels R, Kissoon N, Machado FR, Schachter RD, Finfer S. Recognizing Sepsis as a Global Health Priority - A WHO Resolution. N Engl J Med. 2017;377(5):414-7.) No entanto, nos PBMRs, essas medidas só podem ser efetivamente implementadas se for conhecido o real impacto da sepse pediátrica nessas regiões, por meio da realização de estudos clínicos e epidemiológicos.

Desafios na pesquisa em sepse pediátrica em países de baixa e média renda

A pesquisa clínica é sempre desafiadora, mais ainda quando se trata de crianças gravemente enfermas e, especialmente, em PBMRs, onde os recursos são limitados. Historicamente, crianças são excluídas dos ensaios clínicos, sobretudo por questões éticas. Novos medicamentos e procedimentos são geralmente utilizados em pacientes pediátricos por extrapolação de dados provenientes de ensaios clínicos em adultos.(88 Kelly LE, Dyson MP, Butcher NJ, Balshaw R, London AJ, Neilson CJ, et al. Considerations for adaptive design in pediatric clinical trials: study protocol for a systematic review, mixed-methods study, and integrated knowledge translation plan. Trials. 2018;19(1):572.) Segundo o site PICUtrials (http://picutrials.net/), que registra os ensaios clínicos randomizados controlados (RCTs) realizados em UTI pediátrica, entre 1986 e janeiro de 2021 foram registrados 483 RCTs, dos quais apenas 33 (6,8%) estudaram sepse em crianças.(99 PICU trials. https://picutrials.net/ Accessed Jan 06 2021.
https://picutrials.net/...
) A maioria dos estudos foi realizada em países desenvolvidos, envolveu um ou dois centros e incluiu entre 50 e 100 crianças.

Menos de uma em cada 100 admissões em UTI pediátrica são recrutadas para participar de ensaios clínicos.(1010 Choong K, Duffett M, Cook DJ, Randolph AG. The impact of clinical trials conducted by research networks in pediatric critical care. Pediatr Crit Care Med. 2016;17(9):837-44.) A inclusão de crianças é dificultada por aspectos como vulnerabilidade e, sobretudo em PBMRs, por questões éticas, que envolvem o consentimento informado dos pais, dadas às diferenças culturais que podem existir entre pesquisadores e participantes - muitos com baixa escolaridade e dificuldade de compreensão.

Outra dificuldade dos estudos em sepse se deve às próprias características da síndrome: apresentação clínica variada e inespecífica, fisiopatologia complexa, dinâmica e grupo heterogêneo de pacientes.(1111 Goldstein B, Giroir B, Randolph A; International Consensus Conference on Pediatric Sepsis. International pediatric sepsis consensus conference: definitions for sepsis and organ dysfunction in pediatrics. Pediatr Crit Care Med. 2005;6(1):2-8.) Na população pediátrica, essa variabilidade e heterogeneidade são ainda mais evidentes, considerando as diferentes faixas etárias, as rápidas alterações do quadro clínico e hemodinâmico e a menor mortalidade; quando comparadas às da população adulta, são fatores que dificultam a realização de pesquisas.(1212 Fischer JE. Physicians’ ability to diagnose sepsis in newborns and critically ill children. Pediatr Crit Care Med. 2005;6(3 Suppl):S120-5.)

Em cenários com limitações de recursos, a prática clínica, em geral, não é baseada em fortes evidências, mas sim na opinião ou na experiência de especialistas e em informações de estudos realizados em países com melhores condições econômicas. Essa abordagem “adaptada” aos PBMRs pode representar um grande equívoco, como demonstrou o estudo FEAST,(1313 Maitland K, Kiguli S, Opoka RO, Engoru C, Olupot-Olupot P, Akech SO, Nyeko R, Mtove G, Reyburn H, Lang T, Brent B, Evans JA, Tibenderana JK, Crawley J, Russell EC, Levin M, Babiker AG, Gibb DM; FEAST Trial Group. Mortality after fluid bolus in African children with severe infection. N Engl J Med. 2011;364(26):2483-95.) que levantou a preocupação com a ressuscitação volêmica agressiva em crianças com choque séptico em cenários com limitação de recursos e levou a uma revisão das diretrizes de tratamento do choque séptico, que já pode ser vista nas novas recomendações da Campanha Sobrevivendo à Sepse.(1414 Weiss SL, Peters MJ, Alhazzani W, Agus MS, Flori HR, Inwald DP, et al. Surviving Sepsis Campaign International Guidelines for the Management of Septic Shock and Sepsis-Associated Organ Dysfunction in Children. Pediatr Crit Care Med. 2020;21(2):e52-e106.)

Apesar da relevância e do pouco conhecimento da sepse pediátrica em PBMRs, poucos recursos são investidos nessas pesquisas, o que resulta em infraestrutura deficitária, sobrecarga da demanda assistencial, pouco incentivo à formação de novos pesquisadores e ausência de recursos específicos para pesquisa (Figura 1). A disparidade da utilização de recursos financeiros para pesquisa nas diferentes regiões do planeta é demonstrada pelo 10/90 gap: apenas 10% dos recursos destinados à pesquisa em saúde no mundo são direcionados para patologias que afetam 90% da população mais pobre.(1515 World Health Organization (WHO). Institutional Repository for Information Sharing (IRIS). The 10/90 (ten ninety) report on health research 2003-2004. Genève: WHO; c2021 [cited 2021 Jan 31]. Available from https://apps.who.int/iris/handle/10665/44386
https://apps.who.int/iris/handle/10665/4...
) Com base em dados do World Bank, Argent et al. relataram que os recursos disponíveis para os cuidados de saúde podem variar até cem vezes nas diferentes regiões do planeta e até dez vezes entre PBMRs.(1616 Argent AC, Chisti MJ, Ranjit S. What’s new in PICU in resource limited settings? Intensive Care Med. 2018;44(4):467-9.)

Carência de pesquisadores experientes, falta de cultura relacionada à pesquisa clínica e sobrecarga de trabalho em UTIs pediátricas são obstáculos citados para a realização de pesquisas em PBMRs, segundo estudo realizado pelo PALISI Global Health.(1717 von Saint André-von Arnim AO, Attebery J, Kortz TB, Kissoon N, Molyneux EM, Musa NL, Nielsen KR, Fink EL; Pediatric Acute Lung Injury and Sepsis Investigators (PALISI) Network. Challenges and priorities for pediatric critical care clinician-researchers in low- and middle-income countries. Front Pediatr. 2017;5:277.) Outros limitantes incluem falta de treinamento em pesquisa, dificuldade de recrutar pacientes, ausência de tempo dedicado exclusivamente para pesquisas, ausência de carreira em pesquisa, dificuldade de suporte estatístico, diferentes modelos de previsão/estratificação de risco, capacidade limitada dos serviços de microbiologia, despreparo dos conselhos de ética, inexperiência na elaboração de manuscritos e dificuldade de publicar em revistas de impacto.(1717 von Saint André-von Arnim AO, Attebery J, Kortz TB, Kissoon N, Molyneux EM, Musa NL, Nielsen KR, Fink EL; Pediatric Acute Lung Injury and Sepsis Investigators (PALISI) Network. Challenges and priorities for pediatric critical care clinician-researchers in low- and middle-income countries. Front Pediatr. 2017;5:277.,1818 Duffett M, Choong K, Foster J, Meade M, Menon K, Parker M, Cook DJ; Canadian Critical Care Trials Group. High-quality randomized controlled trials in pediatric critical care: a survey of barriers and facilitators. Pediatr Crit Care Med. 2017;18(5):405-13.) A escassez de periódicos científicos locais dificulta ainda mais o incentivo à pesquisa e à publicação da realidade singular desses países, com impacto não apenas na quantidade, mas também na qualidade dos ensaios clínicos.

Figura 1
Desafios e dificuldades para a realização de pesquisa em países de baixa e média renda.

Outros desafios envolvem a diversidade de hospedeiros, agentes etiológicos e cenários, sobretudo onde há desigualdade econômica e de infraestrutura evidentes.(1919 Kwizera A, Baelani I, Mer M, Kissoon N, Schultz MJ, Patterson AJ, Musa N, Farmer JC, Dünser MW; Sepsis in Resource-Limited Settings Workgroup of the Surviving Sepsis Campaign. The long sepsis journey in low- and middle-income countries begins with a first step...but on which road? Crit Care. 2018;22(1):64.

20 Schultz MJ, Dunser MW, Dondorp AM, Adhikari NK, Iyer S, Kwizera A, Lubell Y, Papali A, Pisani L, Riviello BD, Angus DC, Azevedo LC, Baker T, Diaz JV, Festic E, Haniffa R, Jawa R, Jacob ST, Kissoon N, Lodha R, Martin-Loeches I, Lundeg G, Misango D, Mer M, Mohanty S, Murthy S, Musa N, Nakibuuka J, Serpa Neto A, Nguyen Thi Hoang M, Nguyen Thien B, Pattnaik R, Phua J, Preller J, Povoa P, Ranjit S, Talmor D, Thevanayagam J, Thwaites CL; Global Intensive Care Working Group of the European Society of Intensive Care Medicine. Current challenges in the management of sepsis in ICUs in resource-poor settings and suggestions for the future. Intensive Care Med. 2017;43(5):612-24.
-2121 Machado FR, Azevedo LC. Sepsis: a threat that needs a global solution. Crit Care Med. 2018;46(3):454-9.) O espectro da sepse pediátrica em PBMRs é ainda maior, com maior heterogeneidade da população (hospedeiro) e maior espectro dos agentes, incluindo tuberculose, arbovírus, protozoários e outros parasitas incomuns em países desenvolvidos.(2020 Schultz MJ, Dunser MW, Dondorp AM, Adhikari NK, Iyer S, Kwizera A, Lubell Y, Papali A, Pisani L, Riviello BD, Angus DC, Azevedo LC, Baker T, Diaz JV, Festic E, Haniffa R, Jawa R, Jacob ST, Kissoon N, Lodha R, Martin-Loeches I, Lundeg G, Misango D, Mer M, Mohanty S, Murthy S, Musa N, Nakibuuka J, Serpa Neto A, Nguyen Thi Hoang M, Nguyen Thien B, Pattnaik R, Phua J, Preller J, Povoa P, Ranjit S, Talmor D, Thevanayagam J, Thwaites CL; Global Intensive Care Working Group of the European Society of Intensive Care Medicine. Current challenges in the management of sepsis in ICUs in resource-poor settings and suggestions for the future. Intensive Care Med. 2017;43(5):612-24.)

É possível fazer estudos clínicos em condições adversas

Apesar das dificuldades, é necessário que os PBMRs invistam em pesquisas e na produção de suas próprias evidências, uma vez que não se sabe o suficiente sobre o impacto da sepse e é necessário reduzir risco e morbimortalidade nessas regiões. Segundo Argent et al., nos PBMRs, a abordagem da sepse pediátrica, incluindo pesquisas, deve ser pragmática e não ideal, de forma a amenizar a limitação de recursos.(1616 Argent AC, Chisti MJ, Ranjit S. What’s new in PICU in resource limited settings? Intensive Care Med. 2018;44(4):467-9.)

Pesquisadores dessas regiões vêm realizando RCTs de boa qualidade e mudando paradigmas. No Brasil, de Oliveira et al. demonstraram que a reanimação de crianças com choque séptico de acordo com as diretrizes do American College of Critical Care Medicine/Pediatric Advanced Life Support (ACCM/PALS) pode resultar em menor morbidade e mortalidade quando associada à monitorização contínua da saturação venosa central de oxigênio (SvcO2). A ressuscitação guiada pela meta de SvcO2 ≥ 70% teve impacto significativo no desfecho de crianças com choque séptico.(2222 de Oliveira CF, de Oliveira DS, Gottschald AF, Moura JD, Costa GA, Ventura AC, et al. ACCM/PALS haemodynamic support guidelines for paediatric septic shock: an outcomes comparison with and without monitoring central venous oxygen saturation. Intensive Care Med. 2008;34(6):1065-75.) Também no Brasil, Ventura et al. demonstraram que o uso da dopamina como droga de primeira escolha no choque séptico pediátrico foi associado a risco aumentado de óbito e infecção. A administração precoce de epinefrina por acesso venoso periférico ou intraósseo aumentou significativamente a sobrevida.(2323 Ventura AM, Shieh HH, Bousso A, Góes PF, de Cássia F O Fernandes I, de Souza DC, et al. Double-blind prospective randomized controlled trial of dopamine versus epinephrine as first-line vasoactive drugs in pediatric septic shock. Crit Care Med. 2015;43(11):2292-302.)

Na Índia, Ranjit et al., por meio de avaliação multimodal, permitiram melhor entendimento do status hemodinâmico no choque séptico refratário a fluidos, demonstrando que o perfil hiperdinâmico também é comum na sepse pediátrica, oferecendo justificativa para o uso de norepinefrina precoce.(2424 Ranjit S, Aram G, Kissoon N, Ali K, Natraj R, Shresti S, et al. Multimodal monitoring for hemodynamic categorization and management of pediatric septic shock: a pilot observational study. Pediatr Crit Care Med. 2014;15(1):e17-26.) Esses mesmos autores avaliaram a ressuscitação de crianças com choque séptico por meio da administração restritiva de fluidos (30mL/kg) e uso precoce de norepinefrina, concluindo que essa estratégia pode ser benéfica quando comparada com as diretrizes propostas pela ACCM, uma vez que os pacientes do grupo intervenção receberam menos fluidos e tiveram mais dias livres de ventilação mecânica.(2525 Ranjit S, Natraj R, Kandath SK, Kissoon N, Ramakrishnan B, Marik PE. Early norepinephrine decreases fluid and ventilatory requirements in pediatric vasodilatory septic shock. Indian J Crit Care Med. 2016;20(10):561-9.) Estudos como estes promoveram mudanças nas diretrizes internacionais de diagnóstico e tratamento e demonstraram que PBMRs são capazes de produzir suas próprias evidências, além de possuírem número significativamente maior de casos. No entanto, ainda são iniciativas pontuais, frutos de grandes esforços individuais.

Perspectivas em pesquisa em sepse pediátrica em países de baixa e média renda

Existem soluções que podem estimular a pesquisa em países em desenvolvimento. Duffett et al. apontaram algumas intervenções para promover a realização de RCTs em UTI pediátrica: colaboração e trabalho com pesquisadores experientes e redes de pesquisa internacionais, reforço da cultura de pesquisa clínica como um processo de melhoria de qualidade nas instituições e busca de recursos financeiros em países em desenvolvimento por meio da colaboração e agências de fomento para pesquisa. Mudança de cultura em relação à importância de estudos clínicos na construção de evidências que melhorem a prática assistencial e apoio dos departamentos e instituições são também passos primordiais.(1818 Duffett M, Choong K, Foster J, Meade M, Menon K, Parker M, Cook DJ; Canadian Critical Care Trials Group. High-quality randomized controlled trials in pediatric critical care: a survey of barriers and facilitators. Pediatr Crit Care Med. 2017;18(5):405-13.)

A colaboração entre países de baixa/média e alta renda proporciona possibilidade de treinamento formal para realização de pesquisas, elaboração e publicação de manuscritos, protocolos e diretrizes. Algumas iniciativas, como o Methods in Epidemiologic, Clinical, and Operations Research Program (MECOR), um programa de capacitação em pesquisa em PBMRs, desenvolvido pela American Thoracic Society (ATS), têm capacitado jovens pesquisadores em todo o mundo.(2626 26. Buist AS, Parry V. The American Thoracic Society methods in epidemiologic, clinical, and operations research program. A research capacity-building program in low- and middle-income countries. Ann Am Thorac Soc. 2013;10(4):281-9.)

A importância de estudos multicêntricos, grandes bancos de dados e redes colaborativas

Segundo o estudo SPROUT, considerando a mortalidade em UTIs pediátricas, o desfecho mais utilizado em ensaios clínicos, estima-se que seriam necessários 1.059 pacientes em cada grupo (controle/intervenção), em 58 UTIs pediátricas, durante período de 3 anos, para redução de 5% no risco de óbito (poder 80%), confirmando que estudos bem delineados visando ao desfecho mortalidade só são viáveis com colaboração e pesquisas multicêntricas.(11 Weiss SL, Fitzgerald JC, Pappachan J, Wheeler D, Jaramillo-Bustamante JC, Salloo A, Singhi SC, Erickson S, Roy JA, Bush JL, Nadkarni VM, Thomas NJ; Sepsis Prevalence, Outcomes, and Therapies (SPROUT) Study Investigators and Pediatric Acute Lung Injury and Sepsis Investigators (PALISI) Network. Global epidemiology of pediatric severe sepsis: the sepsis prevalence, outcomes, and therapies study. Am J Respir Crit Care Med. 2015;191(10):1147-57.)

Nos últimos anos, foram publicados importantes estudos em terapia intensiva pediátrica desenvolvidos a partir de dados extraídos de grandes bancos.(2727 Schlapbach LJ, Straney L, Alexander J, MacLaren G, Festa M, Schibler A, Slater A; ANZICS Paediatric Study Group. Mortality related to invasive infections, sepsis, and septic shock in critically ill children in Australia and New Zealand, 2002-13: a multicentre retrospective cohort study. Lancet Infect Dis. 2015;15(1):46-54.

28 Schlapbach LJ, Straney L, Bellomo R, MacLaren G, Pilcher D. Prognostic accuracy of age-adapted SOFA, SIRS, PELOD-2, and qSOFA for in-hospital mortality among children with suspected infection admitted to the intensive care unit. Intensive Care Med. 2018;44(2):179-88.
-2929 Sanchez-Pinto LN, Stroup EK, Pendergrast T, Pinto N, Luo Y. Derivation and validation of novel phenotypes of multiple organ dysfunction syndrome in critically ill children. JAMA Netw Open. 2020;3(8):e209271.) Embora existam diferenças na estrutura e processos entre instituições hospitalares, grandes bancos que registram sistematicamente os dados são capazes de ajustar os casos-index e auxiliar no entendimento da prática clínica. Além disso, podem fornecer dados de viabilidade para realização de RCTs, monitorar desempenho e planejar o desenvolvimento de estratégias para melhorar o prognóstico de diferentes doenças.

Redes colaborativas de pesquisa podem facilitar a realização de RCTs, tanto em quantidade quanto em qualidade, proporcionando avanços no conhecimento e prognóstico de diversas patologias. Segundo Choong et al., uma rede de pesquisa pode ser definida como um consórcio formal, coletivo, cooperativo ou colaborativo, com o objetivo de facilitar a condução de pesquisas clínicas.(1010 Choong K, Duffett M, Cook DJ, Randolph AG. The impact of clinical trials conducted by research networks in pediatric critical care. Pediatr Crit Care Med. 2016;17(9):837-44.) As redes ajudam a identificar e priorizar as agendas de pesquisa; estabelecem temas de interesse comum e promovem a pesquisa liderada por investigadores experientes. Estudos conduzidos por redes de pesquisa são capazes de envolver um número maior de paciente e avaliar desfechos mais relevantes, com evidências de melhor qualidade e maiores chances de publicação em revistas de impacto e maior número de citações. Da mesma forma, têm mais chances de receber financiamento de agências de fomento.

Em países desenvolvidos, algumas redes como Canadian Critical Care Trials Group, do Canadá, Pediatric Acute Lung Injury and Sepsis Investigators (PALISI), dos Estados Unidos, e Australian and New Zealand Intensive Care Society Clinical Trials Group (ANZICS-CTG), da Austrália e Nova Zelândia, são exemplos de grupos de terapia intensiva pediátrica bem estabelecidos. No entanto, o número de RCTs conduzidos por essas redes ainda é relativamente pequeno e não incluiu, até o momento, nenhum RCT em sepse pediátrica.

Em PBMRs, redes colaborativas de pesquisa em terapia intensiva pediátrica vêm se desenvolvendo nos últimos anos. Na América Latina, especificamente, duas redes de pesquisa colaborativas foram criadas: a Red Colaborativa Pediátrica de Latinoamerica (LaRED), que tem como missão melhorar a qualidade e a segurança dos cuidados médicos para crianças e suas famílias, por meio de um programa coordenado de projetos de pesquisa, educação e melhoria da qualidade; e a Brazilian Research Network in Pediatric Intensive Care (BRnet PIC), com o objetivo de auxiliar as UTIs pediátricas e pesquisadores na condução de estudos clínicos, translacionais e epidemiológicos.

Considerações finais

Considerando que a maioria dos óbitos em crianças menores de 5 anos ocorre em países com limitação de recursos e decorre de doenças infecciosas e sepse, é mandatório que a realização de pesquisas nessas regiões se torne uma prioridade, proporcionando elaboração de evidências locais e desenvolvimento de diretrizes específicas que possibilitem redução da morbimortalidade de crianças com sepse. As evidências disponíveis sobre sepse pediátrica em PBMRs sugerem que o tratamento desses pacientes não está sendo realizado da melhor forma. Essas constatações reforçam que os PBMRs precisam produzir suas próprias evidências, deixando de ser apenas coadjuvantes e usuários de evidências produzidas por países desenvolvidos. Esse caminho é desafiador, porém necessário.

REFERÊNCIAS

  • 1
    Weiss SL, Fitzgerald JC, Pappachan J, Wheeler D, Jaramillo-Bustamante JC, Salloo A, Singhi SC, Erickson S, Roy JA, Bush JL, Nadkarni VM, Thomas NJ; Sepsis Prevalence, Outcomes, and Therapies (SPROUT) Study Investigators and Pediatric Acute Lung Injury and Sepsis Investigators (PALISI) Network. Global epidemiology of pediatric severe sepsis: the sepsis prevalence, outcomes, and therapies study. Am J Respir Crit Care Med. 2015;191(10):1147-57.
  • 2
    Liu L, Oza S, Hogan D, Chu Y, Perin J, Zhu J, et al. Global, regional, and national causes of under-5 mortality in 2000-15: an updated systematic analysis with implications for the Sustainable Development Goals. Lancet. 2016;388(10063):3027-35.
  • 3
    Chisti MJ, Salam MA, Bardhan PK, Faruque AS, Shahid AS, Shahunja KM, et al. Treatment failure and mortality amongst children with severe acute malnutrition presenting with cough or respiratory difficulty and radiological pneumonia. PLoS One. 2015;10(10):e0140327.
  • 4
    Rudd KE, Johnson SC, Agesa KM, Shackelford KA, Tsoi D, Kievlan DR, et al. Global, regional, and national sepsis incidence and mortality, 1990-2017: analysis for the Global Burden of Disease Study. Lancet. 2020;395(10219):200-11.
  • 5
    Fleischmann-Struzek C, Goldfarb DM, Schlattmann P, Schlapbach LJ, Reinhart K, Kissoon N. The global burden of paediatric and neonatal sepsis: a systematic review. Lancet Respir Med. 2018;6(3):223-30.
  • 6
    Tan B, Wong JJ, Sultana R, Koh JC, Jit M, Mok YH, et al. Global case-fatality rates in pediatric severe sepsis and septic shock: a systematic review and meta-analysis. JAMA Pediatr. 2019;173(4):352-62.
  • 7
    Reinhart K, Daniels R, Kissoon N, Machado FR, Schachter RD, Finfer S. Recognizing Sepsis as a Global Health Priority - A WHO Resolution. N Engl J Med. 2017;377(5):414-7.
  • 8
    Kelly LE, Dyson MP, Butcher NJ, Balshaw R, London AJ, Neilson CJ, et al. Considerations for adaptive design in pediatric clinical trials: study protocol for a systematic review, mixed-methods study, and integrated knowledge translation plan. Trials. 2018;19(1):572.
  • 9
    PICU trials. https://picutrials.net/ Accessed Jan 06 2021.
    » https://picutrials.net/
  • 10
    Choong K, Duffett M, Cook DJ, Randolph AG. The impact of clinical trials conducted by research networks in pediatric critical care. Pediatr Crit Care Med. 2016;17(9):837-44.
  • 11
    Goldstein B, Giroir B, Randolph A; International Consensus Conference on Pediatric Sepsis. International pediatric sepsis consensus conference: definitions for sepsis and organ dysfunction in pediatrics. Pediatr Crit Care Med. 2005;6(1):2-8.
  • 12
    Fischer JE. Physicians’ ability to diagnose sepsis in newborns and critically ill children. Pediatr Crit Care Med. 2005;6(3 Suppl):S120-5.
  • 13
    Maitland K, Kiguli S, Opoka RO, Engoru C, Olupot-Olupot P, Akech SO, Nyeko R, Mtove G, Reyburn H, Lang T, Brent B, Evans JA, Tibenderana JK, Crawley J, Russell EC, Levin M, Babiker AG, Gibb DM; FEAST Trial Group. Mortality after fluid bolus in African children with severe infection. N Engl J Med. 2011;364(26):2483-95.
  • 14
    Weiss SL, Peters MJ, Alhazzani W, Agus MS, Flori HR, Inwald DP, et al. Surviving Sepsis Campaign International Guidelines for the Management of Septic Shock and Sepsis-Associated Organ Dysfunction in Children. Pediatr Crit Care Med. 2020;21(2):e52-e106.
  • 15
    World Health Organization (WHO). Institutional Repository for Information Sharing (IRIS). The 10/90 (ten ninety) report on health research 2003-2004. Genève: WHO; c2021 [cited 2021 Jan 31]. Available from https://apps.who.int/iris/handle/10665/44386
    » https://apps.who.int/iris/handle/10665/44386
  • 16
    Argent AC, Chisti MJ, Ranjit S. What’s new in PICU in resource limited settings? Intensive Care Med. 2018;44(4):467-9.
  • 17
    von Saint André-von Arnim AO, Attebery J, Kortz TB, Kissoon N, Molyneux EM, Musa NL, Nielsen KR, Fink EL; Pediatric Acute Lung Injury and Sepsis Investigators (PALISI) Network. Challenges and priorities for pediatric critical care clinician-researchers in low- and middle-income countries. Front Pediatr. 2017;5:277.
  • 18
    Duffett M, Choong K, Foster J, Meade M, Menon K, Parker M, Cook DJ; Canadian Critical Care Trials Group. High-quality randomized controlled trials in pediatric critical care: a survey of barriers and facilitators. Pediatr Crit Care Med. 2017;18(5):405-13.
  • 19
    Kwizera A, Baelani I, Mer M, Kissoon N, Schultz MJ, Patterson AJ, Musa N, Farmer JC, Dünser MW; Sepsis in Resource-Limited Settings Workgroup of the Surviving Sepsis Campaign. The long sepsis journey in low- and middle-income countries begins with a first step...but on which road? Crit Care. 2018;22(1):64.
  • 20
    Schultz MJ, Dunser MW, Dondorp AM, Adhikari NK, Iyer S, Kwizera A, Lubell Y, Papali A, Pisani L, Riviello BD, Angus DC, Azevedo LC, Baker T, Diaz JV, Festic E, Haniffa R, Jawa R, Jacob ST, Kissoon N, Lodha R, Martin-Loeches I, Lundeg G, Misango D, Mer M, Mohanty S, Murthy S, Musa N, Nakibuuka J, Serpa Neto A, Nguyen Thi Hoang M, Nguyen Thien B, Pattnaik R, Phua J, Preller J, Povoa P, Ranjit S, Talmor D, Thevanayagam J, Thwaites CL; Global Intensive Care Working Group of the European Society of Intensive Care Medicine. Current challenges in the management of sepsis in ICUs in resource-poor settings and suggestions for the future. Intensive Care Med. 2017;43(5):612-24.
  • 21
    Machado FR, Azevedo LC. Sepsis: a threat that needs a global solution. Crit Care Med. 2018;46(3):454-9.
  • 22
    de Oliveira CF, de Oliveira DS, Gottschald AF, Moura JD, Costa GA, Ventura AC, et al. ACCM/PALS haemodynamic support guidelines for paediatric septic shock: an outcomes comparison with and without monitoring central venous oxygen saturation. Intensive Care Med. 2008;34(6):1065-75.
  • 23
    Ventura AM, Shieh HH, Bousso A, Góes PF, de Cássia F O Fernandes I, de Souza DC, et al. Double-blind prospective randomized controlled trial of dopamine versus epinephrine as first-line vasoactive drugs in pediatric septic shock. Crit Care Med. 2015;43(11):2292-302.
  • 24
    Ranjit S, Aram G, Kissoon N, Ali K, Natraj R, Shresti S, et al. Multimodal monitoring for hemodynamic categorization and management of pediatric septic shock: a pilot observational study. Pediatr Crit Care Med. 2014;15(1):e17-26.
  • 25
    Ranjit S, Natraj R, Kandath SK, Kissoon N, Ramakrishnan B, Marik PE. Early norepinephrine decreases fluid and ventilatory requirements in pediatric vasodilatory septic shock. Indian J Crit Care Med. 2016;20(10):561-9.
  • 26
    26 Buist AS, Parry V. The American Thoracic Society methods in epidemiologic, clinical, and operations research program. A research capacity-building program in low- and middle-income countries. Ann Am Thorac Soc. 2013;10(4):281-9.
  • 27
    Schlapbach LJ, Straney L, Alexander J, MacLaren G, Festa M, Schibler A, Slater A; ANZICS Paediatric Study Group. Mortality related to invasive infections, sepsis, and septic shock in critically ill children in Australia and New Zealand, 2002-13: a multicentre retrospective cohort study. Lancet Infect Dis. 2015;15(1):46-54.
  • 28
    Schlapbach LJ, Straney L, Bellomo R, MacLaren G, Pilcher D. Prognostic accuracy of age-adapted SOFA, SIRS, PELOD-2, and qSOFA for in-hospital mortality among children with suspected infection admitted to the intensive care unit. Intensive Care Med. 2018;44(2):179-88.
  • 29
    Sanchez-Pinto LN, Stroup EK, Pendergrast T, Pinto N, Luo Y. Derivation and validation of novel phenotypes of multiple organ dysfunction syndrome in critically ill children. JAMA Netw Open. 2020;3(8):e209271.

Editado por

Editor responsável: Felipe Dal-Pizzol

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Out 2021
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2021

Histórico

  • Recebido
    03 Mar 2021
  • Aceito
    09 Mar 2021
Associação de Medicina Intensiva Brasileira - AMIB Rua Arminda, 93 - Vila Olímpia, CEP 04545-100 - São Paulo - SP - Brasil, Tel.: (11) 5089-2642 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: rbti.artigos@amib.com.br