Acessibilidade / Reportar erro

Infecções relacionadas à assistência à saúde no Brasil: precisamos de mais do que colaboração

Infecções relacionadas à assistência à saúde (IRAS) e multirresistência a antimicrobianos exigem um esforço global para sua contenção.(11 Balakrishnan VS. WHO’s first global infection prevention and control report. Lancet Infect Dis. 2022;22(8):1122.) As IRAS têm prevalência estimada entre 7 - 10% mundialmente, e, considerando os países em desenvolvimento, a incidência chega a 15%. Essa diferença é mais marcante quando comparadas às incidências de IRAS nas unidades de terapia intensiva (UTIs), estimada em 47,9 por mil pacientes/dia em países em desenvolvimento e 13,9 por mil pacientes/dia nos Estados Unidos.(22 Allegranzi B, Bagheri Nejad S, Combescure C, Graafmans W, Attar H, Donaldson L, et al. Burden of endemic health-care-associated infection in developing countries: systematic review and meta-analysis. Lancet. 2011;377(9761):228-41.)

O impacto das IRAS é amplo: maior tempo de internação e maior mortalidade, principalmente quando as infecções são associadas à multirresistência.(33 Zhou Q, Fan L, Lai X, Tan L, Zhang X. Estimating extra length of stay and risk factors of mortality attributable to healthcare-associated infection at a Chinese university hospital: a multi-state model. BMC Infect Dis. 2019;19(1):975.,44 Barrasa-Villar JI, Aibar-Remón C, Prieto-Andrés P, Mareca-Doñate R, Moliner-Lahoz J. Impact on morbidity, mortality, and length of stay of hospital-acquired infections by resistant microorganisms. Clin Infect Dis. 2017;65(4):644-52.) Cassini et al. demonstraram que, em 2015, cerca de 670 mil pacientes morreram devido à multirresistência, 63,5% deles associados a cuidados de saúde. Essas infecções também foram associadas a número significativo de disability-adjusted-life-years (esperança de vida corrigida pela incapacidade).(55 Cassini A, Högberg LD, Plachouras D, Quattrocchi A, Hoxha A, Simonsen GS, Colomb-Cotinat M, Kretzschmar ME, Devleesschauwer B, Cecchini M, Ouakrim DA, Oliveira TC, Struelens MJ, Suetens C, Monnet DL; Burden of AMR Collaborative Group. Attributable deaths and disability-adjusted life-years caused by infections with antibiotic-resistant bacteria in the EU and the European Economic Area in 2015: a population-level modelling analysis. Lancet Infect Dis. 2019;19(1):56-66.) Quase US$15 bilhões foram gastos em 2016 devido às IRAS, e €8.500 a 34 mil por infecção são gastos a mais devido ao tempo de internação mais longo e tratamentos adicionais, como estimado pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).(66 Forrester JD, Maggio PM, Tennakoon L. Cost of health care-associated infections in the United States. J Patient Saf. 2022;18(2):e477-e9.,77 Organization for Economic Cooperation and Development (OECD)/European Union. Health at a Glance: Europe 2018. State of health in the EU cycle. Paris: OECD Publishing; 2018. Available in https://www.oecd-ilibrary.org/social-issues-migration-health/health-at-a-glance-europe-2018_health_glance_eur-2018-en
https://www.oecd-ilibrary.org/social-iss...
)

Alguns esforços têm sido realizados para redução da incidência de IRAS e seus efeitos. Intervenções de prevenção e controle de infecções, como higiene de mãos e profilaxia perioperatória, podem reduzir a ocorrência de IRAS.(88 Allegranzi B, Pittet D. Role of hand hygiene in healthcare-associated infection prevention. J Hosp Infect. 2009;73(4):305-15.,99 Leaper DJ, Edmiston CE. World Health Organization: global guidelines for the prevention of surgical site infection. J Hosp Infect. 2017;95(2):135-6.) No entanto, programas de prevenção ainda são encontrados em quantidade reduzida e heterogênea no mundo. Segundo dados do Tripartite Antimicrobial Resistance Country Self-assessment Survey (TrACSS), um sistema para monitorização do progresso da implementação do plano de ação global de resistência antimicrobiana, cerca de 24% dos países reportaram possuir programas de prevenção e controle de infecção implementados em nível nacional.(11 Balakrishnan VS. WHO’s first global infection prevention and control report. Lancet Infect Dis. 2022;22(8):1122.)

Dados sobre IRAS no Brasil são escassos. Nessa edição da Revista Brasileira de Terapia Intensiva, de Melo et al. relataram os fatores contribuintes para o sucesso de um projeto colaborativo de melhoria de qualidade conduzido entre 2018 e 2019 em cinco UTIs de hospitais da Região Metropolitana de Recife.(1010 Melo LS, Estevão TM, Chaves JS, Vieira JM, Siqueira MM, Alcoforado IL, et al. Success factors of a collaborative project to reduce healthcare-associated infections in intensive care units in Northeastern Brazil. Rev Bras Ter Intensiva. 2022;34(3):327-34.) Algumas UTIs começaram com taxa basal de pneumonia associada à ventilação elevada, com medianas na casa de 20 infecções/mil pacientes-dia, sendo observada redução após a colaborativa. Para infecções de corrente sanguínea (ICS) relacionadas a cateter, a mediana de taxas era entre 5 e 10/mil pacientes-dia, mas não foram observadas reduções. Para infecções urinárias relacionadas a cateter, redução expressiva foi observada em dois hospitais, com maiores taxas basais da infecção. A colaborativa levou a reduções das IRAS, mas não a níveis descritos na literatura, como a níveis de ICS próximos a zero. Os autores relatam que o fator associado ao êxito no hospital mais bem-sucedido foi o engajamento completo da equipe da UTI, incluindo lideranças médicas e de enfermagem, além de participação ativa de membros da equipe multiprofissional e da presença de médico e enfermeiro diaristas responsáveis pelas visitas diárias. A enfermagem da UTI participava de ciclos de Plan-Do-Study-Act (PDSA) e atividades educacionais. Por outro lado, nos hospitais em que a redução não foi obtida, não houve engajamento completo da liderança e da equipe médica devido à percepção de sobrecarga de trabalho e outros problemas.

Esses resultados são significativos porque mostram o potencial de melhora de IRAS em hospitais brasileiros. Por outro lado, eles são alarmantes, devido às altas taxas ainda observadas e por ainda estarem longe do ideal. Isso nos leva ao questionamento: como podemos atingir alta qualidade em cuidados intensivos no Brasil (incluindo redução dos níveis de IRAS)?

Para atingir melhores resultados em IRAS e outros desfechos em pacientes críticos, devemos lutar por melhores números de enfermagem e da equipe multiprofissional no Brasil.(1111 Zampieri FG, Salluh JI, Azevedo LC, Kahn JM, Damiani LP, Borges LP, Viana WN, Costa R, Corrêa TD, Araya DE, Maia MO, Ferez MA, Carvalho AG, Knibel MF, Melo UO, Santino MS, Lisboa T, Caser EB, Besen BA, Bozza FA, Angus DC, Soares M; ORCHESTRA Study Investigators. ICU staffing feature phenotypes and their relationship with patients’ outcomes: an unsupervised machine learning analysis. Intensive Care Med. 2019;45(11):1599-607.) Infelizmente, nossa regulamentação é frágil, e isso continuará a ser uma barreira contínua na melhoria das práticas para prevenção de IRAS e demais desfechos. É necessário garantir que um número adequado de profissionais seja assegurado para prover cuidados e práticas de seguranças no ambiente intensivo, por meio de regulamentação adequada e fiscalização regular por parte das autoridades reguladoras.

Apenas o número de profissionais não basta: devemos treinar a próxima geração de intensivistas (médicos, enfermeiros, farmacêuticos, fisioterapeutas e demais membros da equipe multiprofissional) para os princípios da terapia intensiva moderna. Riscos e benefícios devem ser considerados para evitar o cuidado intensivo em excesso, expondo pacientes ao tratamento menos invasivo necessário para sua recuperação.(1212 Lobo SM, Mendes CL, Rezende E. Choosing Wisely in intensive care medicine. Rev Bras Ter Intensiva. 2020;32(1):11-3.) A busca contínua por melhoria de qualidade deve ser parte do cuidado de UTI por meio de decisões baseadas em dados,(1313 Zampieri FG, Soares M, Salluh JI. How to evaluate intensive care unit performance during the COVID-19 pandemic. Rev Bras Ter Intensiva. 2020;32(2):203-6.) não implementadas de forma vertical. Estratégias que incentivem as equipes a adotar a melhoria contínua como sua responsabilidade são a chave para melhores desfechos. Consultorias colaborativas externas podem ajudar a identificar problemas e encontrar soluções em potencial; os resultados, no entanto, dependem do engajamento das equipes e responsabilização pelos resultados.

A estrutura e a provisão de material e equipamentos necessários para o cuidado adequado também são essenciais. Administradores hospitalares e demais partes não envolvidas diretamente no cuidado devem ser corresponsáveis e fornecer o mínimo necessário para uma prática hospitalar segura. Em instituições públicas, é comum, por exemplo, que cuffômetros não sejam repostos quando danificados ou que swabs de álcool para limpeza de conexões estejam em falta, expondo os pacientes a dano evitável; profissionais de saúde a estresse moral e esgotamento;(1414 Castro CS, Timenetsky KT, Katz M, Corrêa TD, Felicio AC, Moriyama T, et al. Burnout syndrome and engagement among critical care providers: a cross-sectional study. Rev Bras Ter Intensiva. 2020;32(3):381-90.) e nosso sistema de saúde a aumento desnecessário de custos e ineficiência.

Além dessas necessidades, tem aumentado o interesse em cobertura com tele-UTI, outra solução proposta para melhorar a qualidade de cuidado em UTIs brasileiras, com resultados aguardados em estudos clínicos.(1515 Ranzani O, Pereira AJ, Santos MC, Corrêa TD, Ferraz LJ, Cordioli E, et al. Statistical analysis of a cluster-randomized clinical trial on adult general intensive care units in Brazil: TELE-critical care verSus usual Care On ICU PErformance (TELESCOPE) trial. Rev Bras Ter Intensiva. 2022;34(1):87-95.) Apesar de prover a expertise necessária em regiões em que intensivistas não estão disponíveis, a telemedicina não é uma solução para todos nossos problemas, especialmente agora que caminhamos para o fim da pandemia da doença pelo coronavírus 2019 (COVID-19). Para avançar e melhorar o cuidado em UTI no Brasil, ainda precisamos buscar quatro aspectos fundamentais para prover cuidado intensivo de alta qualidade:

  • - Melhor relação profissional/paciente com mais intensivistas de formação na ponta do cuidado assistencial.

  • - Gerenciamento da UTI baseado em dados direcionando os esforços contínuos de melhoria de qualidade assistencial.

  • - Processos assistenciais e protocolos bem desenhados e baseados em evidências.

  • - Estrutura, material e equipamentos assegurados de forma minimamente adequada para que os processos assistenciais sejam cumpridos de forma confiável.

Isso demanda regulamentação, auditorias e investimento nas UTIs brasileiras. Iniciativas colaborativas nacionais são bem-vindas para melhorar o cuidado e reduzir o impacto que as IRAS causam às UTIs brasileiras. Porém, em última análise, devemos empoderar as equipes locais e fornecer as ferramentas necessárias para melhoria, se desejamos atingir os melhores resultados nas UTIs brasileiras, públicas ou privadas.

REFERÊNCIAS

  • 1
    Balakrishnan VS. WHO’s first global infection prevention and control report. Lancet Infect Dis. 2022;22(8):1122.
  • 2
    Allegranzi B, Bagheri Nejad S, Combescure C, Graafmans W, Attar H, Donaldson L, et al. Burden of endemic health-care-associated infection in developing countries: systematic review and meta-analysis. Lancet. 2011;377(9761):228-41.
  • 3
    Zhou Q, Fan L, Lai X, Tan L, Zhang X. Estimating extra length of stay and risk factors of mortality attributable to healthcare-associated infection at a Chinese university hospital: a multi-state model. BMC Infect Dis. 2019;19(1):975.
  • 4
    Barrasa-Villar JI, Aibar-Remón C, Prieto-Andrés P, Mareca-Doñate R, Moliner-Lahoz J. Impact on morbidity, mortality, and length of stay of hospital-acquired infections by resistant microorganisms. Clin Infect Dis. 2017;65(4):644-52.
  • 5
    Cassini A, Högberg LD, Plachouras D, Quattrocchi A, Hoxha A, Simonsen GS, Colomb-Cotinat M, Kretzschmar ME, Devleesschauwer B, Cecchini M, Ouakrim DA, Oliveira TC, Struelens MJ, Suetens C, Monnet DL; Burden of AMR Collaborative Group. Attributable deaths and disability-adjusted life-years caused by infections with antibiotic-resistant bacteria in the EU and the European Economic Area in 2015: a population-level modelling analysis. Lancet Infect Dis. 2019;19(1):56-66.
  • 6
    Forrester JD, Maggio PM, Tennakoon L. Cost of health care-associated infections in the United States. J Patient Saf. 2022;18(2):e477-e9.
  • 7
    Organization for Economic Cooperation and Development (OECD)/European Union. Health at a Glance: Europe 2018. State of health in the EU cycle. Paris: OECD Publishing; 2018. Available in https://www.oecd-ilibrary.org/social-issues-migration-health/health-at-a-glance-europe-2018_health_glance_eur-2018-en
    » https://www.oecd-ilibrary.org/social-issues-migration-health/health-at-a-glance-europe-2018_health_glance_eur-2018-en
  • 8
    Allegranzi B, Pittet D. Role of hand hygiene in healthcare-associated infection prevention. J Hosp Infect. 2009;73(4):305-15.
  • 9
    Leaper DJ, Edmiston CE. World Health Organization: global guidelines for the prevention of surgical site infection. J Hosp Infect. 2017;95(2):135-6.
  • 10
    Melo LS, Estevão TM, Chaves JS, Vieira JM, Siqueira MM, Alcoforado IL, et al. Success factors of a collaborative project to reduce healthcare-associated infections in intensive care units in Northeastern Brazil. Rev Bras Ter Intensiva. 2022;34(3):327-34.
  • 11
    Zampieri FG, Salluh JI, Azevedo LC, Kahn JM, Damiani LP, Borges LP, Viana WN, Costa R, Corrêa TD, Araya DE, Maia MO, Ferez MA, Carvalho AG, Knibel MF, Melo UO, Santino MS, Lisboa T, Caser EB, Besen BA, Bozza FA, Angus DC, Soares M; ORCHESTRA Study Investigators. ICU staffing feature phenotypes and their relationship with patients’ outcomes: an unsupervised machine learning analysis. Intensive Care Med. 2019;45(11):1599-607.
  • 12
    Lobo SM, Mendes CL, Rezende E. Choosing Wisely in intensive care medicine. Rev Bras Ter Intensiva. 2020;32(1):11-3.
  • 13
    Zampieri FG, Soares M, Salluh JI. How to evaluate intensive care unit performance during the COVID-19 pandemic. Rev Bras Ter Intensiva. 2020;32(2):203-6.
  • 14
    Castro CS, Timenetsky KT, Katz M, Corrêa TD, Felicio AC, Moriyama T, et al. Burnout syndrome and engagement among critical care providers: a cross-sectional study. Rev Bras Ter Intensiva. 2020;32(3):381-90.
  • 15
    Ranzani O, Pereira AJ, Santos MC, Corrêa TD, Ferraz LJ, Cordioli E, et al. Statistical analysis of a cluster-randomized clinical trial on adult general intensive care units in Brazil: TELE-critical care verSus usual Care On ICU PErformance (TELESCOPE) trial. Rev Bras Ter Intensiva. 2022;34(1):87-95.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Nov 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    30 Ago 2022
  • Aceito
    30 Ago 2022
Associação de Medicina Intensiva Brasileira - AMIB Rua Arminda, 93 - Vila Olímpia, CEP 04545-100 - São Paulo - SP - Brasil, Tel.: (11) 5089-2642 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: rbti.artigos@amib.com.br