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Troponina de alta sensibilidade no prognóstico de pacientes internados em terapia intensiva por COVID-19: um estudo de coorte longitudinal latino-americano

RESUMO

Objetivo:

O presente estudo avaliou a prevalência da elevação da troponina e sua capacidade de prever a mortalidade em 60 dias em pacientes com COVID-19 internados em unidade de terapia intensiva.

Metódos:

Um estudo longitudinal prospectivo e unicêntrico foi realizado em uma coorte de pacientes em terapia intensiva devido a diagnóstico de COVID-19 confirmado, usando teste de reação em cadeia da polimerase em tempo real de maio a dezembro de 2020. Uma curva Característica de Operação do Receptor foi construída para predizer o óbito de acordo com o nível de troponina, calculando a área sob a curva e seus intervalos de confiança. Um modelo de risco proporcional de Cox foi gerado para relatar as razões de risco com intervalo de confiança de 95% e o valor de p para sua associação com mortalidade em 60 dias.

Resultados:

Foram incluídos 296 pacientes com taxa de mortalidade em 60 dias de 51%. A troponina foi positiva em 39,9% (29,6% versus 49,7% em sobreviventes e não sobreviventes, respectivamente). Foi encontrada área sob a curva de 0,65 (IC95% 0,59 - 0,71) para prever a mortalidade. O modelo univariado de Cox demonstrou razão de risco de 1,94 (IC95% 1,41 - 2,67) e p < 0,001, mas essa relação não se manteve no modelo de análise multivariado, no qual a razão de risco foi de 1,387 (IC95% 0,21 - 1,56) e o valor de p foi de 0,12.

Conclusão:

A elevação da troponina é frequentemente encontrada em pacientes em terapia intensiva para COVID-19. Embora seus níveis sejam maiores em pacientes que vão a óbito, nenhuma relação foi encontrada em um modelo de análise multivariado, o que indica que a troponina não deve ser utilizada como único marcador prognóstico de mortalidade nessa população.

Descritores:
COVID-19; Infecções por coronavírus; Troponina; Reação em cadeia da polimerase via transcriptase reversa; Cuidados intensivos; Mortalidade

ABSTRACT

Objective:

The current study assessed the prevalence of troponin elevation and its capacity to predict 60day mortality in COVID-19 patients in intensive care.

Methods:

A longitudinal prospective single-center study was performed on a cohort of patients in intensive care due to a COVID-19 diagnosis confirmed using real-time test polymerase chain reaction from May to December 2020. A Receiver Operating Characteristic curve was constructed to predict death according to troponin level by calculating the area under the curve and its confidence intervals. A Cox proportional hazards model was generated to report the hazard ratios with confidence intervals of 95% and the p value for its association with 60day mortality.

Results:

A total of 296 patients were included with a 51% 60-day mortality rate. Troponin was positive in 39.9% (29.6% versus 49.7% in survivors and non-survivors, respectively). An area under the curve of 0.65 was found (95%CI: 0.59 - 0.71) to predict mortality. The Cox univariate model demonstrated a hazard ratio of 1.94 (95%CI: 1.41 - 2.67) and p < 0.001, but this relationship did not remain in the multivariate model, in which the hazard ratio was 1.387 (95%CI: 0.21 - 1.56) and the p value was 0.12.

Conclusion:

Troponin elevation is frequently found in patients in intensive care for COVID-19. Although its levels are higher in patients who die, no relationship was found in a multivariate model, which indicates that troponin should not be used as an only prognostic marker for mortality in this population.

Keywords:
COVID-19; Coronavirus infections; Troponin; Reverse transcriptase polymerase chain reaction; Critical care; Mortality

INTRODUÇÃO

A Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou a doença do coronavírus 2019 (COVID-19) uma pandemia há 1 ano.(11 World Health Organization (WHO). WHO Director-General’s opening remarks at the media briefing on COVID-19 e 11 March 2020. [cited 2021 May 10]. Available from: https://www.who.int/director-general/speeches/detail/who-director-general-s-opening-remarks-at-the-media-briefing-oncovid-19---11-march-2020
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) A COVID-19 é caracterizada pela presença de surtos com grande número de casos críticos, que sobrecarregam o sistema de saúde.(22 Wu Z, McGoogan JM. Characteristics of and important lessons from the Coronavirus Disease 2019 (COVID-19) outbreak in China: summary of a report of 72 314 cases from the Chinese Center for Disease Control and Prevention. JAMA. 2020;323(13):1239-42.) Um dos objetivos do rastreamento e manejo é identificar marcadores para estratificar eficientemente o risco individual de apresentar resultados adversos.(33 Wynants L, Van Calster B, Collins GS, Riley RD, Heinze G, Schuit E, et al. Prediction models for diagnosis and prognosis of covid-19 infection: systematic review and critical appraisal. BMJ. 2020;369:m1328.) A troponina de alta sensibilidade foi proposta como marcador prognóstico para esse fim.(44 Guo T, Fan Y, Chen M, Wu X, Zhang L, He T, et al. Cardiovascular implications of fatal outcomes of patients with coronavirus disease 2019 (COVID-19). JAMA Cardiol. 2020;5(7):811-8.)

As sociedades de cardiologia foram inicialmente contra a medida habitual da troponina devido às evidências limitadas de sua utilidade para tomar decisões médicas e pelo risco de intervenções terapêuticas e prognósticas impróprias, com base em sua medida.(55 The European Society for Cardiology (ESC). ESC Guidance for the Diagnosis and Management of CV Disease during the COVID-19 Pandemic. (Last update: 10 June 2020); [cited 2021 July 10]. https://www.escardio.org/Education/COVID-19-and-Cardiology
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,66 Januzzi JL. Troponin and BNP use in COVID-19. American College of Cardiology. [cited 2021 Mar 16]. https://www.acc.org/latestin-cardiology/articles/2020/03/18/15/25/troponin-and-bnp-use-incovid19
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) As sociedades de terapia intensiva não fizeram nenhuma declaração a esse respeito. Metanálise recente mostrou que existiam limitações notáveis nas evidências disponíveis, e a justificativa para medir a troponina como ferramenta prognóstica para pacientes hospitalizados por COVID-19 exigia mais pesquisas.(77 Zhao BC, Liu WF, Lei SH, Zhou BW, Yang X, Huang TY, et al. Prevalence and prognostic value of elevated troponins in patients hospitalised for coronavirus disease 2019: a systematic review and meta-analysis. J Intensive Care. 2020;8(1):88.)

O presente trabalho avaliou a prevalência de elevação da troponina em pacientes internados na unidade de terapia intensiva (UTI) por COVID-19 para explorar sua capacidade de prever a mortalidade em 60 dias.

MÉTODOS

Estudo prospectivo longitudinal e unicêntrico de pacientes internados em uma das nove UTIs do Hospital el Tunal em Bogotá, na Colômbia, por infecção pelo coronavírus da síndrome respiratória aguda grave (SARSCoV-2)/COVID-19 confirmada por reação em cadeia da polimerase via transcriptase reversa (RT-PCR) em tempo real com swabs nasais entre maio e dezembro de 2020. Foram excluídos do estudo pacientes com quadros clínicos prévios que limitassem o esforço terapêutico (declarado explicitamente pelo paciente ou família ou presença de comorbidade em estado avançado registrada no prontuário), que faleceram antes de 24 horas de internação, provenientes de outra UTI onde permaneceram por mais de 72 horas, internados por outros motivos que não a COVID-19 e gestantes.

O Hospital el Tunal é uma unidade de serviços de saúde de quarto nível na Sub-rede Integrada de Serviços de Saúde Sul de Bogotá, que tem uma área de abrangência de aproximadamente 2 milhões de habitantes. Essa unidade passou por um processo de reestruturação durante o ano da pandemia, que incluiu o aumento do número de leitos de UTI de 27 em três unidades para 103 em nove unidades. Assim, esses pacientes em estado crítico devido à COVID-19 foram encaminhados para esse centro.

Os prontuários dos pacientes internados foram revisados para coleta de dados clínicos, antecedentes, sinais vitais, exames de imagem e laboratoriais. A troponina I de alta sensibilidade foi medida no Atellica IM Analyzer (Siemens), e o percentil 99 foi fixado em 0,03ng/mL. Foram identificadas complicações (principalmente complicações cardiovasculares) e óbitos hospitalares. O estado vital dos pacientes que sobreviveram 60 dias após a internação na UTI foi verificado no sistema de registro nacional de óbitos denominado Registro Único de Afiliados (RUAF).

Para as análises estatísticas, as variáveis qualitativas são relatadas como frequências absolutas e porcentagens, e as quantitativas são resumidas como tendências centrais e medidas de dispersão. Para a descrição inicial, foi realizada uma análise bivariada utilizando o teste t de Student para variáveis quantitativas e o teste do qui-quadrado para variáveis qualitativas. Diferenças significativas ocorreram a uma probabilidade de < 0,05. Uma curva Característica de Operação do Receptor (ROC - Receiver Operating Characteristic) foi traçada para a predição de óbito dependendo dos diferentes valores de troponina I de alta sensibilidade, calculando a área sob a curva (ASC) com seu respectivo intervalo de confiança (IC). Gráficos de sobrevida de Kaplan-Meier foram plotados para expressar a probabilidade de óbito desde a admissão na UTI até o 60º dia entre os grupos de pacientes com troponina positiva e negativa, e as comparações foram feitas pelo teste log-rank, relatando o valor de p.

Os fatores de risco independentes foram identificados usando um modelo de risco proporcional de Cox com seleção gradual das variáveis. Foi realizada análise bivariada com tempo de até 60 dias para óbito na internação na UTI como variável dependente (desfecho), sendo removidas as variáveis que não atingiram valor de p < 0,1. Um modelo de análise multivariada foi gerado usando as variáveis restantes, sendo que a reamostragem foi realizada usando validação de dez vezes. Relatamos as razões de risco (RR) com seu intervalo de confiança de 95% (IC95%) e o valor de p aplicando o teste de Wald.

As variáveis clínicas avaliadas como possíveis marcadores prognósticos na internação foram idade, pressão arterial sistólica, saturação de oxigênio, antecedentes de hipertensão, diabetes mellitus, cardiopatia, doença renal, tabagismo, consumo de inibidores da enzima de conversão da angiotensina (ECA) ou bloqueadores dos receptores de angiotensina (BRA), número de doenças, leucócitos, neutrófilos, linfócitos, transaminases, bilirrubina total, nitrogênio ureico sanguíneo (BUN), creatinina, proteína C-reativa, desidrogenase láctica (LDH), troponina de alta sensibilidade, dímero D, ferritina e razão entre pressão parcial de oxigênio e fração inspirada de oxigênio (PaO2/FiO2).

Foi criado um modelo de regressão logística multivariada em que a positividade da troponina de alta sensibilidade no momento da internação foi tomada como variável dependente. As análises estatísticas foram realizadas utilizando o R versão 4.0.2 e os pacotes estatísticos survival, survminer, pROC, ROCit e Caret. O Comitê de Ética em Pesquisa da Subrede Integrada de Serviços de Saúde Sul aprovou o presente estudo. O Termo de Consentimento Livre e Esclarecido foi dispensado devido à natureza retrospectiva do estudo. Nenhum financiamento foi usado para realizar o estudo.

RESULTADOS

A figura 1 mostra o fluxograma dos pacientes desde a triagem até a inclusão de 326 pacientes no banco de dados.

Figura 1
Pacientes envolvidos no estudo.

PCR - reação em cadeia da polimerase.


Os níveis de troponina no momento da internação na UTI estavam disponíveis para 296 pacientes. A tabela 1 descreve as características dos pacientes classificados de acordo com suas condições vitais. Eram do sexo feminino 110 (37,2%) pacientes, com idade mediana de 60 anos (desviopadrão - DP - de 14), e a duração mediana dos sintomas antes da internação na UTI foi de 8,4 (DP de 4,2) dias. Apresentava pelo menos uma comorbidade 81,4% dos pacientes, sendo hipertensão arterial em 117 (39,5%), diabetes mellitus em 65 (21,9%), doença pulmonar crônica em 63 (21,3%) e cardiopatia em 39 (13,2%). Eram tabagistas 84 pacientes (28,4%), e 124 (46,3%) tinham obesidade. Apresentaram níveis de linfócitos < 1.200 células por µL 238 (80,4%) pacientes. O valor médio de creatinina foi de 1,3mg/dL, com proteína C-reativa em 7,8mg/L, ferritina em 1.179ng/mL, LDH em 1.104U/L e dímero D em 4,8µg/mL.

Tabela 1
Características gerais da população

A mortalidade ocorreu em 151 casos (51%). A tabela 2 descreve a gravidade e as complicações dos pacientes. O choque esteve presente em 225 (76%) pacientes e a síndrome do desconforto respiratório agudo grave (SDRA), ou seja, PaO2/FiO2 < 100mmHg, em 242 (81,8%) pacientes. Necessitaram de suporte respiratório invasivo 232 (78,4%) pacientes, e lesões renais agudas estavam presentes em 153 pacientes (5,7%). O escore médio da Acute Physiology and Chronic Health Evaluation II (APACHE II) foi de 13,1, o escore do Sequential Organ Failure Assessment (SOFA) foi de 4,8, e o escore do CURB-65 foi de 1,9. Houve tendência a um maior escore de gravidade e aumento de complicações nos pacientes que morreram em comparação aos sobreviventes.

Tabela 2
Descrição da gravidade, complicações e possíveis causas da troponina elevada

O nível médio de troponina I de alta sensibilidade foi de 0,6 (2,1) ng/mL, sendo positivo em 118 pacientes (39,9%). A troponina foi positiva em 29,6% dos sobreviventes (43/145) e em 49,7% dos pacientes que morreram (75/151). As possíveis causas de elevação miocárdica com base na história clínica incluíram miocardite em 11 casos (3,7%), embolia pulmonar em 29 casos (9,8%), síndromes coronarianas agudas em 18 casos (6,1%) e lesão miocárdica aguda em 116 casos (39,2%). Apenas esse último marcador obteve diferença significativa entre os pacientes que morreram versus os sobreviventes (Tabela 2). Foi encontrada uma área sob a curva ROC de 0,65 (IC95% 0,59 - 0,71) para a predição de mortalidade pela troponina (Figura 1). As curvas de Kaplan-Meier são apresentadas na figura 3 e demonstram maior mortalidade nos pacientes com troponina positiva, com valor de p < 0,001 no teste de log-rank.

Figura 2
Curva Característica de Operação do Receptor da associação entre os níveis de troponina I de alta sensibilidade e mortalidade em pacientes com COVID-19 internados em terapia intensiva.

ASC - área sob a curva; TVP - taxa de verdadeiros positivos; TFP - taxa de falsos positivos.


Figura 3
Kaplan-Meier curves of survival analysis for troponin.

A análise bivariada mostrou que a troponina apresentou RR de 1,94 (IC95% 1,41 - 2,67) e p < 0,001. Idade, saturação de oxigênio na internação, cardiopatia, níveis de leucócitos, linfócitos, LDH, alanina aminotransferase (ALT), aspartato aminotransferase (AST), BUN, creatinina, proteína C-reativa, ferritina e PaO2/FiO2 mostraram relação com a mortalidade em 60 dias nas análises bivariadas, sendo que esses fatores foram incluídos no modelo de análise multivariada. A troponina obteve RR de 1,39 (IC95% 0,21 - 1,56) e p = 0,12 no modelo de análise multivariada. Os resultados completos do modelo de riscos proporcionais de Cox são mostrados na tabela 3. Os fatores relacionados à elevação da troponina na análise de regressão logística multivariada foram idade (razão de chances - RC - de 1,007; valor de p = 0,041), presença de dispneia (RC de 1,838; valor de p = 0,046) e saturação de oxigênio (RC de 0,989; valor de p = 0,018).

Tabela 3
Resultados completos do modelo de riscos proporcionais de Cox

DISCUSSÃO

O dano causado pela COVID-19 ocorre principalmente no tecido pulmonar, mas pode envolver outros tecidos direta ou indiretamente, principalmente em pacientes mais críticos.(88 Yu Y, Xu D, Fu S, Zhang J, Yang X, Xu L, et al. Patients with COVID-19 in 19 ICUs in Wuhan, China: a cross-sectional study. Crit Care. 2020;24(1):219.) O envolvimento miocárdico é identificado pela presença de níveis elevados de troponina, o que tem sido relacionado à evolução para formas mais graves da doença e óbito.(99 Shi S, Qin M, Shen B, Cai Y, Liu T, Yang F, et al. Association of cardiac injury with mortality in hospitalized patients with COVID-19 in Wuhan, China. JAMA Cardiol. 2020;5(7):802-10.) O mecanismo proposto de dano da COVID-19 é a excisão da proteína S viral por uma serina protease, que permite a ligação à enzima conversora da angiotensina 2 (ECA2) e a entrada em macrófagos, pericitos perivasculares e cardiomiócitos. A entrada do vírus induz disfunção e dano miocárdico, disfunção endotelial, microvasculatura, instabilidade da placa e infarto do miocárdio.(1010 Guzik TJ, Mohiddin SA, Dimarco A, Patel V, Savvatis K, Marelli-Berg FM, et al. COVID-19 and the cardiovascular system: implications for risk assessment, diagnosis, and treatment options. Cardiovasc Res. 2020;116(10):1666-87.)

As lesões miocárdicas são frequentemente identificadas em pacientes hospitalizados por COVID-19(1111 Wang D, Hu B, Hu C, Zhu F, Liu X, Zhang J, et al. Clinical characteristics of 138 hospitalized patients with 2019 novel coronavirus-infected pneumonia in Wuhan, China. JAMA. 2020;323(11):1061-9.) e relatadas em 7% a 20% dessa população.(1212 Nishiga M, Wang DW, Han Y, Lewis DB, Wu JC. COVID-19 and cardiovascular disease: from basic mechanisms to clinical perspectives. Nat Rev Cardiol. 2020;17(9):543-58.) Uma revisão sistemática recente encontrou prevalência combinada de troponina positiva de 38% (IC95% 28,2 - 48,3%) em sete estudos que incluíram 814 pacientes internados em terapia intensiva,(77 Zhao BC, Liu WF, Lei SH, Zhou BW, Yang X, Huang TY, et al. Prevalence and prognostic value of elevated troponins in patients hospitalised for coronavirus disease 2019: a systematic review and meta-analysis. J Intensive Care. 2020;8(1):88.) o que é muito semelhante ao presente estudo (39,9%). Estudos individuais mostram variabilidade que varia de 27%(88 Yu Y, Xu D, Fu S, Zhang J, Yang X, Xu L, et al. Patients with COVID-19 in 19 ICUs in Wuhan, China: a cross-sectional study. Crit Care. 2020;24(1):219.) a 51%.(1313 Metkus TS, Mathai SC, Leucker T, Hassoun PM, Tedford RJ, Korley FK. Pulmonary and systemic hemodynamics are associated with myocardial injury in the acute respiratory distress syndrome. Pulm Circ. 2020;10(3):2045894020939846.) Notavelmente, a prevalência neste estudo é menor do que a de relatos anteriores em pacientes com SDRA, nos quais a positividade da troponina foi documentada em 56% dos casos,(1414 Metkus TS, Guallar E, Sokoll L, Morrow D, Tomaselli G, Brower R, et al. Prevalence and prognostic association of circulating troponin in the acute respiratory distress syndrome. Crit Care Med. 2017;45(10):1709-17.) sendo que a variação dos níveis de troponina ao longo do tempo foi associada à mortalidade nessa população.(1515 Metkus TS, Guallar E, Sokoll L, Morrow DA, Tomaselli G, Brower R, et al. Progressive myocardial injury is associated with mortality in the acute respiratory distress syndrome. J Crit Care. 2018;48:26-31.)

Uma análise de regressão logística multivariada que incluiu 670 pacientes hospitalizados identificou as comorbidades da idade avançada (por exemplo, hipertensão, doença coronariana, insuficiência renal crônica e doença pulmonar obstrutiva crônica) e a proteína C-reativa elevada como preditores de lesão miocárdica.(1616 Shi S, Qin M, Cai Y, Liu T, Shen B, Yang F, et al. Characteristics and clinical significance of myocardial injury in patients with severe coronavirus disease 2019. Eur Heart J. 2020;41(22):2070-9.) Com exceção da idade, os demais fatores diferiram dos fatores obtidos para a população-alvo do presente estudo, que se concentrou em pacientes críticos. A área sob a curva ROC para troponina I cardíaca inicial para predizer mortalidade hospitalar foi de 0,92 (IC95% 0,87 - 0,96), o que difere muito em sua capacidade em relação aos resultados obtidos no presente trabalho (ASC = 0,65).

Vários estudos investigaram a relação entre troponina e mortalidade em pacientes internados em enfermarias de hospitais gerais. Um estudo preliminar de Zou et al. encontrou forte associação com mortalidade em análise univariada, que não permaneceu na análise multivariada.(1717 Zhou F, Yu T, Du R, Fan G, Liu Y, Liu Z, et al. Clinical course and risk factors for mortality of adult inpatients with COVID-19 in Wuhan, China: a retrospective cohort study. Lancet. 2020;395(10229):105462.) Shi et al. encontraram associação positiva com mortalidade, documentando RR de 4,3 (IC95% 1,9 - 9,5) usando modelo de regressão de Cox.(99 Shi S, Qin M, Shen B, Cai Y, Liu T, Yang F, et al. Association of cardiac injury with mortality in hospitalized patients with COVID-19 in Wuhan, China. JAMA Cardiol. 2020;5(7):802-10.) Uma metanálise de 11 estudos (13.889 pacientes) que realizaram análise multivariada da associação de troponina na internação com mortalidade encontrou RR relativa de 2,7 (IC95% 2,1 - 3,5) com heterogeneidade substancial e possível viés de publicação.(77 Zhao BC, Liu WF, Lei SH, Zhou BW, Yang X, Huang TY, et al. Prevalence and prognostic value of elevated troponins in patients hospitalised for coronavirus disease 2019: a systematic review and meta-analysis. J Intensive Care. 2020;8(1):88.)

Estudos que incluíram pacientes em terapia intensiva e uso da troponina como marcador prognóstico de mortalidade por meio do ajuste de covariáveis mostraram resultados contraditórios. Azoulay et al. incluíram 370 pacientes em que a troponina foi negativa em 68% dos sobreviventes em comparação com 41% para os pacientes que morreram, sendo que a RR foi de 0,48 (IC95% 0,31 - 0,75) para sua associação com mortalidade em 28 dias no modelo de análise multivariada.(1818 Azoulay E, Fartoukh M, Darmon M, Géri G, Voiriot G, Dupont T, et al. Increased mortality in patients with severe SARS-CoV-2 infection admitted within seven days of disease onset. Intensive Care Med. 2020;46(9):1714-22.) Xu et al. examinaram os primeiros 239 pacientes internados na UTI de Wuhan, na China, e identificaram que as lesões miocárdicas ocorreram com maior frequência nos pacientes que morreram (55,1% versus 23,9%; p < 0,001), mas o modelo de análise multivariada não confirmou essa associação (RR de 0,88; IC95% 0,57 - 1,34; valor p = 0,542).(1919 Xu J, Yang X, Yang L, Zou X, Wang Y, Wu Y, et al. Clinical course and predictors of 60-day mortality in 239 critically ill patients with COVID-19: a multicenter retrospective study from Wuhan, China. Crit Care. 2020;24(1):394.) O primeiro relatório do registro europeu aberto em rede RISC-19-ICU (RIsk stratification in COVID-19 patients in the ICU), que incluiu 639 pacientes críticos, revelou que a troponina foi maior nos pacientes que morreram (RR de 2,09; IC95% 1,50 - 2,91), mas não foi significativa no modelo de análise multivariada de Cox.(2020 Wendel Garcia PD, Fumeaux T, Guerci P, Heuberger DM, Montomoli J, RocheCampo F, Schuepbach RA, Hilty MP; RISC-19-ICU Investigators. Prognostic factors associated with mortality risk and disease progression in 639 critically ill patients with COVID-19 in Europe: initial report of the international RISC-19ICU prospective observational cohort. EClinicalMedicine. 2020;25:100449.) Xie et al. realizaram outro estudo multicêntrico na China, que incluiu 733 pacientes, e descobriram que a troponina I foi mais de dez vezes o percentil 99 no modelo de análise multivariada e teve RR de 1,45 (IC95% 1,05 - 2,01; valor p = 0,025) para a predição de mortalidade em 28 dias.(2121 Xie J, Wu W, Li S, Hu Y, Hu M, Li J, et al. Clinical characteristics and outcomes of critically ill patients with novel coronavirus infectious disease (COVID-19) in China: a retrospective multicenter study. Intensive Care Med. 2020;46(10):1863-72.)

Esse não foi o único relato negativo para a associação da troponina com desfechos adversos na COVID-19, conforme documentado no RISC-19-ICU;(2020 Wendel Garcia PD, Fumeaux T, Guerci P, Heuberger DM, Montomoli J, RocheCampo F, Schuepbach RA, Hilty MP; RISC-19-ICU Investigators. Prognostic factors associated with mortality risk and disease progression in 639 critically ill patients with COVID-19 in Europe: initial report of the international RISC-19ICU prospective observational cohort. EClinicalMedicine. 2020;25:100449.) esse fato pode ser explicado pelas diferentes técnicas aplicadas e pelas variáveis incluídas no modelo (por exemplo, sua quantidade, qualidade ou codificação). As estratégias para identificação de marcadores prognósticos apresentam limitações significativas, como afirmado por Pepe et al.(2222 Pepe MS, Janes H, Longton G, Leisenring W, Newcomb P. Limitations of the odds ratio in gauging the performance of a diagnostic, prognostic, or screening marker. Am J Epidemiol. 2004;159(9):882-90.)

O presente estudo teve várias limitações. Os dados foram obtidos em um único centro, e os resultados podem não ser adequados para extrapolação para outras populações. A natureza retrospectiva do estudo limita a interpretação dos achados. Outro aspecto que limita a análise é que uma avaliação sistemática da causa da elevação da troponina, como eletrocardiogramas, ecocardiogramas ou tomografia angiográfica pulmonar, não estava disponível para determinar a causa devido à coleta retrospectiva de dados do prontuário.

Os pontos fortes do estudo incluem o número aceitável de desfechos nessa coorte para realizar a análise de associação, com uma grande coorte de terapia intensiva de pacientes latinoamericanos que também tiveram acompanhamento até o 60º dia após a internação na UTI. Os resultados do presente trabalho contribuem para as evidências do papel da troponina como marcador prognóstico nesta população.

CONCLUSÃO

Houve alta prevalência de troponina I de alta sensibilidade elevada em pacientes internados em terapia intensiva, sendo que os níveis de troponina foram maiores em pacientes que morreram. A área sob a curva ROC apresentou poder de predição de mortalidade em 60 dias moderado. A diferença observada foi significativa na análise univariada, mas essa associação não se manteve no modelo de análise multivariada. Portanto, a troponina não deve ser utilizada como único marcador prognóstico de mortalidade nessa população.

REFERÊNCIAS

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Editado por

Editor responsável: Alexandre Biasi Cavalcanti

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Jun 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2022

Histórico

  • Recebido
    22 Jun 2021
  • Aceito
    13 Nov 2021
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