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Síndrome inflamatória de reconstituição imune como causa de hepatite autoimune e insuficiência hepática aguda

RESUMO

A insuficiência hepática aguda é uma síndrome rara com elevada mortalidade e frequentemente reconhecida de forma tardia. Os médicos intensivistas desempenham um papel fundamental na suspeição diagnóstica e no manejo das disfunções múltiplo-orgânicas características desta entidade. A síndrome inflamatória de reconstituição imune é uma entidade que se caracteriza pela piora paradoxal do quadro prévio do paciente, após o início de antirretrovirais, desencadeada contra patógenos presentes no hospedeiro ou autoantígenos. A hepatite autoimune tem sido recentemente descrita como uma destas manifestações autoimunes. Os autores relatam o primeiro caso com evolução à insuficiência hepática aguda e óbito em poucos dias após o desenvolvimento de encefalopatia, revisam os casos de hepatite autoimune descritos e tecem comentários sobre as possibilidades terapêuticas neste contexto.

Descritores:
Síndrome inflamatória da reconstituição imune; Hepatite autoimune; Falência hepática aguda; Relatos de casos

ABSTRACT

Acute liver failure is a rare syndrome with high mortality and is often diagnosed late. Intensivist physicians play fundamental roles in the diagnostic suspicion and the management of the multiple-organic dysfunctions characteristic of this entity. Immune reconstitution inflammatory syndrome is an entity that is characterized by the paradoxical worsening of the patient's previous condition, after the initiation of antiretrovirals, triggered against either pathogens present in the host or autoantigens. Autoimmune hepatitis has recently been described as one of these autoimmune manifestations. The authors report the first case with evolution to acute liver failure and death within a few days after the development of encephalopathy, review the cases of autoimmune hepatitis described and comment on the therapeutic possibilities in this context.

Keywords:
Immune reconstitution inflammatory syndrome; Hepatitis, autoimmune; Liver failure, acute; Case reports

INTRODUÇÃO

A insuficiência hepática aguda é uma síndrome rara com alta mortalidade. Caracteriza-se por icterícia, encefalopatia ocorrendo até 26 semanas após a detecção de icterícia e coagulopatia (definida por um resultado da razão normalizada internacional - INR - para o tempo de protrombina ≥ 1,5) na ausência de doença hepática prévia.(11 Singanayagam A, Bernal W. Update on acute liver failure. Curr Opin Crit Care. 2015;21(2):134-41.) A despeito da etiologia, os doentes cursam com necrose maciça e apoptose de hepatócitos, síndrome da resposta inflamatória sistêmica e disfunção de múltiplos órgãos. Vários insultos diferentes podem desencadear insuficiência hepática aguda.(22 Whitehouse T, Wendon J. Acute liver failure. Best Pract Res Clin Gastroenterol. 2013;27(5):757-69.) No nosso meio, destacam-se as etiologias virais e, dentre estas, a infecção pelo vírus B. O manejo dos doentes com insuficiência hepática depende do reconhecimento precoce e inclui o tratamento etiológico, o tratamento suportivo e o transplante hepático, conforme adequada predição prognóstica.(11 Singanayagam A, Bernal W. Update on acute liver failure. Curr Opin Crit Care. 2015;21(2):134-41.)

A síndrome inflamatória de reconstituição imune (SIRI) é uma entidade que se caracteriza pela piora paradoxal do quadro prévio do paciente portador do vírus da imunodeficiência humana (HIV), após o início de antirretrovirais. Trata-se de uma resposta inflamatória a patógenos presentes no hospedeiro, em geral Mycobacterium tuberculosis, Mycobacterium avium complex, Cryptococcus sp, Histoplasma capsulatum, Toxoplasma gondii, Pneumocystis jiroveci, citomegalovírus, herpesvírus e vírus John Cunningham (JC).(33 Murthy AR, Marulappa R, Hegde U, Kappadi D, Ambikathanaya UK, Nair P. Treatment guidelines and prognosis of immune reconstitution inflammatory syndrome patients: a review. J Int Oral Health. 2015;7(4):92-5.)

O aumento dos níveis séricos das transaminases pode ocorrer após o início de antirretrovirais em indivíduos soropositivos para o HIV com coinfecção pelo vírus B e/ou vírus C. No entanto, uma resposta imune robusta também pode ser direcionada a autoantígenos. Esta síndrome tem sido associada a diversas condições autoimunes, o que sugere que estes quadros podem ser manifestações de reconstituição imune. Estas condições incluem sarcoidose, doença de Graves, lúpus eritematoso sistêmico, artrite reumatoide e tireoidite, todas manifestando-se até 1 ano após o início dos antirretrovirais. Estes indivíduos com doenças autoimunes secundárias à reconstituição imune podem apresentar predisposição genética para tanto.(44 Kamradt T, Mitchison NA. Tolerance and autoimmunity. N Engl J Med. 2001;344(9):655-64.)

Hepatite autoimune é caracterizada por achados clínicos e laboratoriais específicos como níveis elevados de autoanticorpos, hipergamaglobulinemia e alterações hepáticas microscópicas, como hepatite de interface, infiltrado plasmocitário e células hepáticas regenerativas em roseta.(55 European Association for the Study of the Liver. EASL Clinical Practice Guidelines: Autoimmune hepatitis. J Hepatol. 2015;63(4):971-1004. Erratum in: J Hepatol. 2015;63(6):1543-4.) Hepatite autoimune é usualmente uma doença crônica, mas a apresentação clínica pode variar desde alterações assintomáticas nas provas de função hepática até insuficiência hepática aguda.(66 Mendizabal M, Marciano S, Videla MG, Anders M, Zerega A, Balderramo DC, et al. Fulminant presentation of autoimmune hepatitis: clinical features and early predictors of corticosteroid treatment failure. Eur J Gastroenterol Hepatol. 2015;27(6):644-8.)

No presente artigo apresentamos o caso de uma doente com hepatite autoimune definida, atribuível à reconstituição imune e com evolução à insuficiência hepática aguda e óbito em poucos dias. Empreendemos uma pesquisa por artigos originais relatando hepatite autoimune secundária à reconstituição imune após o início de antirretrovirais. A busca foi realizada no PubMed e Embase sem restrição de linguagem e data. As expressões-chave ((Human immunodeficiency virus OR HIV-infected) AND (autoimmune hepatitis)) foram utilizadas, tendo sido detectadas 282 referências. Após a exclusão dos artigos duplicados e revisão dos resumos, quatro referências foram selecionadas (Tabela 1). Todos os doentes nos relatos selecionados foram submetidos a biópsias confirmatórias de hepatite autoimune e manejados com corticoides e, eventualmente, azatioprina. Todos os casos relatados apresentaram resposta favorável à imunossupressão sem evolução à insuficiência hepática aguda.

Tabela 1
Relatos de hepatite autoimune por síndrome inflamatória de reconstituição imune em doentes HIV-positivos após o início de antirretrovirais

RELATO DO CASO

Mulher de 51 anos com história de soropositividade para o HIV identificada em 2015, sem doenças prévias definidoras da síndrome de imunodeficiência adquirida (AIDS), e em tratamento antirretroviral com tenofovir, 3TC e efavirenz desde 5 de setembro de 2015, apresentando CD4 e carga viral basais, respectivamente de 387 células/mL e 268.000 cópias/mL. A resposta adequada aos antirretrovirais foi documentada pela elevação dos níveis de CD4 para 417 células/mL e de queda da carga viral para 94 cópias/mL em janeiro de 2016. A paciente apresentava história de epigastralgia, hipocolia e colúria desde o final de julho de 2016, com identificação de icterícia aproximadamente a partir de 4 de agosto de 2016. Exames laboratoriais realizados em 10 de agosto de 2016 demonstraram as seguintes alterações: transaminase glutâmico-oxalacética (TGO) 1.863, transaminase glutâmico-pirúvica (TGP) 895, bilirrubina total (BT) 9,9 e bilirrubina direta imediata (BDI) 7,6. Uma ecografia abdominal foi realizada em 12 de agosto de 2016 e demonstrou fígado heterogêneo e vesícula sem cálculos. Ocorreram piora das provas de função hepática em 12 de agosto de 2016, documentando-se um tempo de protrombina de 31%, sendo indicada internação hospitalar via setor de emergência na mesma data. Em 13 de agosto de 2016, ainda na emergência, evoluiu com encefalopatia grau III. Exames laboratoriais em 14 de agosto de 2016 demonstraram piora das provas de função hepática com INR de 3,27. Sorologias virais para o vírus B, vírus A e vírus C, coletadas em 10 de agosto de 2016 foram não reagentes. Anticorpos IgG para citomegalovírus e herpesvírus foram reagentes, porém com anticorpos IgM não reagentes. Em 15 de agosto de 2016, a paciente evoluiu para encefalopatia grau IV (escala de coma de Glasgow 8: abertura ocular, 2; resposta verbal, 1 e resposta motora, 5), necessitando intubação orotraqueal para proteção de via aérea e tendo sido solicitada transferência para a unidade de terapia intensiva. Os exames laboratoriais em 16 de agosto de 2016 demonstraram BT de 13,8, INR de 5,23 e fator V de 22%. Neste mesmo dia, apresentou convulsões mioclônicas com generalização secundária. Em 16 de agosto de 2016, foram disponibilizados os resultados do fator antinuclear (FAN) de 1:256 com padrão nuclear pontilhado fino, IgG de 2639mg/dL e anticorpo antimúsculo liso-reagente de 1:80. Foi iniciada corticoterapia e transferida à unidade de terapia intensiva. Realizada tomografia computadorizada (TC) de crânio, que identificou edema cerebral importante, evoluindo no mesmo dia para escala de coma de Glasgow de 3, arreflexia e instabilidade hemodinâmica importante, o que não permitiu a consecução do protocolo de morte encefálica. Evoluiu com assistolia e óbito em 17 de agosto de 2016. Biópsia hepática realizada post mortem identificou necrose hepática maciça e infiltrado linfoplasmocitário.

DISCUSSÃO

Na nossa revisão, os 13 pacientes relatados apresentaram hepatite aguda após a introdução dos antirretrovirais, na ausência de etiologia viral e medicamentosa que justificasse o quadro.(77 O'Leary JG, Zachary K, Misdraji J, Chung RT. De novo autoimmune hepatitis during immune reconstitution in an HIV-infected patient receiving highly active antiretroviral therapy. Clin Infect Dis. 2008;46(1):e12-4.

8 Puius YA, Dove LM, Brust DG, Shah DP, Lefkowitch JH. Three cases of autoimmune hepatitis in HIV-infected patients. J Clin Gastroenterol. 2008;42(4):425-9.

9 Daas H, Khatib R, Nasser H, Kamran F, Higgins M, Saravolatz L. Human immunodeficiency virus infection and autoimmune hepatitis during highly active anti-retroviral treatment: a case report and review of the literature. J Med Case Rep. 2011;5:233.
-1010 Murunga E, Andersson M, van Rensburg C. Autoimmune hepatitis: a manifestation of immune reconstitution inflammatory syndrome in HIV infected patients? Scand J Gastroenterol. 2016;51(7):814-8.) Nestes pacientes, houve comprovação laboratorial e anatomopatológica de hepatite autoimune similar ao caso da nossa paciente. A relação temporal do início dos antirretrovirais com o desenvolvimento do quadro clínico permite arguir em favor da SIRI como fator desencadeante da hepatite autoimune nesta paciente. No nosso caso não foi constatada presença de outras síndromes autoimunes, como vitiligo e tireoidite, que poderiam sugerir uma predisposição ao desenvolvimento de hepatite autoimune, embora esta predisposição não possa ser descartada a priori.

O que diferiu a evolução da nossa paciente em relação às outras descrições foi o rápido desenvolvimento de insuficiência hepática aguda em poucos dias, com comportamento hiperagudo e óbito provavelmente secundário à hipertensão intracraniana refratária. Tal evolução não permitiu um reconhecimento mais precoce da gravidade do quadro no setor de emergência, assim como a instituição de imunossupressão precoce com potencial resposta favorável, como descrito uniformemente nos casos previamente relatados. Acrescente-se a esta evolução catastrófica a dificuldade em transplantar um doente HIV positivo em caráter emergencial, embora vários doentes HIV positivos selecionados têm transplantado fígado eletivamente e com evolução favorável,(1111 Joshi D, Agarwal K. Role of liver transplantation in human immunodeficiency virus positive patients. World J Gastroenterol. 2015;21(43):12311-21.) inclusive no nosso serviço. A não utilização de doadores HIV positivos para receptores HIV positivos no Brasil é um outro fator que limita a oferta de órgãos para estes doentes em caráter emergencial.

Portanto, considerando-se a prevalência crescente de indivíduos HIV positivos em tratamento antirretroviral no nosso meio, é fundamental reconhecer precocemente alterações das provas de função hepática e considerar a possibilidade de hepatite autoimune nestes pacientes, uma vez descartadas etiologias virais e medicamentosas. Em casos duvidosos, sem diagnóstico clínico-laboratorial definido, a biópsia hepática é indicada. O reconhecimento precoce da hepatite autoimune pode permitir a administração de corticoides, com ou sem azatioprina concomitante, de forma a evitar a evolução à hepatopatia crônica, ou mesmo à insuficiência hepática aguda como no caso aqui descrito. Por outro lado, o reconhecimento precoce de sinais de mau prognóstico deve levar à indicação de transplante hepático emergencial, especialmente em indivíduos com contagem de CD4 > 100 células/mL (ou > 200 células/mL se houver história prévia de complicações oportunísticas), carga viral do HIV < 50 cópias/mL (considerando-se o ensaio ultrassensível Amplicor Monitor PCR), ausência de doenças definidoras de AIDS, ausência de leucoencefalopatia multifocal progressiva, ausência de criptosporidiose intestinal crônica (duração superior a 1 mês) ou linfoma primário do sistema nervoso central.(1111 Joshi D, Agarwal K. Role of liver transplantation in human immunodeficiency virus positive patients. World J Gastroenterol. 2015;21(43):12311-21.) Uma revisão futura das diretrizes de utilização de doadores HIV positivos no nosso meio, que permita a utilização destes doadores para receptores HIV positivos, como já aceito em outros países,(1212 Durand CM, Segev D, Sugarman J. Realizing HOPE: The Ethics of Organ Transplantation From HIV-Positive Donors. Ann Intern Med. 2016;165(2):138-42.) pode aumentar a oportunidade de realização de um transplante hepático emergencial em tempo hábil, na presença de insuficiência hepática aguda e critérios de mau prognóstico.

CONCLUSÃO

Em resumo, os autores descrevem o caso de uma paciente HIV positiva com insuficiência hepática aguda por hepatite autoimune, secundária à síndrome inflamatória de reconstituição após introdução de terapia anti-retroviral. Este é um dos poucos casos documentados desta síndrome e o único com evolução à insuficiência hepática aguda. Estudos futuros são necessários para investigar a possibilidade de que esta síndrome se deva a apresentação aguda de uma hepatite auto-imune não diagnosticada previamente à introdução da terapia anti-retroviral.

  • Editor responsável: Glauco Adrieno Westphal

REFERÊNCIAS

  • 1
    Singanayagam A, Bernal W. Update on acute liver failure. Curr Opin Crit Care. 2015;21(2):134-41.
  • 2
    Whitehouse T, Wendon J. Acute liver failure. Best Pract Res Clin Gastroenterol. 2013;27(5):757-69.
  • 3
    Murthy AR, Marulappa R, Hegde U, Kappadi D, Ambikathanaya UK, Nair P. Treatment guidelines and prognosis of immune reconstitution inflammatory syndrome patients: a review. J Int Oral Health. 2015;7(4):92-5.
  • 4
    Kamradt T, Mitchison NA. Tolerance and autoimmunity. N Engl J Med. 2001;344(9):655-64.
  • 5
    European Association for the Study of the Liver. EASL Clinical Practice Guidelines: Autoimmune hepatitis. J Hepatol. 2015;63(4):971-1004. Erratum in: J Hepatol. 2015;63(6):1543-4.
  • 6
    Mendizabal M, Marciano S, Videla MG, Anders M, Zerega A, Balderramo DC, et al. Fulminant presentation of autoimmune hepatitis: clinical features and early predictors of corticosteroid treatment failure. Eur J Gastroenterol Hepatol. 2015;27(6):644-8.
  • 7
    O'Leary JG, Zachary K, Misdraji J, Chung RT. De novo autoimmune hepatitis during immune reconstitution in an HIV-infected patient receiving highly active antiretroviral therapy. Clin Infect Dis. 2008;46(1):e12-4.
  • 8
    Puius YA, Dove LM, Brust DG, Shah DP, Lefkowitch JH. Three cases of autoimmune hepatitis in HIV-infected patients. J Clin Gastroenterol. 2008;42(4):425-9.
  • 9
    Daas H, Khatib R, Nasser H, Kamran F, Higgins M, Saravolatz L. Human immunodeficiency virus infection and autoimmune hepatitis during highly active anti-retroviral treatment: a case report and review of the literature. J Med Case Rep. 2011;5:233.
  • 10
    Murunga E, Andersson M, van Rensburg C. Autoimmune hepatitis: a manifestation of immune reconstitution inflammatory syndrome in HIV infected patients? Scand J Gastroenterol. 2016;51(7):814-8.
  • 11
    Joshi D, Agarwal K. Role of liver transplantation in human immunodeficiency virus positive patients. World J Gastroenterol. 2015;21(43):12311-21.
  • 12
    Durand CM, Segev D, Sugarman J. Realizing HOPE: The Ethics of Organ Transplantation From HIV-Positive Donors. Ann Intern Med. 2016;165(2):138-42.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Sep 2017

Histórico

  • Recebido
    12 Set 2016
  • Aceito
    02 Jan 2017
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