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Caixa de memórias: sobre possibilidades de suporte ao luto em unidade de terapia intensiva durante a pandemia de COVID-19

Prezado Editor,

O luto é um processo de adaptação individual e uma experiência universal marcada pela subjetividade e pela cultura. A maioria dos indivíduos se ajusta à realidade da perda. No entanto, quando há um desejo pelo/ou preocupação persistente com o falecido, acompanhado por intensa dor emocional e prejuízo funcional por, no mínimo, 6 meses, denominamos de transtorno do luto prolongado (TLP).(11 World Health Organization (WHO). ICD-11 for Mortality and Morbidity Statistics (ICD-11 MMS) 2018 version. [cited 2020 Jul 3]. Avaiable from: https://icd.who.int/browse11/l-m/en
https://icd.who.int/browse11/l-m/en...
) A prevalência de TLP varia conforme grupos estudados: de 10% em amostras comunitárias expostas à morte não violenta a 52% em familiares de pacientes internados em unidade de terapia intensiva (UTI).(22 Lundorff M, Holmgren H, Zachariae R, Farver-Vestergaard I, O'Connor M. Prevalence of prolonged grief disorder in adult bereavement: a systematic review and meta-analysis. J Affect Disord. 2017;212:138-49.,33 Kentish-Barnes N, Chaize M, Seegers V, Legriel S, Cariou A, Jaber S, et al. Complicated grief after death of a relative in the intensive care unit. Eur Respir J. 2015;45(5):1341-52. doi:10.1183/09031936.00160014
https://doi.org/10.1183/09031936.0016001...
)

Na atual pandemia, inúmeras famílias vêm sofrendo perdas significativas. Algumas variáveis complicadoras do processo de luto podem ser identificadas: dificuldade de comunicação, mortes inesperadas, distanciamento da rede socioafetiva, impossibilidade de despedida e tradições fúnebres interditadas.(44 Burke LA, Neimeyer RA. Prospective risk factors for complicated grief: A review of the empirical literature. In: Stroebe MS, Schut H, van den Bout J, editors. Complicated grief: Scientific foundations for health care professionals. London: Routledge; 2013. p. 145-61. ISBN 9780203105115.) São situações vivenciadas em UTIs e que podem produzir impacto na experiência de terminalidade e predizer riscos à saúde mental dos familiares e dos profissionais de saúde.

Dessa forma, precisamos compreender que a doença pelo coronavírus 2019 (COVID-19) amplifica os desafios diante da morte, sendo urgente uma reflexão sobre o suporte emocional aos enlutados. Escrevemos esta carta num estímulo à (re)criação de ações compassivas, que permitam uma melhor experiência de cuidado nas UTIs. É fundamental para o processo do luto pensar em estratégias que reconfigurem rituais simbólicos, nas quais o enlutado possa validar seu relacionamento com o ser amado.(55 Castle J, Phillips WL. Grief rituals: aspects that facilitate adjustment to bereavement. J Loss Trauma. 2003;8(1):41-71.) Assim, relatamos uma intervenção desenvolvida pela equipe de saúde mental de um hospital universitário, que procurou ressignificar o lidar com a morte: a Caixa de Memórias.

Esse hospital universitário é uma unidade de alta complexidade da região metropolitana da capital fluminense e tem recebido casos de COVID-19. No curso da pandemia, o desabafo de um intensivista despertou a atenção para uma prática adotada em cumprimento às normas de biossegurança. Após uma comunicação de óbito e entrega dos pertences do paciente num “saco para descarte” à família, relatou extrema angústia: “era como se a vida não estivesse mais ali, mas a doença sim!”.

A partir dessa experiência, a equipe de saúde mental propôs uma mudança nos protocolos de entrega dos pertences às famílias, recorrendo ao recurso simbólico da Caixa de Memórias. A Caixa é delicada, decorada com flores e contém alguns dos objetos do paciente em processo descontaminação; vem acompanhada por uma mensagem de convite para honrar a vida do falecido por meio da construção de boas memórias. Ela é entregue pela equipe aos familiares durante uma conversa respeitosa, que estimula carinhosamente que eles guardem o que for precioso e especial daquele vínculo, num argumento de que as memórias afetivas também podem permanecer protegidas. A Caixa de Memórias concretiza o reconhecimento de que existiram bons momentos compartilhados: um presente da vida. Desse modo, a morte não encerra essa relação, sendo a Caixa uma maneira digna de retorno ao lar.

No período de 25 de maio de 2020 até 3 de julho de 2020 foram entregues 23 caixas aos familiares enlutados. O reconhecimento dessa ação pelos acompanhantes é uma constante, assim como o engajamento dos diferentes profissionais envolvidos, que descrevem alívio e esperança ao introduzirem um elemento acolhedor em um momento tão sofrido. Alguns familiares solicitam acompanhamento psicológico com a equipe após a entrega. Ainda que seja necessária sistematização para avaliação dessa intervenção sobre o TLP durante e após a pandemia, são cruciais, para a saúde pública, o investimento e a divulgação de intervenções precoces acessíveis, replicáveis e de baixo custo.

Assim como buscamos achatar a curva de contágio do coronavírus da síndrome respiratória aguda grave 2 (Sars-Cov-2), é urgente a antecipação à curva do luto complicado pelas equipes clínicas. Faz-se necessária a integração das ações de saúde mental nas UTIs, realidade ainda desafiadora.(66 Midega TD, Oliveira HS, Fumis RR. Satisfação dos familiares de pacientes críticos admitidos em unidade de terapia intensiva de hospital público e fatores correlacionados. Rev Bras Ter Intensiva. 2019;31(2):147-55.) Garantir o suporte ao luto é uma das possibilidades que consideramos no enfrentamento dessa perspectiva pandêmica.

REFERÊNCIAS

  • 1
    World Health Organization (WHO). ICD-11 for Mortality and Morbidity Statistics (ICD-11 MMS) 2018 version. [cited 2020 Jul 3]. Avaiable from: https://icd.who.int/browse11/l-m/en
    » https://icd.who.int/browse11/l-m/en
  • 2
    Lundorff M, Holmgren H, Zachariae R, Farver-Vestergaard I, O'Connor M. Prevalence of prolonged grief disorder in adult bereavement: a systematic review and meta-analysis. J Affect Disord. 2017;212:138-49.
  • 3
    Kentish-Barnes N, Chaize M, Seegers V, Legriel S, Cariou A, Jaber S, et al. Complicated grief after death of a relative in the intensive care unit. Eur Respir J. 2015;45(5):1341-52. doi:10.1183/09031936.00160014
    » https://doi.org/10.1183/09031936.00160014
  • 4
    Burke LA, Neimeyer RA. Prospective risk factors for complicated grief: A review of the empirical literature. In: Stroebe MS, Schut H, van den Bout J, editors. Complicated grief: Scientific foundations for health care professionals. London: Routledge; 2013. p. 145-61. ISBN 9780203105115.
  • 5
    Castle J, Phillips WL. Grief rituals: aspects that facilitate adjustment to bereavement. J Loss Trauma. 2003;8(1):41-71.
  • 6
    Midega TD, Oliveira HS, Fumis RR. Satisfação dos familiares de pacientes críticos admitidos em unidade de terapia intensiva de hospital público e fatores correlacionados. Rev Bras Ter Intensiva. 2019;31(2):147-55.

Editado por

Editor responsável: Felipe Dal-Pizzol

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Out 2020
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2020

Histórico

  • Recebido
    03 Jun 2020
  • Aceito
    06 Ago 2020
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