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Falta de especialistas em terapia intensiva nos Estados Unidos: percepções recentes e soluções propostas

Apesar das projeções bastante divulgadas já por mais de uma década pelas sociedades de terapia intensiva e pelo Governo Federal referentes à iminência real de uma crise, no que se refere à força de trabalho de intensivistas nos Estados Unidos,(1Angus DC, Kelley MA, Schmitz RJ, White A, Popovich J Jr; Committee on Manpower for Pulmonary and Critical Care Societies (COMPACCS). Caring for the critically ill patient. Current and projected workforce requirements for care of the critically ill and patients with pulmonary disease: can we meet the requirements of an aging population? JAMA. 2000;284(21):2762-70.,2Angus DC, Shorr AF, White A, Dremsizov TT, Schmitz RJ, Kelley MA; Committee on Manpower for Pulmonary and Critical Care Societies (COMPACCS). Critical care delivery in the United States: distribution of services and compliance with the Leapfrog recommendations. Crit Care Med. 2006;34(4):1016-24.) persiste uma falta nacional de médicos intensivistas. No entanto, há argumentos de que os modelos de força de trabalho, que baseiam as projeções de demanda na admissão às unidades de terapia intensiva (UTI), em vez de se apoiarem na incidência de doenças graves, superestimam de forma substancial a deficiência de profissionais.(3Kahn JM, Rubenfeld GD. The myth of the workforce crisis. Why the United States does not need more intensivist physicians. Am J Respir Crit Care Med. 2015;191(2):128-34.) Cremos que, antes de discutir se há uma falta de intensivistas “real” ou “imaginária”, há diversas questões fundamentais para discutir. Primeiramente, é importante concordar sobre uma definição de intensivista. Uma prática de alta qualidade e liderança confiável da equipe de medicina em cuidados críticos (MCC) deveria demandar que o intensivista dedicasse 100% de seu esforço à terapia intensiva. Lamentavelmente, isso engloba uma pequena parcela dos médicos norte-americanos, sendo predominantemente limitado aos centros médicos acadêmicos com programas de formação acreditados pelo Accredited Council for Graduate Medical Education (ACGME). Como a maioria dos intensivistas de adultos é na verdade atuante em tempo parcial, baseados em pneumologia, centros cirúrgicos (cirurgiões/anestesistas) ou medicina emergencial, a maior parte dos títulos de especialista em cuidados críticos são concedidos a médicos em tempo parcial;(4Halpern NA, Pastores SM, Oropello JM, Kvetan V. Critical care medicine in the United States: addressing the intensivist shortage and image of the specialty. Crit Care Med. 2013;41(12):2754-61.) assim, a falta de intensivistas em tempo integral é mais provavelmente cinco a dez vezes mais acentuada. Para nós, isso reflete uma falha na atuação das sociedades de terapia intensiva e um posicionamento da especialidade em MCC. Se desejarmos melhorar o impacto da MCC, precisamos primeiramente reconhecer essa falha nacional e pleitear mais investimentos e suporte político para nossas sociedades de cuidados críticos, além de valorizar os intensivistas que se dedicam em tempo integral a uma prática acadêmica de MCC.

Em segundo lugar, há uma falta de planejamento nacional e local quanto ao número e à proporção adequados de UTIs e leitos de terapia semi-intensiva.(5Wunsch H, Harrison DA, Jones A, Rowan K. The impact of the organization of high-dependency care on acute hospital mortality and patient flow for critically ill patients. Am J Respir Crit Care Med. 2015;191(2):186-93.) Kahn e Rubenfeld salientaram corretamente que a fração real de pacientes gravemente enfermos nas UTIs dos Estados Unidos pode estar próxima de algo entre 40 - 60%,(3Kahn JM, Rubenfeld GD. The myth of the workforce crisis. Why the United States does not need more intensivist physicians. Am J Respir Crit Care Med. 2015;191(2):128-34.) com os demais pacientes permanecendo na UTI em razão de pressões políticas, falha no que se refere à taxa de transferência e alta apropriadas, ou relutância em dar alta a pacientes da UTI durante a noite. Como as proporções de enfermagem, em geral, definem o nível de cuidado e compreendem a maior parte dos custos fixos nessas UTIs, uma importante economia de recursos e a melhoria da escassez de enfermagem poderiam ser facilmente obtidos por meio de uma firme definição de leito de UTI, em vez de fechá-los.

Em terceiro lugar, é inegável que médicos e enfermeiros adequadamente treinados possam ter excelente desempenho nas UTIs,(6Costa DK, Wallace DJ, Barnato AE, Kahn JM. Nurse practitioner/physician assistant staffing and critical care mortality. Chest. 2014;146(6):1566-73.,7Kleinpell RM, Ely EW, Grabenkort R. Nurse practitioners and physician assistants in the intensive care unit: an evidence-based review. Crit Care Med. 2008;36(10):2888-97. Review.) especialmente se sua dedicação for a uma UTI específica, em vez de rodar ao longo de semanas, como tem se tornado habitual com residentes. Já o número de residências acreditadas na área é vergonhosamente baixo, e igualmente sem uma atuação nacional de defesa. À medida que os orçamentos encolhem, esse grupo de profissionais merece uma forte defesa e apoio, inclusive possibilidades de carreira acadêmica para médicos e enfermeiros que são poucas, em comparação a carreiras mais estabelecidas, que levam a mestrado e doutorado.

Em quarto lugar, uma cobertura em tempo integral por intensivistas tem sido esporadicamente implantada, com resultados mistos em termos de impacto nos desfechos.(8Levy MM. Intensivists at night: putting resources in the right place. Crit Care. 2013;17(5):1008.) Ironicamente, o óbvio valor ético de ter intensivistas qualificados junto ao leito dos pacientes mais gravemente enfermos em hospitais não é intuitivamente óbvio. Faz sentido associar o cuidado imediato ao pé do leito com a responsabilidade institucional de ampliar o alcance dos serviços para resposta e triagem rápidas. Opor-se a este conceito é como remover o cirurgião cardíaco ou de transplantes da sala cirúrgica no meio de uma cirurgia noturna.

Em quinto lugar, o uso de soluções de Tecnologia da Informação (TI), projetadas para dar suporte ao julgamento clínico e ajudar a manter a prática baseada nas melhores evidências, pode ser eficaz.(9Buntin MB, Burke MF, Hoaglin MC, Blumenthal D. The benefits of health information technology: a review of the recent literature shows predominantly positive results. Health Aff (Millwood). 2011;30(3):464-71.) O imenso fluxo de informações de pacientes gravemente enfermos pode subjugar os melhores intensivistas. No universo da UTI, em que tecnologias e algoritmos são refutados por estudos randomizados e controlados tão rapidamente quanto são introduzidos com um fervor quase fanático, em busca de prolongar a vida a qualquer custo (como, por exemplo, proteína C ativada, controle glicêmico rigoroso e tratamento precoce guiado por objetivos para choque séptico), a TI pode certamente complementar, porém não substituir um intensivista qualificado em tempo integral. Os custos com TI lamentavelmente obscurecem seu uso racional.

Finalmente, racionamento não é um conceito fácil para o público norte-americano.(1010 Levy MM. Rationing: it is time for the conversation*. Crit Care Med. 2013;41(6):1583-4.) Ainda, o fato de que mais de 80% dos americanos querem morrer confortavelmente, sem dor ou ansiedade, em seus próprios leitos e rodeados pela família, e não em um leito de UTI, significa que estamos lutando contra nossa mortalidade. Os custos escorchantes do cuidado crítico prolongado, ineficaz e danoso não é, em geral, uma consideração importante, já que existe disponibilidade ilimitada de cuidados críticos. No entanto, está atualmente em construção um conceito de um intensivista mais maduro e paternal, especialista em cuidados paliativos e provisão de conforto, capaz de proporcionar tanto esforços heroicos quanto cuidados compassivos. Contudo, a esperança de que intensivistas em tempo parcial sejam capazes de fornecer este tipo de qualidade uniforme não é realista.

Concordamos com outros líderes na área de cuidados críticos que, se desejarmos ter sucesso na melhora dos cuidados proporcionados a nossos pacientes gravemente enfermos e na diminuição dos assustadores custos associados à terapia intensiva, é imensamente necessária uma análise atualizada da disponibilidade e da demanda de leitos de cuidados críticos, e do tamanho da força de trabalho em cuidados médicos críticos nos Estados Unidos.(3Kahn JM, Rubenfeld GD. The myth of the workforce crisis. Why the United States does not need more intensivist physicians. Am J Respir Crit Care Med. 2015;191(2):128-34.)

  • Editor responsável: Jorge Ibrain Figueira Salluh

REFERÊNCIAS

  • 1
    Angus DC, Kelley MA, Schmitz RJ, White A, Popovich J Jr; Committee on Manpower for Pulmonary and Critical Care Societies (COMPACCS). Caring for the critically ill patient. Current and projected workforce requirements for care of the critically ill and patients with pulmonary disease: can we meet the requirements of an aging population? JAMA. 2000;284(21):2762-70.
  • 2
    Angus DC, Shorr AF, White A, Dremsizov TT, Schmitz RJ, Kelley MA; Committee on Manpower for Pulmonary and Critical Care Societies (COMPACCS). Critical care delivery in the United States: distribution of services and compliance with the Leapfrog recommendations. Crit Care Med. 2006;34(4):1016-24.
  • 3
    Kahn JM, Rubenfeld GD. The myth of the workforce crisis. Why the United States does not need more intensivist physicians. Am J Respir Crit Care Med. 2015;191(2):128-34.
  • 4
    Halpern NA, Pastores SM, Oropello JM, Kvetan V. Critical care medicine in the United States: addressing the intensivist shortage and image of the specialty. Crit Care Med. 2013;41(12):2754-61.
  • 5
    Wunsch H, Harrison DA, Jones A, Rowan K. The impact of the organization of high-dependency care on acute hospital mortality and patient flow for critically ill patients. Am J Respir Crit Care Med. 2015;191(2):186-93.
  • 6
    Costa DK, Wallace DJ, Barnato AE, Kahn JM. Nurse practitioner/physician assistant staffing and critical care mortality. Chest. 2014;146(6):1566-73.
  • 7
    Kleinpell RM, Ely EW, Grabenkort R. Nurse practitioners and physician assistants in the intensive care unit: an evidence-based review. Crit Care Med. 2008;36(10):2888-97. Review.
  • 8
    Levy MM. Intensivists at night: putting resources in the right place. Crit Care. 2013;17(5):1008.
  • 9
    Buntin MB, Burke MF, Hoaglin MC, Blumenthal D. The benefits of health information technology: a review of the recent literature shows predominantly positive results. Health Aff (Millwood). 2011;30(3):464-71.
  • 10
    Levy MM. Rationing: it is time for the conversation*. Crit Care Med. 2013;41(6):1583-4.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Mar 2015

Histórico

  • Recebido
    14 Jan 2015
  • Aceito
    06 Mar 2015
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