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Percepção dos profissionais das unidades de pacientes críticos sobre morte encefálica

Ao editor

As equipes de saúde das unidades de pacientes críticos (unidades de terapia intensiva, serviço de emergência e unidades com doentes críticos) vivenciam o processo inicial da doação de órgãos em suas rotinas hospitalares. São nessas unidades que pacientes com sinais clínicos de morte encefálica (ME) são diagnosticados e validados ou não para a doação, a depender da resposta da família.(11 Brasil. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Lei nº 9.434, de 4 de fevereiro de 1997. Dispõe sobre a remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para fins de transplante, e dá outras providências. [citado 2020 Abr 16]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L9434.htm
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2 Brasil. Conselho Federal de Medicina. Resolução nº 1.480/ 1997. Critérios de morte encefálica. [citado 2020 Abr 16]. Disponível em: http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/CFM/1997/1480_1997.htm
http://www.portalmedico.org.br/resolucoe...

3 Brasil. Presidência da República. Secretaria-Geral. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Decreto n. 9.175, de 18 de outubro de 2017. Regulamenta a Lei n. 9.434, de 4 de fevereiro de 1997, para tratar da disposição de órgãos, tecidos, células e partes do corpo humano para fins de transplante e tratamento. [citado 2020 Abr 16]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/decreto/D9175.htm
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-44 Hirschheimer MR. Brain death and organ and tissue donation. Res Peditatr. 2016;6(Supl 1):29-45.)

Diante dessa realidade, situações ambíguas são despertadas, uma vez que os profissionais dessas equipes se deparam com corpos que apresentam sinais vitais que só existem porque são mantidos de maneira artificial. Isso abala profundamente as representações sociais, culturais e profissionais diante da morte, levando a equipe a enfrentar, de um lado, a ideia do ser humano com morte constatada e uma família impactada por essa nova condição do familiar, e, do outro lado, um potencial doador que pode salvar pacientes aguardando em fila de espera.(33 Brasil. Presidência da República. Secretaria-Geral. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Decreto n. 9.175, de 18 de outubro de 2017. Regulamenta a Lei n. 9.434, de 4 de fevereiro de 1997, para tratar da disposição de órgãos, tecidos, células e partes do corpo humano para fins de transplante e tratamento. [citado 2020 Abr 16]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/decreto/D9175.htm
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,55 Aredes JS, Firmo JO, Giacomin KC. [Deaths that save lives: the complexities of medical care for patients with suspected brain death]. Cad Saude Publica. 2018;34(11):e00061718. Portuguese.

6 Macedo JL. As regras do jogo da morte encefálica. Rev Antropol. 2016 59(2):32-58.

7 Castelli I, Costa Júnior AL. Profissionais de saúde e o diagnóstico de morte encefálica: uma revisão. Rev Espacios. 2018;39(7):6-17.
-88 Magalhães AL, Erdmann AL, Sousa FG, Lanzoni GM, Silva EL, Mello AL. Significados do cuidado de enfermagem ao paciente em morte encefálica potencial doador. Rev Gaúcha Enferm. 2018;39:e2017-0274.)

Compreendendo esse cenário, este estudo se propôs a identificar a percepção dos profissionais das unidades de pacientes críticos sobre o diagnóstico de ME, doação de órgãos e entrega do corpo à família, no caso de recusa familiar para doação.

Trata-se de um estudo quantitativo e transversal, desenvolvido em seis hospitais que são referência em doação de órgãos no Sul do Brasil.

Os participantes do estudo foram profissionais que atuavam nas unidades de pacientes críticos, obedecendo o seguinte critério de inclusão: profissionais que atuavam na assistência ao paciente em protocolo de ME e manutenção do potencial doador de órgãos e tecidos por mais de 3 meses. Foram excluídos profissionais em férias, licença-maternidade, auxílio-doença e atestado no período da coleta de dados, bem como aqueles de outras unidades que estavam apenas substituindo férias. A amostra foi calculada considerando índice de significância de 95%, sendo formada por 653 profissionais.

Antes de iniciar a coleta das informações, os pesquisadores fizeram contato com os coordenadores das unidades. Após o aceite em participar da pesquisa, procedeu-se à assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

A coleta de dados ocorreu entre novembro de 2017 e outubro de 2018 e foi realizada pelos pesquisadores e por alunos de Iniciação Científica, utilizando um questionário com sete perguntas, sendo quatro delas relacionadas ao perfil profissional, e as outras três abordavam a crença no diagnóstico de ME, a opção pela doação e a tomada de decisão. Para cada pergunta, havia apenas duas opções de resposta: sim ou não.

Os dados foram analisados por meio da distribuição de frequência absoluta (n) e relativa (%). Para as variáveis quantitativas, foram apresentados: média, limites do intervalo de confiança de 95%, mediana, mínimo, máximo e desvio-padrão.

A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa conforme CAAE 54562616.1.1001.0121.

Responderam ao questionário 653 profissionais das unidades de pacientes críticos, sendo 276 (42,3%) enfermeiros, 217 (33,2%) técnicos de enfermagem, 130 (19,9%) médicos e 30 (4,6%) outros profissionais da equipe multiprofissional (psicólogos e fisioterapeutas).

As respostas às questões estão apresentadas na tabela 1. Destaca-se que 15 (2,3%) profissionais não acreditavam no diagnóstico de ME, 136 (20,8%) não eram doadores de órgãos e tecidos e 251 (38,4%) não desligariam os equipamentos e entregariam o corpo à família em caso de recusa familiar para doação.

Nos últimos anos, várias pesquisas foram realizadas abordando as etapas do processo de doação de órgãos e tecidos, porém com foco apenas na investigação da recusa familiar.(99 Velloso Cajado MC. Experiências de familiares diante da possibilidade de doar órgãos e tecidos para transplantes. Rev Psicol Divers Saude. 2017;6(2):114-20.,1010 Passoni R, Padilha EF, Hofstatter LM, Ansolin AG, Silva EA. Clinical-epidemiological elements of family interviews for donation of organs and tissues. Enferm Global. 2017;16(2):120-30.) Poucos estudos investigam a realidade do profissional da saúde considerando as etapas do processo de doação de órgãos e tecidos.(1111 Senna CV, Martins T, Knihs NS, Magalhães AL, Schuantes-Paim SM. Weaknesses and capabilities experienced by a healthcare team in the organ transplant process: integrative review. Rev Eletr Enferm. 2020;22:58317.,1212 Costa BY, Lopes TP, Teston EF, Oliveira JL, Correia JF, Souza VS. Processo de trabalho da comissão de doação de órgãos e tecidos: percepção da equipe. Ciênc Cuid Saúde. 2019;18(4):9.)

Esses profissionais são indivíduos comuns, com seus próprios valores, princípios e crenças, relacionados ao tema da morte e à doação de órgãos. São pessoas vindas de diferentes meios social e cultural, e cada um tem sua própria opinião elaborada sobre essa temática. A relação da equipe das unidades de pacientes críticos com esse assunto, em especial médicos e equipe de enfermagem, ultrapassa normas e legislação vigente e adentra na complexidade do ser social imerso em sentimentos, emoções e decisões.(55 Aredes JS, Firmo JO, Giacomin KC. [Deaths that save lives: the complexities of medical care for patients with suspected brain death]. Cad Saude Publica. 2018;34(11):e00061718. Portuguese.)

Na perspectiva da vivência da ME, há profissionais que consideram essa morte como assassinato consentido pela sociedade.(66 Macedo JL. As regras do jogo da morte encefálica. Rev Antropol. 2016 59(2):32-58.) Mesmo após ampla discussão dessa temática ao longo dos anos, a ME é vista como um velório no leito, além de existirem paradoxos distintos entre profissionais e familiares quanto ao significado de morte quando esta é confirmada por meio do diagnóstico de ME. Tais implicações podem influenciar no cuidado com o potencial doador e os familiares por parte dos profissionais das unidades de pacientes críticos.(55 Aredes JS, Firmo JO, Giacomin KC. [Deaths that save lives: the complexities of medical care for patients with suspected brain death]. Cad Saude Publica. 2018;34(11):e00061718. Portuguese.,1313 Moghaddam HY, Manzari ZS, Heydari A, Mohammadi E. Explaining nurses’ experiences of caring for brain dead patients: a content analysis. Electron Physician. 2018;10(8):7205-16.)

Todos esses fatores vivenciados nesse processo podem estar associados ao resultado desta pesquisa. São muitas dúvidas e interrogações dos profissionais, aliadas ao medo e à insegurança de enfrentar a família, diante de quaisquer decisões que tenham que tomar, em especial quando envolve desconectar os equipamentos e devolver o corpo, em caso de impossibilidade da doação de órgãos e tecidos. A decisão desses participantes pode estar embasada nas vivências desse processo nas unidades de pacientes críticos, na descrença no processo de doação de órgãos, nos distintos significados de ME, no pouco conhecimento da legislação vigente e em valores morais, éticos, religiosos e culturais.(33 Brasil. Presidência da República. Secretaria-Geral. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Decreto n. 9.175, de 18 de outubro de 2017. Regulamenta a Lei n. 9.434, de 4 de fevereiro de 1997, para tratar da disposição de órgãos, tecidos, células e partes do corpo humano para fins de transplante e tratamento. [citado 2020 Abr 16]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/decreto/D9175.htm
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,55 Aredes JS, Firmo JO, Giacomin KC. [Deaths that save lives: the complexities of medical care for patients with suspected brain death]. Cad Saude Publica. 2018;34(11):e00061718. Portuguese.,1313 Moghaddam HY, Manzari ZS, Heydari A, Mohammadi E. Explaining nurses’ experiences of caring for brain dead patients: a content analysis. Electron Physician. 2018;10(8):7205-16.)

Tabela 1
Decisão da equipe das unidades de pacientes críticos quanto ao diagnóstico de morte encefálica, opção de ser um doador de órgãos e entrega do corpo à família em caso de recusa familiar

O estudo propôs identificar se os profissionais que atuavam nas unidades de pacientes críticos acreditavam no diagnóstico de ME, eram doadores de órgãos e tecidos e entregariam o corpo à família, caso não fosse possível a doação de órgãos e tecidos. A maioria dos profissionais demonstrou clareza nos aspectos investigados, mas ainda é grande o número desses profissionais que não são doadores e, quando questionados, dizem não desligar os equipamentos e proceder à entrega do corpo à família após a impossibilidade da doação.

Assim, o estudo mostra que, entre os profissionais que conduzem etapas do processo de doação, encontram-se pessoas que não estão familiarizadas com o processo, tendo decisões diferentes. Tais resultados apontam que níveis administrativos investiguem tais realidades, no sentido de propor ações internas que viabilizem mais conforto, espaço e acolhimento aos profissionais, assim como promovam mais capacitações sobre o assunto. Faz-se necessária também maior produção de conhecimento científico nessa área, como forma de amparar os demais órgãos e gestores, evitando sobrecarga emocional e psicológica, além de dilemas e conflitos éticos em relação ao profissional, aos demais colegas e à família.

REFERÊNCIAS

  • 1
    Brasil. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Lei nº 9.434, de 4 de fevereiro de 1997. Dispõe sobre a remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para fins de transplante, e dá outras providências. [citado 2020 Abr 16]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L9434.htm
    » http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L9434.htm
  • 2
    Brasil. Conselho Federal de Medicina. Resolução nº 1.480/ 1997. Critérios de morte encefálica. [citado 2020 Abr 16]. Disponível em: http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/CFM/1997/1480_1997.htm
    » http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/CFM/1997/1480_1997.htm
  • 3
    Brasil. Presidência da República. Secretaria-Geral. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Decreto n. 9.175, de 18 de outubro de 2017. Regulamenta a Lei n. 9.434, de 4 de fevereiro de 1997, para tratar da disposição de órgãos, tecidos, células e partes do corpo humano para fins de transplante e tratamento. [citado 2020 Abr 16]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/decreto/D9175.htm
    » http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/decreto/D9175.htm
  • 4
    Hirschheimer MR. Brain death and organ and tissue donation. Res Peditatr. 2016;6(Supl 1):29-45.
  • 5
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  • 6
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  • 7
    Castelli I, Costa Júnior AL. Profissionais de saúde e o diagnóstico de morte encefálica: uma revisão. Rev Espacios. 2018;39(7):6-17.
  • 8
    Magalhães AL, Erdmann AL, Sousa FG, Lanzoni GM, Silva EL, Mello AL. Significados do cuidado de enfermagem ao paciente em morte encefálica potencial doador. Rev Gaúcha Enferm. 2018;39:e2017-0274.
  • 9
    Velloso Cajado MC. Experiências de familiares diante da possibilidade de doar órgãos e tecidos para transplantes. Rev Psicol Divers Saude. 2017;6(2):114-20.
  • 10
    Passoni R, Padilha EF, Hofstatter LM, Ansolin AG, Silva EA. Clinical-epidemiological elements of family interviews for donation of organs and tissues. Enferm Global. 2017;16(2):120-30.
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  • 12
    Costa BY, Lopes TP, Teston EF, Oliveira JL, Correia JF, Souza VS. Processo de trabalho da comissão de doação de órgãos e tecidos: percepção da equipe. Ciênc Cuid Saúde. 2019;18(4):9.
  • 13
    Moghaddam HY, Manzari ZS, Heydari A, Mohammadi E. Explaining nurses’ experiences of caring for brain dead patients: a content analysis. Electron Physician. 2018;10(8):7205-16.

Editado por

Editor responsável: Felipe Dal-Pizzol

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Out 2021
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2021

Histórico

  • Recebido
    17 Nov 2020
  • Aceito
    22 Nov 2020
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