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Lesão pulmonar autoinflingida: é possível identificar o risco? Relato de caso

RESUMO

A respiração espontânea pode ser prejudicial para pacientes com pulmões previamente lesados, especialmente na vigência de síndrome do desconforto respiratório agudo. Mais ainda, a incapacidade de assumir a respiração totalmente espontânea durante a ventilação mecânica e a necessidade de voltar à ventilação mecânica controlada se associam com mortalidade mais alta. Existe uma lacuna no conhecimento em relação aos parâmetros que poderiam ser úteis para predizer o risco de lesão pulmonar autoinflingida pelo paciente e detecção da incapacidade de assumir a respiração espontânea. Relata-se o caso de um paciente com lesão pulmonar autoinflingida e as correspondentes variáveis, básicas e avançadas, de monitoramento da mecânica do sistema respiratório, além dos resultados fisiológicos e clínicos relacionados à respiração espontânea durante ventilação mecânica. O paciente era um homem caucasiano com 33 anos de idade e história clínica de AIDS, que apresentou síndrome do desconforto respiratório agudo e necessitou ser submetido à ventilação mecânica invasiva após falha do suporte ventilatório não invasivo. Durante os períodos de ventilação controlada, adotou-se estratégia de ventilação protetora, e o paciente mostrou evidente melhora, tanto do ponto de vista clínico quanto radiográfico. Contudo, durante cada período de respiração espontânea sob ventilação com pressão de suporte, apesar dos parâmetros iniciais adequados, das regulagens rigorosamente estabelecidas e do estrito monitoramento, o paciente desenvolveu hipoxemia progressiva e piora da mecânica do sistema respiratório, com deterioração radiográfica claramente correlacionada (lesão pulmonar autoinflingida pelo paciente). Após falha de três tentativas de respiração espontânea, o paciente faleceu por hipoxemia refratária no 29° dia. Neste caso, as variáveis básicas e avançadas convencionais não foram suficientes para identificar a aptidão para respirar espontaneamente ou predizer o risco de desenvolver lesão pulmonar autoinflingida pelo paciente durante a ventilação de suporte parcial.

Descritores:
Lesão pulmonar induzida por ventilador; Suporte ventilatório interativo; Respiração artificial; Síndrome do desconforto respiratório; Monitorização

ABSTRACT

Spontaneous breathing can be deleterious in patients with previously injured lungs, especially in acute respiratory distress syndrome. Moreover, the failure to assume spontaneous breathing during mechanical ventilation and the need to switch back to controlled mechanical ventilation are associated with higher mortality. There is a gap of knowledge regarding which parameters might be useful to predict the risk of patient self-inflicted lung injury and to detect the inability to assume spontaneous breathing. We report a case of patient self-inflicted lung injury, the corresponding basic and advanced monitoring of the respiratory system mechanics and physiological and clinical results related to spontaneous breathing. The patient was a 33-year-old Caucasian man with a medical history of AIDS who developed acute respiratory distress syndrome and needed invasive mechanical ventilation after noninvasive ventilatory support failure. During the controlled ventilation periods, a protective ventilation strategy was adopted, and the patient showed clear clinical and radiographic improvement. However, during each spontaneous breathing period under pressure support ventilation, despite adequate initial parameters and a strictly adjusted ventilatory setting and monitoring, the patient developed progressive hypoxemia and worsening of respiratory system mechanics with a clearly correlated radiographic deterioration (patient self-inflicted lung injury). After failing three spontaneous breathing assumption trials, he died on day 29 due to refractory hypoxemia. Conventional basic and advanced monitoring variables in this case were not sufficient to identify the aptitude to breathe spontaneously or to predict the risk and development of patient self-inflicted lung injury during partial support ventilation.

Keywords:
Ventilator-induced lung injury; Interactive ventilatory support; Respiration; artificial; Respiratory distress syndrome; Monitoring

INTRODUÇÃO

A respiração espontânea (RE) pode ser potencialmente prejudicial em pacientes com pulmões previamente lesados. Especificamente na síndrome do desconforto respiratório agudo (SDRA) moderada a grave, um esforço respiratório vigoroso pode ampliar a força estressora aplicada às regiões pulmonares dependentes e produzir liberação local de mediadores inflamatórios com consequências sistêmicas - a assim chamada lesão pulmonar autoinflingida pelo paciente (P-SILI - patient self-inflicted lung injury).(11 Hraiech S, Yoshida T, Papazian L. Balancing neuromuscular blockade versus preserved muscle activity. Curr Opin Crit Care. 2015;21(1):26-33.) Apesar da potencial relevância da P-SILI, ele só foi demonstrado em modelos de experimentação em animais e em estudos laboratoriais controlados, com escassas descrições na prática clínica.(22 Yoshida T, Uchiyama A, Matsuura N, Mashimo T, Fujino Y. The comparison of spontaneous breathing and muscle paralysis in two different severities of experimental lung injury. Crit Care Med. 2013;41(2):536-45.,33 Yoshida T, Nakahashi S, Nakamura MA, Koyama Y, Roldan R, Torsani V, et al. Volume-controlled ventilation does not prevent injurious inflation during spontaneous effort. Am J Respir Crit Care Med. 2017;196(5):590-601.)

O prolongamento do tempo sob ventilação mecânica (VM) controlada aumenta o risco de infecções respiratórias e fraqueza diafragmática, que podem prejudicar o desmame do ventilador. Por outro lado, a adoção prematura de suporte ventilatório parcial pode se associar a maior drive respiratório e ao aumento do risco de P-SILI e provocar insuficiência respiratória, com a consequente necessidade de voltar para VM controlada que têm sido associados com mortalidade mais elevada e desfechos piores na SDRA.(44 Spinelli E, Mauri T, Beitler JR, Pesenti A, Brodie D. Respiratory drive in the acute respiratory distress syndrome: pathophysiology, monitoring, and therapeutic interventions. Intensive Care Med. 2020;46(4):606-18.,55 van Haren F, Pham T, Brochard L, Bellani G, Laffey J, Dres M, Fan E, Goligher EC, Heunks L, Lynch J, Wrigge H, McAuley D; Large observational study to UNderstand the Global impact of Severe Acute respiratory FailurE (LUNG SAFE) Investigators. Spontaneous Breathing in Early Acute Respiratory Distress Syndrome: Insights From the Large Observational Study to UNderstand the Global Impact of Severe Acute Respiratory FailurE Study. Crit Care Med. 2019;47(2):229-38.)

Existe uma lacuna de conhecimento em relação a quais variáveis ventilatórias permitem que o médico detecte a capacidade de respirar espontaneamente e identifique o risco de P-SILI em pacientes em recuperação de SDRA.(44 Spinelli E, Mauri T, Beitler JR, Pesenti A, Brodie D. Respiratory drive in the acute respiratory distress syndrome: pathophysiology, monitoring, and therapeutic interventions. Intensive Care Med. 2020;46(4):606-18.,66 Pérez J, Dorado JH, Papazian AC, Berastegui M, Gilgado DI, Cardoso GP,et al. Titration and characteristics of pressure-support ventilation use in Argentina: an online cross-sectional survey study. Rev Bras Ter Intensiva. 2020;32(1):81-91.) Alguns parâmetros únicos, como oxigenação, drive respiratório, mecânica do sistema respiratório (SR) e trabalho respiratório (TR), têm sido propostos como potenciais promotores de P-SILI;(22 Yoshida T, Uchiyama A, Matsuura N, Mashimo T, Fujino Y. The comparison of spontaneous breathing and muscle paralysis in two different severities of experimental lung injury. Crit Care Med. 2013;41(2):536-45.,44 Spinelli E, Mauri T, Beitler JR, Pesenti A, Brodie D. Respiratory drive in the acute respiratory distress syndrome: pathophysiology, monitoring, and therapeutic interventions. Intensive Care Med. 2020;46(4):606-18.,77 Vaporidi K, Psarologakis C, Proklou A, Pediaditis E, Akoumianaki E, Koutsiana E, et al. Driving pressure during proportional assist ventilation: an observational study. Ann Intensive Care. 2019;9(1):1.) entretanto, todos estes parâmetros ainda são controvertidos, e faltam evidências científicas fortes a seu favor.(44 Spinelli E, Mauri T, Beitler JR, Pesenti A, Brodie D. Respiratory drive in the acute respiratory distress syndrome: pathophysiology, monitoring, and therapeutic interventions. Intensive Care Med. 2020;46(4):606-18.)

No presente caso, relatam-se as variáveis de monitoramento convencionais, básicas e avançadas, relativas à mecânica do SR, em um paciente que desenvolveu P-SILI durante a fase de suporte ventilatório parcial, com os correspondentes desfechos fisiológicos e clínicos relacionados à RE.

RELATO DO CASO

O paciente era um homem caucasiano com 33 anos de idade com história clínica de AIDS sem tratamento há 1 ano, que compareceu ao pronto-socorro com quadro de dispneia progressiva há 3 semanas seguida de tratamento com levofloxacino por 5 dias e amoxicilina + ácido clavulânico por 7 dias, sem resposta adequada. Quando da admissão, apresentava taquipneia, febre de 39,1ºC, tosse seca e hipoxemia. A radiografia do tórax e a tomografia computadorizada revelaram infiltrados pulmonares bilaterais sem opacidades alveolares localizadas (Figura 1). Imediatamente, foi instituída ventilação não invasiva (VNI), tendo sido colhidas amostras de escarro, sangue e urina, iniciando-se antibioticoterapia empírica.

O paciente foi admitido à unidade de terapia intensiva (UTI) sob VNI, apresentando escore pela escala de coma Glasgow de 15/15, frequência respiratória de 28-34 respirações por minuto (rpm), escore de dispneia 8/10 (sendo zero para ausência de dispneia e dez para a pior dispneia possível), conforto 8/10, uso de músculos acessórios e escore Heart Rate, Acidosis, Consciousness, Oxygenation, and Respiratory Rate (HACOR) de quatro pontos.(88 Duan J, Han X, Bai L, Zhou L, Huang S. Assessment of heart rate, acidosis, consciousness, oxygenation, and respiratory rate to predict noninvasive ventilation failure in hypoxemic patients. Intensive Care Med. 2017;43(2):192-9.) Após 1 hora sob VNI, a gasometria arterial revelou pH de 7,38, pressão parcial de dióxido de carbono (PaCO2) de 38mmHg, pressão parcial de oxigênio (PaO2) de 78,1mmHg, bicarbonato (HCO3) de 22,2mEq/L, Excesso de Base (BE) de-2,4mEq/L e proporção entre PaO2 e fração inspirada de oxigênio (PaO2/FiO2) de 156,2mmHg.

Considerando-se o quadro clínico inicial, decidiu-se mudar de VNI para cânula nasal de alto fluxo (CNAF) utilizando fluxo de 60L/minuto com FiO2 de 0,50. Inicialmente o paciente teve diminuição da frequência respiratória para 23rpm e melhora da oxigenação, da dispneia e do conforto. O índice ROX após 1 hora de CNAF foi 8,33.(99 Roca O, Caralt B, Messika J, Samper M, Sztrymf B, Hernández G, et al. An index combining respiratory rate and oxygenation to predict outcome of nasal high-flow therapy. Am J Respir Crit Care Med. 2019;199(11):1368-76.)

Após 48 horas com CNAF, o paciente teve aumento do TR e piora da oxigenação, tornando necessário proceder à intubação endotraqueal e à VM invasiva.

Primeiro período de ventilação em modo controlado

Durante o tempo de VM invasiva, realizou-se monitoramento avançado da mecânica do SR por meio de manometria esofágica. Inicialmente, instituiu-se VM protetora, com utilização de volume corrente (VC) de 4 - 6L/kg de peso corpóreo predito (PCP), titulação da pressão positiva expiratória final (PEEP) segundo a melhor complacência do SR (Crs), plateau pressure (Pplat) alvo > 30cmH2O, driving pressure nas vias áreas (∆Paw) < a 15cmH2O, driving pressure transpulmonar (∆PL) < a 12cmH2O, sedação profunda, uso de agentes bloqueadores neuromusculares (BNM) e posição pronada (PP) (Figura 1S - Material suplementar).

Figure 1
Chest radiography (A) and computed tomography (B) at admission.

No dia 4 de VM invasiva, após nítida melhora da oxigenação, os níveis de sedação foram reduzidos, em uma tentativa de iniciar a fase de suporte ventilatório parcial, sendo a ventilação mudada de VM controlada para ventilação com pressão de suporte (VPS).

Primeiro período de suporte ventilatório parcial

A figura 2 mostra a evolução da oxigenação e da Crs durante esse período. A tabela 1 descreve as regulagens ventilatórias diárias e o monitoramento durante a VPS. Realizou-se uma tentativa de titulação, reduzindo a PEEP para otimizar a estratégia ventilatória. Observou-se que níveis mais elevados de PEEP não melhoravam nem a oscilação da pressão esofágica (∆Pes) nem a ∆PL e até mesmo pareciam aumentá-las (Figura 3); assim, foi dada prioridade a valores baixos de PEEP para reduzir o estresse e a energia mecânica aplicadas aos pulmões.

Figura 2
Evolução da complacência do sistema respiratório (losangos) e oxigenação (círculos) durante a ventilação mecânica invasiva.

A complacência com ventilação contínua mandatória controlada por volume e sob ventilação com pressão de suporte foi avaliada em condições estáticas, por meio de oclusão inspiratória final de 2 segundos, descartando atividade de musculatura respiratória durante o procedimento, particularmente durante a ventilação com pressão de suporte. As setas cinzas mostram o dia quando se iniciou a ventilação mecânica controlada; os símbolos sem preenchimento representam os dias sob ventilação mecânica controlada em controle por volume - ventilação contínua mandatória; as setas negras mostram o dia de início de respiração espontânea com início de ventilação com pressão de suporte, e os símbolos com preenchimento em preto representam os dias de respiração espontânea sob ventilação com pressão de suporte. Embora tenha sido mantida respiração espontânea por apenas algumas horas nos dias 15 e 23, decidiu-se expressar o início da fase de ventilação controlada no gráfico nos dias 16 e 24, respectivamente, por representarem os dias de ventilação passiva total (vide o texto principal). A oxigenação piorou notavelmente durante cada período de respiração espontânea. A complacência do sistema respiratório seguiu o mesmo comportamento, exceto no primeiro ciclo com suporte parcial. PaO2 - pressão parcial de oxigênio arterial; FiO2 - fração inspirada de oxigênio.


Tabela 1
Variáveis básicas e avançadas de monitoramento durante os dias de respiração espontânea sob ventilação com pressão de suporte
Figura 3
Resposta da pressão esofágica e transpulmonar à fase de pressão positiva expiratória final de 10cmH2O sob ventilação com pressão de suporte.

No sexto dia de VM invasiva, o paciente cumpria os critérios clássicos para desmame; assim, realizou-se um teste de respiração espontânea (TRE) com nível de pressão de suporte de 5cmH2O para avaliar a chance de extubação. O paciente teve falha do TRE após 20 minutos em razão de hipoxemia.

No dia 7 de VM invasiva, em razão da piora persistente da oxigenação, realizou-se uma nova tomografia computadorizada, que mostrou clara progressão da lesão pulmonar, com surgimento de infiltrado alveolar difuso bilateral, primariamente em regiões pulmonares dependentes (Figura 2S - Material suplementar). Neste contexto, decidiu-se reinstituir VM controlada e níveis profundos de sedação.

Segundo período de ventilação mecânica controlada

Neste período, foram adotados, de forma eletiva, ciclos em PP de 16 a 20 horas por dia, com o objetivo de alcançar estabilidade da oxigenação, minimizando o risco de piora da lesão pulmonar e projetando um novo período de RE sob condições mais favoráveis (Figura 3S - Material suplementar).(1010 Amato MB, Carvalho CR, Vieira S, Isola A, Rotman V, Moock M, et al. Ventilação mecânica na lesão pulmonar aguda/síndrome do desconforto respiratório agudo. Rev Bras Ter Intensiva. 2007;19(3):374-83.,1111 Setten M, Plotnikow GA, Accoce M. Decúbito prono en pacientes con síndrome de distrés respiratorio agudo. Rev Bras Ter Intensiva. 2016;28(4):452-62.) Foi mantida a posição supina por 4 - 5 horas entre os ciclos em PP.

No dia 8 de VM invasiva, uma lavagem broncoalveolar revelou resultados positivos para citomegalovírus e Acinetobacter baumannii. Assim, iniciou-se imediatamente o uso de antibióticos direcionados. É importante salientar que, durante esse período, foi necessário reduzir o VC para 4mL/kg PCP para que fosse possível manter os parâmetros de ventilação protetora (Figura 1S - Material suplementar).

No dia 13 de VM invasiva, após evidente melhora da oxigenação (PaO2/FiO2 = 286mmHg) e da Crs (30mL/cmH2O), realizou-se nova tentativa de diminuir a sedação (Figura 2).

Segundo período de suporte ventilatório parcial

Nas primeiras 48 horas de suporte parcial, o paciente manteve valores seguros de esforço espontâneo na VPS (Tabela 1, Figura 4). Contudo, na manhã do terceiro dia de RE, o paciente mostrou súbito e acentuado aumento do drive respiratório e do TR, levando a um ∆PL mais alto (Tabela 1).

Inicialmente, essa alteração nas condições clínicas foi atribuída a febre, assincronias e dor, de forma que foram instituídos tratamentos com antipiréticos, ansiolíticos e analgésicos, com resposta insuficiente. Foi observada clara deterioração da oxigenação e da mecânica do SR, assim como radiológica (Tabela 1, Figuras 2 to 4), tendo sido necessário reiniciar VM e sedação profunda.

Figura 4
Evolução da driving pressure nas vias aéreas (quadrados) e driving pressure transpulmonar (triângulos) durante os dias de ventilação mecânica invasiva.

A driving pressure nas vias aéreas no volume controlado, ventilação contínua mandatória e na ventilação com pressão de suporte foram avaliadas em condições estáticas por meio de oclusão inspiratória final por 2 segundos, descartando ativação de musculatura respiratória durante o procedimento, particularmente no modo com ventilação de suporte. As setas cinzas mostram o dia em que se iniciou a ventilação mecânica controlada, os símbolos sem preenchimento representam os dias de ventilação mecânica controlada sob volume controlado, ventilação contínua mandatória; as setas pretas mostram o dia em que começou a respiração espontânea sob ventilação com pressão de suporte, e os símbolos preenchidos em preto representam o dia do início da respiração espontânea em ventilação com pressão de suporte. Embora a respiração espontânea tenha sido mantida por apenas algumas horas nos dias 15 e 23, decidiu-se expressar o início da ventilação controlada no gráfico nos dias 16 e 24, por representar 1 dia todo sob ventilação passiva (vide o texto principal). É digno de nota que se observou clara correlação radiográfica entre os dias de respiração espontânea sob pressão de suporte e o surgimento de novos infiltrados difusos bilaterais, após o final de cada período de suporte parcial. Durante os ciclos de ventilação controlada, o paciente teve notável melhora radiográfica.


Terceiro período de ventilação mecânica controlada

No dia 21 de VM invasiva, foi realizada uma traqueostomia percutânea, sem complicações. Durante esse período, a oxigenação e a resposta mecânica do SR à PP permaneceram satisfatórias. Por essa razão, foi implantada uma estratégia de PP intermitente por 7 dias. No dia 23 de VM invasiva, após melhora clínica e radiológica, foi realizada nova tentativa de suporte parcial.

Terceiro período de suporte ventilatório parcial

Durante o TRE, o paciente só foi capaz de respirar por 24 horas, considerando-se a rápida deterioração progressiva de sua condição clínica (Figuras 2 to 4), sendo necessário retomar VM controlada.

Quarto período de ventilação mecânica controlada

Embora com a utilização de VM ultraprotetora, foi impossível manter a mecânica do SR dentro de faixas seguras (Figura 4, Figura 1S - Material suplementar).

No dia 29 de VM, o paciente foi a óbito em razão de hipoxemia refratária.

DISCUSSÃO

Neste estudo, demonstrou-se que as clássicas variáveis de monitoramento básico e avançado, geralmente consideradas para determinar a aptidão para iniciar a fase de suporte ventilatório parcial, não foram suficientes para garantir a segurança da RE. A rápida deterioração da oxigenação e da mecânica do SR e a clara correlação radiográfica durante os períodos de RE mostram que é possível ocorrer P-SILI apesar dos parâmetros de monitoramento clínico e ventilatório no início da RE.

A Crs foi recentemente proposta por Vaporidi et al. como parâmetro beira-leito para avaliar o risco de desenvolver valores elevados de ∆Paw durante a ventilação assistida.(66 Pérez J, Dorado JH, Papazian AC, Berastegui M, Gilgado DI, Cardoso GP,et al. Titration and characteristics of pressure-support ventilation use in Argentina: an online cross-sectional survey study. Rev Bras Ter Intensiva. 2020;32(1):81-91.) Valores abaixo de 20mL/cmH2O são sempre associados com períodos de ∆Paw acima de 15cmH2O; por outro lado, valores elevados de ∆Paw são improváveis quando a Crs é maior que 30mL/cmH2O. Assim, abaixo desse limite de Crs, é recomendado utilizar ferramentas de monitoramento avançado, para evitar esforços espontâneos lesivos.(77 Vaporidi K, Psarologakis C, Proklou A, Pediaditis E, Akoumianaki E, Koutsiana E, et al. Driving pressure during proportional assist ventilation: an observational study. Ann Intensive Care. 2019;9(1):1.) É importante considerar que, no estudo acima mencionado, os pacientes foram tratados com ventilação assistida proporcional plus (PAV+), uma modalidade de ventilação cujas funções operacionais e interações paciente-ventilador diferem consideravelmente da VPS. Entretanto, Bellani et al. recentemente relataram que baixa Crs e valores incrementais de ∆Paw na VPS se associam com mortalidade mais elevada.(1212 Bellani G, Grassi A, Sosio S, Gatti S, Kavanagh BP, Pesenti A,et al. Driving pressure is associated with outcome during assisted ventilation in acute respiratory distress syndrome. Anesthesiology. 2019;131(3):594-604.) Coerentemente com essas recomendações, neste caso, a fase de transição de ventilação controlada para parcialmente assistida sempre foi iniciada com Crs ≥ 30mL/cmH2O e ∆Paw menor que 15cmH2O. Por outro lado, o VC foi mantido dentro de uma faixa aceitável, até mesmo inferior às relatadas em pacientes com SDRA e bem recomendada para permitir RE.(1313 Papazian L, Aubron C, Brochard L, Chiche JD, Combes A, Dreyfuss D, et al. Formal guidelines: management of acute respiratory distress syndrome. Ann Intensive Care. 2019;9(1):69.) Os achados deste estudo coincidem com os relatados por van Haren et al. e Vaporidi et al., de que o monitoramento do VC não assegura baixos ∆Paw e não permite discriminar entre pacientes com e sem potenciais riscos.(55 van Haren F, Pham T, Brochard L, Bellani G, Laffey J, Dres M, Fan E, Goligher EC, Heunks L, Lynch J, Wrigge H, McAuley D; Large observational study to UNderstand the Global impact of Severe Acute respiratory FailurE (LUNG SAFE) Investigators. Spontaneous Breathing in Early Acute Respiratory Distress Syndrome: Insights From the Large Observational Study to UNderstand the Global Impact of Severe Acute Respiratory FailurE Study. Crit Care Med. 2019;47(2):229-38.,77 Vaporidi K, Psarologakis C, Proklou A, Pediaditis E, Akoumianaki E, Koutsiana E, et al. Driving pressure during proportional assist ventilation: an observational study. Ann Intensive Care. 2019;9(1):1.)

Estudos prévios sugerem que os desfechos relacionados à RE durante a ventilação parcialmente suportada dependem da gravidade do comprometimento da oxigenação, com claros benefícios da RE em SDRA leve a moderada e efeitos deletérios na SRDA grave.(22 Yoshida T, Uchiyama A, Matsuura N, Mashimo T, Fujino Y. The comparison of spontaneous breathing and muscle paralysis in two different severities of experimental lung injury. Crit Care Med. 2013;41(2):536-45.,1414 Yoshida T, Amato MB, Kavanagh BP, Fujino Y. Impact of spontaneous breathing during mechanical ventilation in acute respiratory distress syndrome. Curr Opin Crit Care. 2019;25(2):192-8.) Neste caso, o paciente começou cada um dos períodos de RE sob VPS com PaO2/FiO2 superior a 250mmHg.

Presumiram-se três mecanismos principais para precipitar P-SILI durante RE: assincronia paciente-ventilador, superdistensão e aumento da perfusão pulmonar.(1515 Yoshida T, Grieco DL, Brochard L, Fujino Y. Patient self-inflicted lung injury and positive end-expiratory pressure for safe spontaneous breathing. Curr Opin Crit Care. 2020;26(1):59-65.) Primeiro, foram claramente observadas assincronias em apenas 1 dia durante os períodos de RE, de forma que se acredita ser improvável que esse tenha sido o mecanismo principal da lesão pulmonar neste caso. Segundo, embora se tenha sido capaz de avaliar a mecânica do SR com utilização de manometria esofágica, o aumento regional de pressão transpulmonar (PL), especialmente dependendo das regiões pulmonares, tem alta probabilidade de não ser detectado quando se utilizam medidas globais de monitoramento.(44 Spinelli E, Mauri T, Beitler JR, Pesenti A, Brodie D. Respiratory drive in the acute respiratory distress syndrome: pathophysiology, monitoring, and therapeutic interventions. Intensive Care Med. 2020;46(4):606-18.,1414 Yoshida T, Amato MB, Kavanagh BP, Fujino Y. Impact of spontaneous breathing during mechanical ventilation in acute respiratory distress syndrome. Curr Opin Crit Care. 2019;25(2):192-8.,1515 Yoshida T, Grieco DL, Brochard L, Fujino Y. Patient self-inflicted lung injury and positive end-expiratory pressure for safe spontaneous breathing. Curr Opin Crit Care. 2020;26(1):59-65.) Um exemplo claro dessa situação é o occult pendelluft, que descreve o movimento de redistribuição do gás de regiões pulmonares não dependentes para dependentes, levando a uma superdistensão local e a um recrutamento corrente do tecido colapsado, mesmo com monitoramento de VC protetor.(33 Yoshida T, Nakahashi S, Nakamura MA, Koyama Y, Roldan R, Torsani V, et al. Volume-controlled ventilation does not prevent injurious inflation during spontaneous effort. Am J Respir Crit Care Med. 2017;196(5):590-601.,1515 Yoshida T, Grieco DL, Brochard L, Fujino Y. Patient self-inflicted lung injury and positive end-expiratory pressure for safe spontaneous breathing. Curr Opin Crit Care. 2020;26(1):59-65.) Contudo, neste caso, esta hipótese não pôde ser confirmada, pois as ferramentas de monitoramento não eram sensíveis a esse fenômeno. Em terceiro lugar, com relação ao aumento da perfusão pulmonar, realizou-se um ecocardiograma durante o tempo de permanência na UTI que não mostrou alterações; além disso, o paciente não tinha apresentado qualquer sinal clínico de sobrecarga de fluidos durante os períodos de RE, isto é, não teve edema, ingurgitação jugular e nem necessidade de utilizar medicação anti-hipertensiva. Apesar dessa situação, crê-se que um mero aumento modesto do retorno venoso, associado a oscilações intratorácicas negativas, poderia ser uma explicação razoável para a formação de edema, mostrando rápidas e claras alterações nos padrões radiológicos e deterioração da mecânica do SR durante a RE, mesmo na ausência de sinais clínicos de sobrecarga de fluidos e com função cardíaca normal.(1515 Yoshida T, Grieco DL, Brochard L, Fujino Y. Patient self-inflicted lung injury and positive end-expiratory pressure for safe spontaneous breathing. Curr Opin Crit Care. 2020;26(1):59-65.) Lamentavelmente, não estavam disponíveis equipamentos para mensuração da água extrapulmonar e não se utilizou um cateter de Swan-Ganz, porque o paciente nunca se mostrou hemodinamicamente instável.

Um possível fator de confusão relacionado aos transtornos da mecânica pulmonar e persistência do comprometimento da oxigenação poderia ser a presença de infecções não tratadas, adquiridas durante a permanência na UTI. Entretanto, desde a admissão do paciente, foram iniciados tratamentos empíricos com cefepima-azitromicina, oseltamivir e trimetoprima-sulfametoxasol (TMS) em doses para Pneumocystis carinii mais corticosteroides. Mais ainda, após obter resultados positivos para citomegalovírus no aspirado de material traqueal (com carga viral sanguínea negativa), iniciou-se o tratamento com ganciclovir. Uma vez realizada a lavagem broncoalveolar, o paciente recebeu terapia com quatro fármacos (isoniazida, rifampicina, pirazinamida e etambutol) para tratar empiricamente tuberculose, anfotericina para cobertura de possível micose e colistina para tratamento de A. baumannii. Finalmente, o tratamento com os quatro fármacos foi suspenso após obtenção de resultados da cultura direta e exame de reação em cadeia da polimerase negativos para tuberculose, sendo imediatamente iniciado tratamento antirretroviral com lamivudina e xarope de lopinavir/ritonavir.

A análise retrospectiva deste caso demonstrou que variáveis únicas convencionais e avançadas de monitoramento no início da fase de suporte ventilatório parcial não foram úteis para predizer o risco de desenvolver P-SILI. Os resultados negativos de nosso relato não têm o objetivo de desencorajar o uso de monitoramento respiratório durante a RE. Na verdade, durante os ciclos de RE, foi identificada uma tendência à deterioração da mecânica do SR, da oxigenação e do padrão radiográfico. A capacidade preditiva dessas tendências poderia prover informação valiosa para o processo de decisão, mas essa premissa deve ser confirmada por futuras investigações.

CONCLUSÃO

Neste caso, variáveis convencionais e básicas de monitoramento não foram suficientes para identificar a capacidade de respirar espontaneamente ou predizer o risco e o desenvolvimento de lesão pulmonar autoinflingida durante o uso de pressão de suporte parcial.

https://minio.scielo.br/documentstore/1982-4335/RYctXXHNsLvzfsxFBtx7qBz/997e1c0f4eaf572316b23dd54f593b2cdc2791a1.pdf

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Editado por

Editor responsável: Alexandre Biasi Cavalcanti

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Out 2021
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2021

Histórico

  • Recebido
    28 Fev 2020
  • Aceito
    12 Set 2020
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