Resumo
Em Mangabeira, Pará, a comunidade ribeirinha mantém tradições relacionadas ao sistema culinário de da mandioca. Originada de uma tradição ancestral inicialmente de matriz indígena, a mandioca é a base da cultura alimentar regional, estruturada em padrões de produção e consumo com especificidades locais. Desde 2019 acontecem roteiros turísticos específicos nessa região, com o intuito de proporcionar uma vivência de todo o processo de fabricação da farinha de mandioca. Esse tipo de turismo de base comunitária possibilita maior integração entre os sujeitos da hospitalidade e pressupõe a acolhida do outro. A partir de uma pesquisa qualitativa e exploratória, baseada em observação assistemática, observação participante e entrevistas abertas, objetiva-se analisar o roteiro turístico organizado pelo Instituto Laurinda Amazônia em Mangabeira, identificando as dimensões simbólicas da hospitalidade centrada na casa de farinha. Para tanto, apresenta-se a cultura alimentar local e os artefatos utilizados na produção da farinha, analisados a partir dos ritos de acolhimento na recepção, acomodação, alimentação e entretenimento dos visitantes. Revelam-se as dimensões simbólicas da hospitalidade a partir do mito da mandioca, dos objetos, do manejo e saberes, do espaço e do modo de vida na comunidade.
Palavras-chave
Hospitalidade; Turismo de base comunitária; Comunidade tradicional; Cultura da mandioca; Simbologia
Abstract
In Mangabeira, Pará, the riverside community maintains traditions related to the manioc culinary system. Originating from an ancestral tradition initially of indigenous origin, cassava is the basis of regional food culture, structured in production and consumption patterns with local specificities. Since 2019, specific tourist itineraries have been taking place in this region, with the aim of providing an experience of the entire cassava flour manufacturing process. This type of community-based tourism enables greater integration between the subjects of hospitality and presupposes welcoming the other. From a qualitative and exploratory research, based on unsystematic observation, participant observation and open interviews, the objective is to analyze the tourist itinerary organized by Instituto Laurinda Amazônia in Mangabeira, identifying the symbolic dimensions of hospitality centered on the flour house. In order to do so, the local food culture and the artifacts used in the production of flour are presented, analyzed from the reception rites in the reception, accommodation, food and entertainment of the visitors. The symbolic dimensions of hospitality are revealed from the myth of cassava, objects, management and knowledge, space and way of life in the community.
Keywords
Hospitality; Community-based tourism; Traditional community; Cassava culture; Symbology
Resumen
En Mangabeira, Pará, la comunidad ribereña mantiene tradiciones relacionadas con el sistema culinario de la mandioca. Proveniente de una tradición ancestral inicialmente de origen indígena, la yuca es la base de la cultura alimentaria regional, estructurada en patrones de producción y consumo con especificidades locales. Desde 2019 se vienen realizando itinerarios turísticos específicos en esta región, con el objetivo de brindar una experiencia de todo el proceso de elaboración de la harina de yuca. Este tipo de turismo comunitario permite una mayor integración entre los sujetos de la hospitalidad y supone acoger al otro. A partir de una investigación cualitativa y exploratoria, basada en la observación asistemática, observación participante y entrevistas abiertas, el objetivo es analizar el itinerario turístico organizado por el Instituto Laurinda Amazônia en Mangabeira, identificando las dimensiones simbólicas de la hospitalidad centradas en la casa de la harina. Para ello, se presenta la cultura gastronómica local y los artefactos utilizados en la elaboración de la harina, analizados a partir de los ritos de acogida en la recepción, alojamiento, alimentación y entretenimiento de los visitantes. Se revelan las dimensiones simbólicas de la hospitalidad a partir del mito de la yuca, objetos, manejo y saberes, espacio y modo de vida en la comunidade.
Palabras clave
Hospitalidad; Turismo comunitario; Comunidad tradicional; Cultura de yuca; Simbología
1 INTRODUÇÃO
A comunidade ribeirinha de Mangabeira é um vilarejo às margens do Rio Tocantins, pertencente à zona rural do município de Mocajuba, localizada no nordeste do estado do Pará, na região do Baixo Tocantins. De Mocajuba o acesso para o vilarejo é feito somente por barco, trajeto que pode levar quarenta e cinco minutos a uma hora e meia, dependendo das correntes fluviais e da capacidade do meio de transporte. A população mangabeirense estimada é de cerca de 500 habitantes em 2019 por meio de contagem realizada pelos próprios moradores da comunidade.
Tanto a comunidade de Mangabeira como outras comunidades tradicionais amazônicas permaneceram isoladas durante um longo período pelo seu afastamento dos centros urbanos e pela dificuldade de acesso (Gomide et al., 2015Gomide, M., Schütz, G. E., Carvalho, M. A. R., & Câmara, V. M. (2015). Fortalezas, oportunidades, fraquezas e ameaças (Matriz FOFA) de uma comunidade ribeirinha sul-amazônica na perspectiva da análise de redes sociais: aportes para a atenção básica à saúde. Cadernos Saúde Coletiva, 23(3), p. 222–230. https://doi.org/10.1590/1414-462x201500030089
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). Com essas condições, as comunidades ribeirinhas são locais de cultura tradicionais singulares que, até algumas décadas passadas, recebiam pouca influência externa.
A organização das comunidades ribeirinhas é pautada na colonização e tradição da região amazônica onde predomina uma base da cultura indígena com influências e tradições da colonização portuguesa e fortes traços de matriz africana a partir do século XVII (ITERPA, 2009ITERPA. (2009). Territórios quilombolas. In: J. A. Marques & M. A. Malcher (Eds.). ITERPA.; Lira & Chaves, 2016Lira, T. M., & Chaves, M. P. S. R. (2016). Comunidades ribeirinhas na Amazônia: organização sociocultural e política. Interações (Campo Grande), 17(1), p. 66–76. https://doi.org/10.20435/1518-70122016107
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). Por essa composição cultural a comunidade de Mangabeira, além de se identificar como ribeirinha, é registrada como remanescente quilombola (ITERPA, 2009ITERPA. (2009). Territórios quilombolas. In: J. A. Marques & M. A. Malcher (Eds.). ITERPA.).
A vida nessa comunidade em meio à natureza é muito simples e tradicional. Tudo o que é preciso em termos de saúde, produtos manufaturados específicos e ensino superior só está disponível nas cidades maiores como Mocajuba e Cametá. A mandiocultura é a base da cultura alimentar local que estrutura os padrões de produção e consumo, ou seja: a produção alimentar a partir do cultivo da mandioca originada de uma tradição ancestral inicialmente de matriz indígena (Cascudo, 2004Cascudo, L. C. Cascudo, L. C. (2004). História da alimentação no Brasil (3 ed.). Global.; Fernandes, 2009Fernandes, C. (2009). Viagem gastronômica através do Brasil. 9. ed. São Paulo: Senac São Paulo/ Estúdio Sonia Robatto.; Pinto, 2005Pinto, M. D. N. (2005). Sabores e saberes da casa de Mani: a mandioca nos sistemas culinários. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, 32, p. 280–301.) com saberes passados de geração para geração e que integra parte do sistema culinário da mandioca2
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Sistema culinário é um conceito elaborado a partir do processo em cadeia de uma cultura alimentar. Abrange várias etapas que vão desde o método de obtenção da matéria prima até as refeições (Gonçalves, 2004; Tempass, 2019). Inclui, também, os “universos simbólicos” de todo o processo (Maranhão; Bastos; Marchi, 2016, p.55).
(Pinto, 2005Pinto, M. D. N. (2005). Sabores e saberes da casa de Mani: a mandioca nos sistemas culinários. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, 32, p. 280–301.). A casa de farinha é o eixo central desse sistema, onde ocorre a produção material como também a formulação de ideias e conceitos (van Velthem, 2007Van Velthem, L. H. (2007). Farinha, casas de farinha e objetos familiares em Cruzeiro do Sul (Acre). Revista de Antropologia, 50(2), p. 605–631. https://doi.org/10.47236/2594-7036.2017.v1.i0.203-220p
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).
Esse cenário despertou interesse de investigação pela cultura alimentar da mandioca, intensificado pelo convite a uma das autoras para participar das vivências turísticas organizadas pelo Instituto Laurinda Amazônia nessa comunidade a partir de 2020. Tais vivências se inserem em projeto para melhorar a qualidade de vida da população local, por meio da valorização e preservação dos seus traços culturais no âmbito do chamado Turismo de Base Comunitária (TBC), centrado no protagonismo da comunidade e na preocupação com o meio ambiente (Oliveira, 2011Oliveira, C. A. F. (2011). Comunidades ribeirinhas da Reserva Extrativista Cassurubá, Caravelas – Bahia: perspectivas para construção participativa do ecoturismo de base comunitária. (Dissertação de mestrado), Universidade Estadual de Santa Cruz. Salvador, BA.; Sansolo & Bursztyn, 2009Sansolo, D. G., & Bursztyn, I. (2009). Turismo de base comunitária: pontencialidade no espaço rural brasileiro. In: Bartholo, R., Sansolo, D. G. (Eds.). Turismo de Base Comunitária: diversidade de olhares e experiências brasileiras (T846 ed., pp. 142–161). Letra e Imagem. https://doi.org/10.18472/cvt.16n2.2016.1344
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). Nelas as atividades se desenvolvem em torno dos sistemas culinários da região - a mandioca, o açaí e o cacau, em encontros conduzidos principalmente por mulheres que assumem o papel de anfitriãs junto aos visitantes. Nessas ocasiões, percebem-se as representações, na dimensão simbólica, que identificam os saberes ancestrais, formas de expressão, manejo e artefatos da casa de farinha (van Velthem, 2007Van Velthem, L. H. (2007). Farinha, casas de farinha e objetos familiares em Cruzeiro do Sul (Acre). Revista de Antropologia, 50(2), p. 605–631. https://doi.org/10.47236/2594-7036.2017.v1.i0.203-220p
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), entremeadas em relações interpessoais e de alteridade (Baptista, 2008Baptista, I. (2008). Hospitalidade e eleição intersubjectiva: sobre o espírito que guarda os lugares. Revista Hospitalidade, V(2), p. 5–14.) entre as anfitriãs, mestres farinheiras, e os hóspedes, visitantes acolhidos e partícipes dos ritos de hospitalidade durante a recepção, a hospedagem, a alimentação e o entretenimento.
Diante do exposto, desenvolveu-se uma pesquisa qualitativa, de caráter exploratória, cuja coleta de dados foi apoiada por observação assistemática e participante, e entrevistas abertas, realizadas durante três viagens acompanhando as vivências turísticas em Mangabeira organizadas pelo Instituto Laurinda Amazônia entre 2020 e 2021. O propósito do presente estudo foi analisar o roteiro turístico organizado por esse instituto, identificando as dimensões simbólicas da hospitalidade centrada na casa de farinha.
Ao se tratar das dimensões simbólicas da hospitalidade, faz-se necessário compreender o conceito da tríade semiótica signo/símbolo-objeto-interpretante. Para Moya e Dias (2007)Moya, I. M. S., & Dias, C. M. M. (2007). Hospitalidade: da imagem ao simbólico. VII Encontro dos Núcleos de Pesquisa em Comunicação. NP Comunicação, Turismo e Hospitalidade. Intercom. https://doi.org/10.18226/21789061.v14i3p618
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essa tríade semiótica se desenvolve em: 1) o signo/símbolo é o elemento que representa uma identidade para um grupo específico; 2) o objeto é a materialização desse símbolo e; 3) o interpretante é quem recebe e compreende o signo/símbolo. O interpretante é considerado tanto o indivíduo da comunidade, anfitrião, como também o visitante (hóspede, turista) apresentado aos signos da comunidade conforme experiencia, identifica ou ressignifica os rituais e artefatos integrantes das atividades cotidianas no locus (Moya & Dias, 2007Moya, I. M. S., & Dias, C. M. M. (2007). Hospitalidade: da imagem ao simbólico. VII Encontro dos Núcleos de Pesquisa em Comunicação. NP Comunicação, Turismo e Hospitalidade. Intercom. https://doi.org/10.18226/21789061.v14i3p618
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).
Por outro lado, importa citar que em um estudo feito na comunidade de Mangabeira (Abreu & Souto, 2018Abreu, J. G., & Souto, C. E. (2018). Mandioca e casas de farinha: Saberes-fazeres na produção da farinha d’água [Trabalho de conclusão de curso]. Centro Universitário Senac. https://doi.org/10.3895/s1981-36862010000100010
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) em 2018, havia, 17 famílias atuantes nas casas de farinha, número que caiu para cinco famílias3
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Relato feito por Dona Joana Laura, responsável pelo núcleo farinheiro da família Rodrigues.
em 2021. Assim, investigar a cultura dessa população ribeirinha é premente, pois simbologias, ritos e artefatos vinculados ao sistema culinário da mandioca correm o risco de se extinguirem principalmente pela aposentadoria ou afastamento dos produtores mais antigos ao mesmo tempo em que há desinteresse dos jovens dessas famílias produtoras que buscam outras oportunidades de trabalho nas grandes cidades (Abreu & Souto, 2018Abreu, J. G., & Souto, C. E. (2018). Mandioca e casas de farinha: Saberes-fazeres na produção da farinha d’água [Trabalho de conclusão de curso]. Centro Universitário Senac. https://doi.org/10.3895/s1981-36862010000100010
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). Entre as famílias restantes estão as das mestras farinheiras Dona Joana Laura e Dona Rosana, que trabalham junto ao Instituto.
Após esta Introdução, aborda-se a cultura da mandioca relacionada a sua ocorrência na comunidade ribeirinha e as relações entre hospitalidade, turismo e alimentação, seguida pela explicitação dos procedimentos metodológicos que nortearam a pesquisa empírica. Os resultados são apresentados em dois tópicos, iniciando com a atuação do Instituto Laurinda Amazônia e as atividades diárias nas vivências turísticas na comunidade, e finalizando com a dimensão simbólica da hospitalidade nas atividades centradas na casa de farinha, que ocorre no terceiro dia desse roteiro turístico.
2 COMUNIDADE RIBEIRINHA E A CULTURA ALIMENTAR DA MANDIOCA
Os ribeirinhos têm fortes laços sociais com o rio e toda construção habitacional é estruturada de frente para esse ecossistema (Lira et al., 2016Lira, T. M., & Chaves, M. P. S. R. (2016). Comunidades ribeirinhas na Amazônia: organização sociocultural e política. Interações (Campo Grande), 17(1), p. 66–76. https://doi.org/10.20435/1518-70122016107
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; Oliveira, 2011Oliveira, C. A. F. (2011). Comunidades ribeirinhas da Reserva Extrativista Cassurubá, Caravelas – Bahia: perspectivas para construção participativa do ecoturismo de base comunitária. (Dissertação de mestrado), Universidade Estadual de Santa Cruz. Salvador, BA.), uma prática da qual as famílias de Mangabeira igualmente utilizam ao construírem suas casas orientadas em direção ao rio. A ordem social ribeirinha é coletiva, inclusive na utilização de uso comum da terra e seus bens naturais (Lira et al., 2016Lira, T. M., & Chaves, M. P. S. R. (2016). Comunidades ribeirinhas na Amazônia: organização sociocultural e política. Interações (Campo Grande), 17(1), p. 66–76. https://doi.org/10.20435/1518-70122016107
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).
Na comunidade grande parte dessas famílias vive da agricultura familiar com destaque para a mandioca seguida do açaí e cacau assim como o extrativismo da castanha do Brasil que na região, por questão de regionalização (Mendes, Quinzani & Marques, 2014Mendes, B. C., Quinzani, S. S. P., & Marques, A. (2014). Processo de denominação de origem: vantagem ou desvantagem? Revista Hospitalidade, I(1), p. 90–106.), é chamada de castanha do Pará. Além da agricultura familiar e do extrativismo agrícola, do Rio Tocantins é de onde os mangabeirenses tiram parte de seu sustento com a atividade de pesca artesanal de subsistência, feita com artefatos típicos utilizados pelos pescadores locais (Juras, Cintra & Ludovino, 2004) como rede de malhadeira, caniço, tarrafa e matapi. Essas especificidades alimentares fazem parte da trajetória de subsistência de comunidades populares como as ribeirinhas e quilombolas (ITERPA, 2009ITERPA. (2009). Territórios quilombolas. In: J. A. Marques & M. A. Malcher (Eds.). ITERPA.; Lira et al., 2016Lira, T. M., & Chaves, M. P. S. R. (2016). Comunidades ribeirinhas na Amazônia: organização sociocultural e política. Interações (Campo Grande), 17(1), p. 66–76. https://doi.org/10.20435/1518-70122016107
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; Pinto & Waldeck, 2006Pinto, M. D. N., & Waldeck, G. (2006). Mandioca: saberes e sabores da terra. IPHAN, CNFCP.).
A caracterização desses produtos alimentares como tradição cultural ribeirinha amazônica surge, simultaneamente, tanto da capacidade das populações ribeirinhas se apropriarem das práticas alimentares originárias da cultura indígena, essenciais para o assentamento e subsistência, quanto da linguagem simbólica concebida no processo de colonização da região (ITERPA, 2009ITERPA. (2009). Territórios quilombolas. In: J. A. Marques & M. A. Malcher (Eds.). ITERPA.; Lira & Chaves, 2016Lira, T. M., & Chaves, M. P. S. R. (2016). Comunidades ribeirinhas na Amazônia: organização sociocultural e política. Interações (Campo Grande), 17(1), p. 66–76. https://doi.org/10.20435/1518-70122016107
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). A mandiocultura tem papel central na culinária local, expressada por práticas agrícolas, seus ritos e por uma “humanização” do vegetal, assim explicitada:
Os laços entre a mandioca e seu universo sociocultural expressam-se também nas práticas agrícolas e nos mitos que cercam seu aparecimento. A atitude com relação à mandioca reflete-se num discurso sobre o modo de tratar o vegetal: uma variedade é criada e não somente cultivada ou plantada. Estabelece-se uma relação de filiação entre a agricultora e as variedades cultivadas. As variedades têm uma dimensão humanizada que é a tela de fundo do manejo da diversidade varietal
(Emperaire, 2005Emperaire, L. (2005). A biodiversidade agrícola na Amazônia Brasileira: recurso e patrimônio. Revista Do Patrimônio Histórico e A rtístico Nacional, 32, p. 30–43., p. 37).
Essa humanização também está presente na etimologia da palavra mandioca originada no termo tupi Mani-óca, a casa – óca – de Mani (Cascudo, 2001Cascudo, L. C. (2001). Dicionário do folclore brasileiro (10 ed.). Global.), e aparece ora como lenda, ora como mito: Mani é a menina que morre para nascer mandioca (Costa, 2013Costa, J. (2013). Amazônia fantástica: os mais extraordinários mitos, lendas e mistérios da grande floresta. São Paulo: Bamboo Editorial.; Santos, 1989Santos, J. R. (1989). Como nasceu a primeira mandioca. In: Contos, mitos e lendas para crianças da América Latina (5th ed., pp. 17–23). São Paulo: Ática.; Schmidt, 1963Schmidt, A. (1963). A mandioca. In: B. Lessa (Ed.), Antologia ilustrada do folclore brasileiro: estórias e lendas do Rio Grande do Sul (2nd ed., pp. 41–43). Edigraf S.A.). Registrada em 1846 pelo etnólogo Couto Magalhães, uma das versões mencionada por Cascudo (2001, p. 357)Cascudo, L. C. (2001). Dicionário do folclore brasileiro (10 ed.). Global. conta a seguinte narrativa:
Em tempos idos, apareceu grávida a filha dum chefe selvagem, que residia nas imediações do lugar em que está hoje a cidade de Santarém. O chefe quis punir no autor da desonra de sua filha a ofensa que sofrera seu orgulho e, para saber quem ele era, empregou debalde rogos, ameaças e por fim castigos severos. Tanto diante dos rogos como diante dos castigos a moça permaneceu inflexível, dizendo que nunca tinha tido relação com homem algum. O chefe tinha deliberado matá-la, quando lhe apareceu em sonho um homem branco, que lhe disse que não matasse a moça, porque ela era efetivamente inocente, e não tinha tido relação com homem. Passados os nove meses, ela deu à luz uma menina lindíssima e branca, causando este último fato a surpresa não só da tribo como das nações vizinhas, que vieram visitar a criança, para ver aquela nova e desconhecida raça. A criança que teve o nome de Mani e que andava e falava precocemente, morreu ao cabo de um ano, sem ter adoecido e sem dar mostras de dor. Foi ela enterrada dentro da própria casa, descobrindo-se e regando-se diariamente a sepultura, segundo o costume do povo. Ao cabo de algum tempo, brotou da cova uma planta que, por ser inteiramente desconhecida, deixaram de arrancar. Cresceu, floresceu e deu frutos. Os pássaros que comeram os frutos se embriagaram, e este fenômeno, desconhecido dos índios aumentou-lhes a superstição pela planta. A terra afinal fendeu-se, cavaram e julgaram reconhecer no fruto que encontraram o corpo de Mani. Comeram-no e assim aprenderam a usar da mandioca.
O mito pode ser descrito como a “literatura do espírito” (Campbell & Moyers, 1990Campbell, J., & Moyers, B. (1990). O poder do mito (31st ed.). Palas Atena., p.3) e retrata uma história importante para identidade humana, podendo ser desvendada no momento que a linguagem simbólica é revelada (Boff, 2005Boff, L. (2005). Virturdes para um outro mundo possível. Volume 1: Hospitalidade: direito e dever de todos. Vozes.; Campbell & Moyers, 1990Campbell, J., & Moyers, B. (1990). O poder do mito (31st ed.). Palas Atena.). Mani é uma incorporação divina, simbolizada na raiz da mandioca. Recebida na Terra após ser concebida em uma gravidez inesperada, quase interrompida, mas salva por um homem branco que aparece nos sonhos do chefe indígena e exime a futura mãe da culpa pelo ato. Antes de se entender esse homem branco de forma literal, é importante destacar que as cores também tem seu papel simbológico na cosmologia e nos mitos (Chevalier & Gheerbrant, 2017Chevalier, J., & Gheerbrant, A. (2017). Dicionário de símbolos: mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números (30 ed.). Rio de Janeiro: José Olympio.). O branco representa o além mundo, a “entrada ao invisível” ( Chevalier & Gheerbrant, 2017Chevalier, J., & Gheerbrant, A. (2017). Dicionário de símbolos: mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números (30 ed.). Rio de Janeiro: José Olympio., p. 142), o espaço onde a alma encontra com a divindade. Entende-se que o chefe recebe em seu sonho4 4 O sonho de acordo com Chevalier e Gheerbrant (2017, p. 843) é o “veículo e criador de símbolos. Manifesta também a natureza complexa, representativa, emotiva, vetorial do símbolo [...] pois todo símbolo participa do sonhe e vice-versa”. um ser do mundo dos mistérios, uma forma de comunicação do divino. Outro ponto de destaque aparece na frase “cavaram e julgaram reconhecer no fruto que encontraram o corpo de Mani” (Cascudo, 2001Cascudo, L. C. (2001). Dicionário do folclore brasileiro (10 ed.). Global., p. 357). Aqui é possível fazer uma comparação analógica entre a raiz com o pão, que na eucaristia simboliza o corpo de Cristo representando a vida do divino materializada e absorvida pela alimentação (Chevalier & Gheerbrant, 2017Chevalier, J., & Gheerbrant, A. (2017). Dicionário de símbolos: mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números (30 ed.). Rio de Janeiro: José Olympio.). O indígena passa a se alimentar do corpo de Mani, o divino materializado, pela raiz da mandioca. O saber de transformar em alimento a Manihot esculenta Crantz se materializa na casa de Mani, como é chamada a casa de farinha na cultura tupi. Além da humanização da mandioca, temos a simbologia do sagrado, e na casa de farinha seu templo.
Na casa de farinha ocorrem as principais etapas da produção dos subprodutos da mandioca (van Velthem, 2007Van Velthem, L. H. (2007). Farinha, casas de farinha e objetos familiares em Cruzeiro do Sul (Acre). Revista de Antropologia, 50(2), p. 605–631. https://doi.org/10.47236/2594-7036.2017.v1.i0.203-220p
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). Para Pinto e Waldeck (2006)Pinto, M. D. N., & Waldeck, G. (2006). Mandioca: saberes e sabores da terra. IPHAN, CNFCP. falar desse local de produção no singular é não ter consciência da variedade de estruturas e logística de produção que estão presente por todo território nacional. É nesse espaço que a dimensão simbólica se manifesta em diferentes processos e objetos mediante a integração dos saberes geracionais e gestuais, das variedades de mandioca e da tecnologia artesanal que fazem parte do fluxo no fabrico dos alimentos provenientes desse insumo.
Por meio do conhecimento das várias espécies de Manihot esculenta Crantz, a maestria dos processos, os segredos dos afazeres, a destreza que transmuta o veneno, o ácido cianídrico, presente na mandioca brava, obtém-se as iguarias (Pinto, 2005Pinto, M. D. N. (2005). Sabores e saberes da casa de Mani: a mandioca nos sistemas culinários. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, 32, p. 280–301.; Pinto & Waldeck, 2006Pinto, M. D. N., & Waldeck, G. (2006). Mandioca: saberes e sabores da terra. IPHAN, CNFCP.), como as produzidas em Mangabeira: farinha, tucupi, goma de tapioca farinha de tapioca e beiju de massa. Nessa comunidade a farinha de mandioca está presente em todas as refeições. No café da manhã é comum o consumo de café puro com leite e farinha de tapioca, feita do amido extraído da mandioca, mergulhada na xícara de café. As refeições (figura 1) são a base da farinha d’água, tanto para comer com o açaí ou como acompanhamento do feijão ao invés do arroz.
A farinha tradicional na comunidade é a d´água, mas, dependendo da região, observa-se o preparo de diversas farinhas de mandioca consideradas únicas pois “cada uma é produzida de um jeito e a partir de uma série de saberes acumulados” (Cabrini & Terça-Nada!, 2013Cabrini, F., & Terça-Nada!, M. (2013). Salvem as casas de farinha. In: Lody, R. (Ed.), Farinha de mandioca: o sabor brasileiro e as receitas da Bahia (pp. 73–82). São Paulo, SP/Brasil: Senac., p.76). Esse conhecimento é resultado da história de cada cultura regional e a utilização como alimento aparece em todo o Brasil, sem exceção e o consumo in natura também é hábito nacional (Castro, 2013Castro, O. B. (2013). A farinha de mandioca no prato do brasileiro. In: R. Lody (Ed.), Farinha de mandioca: o sabor brasileiro e as receitas da Bahia (pp. 83–96). São Paulo: Senac. https://doi.org/10.29327/cbcp2022.519579
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).
Percebe-se assim que a mandiocultura remete às origens e tradições brasileiras. O departamento de Patrimônio Imaterial, operado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) e responsável pelo reconhecimento que um bem faz parte do patrimônio cultural nacional, visa pela preservação do bem cultural imaterial, seus processos, práticas e saberes relativos a fatores culturais de uma comunidade. Isso é oficializado por meio da inscrição do bem de caráter imaterial em um ou mais dos livros de registro dos Saberes, das Celebrações, das Formas de Expressão e dos Lugares (Marchi, 2015Marchi, M. M. (2015). A mandioca como patrimônio gastronômico : do artefato à comensalidade. (Dissertação de mestrado), Universidade Anhembi Morumbi, São Paulo, SP. https://doi.org/10.18226/21789061.v12i2p387
https://doi.org/10.18226/21789061.v12i2p...
, p.19).
O patrimônio cultural da mandioca está, em parte, registrado nos livros de bens culturais imateriais do IPHAN. No “Livro dos Saberes”, por exemplo, existem dois bens registrados. O “Sistema Agrícola Tradicional das Comunidades Quilombolas do Vale do Ribeira” que tem entre os produtos agrícolas o sistema da mandioca baseado no “repertório de conhecimentos agrícolas, ambientais, sociais, religiosos e lúdicos das comunidades quilombolas localizadas na Região Sudeste do Estado de São Paulo e leste do Estado do Paraná, no Vale do Ribeira” (IPHAN, 2021IPHAN. (2021). Livro de registro dos saberes - Bens culturais imateriais.). E o “Sistema Agrícola Tradicional do Rio Negro” que apresenta especificações culturais com foco nas comunidades indígenas inseridas neste sistema. Apesar destes caminharem em conjunto com a questão do registro de patrimônio da mandioca, ainda é preciso aprofundar a política de proteção e preservação da cultura ribeirinha da mandioca com intuito de preservar a tradição das farinheiras que têm neste conhecimento sua fonte de subsistência, fator de identidade e autoestima. (Budel & Severini, 2021Budel, L. & Severini, V. F. (2021). Hospitalidade no turismo de base comunitária: casa de farinha em foco. In: III Congresso Internacional e Interdisciplinar em Patrimônio Cultural: Experiências de Gestão e Educação em Patrimônio. Nova Iguaçu, Rio de Janeiro, Brasil. https://doi.org/10.4025/4cih.pphuem.758
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).
3 HOSPITALIDADE, TURISMO E ALIMENTAÇÃO
A história da hospitalidade é tão antiga quanto o próprio deslocamento do homem pelo planeta. Tida como um processo que se dedica às relações sociais que se desenrolam entre o ser que recebe (anfitrião) o ser que é recebido (hóspede) em um determinado espaço (Camargo, 2004Camargo, L. O. L. (2004). Hospitalidade. Aleph.), a hospitalidade se relaciona com a história, a cultura e as sociedades de cada lugar (Grinover, 2002Grinover, L. (2002). Hospitalidade: um tema a ser reestudado e pesquisado. Hospitalidade: reflexões e perspectivas. São Paulo: Manole, 25-38.). Por esta razão, a ciência da hospitalidade abarca uma gama ampla do conhecimento acadêmico, com destaque neste estudo para o turismo e a gastronomia.
A fim de exemplificar o processo relacional para ser admitido no “interior” e o ritual inicial da hospitalidade, que envolve o acolhimento temporário do forasteiro, Grassi (2011)Grassi, M. (2011). Uma figura da ambiguidade e do estranho. In: Montandon, A. (Ed.) O livro da hospitalidade: a acolhida ao estrangeiro na história e nas cultura. In (pp. 55-62). São Paulo: SENAC. https://doi.org/10.48213/travessia.i70.262
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apresenta o rito de Hermes e Héstia da mitologia grega. Hermes é o deus viajante e patrono dos forasteiros, a energia masculina da atividade e viagem e, Héstia, a deusa centralizadora do lar, portadora do fogo acolhedor, a energia feminina da anfitriã da casa. Héstia é a chama do lar que permanece imóvel no Olimpo (Chevalier & Gheerbrant, 2017Chevalier, J., & Gheerbrant, A. (2017). Dicionário de símbolos: mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números (30 ed.). Rio de Janeiro: José Olympio.) e traz no campo simbólico a referência da hospitalidade enquanto Hermes, no arquétipo do Deus das viagens, representaria o turismo (Dias & Moya, 2015Dias, C. M. M., & Moya, I. M. S. (2015). Héstia & Hermes – pesquisa e reflexões sobre o simbólico e a hospitalidade. Cadernos de Pedagogia Social. Porto, (número especial), p. 99-117 https://doi.org/10.34632/cpedagogiasocial.2015.1966
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). Hermes possui os atributos dos quatro pontos cardeais – capacidade de saber exatamente onde está – além do dom da palavra, eloquência e carisma necessários para convencer qualquer pessoa que o vá receber (Chevalier & Gheerbrant, 2017Chevalier, J., & Gheerbrant, A. (2017). Dicionário de símbolos: mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números (30 ed.). Rio de Janeiro: José Olympio.)). Tal espaço relacional na dimensão sagrada pode ser considerado tanto geográfico como psíquico (Grassi, 2011Grassi, M. (2011). Uma figura da ambiguidade e do estranho. In: Montandon, A. (Ed.) O livro da hospitalidade: a acolhida ao estrangeiro na história e nas cultura. In (pp. 55-62). São Paulo: SENAC. https://doi.org/10.48213/travessia.i70.262
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) e se manifesta a partir da dimensão simbólica.
Segundo Lugosi (2008)Lugosi, P. (2008). Hospitality spaces, hospitable moments: consumer encounters and affective experiences in commercial settings. Journal of Foodservice, 19(2), p. 139-149. https://doi.org/10.1111/j.1745-4506.2008.00092.x
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, em uma dimensão comercial, como o espaço turístico, as definições de hospitalidade tendem a se concentrar em um conjunto estreito de transações comerciais envolvendo a oferta de alimento e abrigo, ignorando, muitas vezes, as questões de entretenimento e relações sociais mais amplas. A inclusão do entretenimento também na troca em uma concepção ampliada de hospitalidade, tornaria possível observar diferentes formas de transação de hospitalidade. O contexto relacional e o fator emocional, criados a partir desta inclusão, referem-se a dois tipos importantes de interação: entre o hóspede e o anfitrião e entre o hóspede e os demais hóspedes (Pullman & Gross, 2004Pullman, M. E., & Gross, M. A. (2004). Ability of experience design elements to elicit emotions and loyalty behaviors. Decision sciences, 35(3), p. 551-578. https://doi.org/10.1111/j.0011-7315.2004.02611.x
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).
Tal entretenimento ampliado pode ser considerado como materialização que permite as pessoas envolvidas experienciar o fenômeno de identificação comum dentro do campo simbólico. Trata-se de encontros que não seriam estáticos ou lúdicos pois neles há a criação de um espaço emocional compartilhado onde as relações podem acontecer entre todos os atores envolvidos (Lugosi, 2008Lugosi, P. (2008). Hospitality spaces, hospitable moments: consumer encounters and affective experiences in commercial settings. Journal of Foodservice, 19(2), p. 139-149. https://doi.org/10.1111/j.1745-4506.2008.00092.x
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), fator essencial para trocas pautadas no conceito de turismo de base comunitária, no qual a análise também se baseia no relacionamento genuíno entre os atores envolvidos.
Nesse contexto, o modo de compartilhar e conviver à mesa, ou seja, a comensalidade, enriquece esses encontros unindo a alimentação ao entretenimento. Revelam-se tanto diferentes hábitos e preferências de alimentos, quanto aspectos socioculturais como valores, normas, crenças e até tabus alimentares, colocando a gastronomia como um atrativo turístico (Gimenes-Minasse, 2013Gimenes-Minasse, M. H. (2013). Cozinhando a tradição: festa, cultura, história e turismo no litoral paraense. Curitiba: UFPR., 2020), incluindo a culinária típica de um local (Csurgó, Hindley & Smith, 2019Csurgó, B., Hindley, C., & Smith, M. K. (2019). The role of gastronomic tourism in rural development. In (pp. 62-69) In: S. K. Dixit (Ed.). The Routledege handbook of gastronomic tourism) xon / New Your: Routledge. https://doi.org/10.4324/9781315147628-9
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): as tradições e a autenticidade local de um destino turístico constituem algo que é novo para o turista, diferente do seu ambiente originário e, nesse sentido, torna-se um importante atrativo para muitos deles (Kauppinen-Räisänen, Gummerus & Lehtola, 2016Kauppinen‐Räisänen, H., Gummerus, J., & Lehtola, K. (2013). Remembered eating experiences described by the self, place, food, context and time. British Food Journal, 115(5), p. 666–685. https://doi.org/10.1108/00070701311331571
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).
Concorda-se então com Bursztyn, Bartholo & Delamaro (2009) de que a cultura alimentar e a culinária local podem favorecer o TBC, visto como um modo de visitação turística e hospitalidade que envolve relações interpessoais entre anfitriões e hóspedes, pois ao mesmo tempo em que podem aprimorar as experiências dos turistas também podem contribuir para o desenvolvimento da comunidade (Cabral; Teixeira Jr., 2020Cabral, B. L. F. & Teixeira Jr., D. (2020). Turismo de base comunitária e cultura alimentar: um estudo de caso no litoral do Paraná. Caderno Virtual de Turismo, 20(3). http://dx.doi.org/10.18472/cvt.20n3.2020.1826
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).
4 METODOLOGIA
Esta pesquisa, classificada quanto a sua natureza como qualitativa e quanto aos objetivos como exploratória (Dencker, 2007Dencker, A. F. M. (2007). Pesquisa em Turismo: planejamento, métodos e técnicas. Futura.), apresenta resultados parciais de uma pesquisa etnográfica mais ampla. No processo da pesquisa qualitativa destaca-se a interpretação e os significados, onde a fonte de coleta de dados é o ambiente natural e o instrumento-chave é o pesquisador (Dencker, 2007Dencker, A. F. M. (2007). Pesquisa em Turismo: planejamento, métodos e técnicas. Futura.; Gil, 2006Gil, A. C. (2008). Métodos e técnicas de pesquisa social. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2008.). Como o tema aqui tratado é pouco presente na literatura especializada, este estudo explora-o de forma a adquirir maior familiaridade com o problema e conhecer mais sobre o assunto (Gil, 2008Gil, A. C. (2008). Métodos e técnicas de pesquisa social. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2008.). A jornada desta pesquisa foi possível face à colaboração de uma das autoras junto ao Instituto Laurinda Amazônia e transcorreu em três fases, como descrito a seguir.
Na primeira fase houve a imersão na teoria sobre comunidades ribeirinhas e patrimônio alimentar com ênfase no sistema da mandioca e as interfaces da hospitalidade, do turismo e alimentação a partir de levantamento, seleção e análise de bibliografia. De acordo com Santilli (2015)Santilli, J. (2015). O reconhecimento de comidas, saberes e práticas alimentares como patrimônio cultural imaterial. DEMETRA: Alimentação, Nutrição & Saúde, 10(3), p. 585–606. https://doi.org/10.12957/demetra.2015.16054
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o patrimônio alimentar pode ser composto por bens materiais como alimentos, artefatos e utensílios culinários, e bens imateriais por meio dos processos práticos, saberes, representações, signos e identidades locais. É necessário considerar os valores e significados que carregam em sua dimensão simbólica assim como o conhecimento da dimensão material que serve de suporte.
Deu-se preferência à literatura nacional tendo em vista a realidade brasileira como condicionante dos assuntos tratados, no caso a cultura amazônica. Foram consultados o Google Acadêmico, a base SciElo, o catálogo da biblioteca da Universidade Anhembi Morumbi e a base Publicações de Turismo da Escola de Artes e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Paralelamente acercou-se do Instituto Laurinda Amazônia, mediante consulta ao seu sítio oficial e coleta de informações, e solicitação de acesso a documentos mediante contato com a sua diretoria.
Na segunda fase, houve o trabalho de campo a partir da realização de três viagens à comunidade: de 6 a 21 de julho de 2020, de 5 a 11 de janeiro e de 5 a 21 de fevereiro de 2021, sendo estas duas últimas no período de abertura ao turismo seguindo protocolos para COVID 19. Na primeira viagem iniciaram-se as relações de aproximação com as anfitriãs e os responsáveis pela operação das vivências, na forma de observação assistemática (Silva, 2013Silva, M. A. da (2013). A técnica da observação nas ciências humanas. Goiânia, 16(2), p. 413–423.; IPHAN, 2021IPHAN. (2021). Livro de registro dos saberes - Bens culturais imateriais.; Marietto, 2018Marietto, M. L. (2018). Observação participante e não participante: contextualização teórica e sugestão de roteiro para aplicação dos métodos. Revista Ibero-Americana de Estratégia, 17(04), p. 05–18. https://doi.org/10.5585/ijsm.v17i4.2717
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) com dados registrados em caderneta de anotação, que possibilitaram um conhecimento prévio da realidade do local e de seus atores – hóspedes, anfitriãs e organizadores. Nas outras duas viagens, além da observação participante (Marietto, 2018Marietto, M. L. (2018). Observação participante e não participante: contextualização teórica e sugestão de roteiro para aplicação dos métodos. Revista Ibero-Americana de Estratégia, 17(04), p. 05–18. https://doi.org/10.5585/ijsm.v17i4.2717
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) nas vivências turísticas, foram aplicadas entrevistas abertas (Boni & Quaresma, 2005Boni, V., & Quaresma, J. (2005). Aprendendo a entrevistar como fazer entrevistas em Ciências Sociais. Em Tese, 2(1), p. 68–80. https://doi.org/10.5007/18027
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) com duas farinheiras da comunidade - Raísla Pimentel, cozinheira e aprendiz (filha da Dona Joana) e Dona Joana Laura Rodrigues -, as quais foram gravadas mediante termo de consentimento. Ao mesmo tempo cenas representativas das dimensões simbólicas da hospitalidade foram fotografadas com igual autorização dos convivas.
Vale destacar o desafio da observação participante como técnica de pesquisa qualitativa, que se caracteriza pela interação “entre o pesquisador, os sujeitos observados e o contexto no qual eles vivem”, obrigando “o pesquisador a lidar com o ‘outro’, num verdadeiro exercício constante de respeito à alteridade”, conforme citado por Fernandes e Moreira (2013, p. 518)Fernandes, F. M. B., & Moreira, M. R. (2013). Considerações metodológicas sobre as possibilidades de aplicação da técnica de observação participante na saúde coletiva. Physis, 23(2), p. 511–529. https://doi.org/10.1590/S0103-73312013000200010
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. Concorda-se com esses autores de que usar a observação participante presume conviver e trocar experiências principalmente pelos sentidos da visão, fala, tato ou sentimento, vivência e experimentação.
Na terceira fase as entrevistas foram transcritas fez-se a seleção de estratos destas e das anotações, além da seleção de fotos, em busca de colocar uma ordem nesse material para apoiar a descrição, análise e discussão dos resultados, a partir de duas categorias: a) Instituto Laurinda Amazônia – atuação e descrição do roteiro turístico; b) dimensão simbólica da hospitalidade – atividades e uso de objetos e utensílios na casa de farinha.
5 RESULTADOS
5.1 Roteiro turístico do TBC em Mangabeira
A concepção do turismo de base comunitária situa-o como uma forma de turismo alternativo, em contraponto ao turismo massificado, desenvolvido em escala local e com o protagonismo da comunidade. Favorece o revigoramento e até o resgate das tradições locais e heranças culturais, com foco central em uma relação interativa e dialogal entre residentes (visitados) e turistas visitantes (Sansolo & Bursztyn, 2009Sansolo, D. G., & Bursztyn, I. (2009). Turismo de base comunitária: pontencialidade no espaço rural brasileiro. In: Bartholo, R., Sansolo, D. G. (Eds.). Turismo de Base Comunitária: diversidade de olhares e experiências brasileiras (T846 ed., pp. 142–161). Letra e Imagem. https://doi.org/10.18472/cvt.16n2.2016.1344
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). Indica um turismo que “favorece a coesão e o laço social e o sentido coletivo de vida em sociedade, e que por esta via, promove a qualidade de vida, o sentido de inclusão, a valorização da cultura local e o sentimento de pertencimento” (Irving, 2009Irving, M. A. (2009). Reinventando a reflexão sobre turismo de base comunitária: inovar é possível? In: Bartholo, R. D. G. Sansolo, & Bursztyn, I. (Eds). Turismo de Base Comunitária : diversidade de olhares e experiências brasileiras (T846 ed., pp. 108–121). Letra e Imagem. https://doi.org/10.18472/cvt.16n2.2016.1344
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, p.111).
Nesse sentido, o TBC pode ser considerado como um lugar relacional estabelecido entre hóspede e anfitrião e estruturado pela procura de vínculos mais significativos de interação interpessoal de acordo com Sansolo e Bursztyn (2009, p. 142)Sansolo, D. G., & Bursztyn, I. (2009). Turismo de base comunitária: pontencialidade no espaço rural brasileiro. In: Bartholo, R., Sansolo, D. G. (Eds.). Turismo de Base Comunitária: diversidade de olhares e experiências brasileiras (T846 ed., pp. 142–161). Letra e Imagem. https://doi.org/10.18472/cvt.16n2.2016.1344
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. Para esses autores, nesse modo relacional não ocorre a submissão dos anfitriões aos turistas ou a instrumentalização dos hospedeiros como objetos pelos hóspedes, mas sim um modo diferente de visita e hospitalidade.
A proposta de desenvolvimento turístico no TBC baseia-se nas premissas centrais de: a) “base endógena da iniciativa e desenvolvimento local”; b) “participação e protagonismo social no planejamento, implementação e avaliação de projetos turísticos”; c) escala limitada e impactos sociais e ambientais controlados”; d) “geração de benefícios diretos à população local”; e) “o ‘encontro’ como condição essencial (Irving, 2009Irving, M. A. (2009). Reinventando a reflexão sobre turismo de base comunitária: inovar é possível? In: Bartholo, R. D. G. Sansolo, & Bursztyn, I. (Eds). Turismo de Base Comunitária : diversidade de olhares e experiências brasileiras (T846 ed., pp. 108–121). Letra e Imagem. https://doi.org/10.18472/cvt.16n2.2016.1344
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, p. 112-116). Há várias iniciativas de organizações não governamentais que atuam em comunidades tradicionais, em geral em áreas rurais, a partir de projetos turísticos que objetivam desenvolver o TBC de forma a empoderar a própria comunidade para conduzi-lo de forma viável em termos sociais, econômicos e ambientais em suas localidades.
Uma dessas entidades é o Instituto Laurinda Amazônia criado em 2017 pela nutricionista e gastrônoma Jane Glebia, natural da Comunidade de Mangabeira. Esse instituto tem a finalidade de divulgar e cooperar com a implantação de ações socioambientais para melhoria das condições de vida a partir da valorização da cultura e tradições dos ribeirinhos de Mangabeira. A principal forma de fomento da tradição local acontece pelo projeto de turismo de base comunitária intitulado Vivência Ribeirinha, descrito como uma “imersão na cultura, nas tradições e nos sabores da floresta” (Instituto Laurinda Amazônia, 2019Instituto Laurinda Amazônia. (2019). Instituto Laurinda Amazônia. https://www.institutolaurindaamazonia.ong.br/
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).
O Instituto Laurinda começou como iniciativa privada e, em março 2020, iniciou o processo jurídico para a reformatação e formalização da empresa como ONG, com sede registrada em uma casa da própria comunidade (figura 2). Para tanto foi necessário construir uma rede de apoio comunitário com 70% do corpo de representantes da ONG sendo mulheres da comunidade. Essas mulheres são personagens importantes da estrutura social e cultural da região e fazem parte ativamente das atividades. O Instituto tem como propósito três pilares principais de atividades: o primeiro de desenvolvimento agrícola, intitulado “Sabores e Saberes da Amazônia”; o segundo com foco na educação infantil, “Biblioteca Profa. Maria Amélia” e; o terceiro de visitação turística e incentivo cultural, “Vivência Ribeirinha”.
Em 2019, ainda como iniciativa privada, o Instituto organizou o primeiro grupo de TBC constituído por seis visitantes até Mangabeira. Após a primeira experiência e ajustes da operacionalização do roteiro turístico, o segundo grupo composto por 15 participantes aconteceu em janeiro de 2020 e, após uma pausa em decorrência da pandemia de COVID-19, houve mais dois grupos, respectivamente de 16 e 15 participantes. Esses dois últimos grupos aconteceram no período de flexibilização das medidas protetivas governamentais da COVID-19, mas todo um protocolo e treinamento de segurança com aparato jurídico e organizacional foi instituído para que ambas as vivências ocorressem com o máximo de seguridade para a comunidade anfitriã e hóspedes.
As vivências turísticas conduzidas pelo Instituto Laurinda Amazônia em Mangabeira integram as premissas do TBC desde a sua primeira etapa. A procura por vínculos é fomentada pelos agentes organizadores da vivência já no momento quando o interessado em participar é convidado para reuniões de apresentação do projeto, onde recebe as informações dos objetivos do roteiro turístico. Esse processo inicial de instrução é fundamental para esclarecer ao interessado que toda a experiência é baseada na partilha tanto das relações interpessoais com os integrantes da comunidade que protagonizam as vivências assim com aqueles que se fazem presentes como coadjuvantes no acolhimento ao grupo na localidade.
Essa etapa inicial serve como uma seleção prévia para que o interessado compreenda que, antes de ser uma experiência com foco na preferência do lazer e bem-estar do visitante, se pauta na convivialidade entre hóspedes e anfitriões e no respeito perante o universo cultural de Mangabeira. Neste caso o turista que opta em participar da vivência, deverá ter flexibilidade e interesse em fazer parte do processo. A logística então começa como acordo contratual por meio da aprovação e assinatura do termo de participação com descrição das informações previamente apresentada na reunião inicial.
Outro momento de relevância pautado na dinâmica de relações no TBC é o convívio social dentro do espaço que recebe os visitantes durante os cinco dias de estadia na comunidade. A hospedagem acontece na própria sede do Instituto e os espaços comuns são de livre acesso para anfitriões e hóspedes. Vale ressaltar que a delimitação dos espaços a serem frequentados pelo visitante é fator essencial para a boa convivência entre hóspede e anfitrião. Como lembra Camargo (2021, p. 10-11), qualquer “sobrepasso do hóspede pode ser chamado de intrusão e a figura do intruso pode ser entendida como daquele que invade o espaço do anfitrião, tanto no sentido físico como figurado”. Mas nesse tipo de turismo essa rigidez nas regras pode ser mais flexível.
Não existe acomodações individuais, sendo os quartos organizados para receber até três pessoas, formatação que exige uma relação de convívio mais íntima entre os próprios visitantes. O ato de dormir é em rede, hábito ainda presente dos habitantes do vilarejo. O Instituto disponibiliza três camas para casos em que algum visitante não tenha condições físicas de dormir em rede.
A Vivência Ribeirinha proporcionada pelo Instituto Laurinda tem uma duração total de sete dias, onde cinco deles acontecem na comunidade de Mangabeira e os dois últimos na capital Belém do Pará. O roteiro turístico das atividades na vila é estruturado em cinco etapas.
No primeiro dia os turistas são recepcionados na sede do instituto, uma casa simples com conforto nos moldes da tradição local. Os visitantes são acolhidos pela comunidade em uma roda de conversa durante o ritual do tacacá (figura 3), que tradicionalmente acontece no final do dia quando o sol baixa (Macêdo, 2020). Neste momento encontram-se as mulheres do instituto, suas famílias, moradores vizinhos, organizadores e o grupo visitante. E com as cuias de tacacá em mãos, reunidos em círculo, um por um dos convivas faz a apresentação pessoal e compartilha um pouco da experiência de vida.
Preparação do tacacá pela tacacazeira e mestre farinheira, preparo servido no acolhimento aos visitantes
No segundo dia acontece um passeio para conhecer as plantações agroecológicas de açaí e cacau na Ilha do Ingapijó, situada no meio do Rio Tocantins de frente para a margem da vila de Mangabeira. Essa atividade acontece na propriedade do Sr. Jofre, produtor agroecológico. A refeição principal é feita após uma longa caminhada no meio das plantações.
As atividades do terceiro dia começam cedo, às sete horas, com o deslocamento dos participantes para o roçado atrás da casa da Família Rodrigues, onde está situada a casa de farinha (figura 4) comunitária na qual Dona Joana Laura, mestre farinheira do instituto, é a responsável. A primeira parte do rito é levar os participantes até o roçado de mandioca, para compreenderem o processo inicial do sistema agrícola da mandioca brava. Após a colheita, o grupo de turistas parte para a Casa de Farinha e nela participam de todos os processos de produção do sistema culinário da mandioca.
O quarto dia começa com a ida novamente para a Ilha do Ingapijó5 5 Uma das inúmeras ilhas que existem no meio do Rio Tocantins. Faz parte do distrito rural de Mocajuba e está localizada entre as margens do rio, com vista para a vila de Mangabeira. , mas com visita à propriedade da Família Amaral onde conhece os processos de plantio, cultivo, colheita e fermentação do cacau, com oportunidade de colher os frutos do cacaueiro a maneira tradicional. Após a colheita o grupo volta para o instituto para o almoço e tarde de descanso. No final do dia, Maricilda Amaral volta com o grupo para uma oficina prática de produção de massa de cacau. À noite é realizado o baile de despedida, com apresentação do grupo de carimbó das meninas e jovens moças da comunidade, com interação entre os visitantes com os moradores que aparecem para aproveitar o momento.
A partir do quinto dia acontece o deslocamento do grupo para a finalização do roteiro na cidade de Belém.
5.2 Dimensão simbólica da hospitalidade na casa de farinha
“Como a cidade, como o templo” (Chevalier & Cheerbrant, 2017Chevalier, J., & Gheerbrant, A. (2017). Dicionário de símbolos: mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números (30 ed.). Rio de Janeiro: José Olympio., p.196), assim começa a descrição simbólica da casa como o espaço que confere refúgio e proteção. Tais aspectos também remetem ao símbolo do feminino ao compararmos com algumas divindades que representam esse local, como a deusa grega que cuida do fogo do lar, Héstia (Dias & Moya, 2015Dias, C. M. M., & Moya, I. M. S. (2015). Héstia & Hermes – pesquisa e reflexões sobre o simbólico e a hospitalidade. Cadernos de Pedagogia Social. Porto, (número especial), p. 99-117 https://doi.org/10.34632/cpedagogiasocial.2015.1966
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); ou a Casa Comum da Grande Mãe como é descrita a Terra, nosso planeta, por Boff (2005)Boff, L. (2005). Virturdes para um outro mundo possível. Volume 1: Hospitalidade: direito e dever de todos. Vozes. em seu sentido holístico de ser o lar e a mãe cuidadora para todos os seres que nela habitam. A casa de farinha, a casa de Mani, ao ser analisada em sua dimensão simbólica, é o lar onde a abundância do corpo feminino de Mani toma forma de alimento, sendo necessário um número grande de familiares para que todo o trabalho aconteça (Cascudo, 2001Cascudo, L. C. (2001). Dicionário do folclore brasileiro (10 ed.). Global.; Maranhão et al., 2016; Pinto & Waldeck, 2006Pinto, M. D. N., & Waldeck, G. (2006). Mandioca: saberes e sabores da terra. IPHAN, CNFCP.). No sistema culinário da mandioca ela está no meio do caminho entre a natureza e a comunidade, está situada “no espaço de confluência entre a natureza e a cultura, articula biodiversidade, modos de cultivo, trocas sociais e sistemas de significado” (Pinto & Waldeck, 2006Pinto, M. D. N., & Waldeck, G. (2006). Mandioca: saberes e sabores da terra. IPHAN, CNFCP., p.10).
No roteiro turístico do Instituto Laurinda, a casa de farinha recebe os visitantes que são acolhidos em seu espaço pela anfitriã, a mestre de farinha. Essa relação pode ser definida por Baptista (2008, p.06)Baptista, I. (2008). Hospitalidade e eleição intersubjectiva: sobre o espírito que guarda os lugares. Revista Hospitalidade, V(2), p. 5–14. como “uma dupla relação humana, a relação com o lugar e a relação com o outro”. O local se torna palco para a cena hospitaleira (Camargo, 2021Camargo, L. O. L. (2021). As leis da hospitalidade. Revista Brasileira de Pesquisa em Turismo, 15(2), p. 1–16. https://doi.org/10.7784/rbtur.v15i2.2112
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) onde as leis da hospitalidade são perceptíveis, em especial a reciprocidade - “anfitrião e hóspede devem honrar-se mutuamente”, assimetria – “o hóspede deve respeitar o direito do anfitrião ao espaço” e a compensação – “o hóspede deve receber e retribuir à hospitalidade” (Camargo, 2015Camargo, L. O. L. (2015). Os interstícios da hospitalidade. Revista Hospitalidade, 7(número especial), p. 42–69., p. 9-11). Com relação à lei da incondicionalidade, esta apresenta ressalvas já que se trata de um roteiro turístico comercializado, daí ter lugar a hospitalidade comercial ligada a uma transação de caráter financeiro que pode revelar ou não a hospitalidade espontânea ou verdadeira (Lashley, 2015Lashley, C. (2015). Hospitalidade e hospitabilidade. Revista Hospitalidade, 12(Número Especial), p. 70–92. https://doi.org/10.21714/1807-975x.2016v13nep0113
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).
Voltando ao espaço da casa de farinha, os utensílios e ferramentas são os objetos constituintes da tríade semiótica (Moya & Dias, 2007Moya, I. M. S., & Dias, C. M. M. (2007). Hospitalidade: da imagem ao simbólico. VII Encontro dos Núcleos de Pesquisa em Comunicação. NP Comunicação, Turismo e Hospitalidade. Intercom. https://doi.org/10.18226/21789061.v14i3p618
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, p.4) existente no sistema culinário da mandioca e fazem parte de uma complexa estrutura de produção, organizada de maneira que o trabalho tenha fluidez (van Velthem, 2007Van Velthem, L. H. (2007). Farinha, casas de farinha e objetos familiares em Cruzeiro do Sul (Acre). Revista de Antropologia, 50(2), p. 605–631. https://doi.org/10.47236/2594-7036.2017.v1.i0.203-220p
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). Essa produção começa com o recebimento da mandioca recém colhida e levada em paneiros, cestos “com ou sem asa, feitos de palha, cipó ou vime” (Maranhão, Bastos & Marchi, 2016Maranhão, R. F. A., Bastos, S. R., & Marchi, M. M. (2016). Cultura e sociedade no sistema culinário da mandioca no Brasil. Revista Sociais e Humanas, 28(2), p. 54–68. https://doi.org/10.5902/2317175816893
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, p.60). Essa colheita é demonstrada pela mestre farinheira, que convida os interessados a aprender como é feito o arranque da raiz mandioca do solo que, ao ser feito da maneira certa, emerge com facilidade. Enquanto o trabalho manual de contato com a terra acontece, transmite-se oralmente todo o cuidado necessário para manter o roçado sadio e ser possível novas colheitas nos próximos anos. Ao retirarem o corpo de Mani da terra, participantes e anfitriã juntos, a “mútua acolhida, a abertura generosa” que Boff (2005, p.19)Boff, L. (2005). Virturdes para um outro mundo possível. Volume 1: Hospitalidade: direito e dever de todos. Vozes. analisa ser necessária no “con-viver juntos” na Casa Comum se manifesta nos relacionamentos de reciprocidade. Descobre-se a raiz e, simbolicamente, descobrem-se as raízes comuns entre os cidadãos terrenais (Boff, 2005Boff, L. (2005). Virturdes para um outro mundo possível. Volume 1: Hospitalidade: direito e dever de todos. Vozes.), as quais são colocadas dentro do mesmo paneiro rumo à primeira etapa na casa de farinha.
Na entrada a mandioca colhida será acomodada no chão sob lona e descascada com o isso de facão ou terçados (figura 5), uma espécie de raspador de aparência rudimentar, mas eficiente. Uma parte dessa mandioca ficará demolhada em tanques com água de poço para fermentar durante 5 dias, sendo preciso trocar a água conforme o odor fique muito intenso. Na casa de farinha do igarapé o processo é ensacar e deixar submersa no igarapé com a água corrente passando pelo trançado da sacaria. A outra parte dela será triturada no caititu, (figura 6) moedor de maneira com espinhos de metal, ainda fresca logo após o descasque. Uma outra parte da mandioca que já havia sido deixada de molho e no ponto certo da fermentação, também passará pelo caititu. Uma parte dos participantes se senta no chão para descascar mandioca, aproveita-se para descansar e conversar enquanto realizam o ritual. Eles literalmente entram no espaço da casa de Mani e se sentam com ela para conviver humanamente, e Mani faz com que sintam-se em casa (Boff, 2005Boff, L. (2005). Virturdes para um outro mundo possível. Volume 1: Hospitalidade: direito e dever de todos. Vozes.). Outra parte é orientada por Dona Joana e seu marido, Seu Firmino, na maneira correta de utilizar o caititu. O trabalho segue num fluxo de trocas espontâneas de lugares, permitindo que todos vivenciem os processos e se sentar com Mani.
Seguindo a direção dos objetos, ambas as massas trituradas, a fresca e a fermentada, são levadas para o cocho (figura 6), uma espécie de mesa-balcão esculpida na concavidade de um único tronco de árvore bem largo, com aproximadamente 3 metros de comprimento e estruturada com pernas de maneira para que um lado fique mais alto que o outro. Aqui as massas passam a ser misturadas, com as mãos, no lado mais alto do cocho. Após a mistura ficar pronta ela passa para a próxima etapa, a prensagem.
Essa etapa começa com o manuseio do utensílio culinário considerado o mais simbólico da cultura amazonense, o tipiti. Do tupi “tipi=expremer, ti+ sumo, líquido” (Pereira apud Maranhão, Bastos & Marchi, 2016, p.62).
Trituração da mandioca no caititu e visitantes em volta do cocho aprendendo como manusear o tipiti
Este utensílio tubular na cultura ribeirinha é feito de palha de bacabeira, uma palmeira tão comum na região quanto a palmeira do açaí. Seu formato e mobilidade metamorfoseiam “uma serpente porque o que é constringente reproduz o comportamento das serpentes constritoras, tornando-se uma delas” (van Velthem, 2009Van Velthem, L. H. (2007). Farinha, casas de farinha e objetos familiares em Cruzeiro do Sul (Acre). Revista de Antropologia, 50(2), p. 605–631. https://doi.org/10.47236/2594-7036.2017.v1.i0.203-220p
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, p.213). Os tipitis da casa de farinha têm um comprimento médio de dois metros. Colocado um por vez no cocho, deitado na direção do comprimento, com a abertura para o lado mais alto e perto da massa de mandioca. Com a necessidade de uma ou duas pessoas para o processo, um comprimi o tipiti de ponta a ponta, encurtando seu comprimento e alargando o trançado de palha, enquanto o outro insere a massa de mandioca pela abertura, a boca da cobra, quando o indivíduo adquire a técnica, passa a desempenhar sozinho (figura 7). Começa uma técnica manual de constrição, chacoalho e inserção de massa. Esse movimento serve como base para o “desempenho da função representacional” (van Wethem, 2009Van Velthem, L. H. (2007). Farinha, casas de farinha e objetos familiares em Cruzeiro do Sul (Acre). Revista de Antropologia, 50(2), p. 605–631. https://doi.org/10.47236/2594-7036.2017.v1.i0.203-220p
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, p.213) das serpentes amazônicas ao engolirem a presa, assim como o trançado remete as escamas com mais alusão à simbologia. O tipiti é levado à uma estrutura de madeira em formato de alavanca (figura 7), pendurado pelas alças das pontas superior e inferior nas duas toras que formam a alavanca. No momento que a tora superior é tracionada, o tipiti que estava relaxado é esticado e espreme a massa dentro dele. Bacias e baldes são posicionados abaixo do tipiti para recolher a manipueira6
6
De acordo com (Maranhão, Bastos & Marchi, 2016, p.63) “o primeiro produto resultante do processo de obtenção das farinhas, era o sumo da massa de mandioca”. Manipuera é o líquido inicial da prensagem da massa de tapioca no tipiti. Dele é extraído o tucupi e a goma de tapioca.
(figura 7), que escorre do trançado. A manipueira é a base para produção do tucupi e da goma de tapioca; da massa seca de mandioca tem-se a produção das farinhas de mandioca.
Técnica manual de constrição do tipiti, coloca-se a massa da mandioca no tipiti ainda no cocho para depois levar na alavanca
No dia que sucede o tipiti é retirado da alavanca e levado para ser manuseado no cocho. Novamente os movimentos de constrição são reproduzidos pelo indivíduo atuante, com a abertura do tipiti virada para baixo, novamente remetendo as serpentes, mas agora lembrando o regurgito expelindo a massa seca do seu interior. Para que o fluxo não pare nesta etapa, uma leva de massa de mandioca é preparada no dia anterior para ser utilizada pelos participantes.
A massa seca passa a ser esfarelada com as mãos para iniciar o processo de peneiração. As peneiras (figura 8) são quadradas e se encaixam no topo do cocho. Feitas de madeira e linha de anzol, cada uma tem o tramado diferente, assim a massa é peneirada passando da mais grossa para a mais fina. Nesta etapa tem-se a farinha úmida, pronta para ser torrada. O que não passa pelas peneiras vira croeira (van Velthem, 2007Van Velthem, L. H. (2007). Farinha, casas de farinha e objetos familiares em Cruzeiro do Sul (Acre). Revista de Antropologia, 50(2), p. 605–631. https://doi.org/10.47236/2594-7036.2017.v1.i0.203-220p
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), resíduo que não é utilizado na farinha, mas muito apreciado para fazer o mingau de crueira, como é chamado na região.
Chega-se, a partir daqui, na etapa final, mas fundamental, do preparo da farinha de mandioca: a secagem. Essa etapa é feita no forno de secagem ou torra. É um enorme tacho de metal com a sua base construída por paredes de barro com apenas um lado aberto, por onde é montada a fogueira. A intensidade do calor é controlada, também manualmente, e quanto a temperatura está correta, conhecimento empírico demonstrado pela mestre farinheira e seu marido, a farinha úmida é carregada até o tacho dentro de cascos de tracajá7 7 Tracajá é o nome popular de uma espécie de tartaruga amazônica. A carne de tracajá é consumida na comunidade e o casco resistente ao calor é aproveitado nas casas de farinha para passar a farinha entre o forno e demais equipamentos. (figura 9), utilizados como gamela por aguentarem bem a mudança de temperatura. Para uma farinha seca da maneira correta é necessário o “auxílio de um rodo de cabo comprido” (van Velthem, 2007, p. 4), para mexer a farinha com frequência em todo o comprimento do tacho (figura 9). Quando a farinha chega no ponto correto de secagem, ela é retirada do tacho com o casco de tracajá e o auxílio de uma vassoura de açaí (figura 10), feita da palha do açaí, amarrada com barbante no formato de uma vassourinha de mão. Essa farinha é transferida para o cocho (figura 10) ou para um caixote de madeira construído ao lado do forno, para que no final do trabalho seja ensacada ainda morna para que fique crocante.
Todas essas etapas ocorrem para a produção da farinha de mandioca, sendo que para os outros produtos como beiju de massa, goma, farinha de tapioca, tucupi e puba, é possível que aconteçam paralelamente com a logística de produção que as famílias organizam. As famílias podem ser parentes de distintos graus de parentesco, mas que se organizam para o trabalho da farinha levando em conta que a mestre do grupo é a Dona Joana Laura. Estrutura social semelhante como vista aqui:
A propriedade dos objetos da casa de farinha não pressupõe a sua utilização exclusiva, uma vez que o proprietário compartilha seu uso só com a família. Essa definição remete a uma parentela extensa que engloba a esposa, os filhos e filhas, as noras, os genros, os irmãos destes, sobrinhos e também vizinhos próximos, ligados ao proprietário através de laços de compadrio
(Van Velthem, 2007Van Velthem, L. H. (2007). Farinha, casas de farinha e objetos familiares em Cruzeiro do Sul (Acre). Revista de Antropologia, 50(2), p. 605–631. https://doi.org/10.47236/2594-7036.2017.v1.i0.203-220p
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Essa interpretação da casa de farinha e todos os objetos que fazem parte de sua estrutura apresenta um espaço organizado tanto pelo seu significado conceitual assim como sua dimensão social, fatores que possibilitam fundamentar esse sistema como sendo o principal pilar cultural (Pinto, 2005Pinto, M. D. N. (2005). Sabores e saberes da casa de Mani: a mandioca nos sistemas culinários. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, 32, p. 280–301.; Pinto & Waldeck, 2006Pinto, M. D. N., & Waldeck, G. (2006). Mandioca: saberes e sabores da terra. IPHAN, CNFCP.; van Velthem, 2007Van Velthem, L. H. (2007). Farinha, casas de farinha e objetos familiares em Cruzeiro do Sul (Acre). Revista de Antropologia, 50(2), p. 605–631. https://doi.org/10.47236/2594-7036.2017.v1.i0.203-220p
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) para relações interpessoais que reforçam as intenções do TBC de reprodução do laço social.
Nesse recorte de momento percebeu-se a satisfação, a alegria e o afeto que permeiam as trocas entre os sujeitos, levando-se em conta que ambos os grupos, hóspedes e anfitriões, estavam presentes no mesmo período e espaço e obtiveram um entendimento mútuo do campo simbólico que permeava toda situação. Assim, evidencia-se a cultura local e a gastronomia típica como atrativos turísticos (Kaupien-Räisën, 2016Kauppinen‐Räisänen, H., Gummerus, J., & Lehtola, K. (2013). Remembered eating experiences described by the self, place, food, context and time. British Food Journal, 115(5), p. 666–685. https://doi.org/10.1108/00070701311331571
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; Csurgó, Hidley & Smith, 2019Csurgó, B., Hindley, C., & Smith, M. K. (2019). The role of gastronomic tourism in rural development. In (pp. 62-69) In: S. K. Dixit (Ed.). The Routledege handbook of gastronomic tourism) xon / New Your: Routledge. https://doi.org/10.4324/9781315147628-9
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, Gimenes-Minasse, 2020Gimenes-Minasse, M. H. (2020). Turismo gastronômico como objeto de pesquisa: análise das publicações em periódicos brasileiros (2005-2017). Revista Brasileira de Pesquisa em Turismo, São Paulo, 14(1), p. 92-111. https://doi.org/10.7784/rbtur.v14i1.1669
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) que estão presentes nas relações entre hóspedes e anfitriãs, e vice-versa, reforçando as relações entre hospitalidade, turismo e alimentação.
Distinguir entre os aspectos funcionais e emocionais (Lugosi, 2008Lugosi, P. (2008). Hospitality spaces, hospitable moments: consumer encounters and affective experiences in commercial settings. Journal of Foodservice, 19(2), p. 139-149. https://doi.org/10.1111/j.1745-4506.2008.00092.x
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) no âmbito simbólico da hospitalidade pode ser uma alternativa para o campo de estudo ao que tange à compreensão de sua manifestação em domínios comerciais, como o do TBC (Bursztyn, Bartholo & Delamaro, 2009), onde ainda acontece o cruzamento entre as dimensões comercial, doméstica, simbólica e social.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A hospitalidade tem suas raízes na dimensão simbólica e mítica. Por ser muitas vezes uma utopia, a construção dos mitos é essencial para ajudar o ser humano a entender que a hospitalidade é uma forma para melhorar a relação com o outro. O mito da hospitalidade está presente na Bíblia, na mitologia grega, nas mitologias ameríndias e nas mais variadas culturas. Representa a visita de um deus a casa de um mortal para testar sua hospitalidade. O mito, inclusive, apresenta sua função de explicar a “estória da hospitalidade, da convivência e da comensalidade” (Boff, 2005Boff, L. (2005). Virturdes para um outro mundo possível. Volume 1: Hospitalidade: direito e dever de todos. Vozes., p.93) visto no mito tupi apresentado, quando o chefe e toda a tribo aceita a vinda de uma criança divina concebida de forma estranha, acolhendo-a como uma igual e que, ao morrer, oferece a dádiva por intermédio do seu corpo em forma de fruto, o qual “comeram-no e assim aprenderam a usar da mandioca” (Cascudo, 2001Cascudo, L. C. (2001). Dicionário do folclore brasileiro (10 ed.). Global., p. 357).
Além disso, a disposição em receber o outro envolve uma série de ritos e simbologias. Desde a simples frase “seja bem-vindo” ou “sinta-se em casa” demonstra que o tempo da acolhida gera uma certa tensão. Daí a necessidade de criar mecanismos para amenizar esse tempo inicial.
A roda de conversa no primeiro dia de vivência ou a utilização de artefatos e/ou objetos tradicionais da comunidade de Mangabeira reforçam essa dimensão da hospitalidade. Afinal é através da simbologia da hospitalidade que é possível quebrar esse movimento dialético da hospitalidade desdobrado em limite, alteridade, identidade e encontro.
No dia da casa de farinha notou-se as conexões e as trocas entre os grupos – anfitriãs e hóspedes –pois este espaço é um fato social representativo e com significado cultural para os envolvidos. Pode-se constatar que, de um lado, os visitantes se espelharam nas anfitriãs e reconheceram-se como comedores de farinha, e do outro, as anfitriãs passaram a olhar para sua ancestralidade, por meio do ensino desta aos hóspedes, reafirmando a importância cultural que existe nos saberes e fazeres de sua identidade. Assim, investigou-se a hospitalidade nas vivências ribeirinhas do TBC em Mangabeira, centradas na cultura da mandioca.
Acredita-se que este estudo inicial sobre o patrimônio alimentar na dimensão simbólica da hospitalidade é um dos caminhos pouco percorridos na pesquisa científica, com potencial de relevar novas categorias de análise e possibilidades para o avanço do conhecimento da hospitalidade em suas interfaces com outras áreas, neste caso com a Gastronomia e a Semiótica.
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1
Le Cordon Bleu São Paulo, São Paulo, SP, Brasil.
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Sistema culinário é um conceito elaborado a partir do processo em cadeia de uma cultura alimentar. Abrange várias etapas que vão desde o método de obtenção da matéria prima até as refeições (Gonçalves, 2004; Tempass, 2019). Inclui, também, os “universos simbólicos” de todo o processo (Maranhão; Bastos; Marchi, 2016Maranhão, R. F. A., Bastos, S. R., & Marchi, M. M. (2016). Cultura e sociedade no sistema culinário da mandioca no Brasil. Revista Sociais e Humanas, 28(2), p. 54–68. https://doi.org/10.5902/2317175816893
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Relato feito por Dona Joana Laura, responsável pelo núcleo farinheiro da família Rodrigues.
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4
O sonho de acordo com Chevalier e Gheerbrant (2017, p. 843)Chevalier, J., & Gheerbrant, A. (2017). Dicionário de símbolos: mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números (30 ed.). Rio de Janeiro: José Olympio. é o “veículo e criador de símbolos. Manifesta também a natureza complexa, representativa, emotiva, vetorial do símbolo [...] pois todo símbolo participa do sonhe e vice-versa”.
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5
Uma das inúmeras ilhas que existem no meio do Rio Tocantins. Faz parte do distrito rural de Mocajuba e está localizada entre as margens do rio, com vista para a vila de Mangabeira.
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De acordo com (Maranhão, Bastos & Marchi, 2016Maranhão, R. F. A., Bastos, S. R., & Marchi, M. M. (2016). Cultura e sociedade no sistema culinário da mandioca no Brasil. Revista Sociais e Humanas, 28(2), p. 54–68. https://doi.org/10.5902/2317175816893
https://doi.org/10.5902/2317175816893... , p.63) “o primeiro produto resultante do processo de obtenção das farinhas, era o sumo da massa de mandioca”. Manipuera é o líquido inicial da prensagem da massa de tapioca no tipiti. Dele é extraído o tucupi e a goma de tapioca. -
7
Tracajá é o nome popular de uma espécie de tartaruga amazônica. A carne de tracajá é consumida na comunidade e o casco resistente ao calor é aproveitado nas casas de farinha para passar a farinha entre o forno e demais equipamentos.
AGRADECIMENTOS
À Dona Joana Laura, mestre farinheira da Amazônia que carrega a ancestralidade do beiju de massa e da farinha d’água. À Jane Glebia de Abreu pela parceria e abertura de portas do Instituto Laurinda Amazônia. À Deusa Mani.
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Como Citar: Budel, L., Severini, V. F., & Rejowski, M. (2023). Dimensões da Hospitalidade no Turismo de Base Comunitária: simbologias, ritos e artefatos na casa de farinha em Mangabeira. Revista Brasileira de Pesquisa em Turismo, São Paulo, 17, e-2497, 2023. https://doi.org/10.7784/rbtur.v17.2497
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
22 Maio 2023 -
Data do Fascículo
2023
Histórico
-
Recebido
23 Ago 2021 -
Aceito
19 Out 2022