RESUMO
O objetivo deste trabalho é descrever, em cadáver, a técnica de transferência do tendão longo do bíceps para o tratamento da instabilidade anterior do ombro. Nesta técnica, o tendão longo do bíceps braquial é desinserido do tubérculo supraglenoidal e transferido para a borda anterior da cavidade glenoidal, através da tenotomia do subescapular, reproduzindo o efeito tirante e aumentando o batente anterior. A técnica é de fácil execução, minimizando os riscos da transferência do processo coracoide e pode ser uma opção para o tratamento da instabilidade glenoumeral.
Descritores:
Instabilidade Articular; Luxação do Ombro; Articulação do Ombro
ABSTRACT
Our objective is to describe the long biceps tendon transfer technique for the treatment of shoulder anterior instability. In this procedure, the long tendon of the biceps brachii is detached from the supraglenoid tubercle and transferred to the anterior edge of the glenoid cavity through a subscapularis tenotomy, reproducing the sling effect and increasing the anterior block. The technique is easy to perform and minimizes the risks of the coracoid process transfer. In conclusion, the transfer of the long tendon of the biceps brachii is an option for the treatment of glenohumeral instability.
Keywords:
Shoulder Dislocation; Shoulder Joint; Joint Instability
INTRODUÇÃO
A instabilidade glenoumeral é uma entidade muito prevalente nos consultórios ortopédicos, que acomete indivíduos jovens, em sua faixa produtiva, e impacta diretamente na carreira de atleta profissional ou na capacidade laborativa do trabalhador1-3. Existem diversas técnicas cirúrgicas para tratar a instabilidade do ombro. A reconstrução do labrum por via artroscópica é a técnica mais utilizada, porém apresenta elevado índice de recidiva em pacientes com perda óssea maior do que 25% na glenoide anterior3-7. Nestes casos, a transferência do processo coracoide torna-se a melhor opção5-9. Esta técnica, no entanto, não é livre de complicações.
Uma das vantagens da transferência do processo coracoide é o tensionamento do tendão subescapular através do tendão conjunto10,11. Este efeito tirante contribui com a estabilidade da cabeça do úmero nos movimentos de abdução e rotação externa, ao tensionar o tendão subescapular, fazendo com que este aja como batente anterior10-12. Além disso, o posicionamento do batente ósseo na borda anterior da cavidade glenoidal aumenta o contato ósseo durante a translação anterior da cabeça umeral garantindo maior contato ósseo e impedindo a luxação7,9,10.
A transferência do cabo longo do tendão bíceps braquial através do tendão subescapular e sua tenodese na borda anterior da cavidade glenoidal junto ao reparo labral reproduziria esse efeito de tensionamento do subescapular e permitiria contato anterior através do espessamento das partes moles (augmentation) (Figura 1)11-13. Nosso objetivo é descrever, em cadáver, a técnica de transferência do tendão longo do bíceps para tratamento da instabilidade anterior do ombro.
Transferência do tendão através da tenotomia longitudinal do subescapular, inserido na borda anterior da cavidade glenoidal
NOTA TÉCNICA
O trabalho foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (protocolo nº 77773617.4.0000.5258). O cadáver foi posicionado em decúbito lateral, com o membro superior em abdução de 30º. O ângulo posterior do acrômio foi identificado. O portal posterior foi estabelecido 2cm inferior e 2cm medial ao vértice do ângulo. Através do portal posterior, realizamos a inspeção artroscópica da articulação com o equipamento Smith&NephewR (artroscópio de visão direta 4,0x160,0mm 30º, câmera Smith&NephewR 560H; cabo de fibra ótica 5mm GerminiR).
Uma vez inspecionada a articulação, o portal anterior foi demarcado, através da introdução de uma agulha tipo Jelco no 14 (out side-in) de forma que se localizasse no intervalo dos rotadores, entre o tendão subescapular e a cabeça longa do tendão bíceps braquial. A seguir, foi introduzida uma agulha no ápice da prega axilar anterior e, sob visão direta, a agulha foi passada lateralmente ao tendão conjunto e superiormente ao subescapular. A agulha foi colocada no colo da glenoide, no local do enxerto, sendo então feita uma incisão de 2cm na pele. O portal ântero-lateral era guiado pela borda superior do tendão do subescapular.
Através do portal anterior, foi realizada tenotomia do tendão longo do bíceps, em sua inserção, no tubérculo supraglenoidal (Figura 2). O tendão foi então retirado do sulco biceptal na cabeça do úmero através do portal ântero-lateral e transferido para o meio extra-articular.
O artroscópio foi transferido para o portal ântero-lateral. Através do portal anterior, realizamos a tenotomia longitudinal do subescapular (Figura 3). O ponto inicial da tenotomia coincidiu com a borda inferior da cavidade glenoidal. O tendão do bíceps foi então transferido para o meio intra-articular através do acesso criado no tendão subescapular, gerando, assim, uma banda inferior ao tendão e uma banda superior a este. O tendão longo do bíceps foi então fixado na borda ântero-inferior da cavidade glenoidal, junto ao labrum, criando, assim, o batente tendíneo (Figura 4). Duas âncoras metálicas de 4,9mm foram posicionadas na borda anterior da cavidade glenoidal (Figura 5). Os fios de sutura foram passados pelo labrum e pelo tendão (Figura 6).
Tenotomia longitudinal do tendão subescapular margeando a borda inferior da cavidade glenoidal e passagem do fio guia para transporte do tendão biceptal
Descolamento do labrum glenoidal para reposicionamento anterior e reinserção junto ao tendão
DISCUSSÃO
O músculo bíceps braquial é um flexor e supinador do antebraço13,14. Proximalmente, a cabeça curta do bíceps braquial se fixa ao processo coracoide da escápula13. O tendão da cabeça longa passa dentro do ligamento capsular na cabeça do úmero no sulco biceptal e insere-se na escápula no tubérculo supraglenoidal13-15. O tendão longo do bíceps braquial é um estabilizador da articulação, agindo com depressor do úmero durante abdução no plano da escápula13,14.
Diversas afecções, traumáticas ou degenerativas, podem acometer o tendão e causar dor12,15,16. A tenotomia é um tratamento adequado, não trazendo repercussões clínicas, como instabilidade, lesão condral ou ascensão da cabeça umeral13-17. O tendão longo do bíceps braquial foi considerado uma estrutura vestigial, uma vez que atua como estabilizador secundário nos primatas bípedes, e cuja ausência não repercute na função do ombro16. O tendão curto do bíceps braquial tem no processo coracoide seu ponto de ancoragem proximal11,14,15. A lesão do tendão curto traz repercussões clínicas, gerando perda de força de flexão do cotovelo11.
Na cirurgia de transferência do processo coracoide (Latarjet) o tendão conjunto é transferido junto ao enxerto11. O tendão é o responsável pelo tensionamento do subescapular e formação do batente miotendíneo anterior10,11. Em uma eventual avulsão ou não consolidação do enxerto, o comprometimento da força de flexão pode ser esperado11.
Diante dessas informações, sugerimos a transferência do tendão longo do bíceps braquial para a borda anterior da cavidade glenoidal, através do tendão subescapular, reproduzindo, assim, o efeito de tirante, criando uma barreira anterior e aumentando a superfície labral através da augmentation com o tendão11,13-19.
Acreditamos que este procedimento pode ser uma opção viável para pacientes que apresentam instabilidade glenoumeral anterior, com lesão de Bankart e perda óssea leve a moderada e com o manguito rotador íntegro.
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Fonte de financiamento: nenhuma.
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
27 Maio 2019 -
Data do Fascículo
2019
Histórico
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Recebido
08 Fev 2019 -
Aceito
02 Abr 2019






