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Um ano depois

EDITORIAL

Um ano de muitas apreensões, medos, adversidades, mudanças, adaptações e desafios: 2020 ficará para sempre na memória de todos como sendo tudo isso desencadeado por um minúsculo ser vivo - Covid19!

Teorias da conspiração, notícias falsas, pessimismo, disputas políticas e aumento da pobreza marcaram mais ainda a história mundial, concomitantemente à frenética necessidade da comunidade científica de desenvolver a vacina salvadora contra a doença Sars-Covid19. Nesse turbilhão, a Ciência foi questionada e perdeu o aprumo entre aqueles que acreditam na importância e veracidade dos dados, quando metodologicamente corretos e os que simplesmente ignoram-nos. Contudo, é nas adversidades que o ser humano parece reinventar-se e, perspectivas, muitas vezes, ainda mais desafiadoras, desabrocham contrariando a “cegueira” dos que nada vislumbram. Como disse Saramago - O aprendiz pensou: “Estamos cegos”, e sentou-se a escrever o Ensaio sobre a Cegueira para recordar a quem o viesse a ler que usamos perversamente a razão quando humilhamos a vida, que a dignidade do ser humano é todos os dias insultada pelos poderosos do nosso mundo, que a mentira universal tomou o lugar das verdades plurais, que o homem deixou de respeitar-se a si mesmo quando perdeu o respeito que devia ao seu semelhante11 Saramago J. Ensaio sobre a cegueira. Rio de Janeiro:Companhia das letras; 1995. 312 p..

Neste “rebuliço” contemporâneo, a Revista do Colégio Brasileiro de Cirurgiões (RCBC) tem enfrentado similitudes. Para nós, do novo Conselho Editorial, o desafio tem sido hercúleo, pois além do “novo”, o número de trabalhos submetidos aumentou cerda de 30%, em 2020, demandando critérios mais rigorosos de revisão. Afinal, não é suficiente ter quantidade de manuscritos, mas é essencial que haja critérios mínimos de qualidade para que possam posteriormente ser citados e, assim, contribuam para melhorar o fator de impacto.

O fator de impacto não deveria ser a única métrica na avaliação de publicações científicas, em especial, quando há tantas controvérsias e discussões sobre o tema22 Juyal D, Thawani V, Sayana A, Pal S. Impact factor: Mutation, manipulation, and distortion. J Family Med Prim Care. 2019;8(11):3475-9.. Há, indubitavelmente, outros aspectos a serem considerados, em particular, tratando-se de periódico de entidade societária-científica como é o Colégio Brasileiro de Cirurgiões (CBC). Um dos pilares do CBC é o compartilhamento de conhecimento e a revista é um dos veículos. No entanto, as métricas utilizadas pelas agências financiadoras de projetos, em quase todo o mundo, avaliam os pesquisadores tendo como base o histórico de publicações, e para tal contemplam o fator de impacto. De sorte que não há como negar a relevância assumida pelo mesmo.

Em 2020, a taxa de aceite de manuscritos da RCBC diminuiu para 27% versus 38% em 2019, e deverá manter-se neste patamar ou até ser menor. Qualidade e rigor científico precisam ser a tônica, e ainda que no Brasil pouco se discuta este assunto, é preciso começar. De sorte que, para alcançar melhor qualidade no processo editorial, optamos por contar com a colaboração direta de colegas de áreas cirúrgicas distintas, para compor o Conselho Editorial, na figura de editores associados.

O processo de seleção foi democraticamente aberto a todos os membros do CBC que preenchessem critérios pré-definidos para essa desafiadora tarefa. Foi com alegria, mas também surpresa que percebemos o interesse de vários cirurgiões em desempenhá-la. Assim, atualmente, a RCBC conta com nove editores associados que trabalham em sintonia com a editora-chefe, além de especialistas das mais variadas áreas cirúrgicas como membros do Conselho. Esperamos a cada dia estabelecer novas metas, trilhando pela publicação da ciência com qualidade, em um país em que fazer pesquisa é um grande desafio. Por outro lado, é possível conduzir bons estudos locais, mesmo que possam parecer “simples”, desde que os preceitos do método científico adequado sejam respeitados. Esses trabalhos certamente serão de grande benefício para a Medicina do país e de nossos pacientes. É mister estimular o método correto.

Método científico rigoroso e linguagem apropriada são fundamentais para a credibilidade e aplicabilidade da pesquisa na prática clínica. Contudo, tal premissa, raramente ensinada nos cursos de graduação, tampouco o é na pós-graduação, impactando negativamente na qualidade do que se publica, mundialmente33 Ioannidis JPA. Randomized controlled trials: Often flawed, mostly useless, clearly indispensable: A commentary on Deaton and Cartwright. Soc Sci Med. 2018;210:53-6.

4 Ioannidis JP. The Mass Production of Redundant, Misleading, and Conflicted Systematic Reviews and Meta-analyses. Milbank Q. 2016;94(3):485-514.
-55 Ioannidis JP. Why most published research findings are false. PLoS Med. 2005;2(8):e124.. Segundo Ioannidis44 Ioannidis JP. The Mass Production of Redundant, Misleading, and Conflicted Systematic Reviews and Meta-analyses. Milbank Q. 2016;94(3):485-514., a probabilidade de que a pergunta principal (objetivo) de um estudo científico seja verdadeira dependerá do poder estatístico e viés. Mais ainda, considerando-se que a maioria dos trabalhos contempla tamanhos de amostra pequenos e que grande número sequer descreve este preceito básico/essencial do método científico, os resultados podem ser absolutamente questionáveis, fruto de erros estatísticos tipo I ou II. Ademais, atualmente, com a indústria predatória de publicações6,7 só não publica quem não quer e isso impacta na prática clínica.

Aquele que desconhece a realidade da indústria contemporânea de publicações, na área da saúde, acredita que tudo o que está publicado deve ser aceito como determinante de condutas88 Leopold SS. Trust in science. Clin Orthop Relat Res. 2014;472(4):1063-4.. A ciência mudou o mundo, mas precisamos começar a pensar em como mudar a ciência, ao sermos mais críticos e menos complacentes com tudo o que nos é apresentado. Neste sentido, o último ano, também, foi marcado pela retratação de trabalhos publicados em revistas de renome internacional, o que impactou no cuidado dos doentes ao transladar inadequadamente resultados não sólidos e questionáveis99 Freckelton I. Perils of Precipitate Publication: Fraudulent and Substandard COVID-19 Research. J Law Med. 2020;27(4):779-89..

No âmago da questão científica, encontram-se, muitas vezes, características negativas do ser humano como vaidade e falta de ética entre pesquisadores, que são perpetuadas e não questionadas por público leitor pouco crítico. Para esses, é suficiente estar publicado na revista X ou Y que tem “alto fator de impacto”. Novamente, destaca-se a necessidade de conhecer as bases do método científico1010 Correia M. A series of editorials regarding the question: why is my paper rejected? Rev Col Bras Cir. 2020;47:e2020EDIT01., motivo pelo qual há sem dúvida a necessidade de difundi-lo de forma eficaz e rápida. Por outro lado, a velocidade da translação de conhecimento tem sido alta, em especial, para temas sensacionalistas e “de moda”, em detrimento daqueles que são essenciais para a boa interpretação dos dados e tão importantes para a humanidade. O grande número de publicações indexadas no Pubmed que ultrapassavam, em 2009, 1000/ dia1111 Straus SE, Tetroe J, Graham I. Defining knowledge translation. CMAJ. 2009;181(34):165-8., não é traduzido em boa ciência, pois muitas são deficientes em métodos científicos apropriados44 Ioannidis JP. The Mass Production of Redundant, Misleading, and Conflicted Systematic Reviews and Meta-analyses. Milbank Q. 2016;94(3):485-514.,55 Ioannidis JP. Why most published research findings are false. PLoS Med. 2005;2(8):e124.,1212 Ioannidis JPA. Hijacked evidence-based medicine: stay the course and throw the pirates overboard. J Clin Epidemiol. 2017;84:11-3.. É preciso ser crítico!

O mundo anda a galope e a necessidade de publicações mais rápidas, ou seja, menor tempo entre submissão e publicação, é essencial como determinante da qualidade do periódico. Contudo, todo o processo requer o cumprimento de cuidadosas etapas que envolvem desde a qualidade do trabalho submetido, a adequada revisão pelos pares e decisão editorial, perpassando por logística complexa que demanda sistemas organizacionais elaborados. Infelizmente, ocorrem falhas, pois o controle de todas as etapas nem sempre é de responsabilidade do conselho editorial. É interprofissional, demanda custos e envolve relações políticas que ultrapassam as nossas competências. Nesse quesito, isso continuará a ser grande desafio, principalmente, porque as sequelas econômicas da pandemia começam a prevalecer. Mas sigamos!

Estar “comandante” deste conselho editorial continuará a ter como objetivos as métricas que sempre valorizamos: oferecer informação científica ética, uma vez que entre outros aspectos o plágio exige ser precocemente identificado1313 Rode SdM, Pennisi PRC, Beaini TL, Curi JP, Cardoso SV, Paranhos LR. Authorship, plagiarism, and copyright transfer in the scientific universe [editorial]. Clinics (Sao Paulo). 2019;74:e1312.; prover a melhor qualidade possível de manuscritos, respeitando as limitações da pesquisa em país com recursos limitados e onde o conhecimento científico ainda engatinha, mas que tem o potencial de ser impactante para os doentes e; difundir conhecimento importante para os profissionais deste Brasil continental. Afinal, a razão da profissão dos que trabalham com a saúde e a doença é o bom cuidado do doente!

REFERENCES

  • 1
    Saramago J. Ensaio sobre a cegueira. Rio de Janeiro:Companhia das letras; 1995. 312 p.
  • 2
    Juyal D, Thawani V, Sayana A, Pal S. Impact factor: Mutation, manipulation, and distortion. J Family Med Prim Care. 2019;8(11):3475-9.
  • 3
    Ioannidis JPA. Randomized controlled trials: Often flawed, mostly useless, clearly indispensable: A commentary on Deaton and Cartwright. Soc Sci Med. 2018;210:53-6.
  • 4
    Ioannidis JP. The Mass Production of Redundant, Misleading, and Conflicted Systematic Reviews and Meta-analyses. Milbank Q. 2016;94(3):485-514.
  • 5
    Ioannidis JP. Why most published research findings are false. PLoS Med. 2005;2(8):e124.
  • 6
    Kumar P, Saxena D. Pandemic of Publications and Predatory Journals: Another Nail in the Coffin of Academics. Indian J Community Med. 2016;41(3):169-71.
  • 7
    Carroll CW. Spotting the Wolf in Sheep's Clothing: Predatory Open Access Publications. J Grad Med Educ. 2016;8(5):662-4.
  • 8
    Leopold SS. Trust in science. Clin Orthop Relat Res. 2014;472(4):1063-4.
  • 9
    Freckelton I. Perils of Precipitate Publication: Fraudulent and Substandard COVID-19 Research. J Law Med. 2020;27(4):779-89.
  • 10
    Correia M. A series of editorials regarding the question: why is my paper rejected? Rev Col Bras Cir. 2020;47:e2020EDIT01.
  • 11
    Straus SE, Tetroe J, Graham I. Defining knowledge translation. CMAJ. 2009;181(34):165-8.
  • 12
    Ioannidis JPA. Hijacked evidence-based medicine: stay the course and throw the pirates overboard. J Clin Epidemiol. 2017;84:11-3.
  • 13
    Rode SdM, Pennisi PRC, Beaini TL, Curi JP, Cardoso SV, Paranhos LR. Authorship, plagiarism, and copyright transfer in the scientific universe [editorial]. Clinics (Sao Paulo). 2019;74:e1312.
  • Fonte de financiamento:

    nenhuma.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Mar 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    14 Fev 2021
  • Aceito
    14 Fev 2021
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