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Alterações fonoaudiológicas na CADASIL: relato de caso

RESUMO

O objetivo deste estudo foi relatar as principais alterações fonoaudiológicas encontradas em um caso de uma paciente com diagnóstico de CADASIL, atendida na clínica-escola de Fonoaudiologia de uma Instituição de Ensino Superior, no período de 2008 a 2013. Foi realizada a avaliação clínica verificando alterações quanto aos órgãos fonoarticulatórios, mobilidade e tônus de lábios, língua e bochechas reduzidos, com maiores repercussões na deglutição nos dois últimos anos de atendimento. Na avaliação evidenciaram-se deglutições múltiplas na consistência pastosa e presença de tosse na consistência líquida, com qualidade vocal “molhada” e ausculta cervical sem alterações, após várias deglutições. Já a voz, apresentou qualidade vocal rouco-soprosa, astenia, loudness fraca, ressonância hipernasal e articulação imprecisa. A conduta fonoaudiológica objetivou manter a alimentação e a comunicação oral, contribuindo para melhor qualidade de vida.

Descritores:
CADASIL; Fonoaudiologia; Transtornos da Deglutição; Disartria; Disfonia

ABSTRACT

The purpose of this study was to report the main speech-language disorders in a patient with CADASIL diagnosis, attending the Speech Therapy School Clinic of a Higher Education Institution from 2008 to 2013. Clinical evaluation of the speech organs was carried out, verifying reduced mobility and tonus of lips, tongue and cheeks, with major repercussions on deglutition in the last two years of care. Multiple swallowing were observed for pasty consistency, and coughing, for the liquid one, with "wet" vocal quality and cervical auscultation without alterations, after multiple swallowing. A hoarse vocal quality with asthenia, weak loudness, hypernasal resonance and imprecise articulation were observed regarding the patient’s voice. The speech therapy aimed at maintaining food intake and communication, improving the patient’s quality of life.

Keywords:
CADASIL; Speech, Language and Hearing Sciences; Deglutition Disorders; Dysarthria; Dysphonia

INTRODUÇÃO

O acrônimo CADASIL (Cerebral Autosomal Dominant Arteriopathy with Subcortical Infarcts and Leukoencephalopathy) refere-se a uma doença genética transmitida hereditariamente de modo autossômico dominante, causada por uma mutação do gene NOTCH311. HAS: Haute Autorité De Santé. CADASIL - Protocole national de diagnostic et de soins pour les maladies rares. 2011. [cited 2015 Jul 24]. Available from: https://www.orpha.net/data/patho/Pro/fr/PNDS_CADASIL.pdf
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Tal gene codifica uma proteína cuja principal função é a manutenção da estabilidade estrutural e funcional vascular. As mutações patogênicas resultam em acúmulo dessa proteína em células do músculo liso que revestem os vasos de pequeno calibre, cerebrais e extracerebrais, levando, principalmente, a pequenos enfartes e ao aumento progressivo de áreas de desmielinização11. HAS: Haute Autorité De Santé. CADASIL - Protocole national de diagnostic et de soins pour les maladies rares. 2011. [cited 2015 Jul 24]. Available from: https://www.orpha.net/data/patho/Pro/fr/PNDS_CADASIL.pdf
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),(22. André C. CADASIL: pathogenesis, clinical and radiological findings and treatment. Arq Neuro-Psiquiatr. 2010;68(2):287-99..

O acúmulo de enfartes acarreta piora progressiva dos sintomas neurológicos, podendo aparecer em surtos, combinando distúrbios cognitivos (alterações das funções executivas e da atenção), distúrbios da marcha e equilíbrio e, em estágios mais avançados, demência, síndrome pseudobulbar (disartria, disfonia, disfagia), e disfunção do esfíncter urinário (incontinência ou retenção, infecções recorrentes)11. HAS: Haute Autorité De Santé. CADASIL - Protocole national de diagnostic et de soins pour les maladies rares. 2011. [cited 2015 Jul 24]. Available from: https://www.orpha.net/data/patho/Pro/fr/PNDS_CADASIL.pdf
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. A morte geralmente resulta de complicações, especialmente desnutrição e doenças infecciosas, tais como pneumonia por aspiração22. André C. CADASIL: pathogenesis, clinical and radiological findings and treatment. Arq Neuro-Psiquiatr. 2010;68(2):287-99., mas também pode ocorrer morte súbita inesperada33. Stojanov D, Grozdanovic D, Petrovic S, Benedeto-Stojanov D, Stefanovic I, Stojanovic N et al. De novo mutation in the NOTCH3 gene causing CADASIL. Bosn J Basic Med Sci. 2014;14(4):48-50.),(44. Di Donato I, Bianchi S, De Stefano N, Dichgans M, Dotti MT, Duering M et al. Cerebral Autosomal Dominant Arteriopathy with Subcortical Infarcts and Leukoencephalopathy (CADASIL) as a model of small vessel disease: update on clinical, diagnostic, and management. BMC Med. 2017;15(41):1-12.. As manifestações clínicas da doença são independentes do sexo e ocorrem por volta da terceira ou quarta década de vida55. Behrouz R, Benbadis SR. CADASIL (Cerebral Autosomal Dominant Arteriopathy With Subcortical Infarcts and Leukoencephalopathy). 2015. [cited 2015 Dez 08]. Available from: http://emedicine.medscape.com/article/1423170-overview#showall
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, o que não possibilita o diagnóstico precoce.

O diagnóstico de CADASIL requer avaliação clínica minuciosa, baseada nos sintomas típicos, história familiar, exames de imagens, estudo molecular e biópsia cutânea. Ao exame de Ressonância Magnética (RM) podem-se visualizar lesões da matéria branca e enfartes lacunares que são bem característicos, enquanto que no estudo molecular confirma-se a mutação do gene NOTCH3, favorecendo o diagnóstico definitivo22. André C. CADASIL: pathogenesis, clinical and radiological findings and treatment. Arq Neuro-Psiquiatr. 2010;68(2):287-99..

O histórico familiar está quase sempre presente; entretanto, sua ausência não exclui o diagnóstico. Casos isolados de mutação genética espontânea, que ocorre por razões desconhecidas, têm sido descritos33. Stojanov D, Grozdanovic D, Petrovic S, Benedeto-Stojanov D, Stefanovic I, Stojanovic N et al. De novo mutation in the NOTCH3 gene causing CADASIL. Bosn J Basic Med Sci. 2014;14(4):48-50.. Além disso, alguns indivíduos com a mutação do gene podem permanecer assintomáticos por longos períodos, mesmo com lesões bem definidas detectadas na RM, enquanto outros exibem apenas algumas características principais da doença, tais como enxaqueca com aura, depressão ou comprometimento cognitivo22. André C. CADASIL: pathogenesis, clinical and radiological findings and treatment. Arq Neuro-Psiquiatr. 2010;68(2):287-99..

Como nenhum tratamento para modificar a progressão da doença está disponível, faz-se necessário o controle dos sintomas e dos fatores de risco vascular com o uso de medicamentos66. Hawkes MA, Wilken M, Bruno V, Pujol-Lereis V, Povedano G, Saccoliti M et al. Cerebral autosomal dominant arteriopathy with subcortical infarcts and leukoencephalopathy (CADASIL) in Argentina. Arq Neuro-Psiquiatr. 2015;73(9):751-4. e apoio de uma equipe multiprofissional. A equipe deve ser composta por médico, fonoaudiólogo, fisioterapeuta, terapeuta ocupacional, nutricionista, assistente social e psicólogo. O apoio psicológico deve se estender principalmente à família, dada a natureza hereditária da doença11. HAS: Haute Autorité De Santé. CADASIL - Protocole national de diagnostic et de soins pour les maladies rares. 2011. [cited 2015 Jul 24]. Available from: https://www.orpha.net/data/patho/Pro/fr/PNDS_CADASIL.pdf
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Essa arteriopatia é relatada em alguns países de todos os continentes, sendo uma das frentes de pesquisas mais dinâmicas e liderantes da neurogenética77. Correia NMS. Síndrome CADASIL: epidemiologia, clínica e genética [dissertação]. Porto (Portugal): Universidade do Porto; 2011., com prevalência das mutações do gene NOTCH3 estimada em 4,15 por 100.000 adultos num estudo escocês88. Razvi SSM, Davidson R, Bone I, Muir KW. The prevalence of cerebral autosomal dominant arteriopathy with subcortical infarcts and leucoencephalopathy (CADASIL) in the west of Scotland. J Neurol. Neurosurg. Psychiatry. 2005;76(5):739-41.. No entanto, publicações sobre essa doença, na América do Sul, é escassa66. Hawkes MA, Wilken M, Bruno V, Pujol-Lereis V, Povedano G, Saccoliti M et al. Cerebral autosomal dominant arteriopathy with subcortical infarcts and leukoencephalopathy (CADASIL) in Argentina. Arq Neuro-Psiquiatr. 2015;73(9):751-4..

Considerando suas consequências para o adulto, a importância do diagnóstico e do cuidado, visando minimizar as limitações e desvantagens que a doença acarreta, o presente estudo tem como objetivo relatar o caso de uma paciente com CADASIL, descrevendo as principais alterações fonoaudiológicas encontradas.

APRESENTAÇÃO DO CASO

Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa Institucional Hospital Memorial Guararapes sob o número de protocolo 1.540.014/2016. Os dados dos atendimentos foram coletados do prontuário da paciente desde o início de seu tratamento, em 2008, até o seu desligamento em 2013 (Figura 1). De forma a garantir seu anonimato sem se distanciar de sua presença humana, escolheu-se um codinome: Flora.

Figura 1
Alterações fonoaudiológicas observadas no caso ao longo dos anos

Paciente Flora, gênero feminino, 56 anos, possui ensino superior completo, casada, tem três filhos, compareceu ao ambulatório de Motricidade Orofacial da Clínica de Fonoaudiologia Professor Fábio Lessa da Universidade Federal de Pernambuco relatando engasgos esporádicos durante alimentação e que sua fala não era compreendida pelos familiares e amigos. Foi encaminhada por uma fisioterapeuta com o diagnóstico de Esclerose Múltipla (EM), dado em 2002 por um neurologista. Segundo a paciente, a causa da morte de sua mãe foi decisiva para seu diagnóstico, pois faleceu diagnosticada com EM anos antes. Porém, no segundo semestre de 2011, um novo neurologista solicitou um estudo molecular, diagnosticando Flora com CADASIL.

Flora começou a realizar terapia fonoaudiológica em um hospital público em 2004, mas teve o tratamento interrompido três anos depois, comparecendo à clínica-escola em 2008, relatando piora dos sintomas. À anamnese, referiu fazer acompanhamento psiquiátrico para depressão e endocrinológico para o hipotireoidismo, usando medicamentos para controlar os sintomas.

Outras medicações para reduzir o risco de ataques isquêmicos, aliviar os sintomas relacionados à incontinência urinária e à memória também eram utilizadas. A priori, as queixas estavam relacionadas à deglutição e à voz; depois, alterações na visão, coordenação motora, cansaço ao desempenhar atividades que exijam esforço e memória, surgiram.

A avaliação fonoaudiológica foi realizada conforme os protocolos propostos na literatura99. Silva HJ, Cunha DA. Avaliação e tratamento das alterações da deglutição. In: Marchesan IQ (org). Tratamento da deglutição. São José dos Campos: Pulso Editorial; 2005. p. 133-48.),(1010. Marchesan IQ, Berretin-Felix G, Genaro KF, Rehder MI. Avaliação Miofuncional Orofacial - Protocolo MBGR. Rev. CEFAC. 2009;11(2):237-55.. Para avaliação da postura corporal, tiraram-se fotos em pé, atrás do simetrógrafo, numa visão frontal, lateral e posterior. Nos primeiros anos, Flora apresentava apenas uma discreta elevação do ombro direito; posteriormente, observou-se, também, inclinação de todo o corpo à frente e para o lado esquerdo devido às limitações de equilíbrio. Quanto à face, foram observadas assimetrias, com desvios para o lado direito, sendo esse de maior expressão facial. O lado esquerdo da face apresentava-se hipotônico, mais alongado, enquanto que o direito estava mais encurtado, hipertônico. Sulco nasogeniano mais profundo à direita. Lábios unidos, com comissura labial esquerda rebaixada.

Por meio de fotos retiradas com afastadores de bochechas e lanterna, foi possível avaliar a região intraoral. Verificaram-se dentes em bom estado de conservação, oito na arcada superior, com utilização de prótese dentária fixa com reposição de três dentes e dez na arcada inferior, com número menor de dentes à direita, sem uso de prótese. A mucosa apresentava-se livre de feridas ou marcas de mordidas. Gengiva de coloração normal. Tonsilas palatinas em tamanhos e tonalidades adequadas. Palato duro sem alterações e palato mole simétrico. Língua hipotônica, mas com sulco longitudinal adequado.

Quanto à mobilidade de lábios, língua e bochechas, a paciente apresentava algumas limitações. Flora conseguia protruir e retrair lábios, vibrar e estalar em protrusão. A mobilidade de língua apresentava-se adequada quando em direção aos quatro pontos cardeais e nos estalos; porém, realizava a vibração com dificuldade. Já as bochechas, era capaz de inflar e sugar, mas apresentava dificuldade em inflar alternadamente os lados, inflando apenas o lado direito. Realizava emissão do a/ã e conseguia boa abertura de boca, mas com deflexão.

Para avaliar as funções de mastigação e deglutição, utilizaram-se os alimentos nas consistências sólida (pão), pastosa (iogurte com consistência firme/pudim) e líquida (água). O volume variava conforme aceitação da paciente. Verificou-se que a incisão do alimento foi efetuada pelos incisivos centrais e a trituração pelos dentes posteriores. O padrão mastigatório foi bilateral alternado com predominância para o lado esquerdo. Durante a mastigação e a deglutição, a velocidade e o ritmo foram adequados, com vedamento labial, mas com contração acentuada da musculatura orbicular e mentoniana.

Nos últimos dois anos, Flora passou a apresentar estase salivar em cavidade oral, escape de alimento pela comissura labial e resíduos alimentares no vestíbulo da boca após deglutição, não sendo percebido por ela, o que demonstrou a falta de sensibilidade da região. Observou-se também um discreto movimento compensatório de cabeça para baixo durante a deglutição e presença de tosse na consistência líquida. Na ausculta cervical, após várias deglutições, não se encontraram ruídos sugestivos de penetração laríngea de saliva e/ou alimento.

Para avaliar a voz, Flora foi solicitada a emitir as vogais /a/, /e/ e /i/ sustentadas, cantar os “parabéns pra você”, dar um depoimento espontâneo e repetir uma lista de palavras ditas pela terapeuta. Na análise perceptivo-auditiva, detectou-se, inicialmente, qualidade vocal rouca e soprosa de grau discreto, com instabilidade de emissão. Posteriormente, a paciente passou a apresentar grau de rouquidão e soprosidade moderado a severo, presença de astenia e loudness fraca. Os tempos máximos de fonação apresentaram-se reduzidos. A articulação foi se tornando mais imprecisa, com movimentos limitados de lábios e mandíbula. A ressonância, no último ano, passou a ser hipernasal, em grau leve perceptível, caracterizando o quadro de disartrofonia.

Portanto, o diagnóstico fonoaudiológico foi estabelecido como disartrofonia flácida e, com o avançar da doença, associada à disfagia orofaríngea de grau leve. Quanto aos resultados de avaliação do distúrbio miofuncional orofacial, apesar das limitações apresentadas, a paciente obteve escores próximos dos melhores resultados, sendo classificada com grau de alteração leve. Os eixos mais pontuados foram nos aspectos extra orais, mobilidade, tônus e deglutição.

A despeito de não se ter aplicado protocolos de avaliação de habilidades cognitivas e de estado mental, era possível observar comprometimento gradativo das habilidades de atenção, memória e localização temporal da paciente durante as atividades terapêuticas, manifestados por esquecimentos em relação a acontecimentos recentes, quando perguntada, incluindo fatos do dia anterior, sendo incapaz de dizer em que lugar estava, no momento da terapia e qual a data presente; segundo depoimento dos familiares, tais características também eram observadas por eles, no cotidiano da paciente.

A terapia fonoaudiológica, que ocorria duas vezes na semana, objetivou manter as funções estomatognáticas e melhorar qualidade de vida. Eram realizadas manipulações extra e intra-orais para aquecimento, soltura, vascularização e ativação das zonas motoras; estimulação sensorial tátil e térmica; exercícios miofuncionais isométricos, isotônicos e de contrarresistência para lábios, língua e bochechas; terapia funcional utilizando alimentos em diferentes consistências com auxílio de manobras facilitadoras; terapia vocal com sons facilitadores, firmeza glótica, sobrearticulação; além de terapia facilitadora com jogos estimulando memória, raciocínio e atenção (memória, palavras cruzadas, caça palavras, dominó, músicas).

No ano de 2013, Flora apresentou maiores limitações motoras, incontinência urinária, dependência para realizar algumas atividades de vida diária, estava mais depressiva, evitando falar. As queixas de engasgos se tornaram mais frequentes na consistência líquida. À avaliação, evidenciaram-se deglutições múltiplas na consistência pastosa e presença de tosse na consistência líquida, com qualidade vocal “molhada”, sugerindo penetração laríngea. Após várias deglutições a paciente apresentava ausculta cervical sem alterações, demonstrando possível clearence da região faringolaríngea. Realizaram-se ajustes quanto à consistência alimentar: indicou-se espessamento do líquido e solicitou-se videofluoroscopia da deglutição para melhor acompanhamento, mas não se teve devolutiva. Devido aos problemas que foram se agravando, fez-se necessário um atendimento contínuo, domiciliar, sendo mais confortável e benéfico para a paciente, havendo, então, o desligamento voluntário de Flora da clínica-escola.

A paciente também era acompanhada por fisioterapeuta, terapeuta ocupacional, psicólogo, psiquiatra e neurologista. Pareceres eram trocados visando integrar as práticas para seu acompanhamento.

RESULTADOS

O período de atendimento compreendeu de 19 de março de 2008 a 06 de setembro de 2013, duas vezes por semana, totalizando 257 sessões. Flora foi atendida por um estagiário diferente a cada ano, tendo em vista que se trata de uma clínica-escola e o período de estágio durou dois semestres, de acordo com o calendário acadêmico.

Quando a paciente realizava os exercícios em casa durante a semana e nos períodos de recesso acadêmico, de forma a dar continuidade à terapia, percebiam-se melhoras. Flora conseguiu melhorar os aspectos da mobilidade facial, respondendo melhor aos exercícios isotônicos; porém, suas respostas aos exercícios isométricos e isocinéticos foram limitadas, sem melhoras perceptíveis em relação ao tônus e força muscular, principalmente do lado esquerdo da face. A deglutição se mostrava segura apenas com o controle de volume e velocidade. A voz apresentava-se mais projetada e a fala com articulação precisa.

No entanto, seu quadro clínico variava conforme a progressão da doença e ocorrência dos pequenos enfartes e internações. Com o passar dos anos e surgimento de novas limitações, realizavam-se ajustes quanto aos objetivos e atividades propostas.

A estimulação tátil e térmica, bem como o comando verbal simples para deglutir, permitia melhor resposta motora, evitando-se estase salivar e alimentar. A utilização de manobras facilitadoras e os ajustes na consistência alimentar minimizaram o risco de broncoaspiração, proporcionando deglutição mais segura. Os exercícios vocais, principalmente os voltados para a coaptação glótica, auxiliavam nessa segurança e acarretavam melhor coordenação pneumofônica, loudness mais elevada e maior evidência de componente oral na ressonância.

DISCUSSÃO

A CADASIL pode ser uma das condições neurológicas genéticas mais comuns, no entanto provavelmente é subdiagnosticada. Na indisponibilidade do teste genético para CADASIL, muitos casos, assim como o de Flora e provavelmente de sua mãe, foram diagnosticados como EM, Alzheimer ou outras doenças neurodegenerativas33. Stojanov D, Grozdanovic D, Petrovic S, Benedeto-Stojanov D, Stefanovic I, Stojanovic N et al. De novo mutation in the NOTCH3 gene causing CADASIL. Bosn J Basic Med Sci. 2014;14(4):48-50.),(44. Di Donato I, Bianchi S, De Stefano N, Dichgans M, Dotti MT, Duering M et al. Cerebral Autosomal Dominant Arteriopathy with Subcortical Infarcts and Leukoencephalopathy (CADASIL) as a model of small vessel disease: update on clinical, diagnostic, and management. BMC Med. 2017;15(41):1-12..

No curso da doença, há agravamento sempre, mas, em curtos intervalos, a evolução é muito variável, com períodos de deterioração rápida, estabilidade clínica ou até, ocasionalmente, de melhora55. Behrouz R, Benbadis SR. CADASIL (Cerebral Autosomal Dominant Arteriopathy With Subcortical Infarcts and Leukoencephalopathy). 2015. [cited 2015 Dez 08]. Available from: http://emedicine.medscape.com/article/1423170-overview#showall
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. Essas oscilações e variabilidade dos sintomas verificadas em Flora podem ser explicadas pelos possíveis acidentes cerebrais isquêmicos transitórios ou estabelecidos11. HAS: Haute Autorité De Santé. CADASIL - Protocole national de diagnostic et de soins pour les maladies rares. 2011. [cited 2015 Jul 24]. Available from: https://www.orpha.net/data/patho/Pro/fr/PNDS_CADASIL.pdf
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. Daí a importância de estudos que descrevam os achados clínicos desta patologia.

Conforme descrito nos resultados e verificado nos dados de atendimento coletados (Figura 1), a paciente apresentou alguns dos sintomas mais prevalentes descritos na literatura, como: distúrbios cognitivos com alterações na memória, depressão, distúrbios da marcha e equilíbrio, disfunção do esfíncter urinário, disartrofonia e disfagia11. HAS: Haute Autorité De Santé. CADASIL - Protocole national de diagnostic et de soins pour les maladies rares. 2011. [cited 2015 Jul 24]. Available from: https://www.orpha.net/data/patho/Pro/fr/PNDS_CADASIL.pdf
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),(22. André C. CADASIL: pathogenesis, clinical and radiological findings and treatment. Arq Neuro-Psiquiatr. 2010;68(2):287-99.),(44. Di Donato I, Bianchi S, De Stefano N, Dichgans M, Dotti MT, Duering M et al. Cerebral Autosomal Dominant Arteriopathy with Subcortical Infarcts and Leukoencephalopathy (CADASIL) as a model of small vessel disease: update on clinical, diagnostic, and management. BMC Med. 2017;15(41):1-12.. No último ano, esses sintomas se mostraram mais intensos devido ao avanço da doença55. Behrouz R, Benbadis SR. CADASIL (Cerebral Autosomal Dominant Arteriopathy With Subcortical Infarcts and Leukoencephalopathy). 2015. [cited 2015 Dez 08]. Available from: http://emedicine.medscape.com/article/1423170-overview#showall
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Os distúrbios cognitivos estando associados à depressão trazem consequência direta na qualidade de vida do paciente e do familiar e/ou cuidador. O comprometimento da memória provavelmente está relacionado a causas diferentes, devido aos infartos de substância branca, principalmente no lobo frontal e córtex primário. Os eventos isquêmicos também podem envolver o nervo óptico e retina44. Di Donato I, Bianchi S, De Stefano N, Dichgans M, Dotti MT, Duering M et al. Cerebral Autosomal Dominant Arteriopathy with Subcortical Infarcts and Leukoencephalopathy (CADASIL) as a model of small vessel disease: update on clinical, diagnostic, and management. BMC Med. 2017;15(41):1-12., o que pode justificar as queixas visuais de Flora.

Apesar da distinção da fisiopatologia da doença discutida, é possível observar que, de acordo com os relatos da literatura e as características clínicas apresentadas pela paciente descrita, as particularidades fonoaudiológicas tendem a se apresentar de maneira semelhante aos achados em indivíduos com doença degenerativa do sistema nervoso central. É descrito na CADASIL a presença da síndrome pseudobulbar, que é decorrente das lesões supranucleares das vias corticobulbares e corticopontinas, repercutindo na articulação, fonação, deglutição, mastigação e nos movimentos de língua1111. Alves Junior AC, Pinheiro LCP, Hamamoto Filho PT, Zanini MA. Meningioma da região da pineal causando estase do sistema venoso profundo com consequente paralisia pseudobulbar: relato de caso inédito. Arquivos Brasileiros de Neurocirurgia: Brazilian Neurosurgery. 2018;37(S01):1-332..

A disartrofonia e a disfagia apresentadas por Flora assemelham-se à grande variedade dos sintomas da EM, por exemplo, como a presença de tosse e/ou engasgos durante a alimentação, maior dificuldade com alimentos líquidos do que com sólidos, dificuldade na formação do bolo alimentar e deglutições múltiplas. Também são observadas alterações motoras da língua, lábios, véu palatino e faringe, além de dificuldade no fechamento glótico1212. Amaral IJL. Avaliação da deglutição de pacientes em um centro de referência em esclerose múltipla no centro oeste do Brasil [dissertação]. Goiânia (GO): Universidade Federal de Goiás; 2016., o que implicou nas repercussões vocais da paciente.

Em relação às estruturas do sistema estomatognático, Flora foi capaz de melhorar aspectos de mobilidade durante as terapias; no entanto, tônus e força muscular permaneceram aparentemente inalterados. Ainda que se inter-relacionem, não se pode dizer que a diminuição do tônus necessariamente prejudica a mobilidade1313. Andrada e Silva MA, Marchesan IQ, Ferreira LP, Schmidt R, Ramires RR. Postura, tônus e mobilidade de lábios e língua de crianças respiradoras orais. Rev. CEFAC. 2012;14(5):853-60.. Além disso, a natureza degenerativa da CADASIL pode explicar a aparente não resposta aos exercícios isométricos aplicados, podendo-se considerar o efeito positivo desses no retardamento das consequências deletérias da própria doença no tônus e força muscular11. HAS: Haute Autorité De Santé. CADASIL - Protocole national de diagnostic et de soins pour les maladies rares. 2011. [cited 2015 Jul 24]. Available from: https://www.orpha.net/data/patho/Pro/fr/PNDS_CADASIL.pdf
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),(22. André C. CADASIL: pathogenesis, clinical and radiological findings and treatment. Arq Neuro-Psiquiatr. 2010;68(2):287-99..

A despeito da paciente demonstrar maior déficit motor e de tônus à esquerda, observou-se predominância mastigatória desse lado, o que pode ser justificado pela maior presença de dentes nas duas hemiarcadas, proporcionando melhor desempenho durante trituração dos alimentos. Além disso, sua postura corporal pode ter favorecido o direcionamento do alimento para o lado predominante.

Quanto à voz, a paciente apresentou características compatíveis à disartrofonia flácida, com repercussões nos parâmetros de rugosidade, soprosidade, intensidade reduzida, hipernasalidade e articulação imprecisa relacionadas aos padrões de fraqueza muscular1414. Behlau M, Madazio G, Azevedo R, Brasil O, Vilanova LC. Disfonias neurológicas. In: Behlau M. (Org). Voz: o livro do especialista II. Rio de Janeiro: Revinter; 2010. p. 111-86.. Como observado em doenças degenerativas do sistema nervoso, as manifestações são imprevisíveis, incluindo diferentes tipos de disartrofonia ou até combinações entre eles, como nos casos de disartrofonia mista. Vários fatores podem acarretar essas alterações da deglutição e voz, como envolvimento dos tratos corticobulbar e cerebelar, disfunções do tronco encefálico e alterações cognitivas1212. Amaral IJL. Avaliação da deglutição de pacientes em um centro de referência em esclerose múltipla no centro oeste do Brasil [dissertação]. Goiânia (GO): Universidade Federal de Goiás; 2016.),(1414. Behlau M, Madazio G, Azevedo R, Brasil O, Vilanova LC. Disfonias neurológicas. In: Behlau M. (Org). Voz: o livro do especialista II. Rio de Janeiro: Revinter; 2010. p. 111-86.),(1515. Knuijt S, Kalf J, van Engelen BGM, Swart BJM, Geurts ACH. The radboud dysarthria assessment: development and clinimetric evaluation. Folia Phoniatr Logop. 2017;69(4):143-53..

Em relação ao tratamento multidisciplinar11. HAS: Haute Autorité De Santé. CADASIL - Protocole national de diagnostic et de soins pour les maladies rares. 2011. [cited 2015 Jul 24]. Available from: https://www.orpha.net/data/patho/Pro/fr/PNDS_CADASIL.pdf
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, evidencia-se a importância do fonoaudiólogo na avaliação das funções estomatognáticas e controle dos sintomas no que diz respeito à voz e à fala, mas, principalmente, à deglutição, tendo em vista as complicações respiratórias e nutricionais da disfagia.

Por se tratar de um único caso e considerando as questões multifocais com polimorfismo dos sintomas, outros estudos fonoaudiológicos sobre este tema são necessários. É importante conhecer os sinais e sintomas da CADASIL relacionados à comunicação e funções do sistema estomatognático para o diagnóstico preciso e condução terapêutica adequada.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

No caso clínico apresentado observaram-se alterações no sistema estomatognático quanto à postura, redução de mobilidade e tônus de lábios, língua e bochechas, disartrofonia e sinais de disfagia orofaríngea, com maiores repercussões nos dois últimos anos de atendimento. Evidenciaram-se deglutições múltiplas na consistência pastosa e presença de tosse na deglutição da consistência líquida, com qualidade vocal “molhada”, realizando clearence da região faringolaríngea após várias deglutições com ausculta cervical sem alterações. Já a voz, apresentou qualidade vocal rouco-soprosa, astenia, loudness fraca, ressonância hipernasal e fala com articulação imprecisa.

O relato das alterações fonoaudiológicas na CADASIL na literatura ainda é escasso. De um modo geral, os estudos são voltados para patogênese, abordando os aspectos moleculares, suas variabilidades genéticas e as estratégias diagnósticas. O relato de caso descrito no presente estudo pode propiciar a compreensão das características da CADASIL de interesse fonoaudiológico, direcionando a abordagem de atuação. Isso permite a realização de intervenção interdisciplinar a fim de minimizar as dificuldades descritas e proporcionar qualidade de vida.

REFERENCES

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    HAS: Haute Autorité De Santé. CADASIL - Protocole national de diagnostic et de soins pour les maladies rares. 2011. [cited 2015 Jul 24]. Available from: https://www.orpha.net/data/patho/Pro/fr/PNDS_CADASIL.pdf
    » https://www.orpha.net/data/patho/Pro/fr/PNDS_CADASIL.pdf
  • 2
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Abr 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    06 Ago 2018
  • Aceito
    11 Mar 2019
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