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A fragilidade dos marcadores culturais nas comunidades acadêmicas: distanciamento físico e ofuscação dos referentes grupais

1. INTRODUÇÃO

Esta análise aponta para a fragilidade da comunidade acadêmica como resultado da disseminação de práticas de distanciamento físico, o que restringe especialmente o desenvolvimento de conversas significativas e de relações sociais através de determinado ambiente que convencionalmente desempenhou papel principal na matrícula e na socialização de acadêmicos: a conferência presencial. Nas últimas décadas, tais conferências foram geralmente conferências globais, permitindo que membros da comunidade de diferentes partes do planeta se encontrassem, trocassem ideias e socializassem. Ainda assim, o ritmo institucionalizado da vida acadêmica, especialmente em relação às conferências presenciais internacionais, foi profundamente desestabilizado como resultado da pandemia de coronavírus (Coronavirus disease [COVID-19]). Nossa análise desenvolve uma série de preocupações que podem resultar da disseminação das práticas de distanciamento físico - enquanto destaca a necessidade da comunidade acadêmica de experimentá-las na tentativa de aliviar o seu potencial impacto.

Há mais de duas décadas, Frost e Taylor (1996Frost, P. J., & Taylor, M. S. (Eds.). (1996). Rhythms of academic life: personal accounts of careers in academia. Thousand Oaks, CA: Sage. ) foram os editores de uma coletânea publicada com o propósito de desmistificar e orientar os membros (e futuros membros) da comunidade da análise organizacional acerca dos “ritmos” da vida acadêmica. O objetivo era descrever “as experiências dos acadêmicos em diferentes papéis e em diferentes pontos de transição e [proporcionar] conjuntos de diretrizes que eles achavam que poderiam informar a escolha dos outros” (Frost & Taylor, 1996Frost, P. J., & Taylor, M. S. (Eds.). (1996). Rhythms of academic life: personal accounts of careers in academia. Thousand Oaks, CA: Sage. , p. xiv, tradução nossa). A decisão dos autores de recorrer à metáfora do ritmo para desenvolver um ponto de vista mais amplo sobre a coletânea de ensaios do livro é notável. Como demonstrado implicitamente na organização do índice, a vida acadêmica é concebida como uma viagem que consiste em papéis de ritmo inicial e de ritmo intermediário. Os papéis de ritmo inicial se referem a atividades como “pesquisar e publicar”, “trabalhar com alunos de doutorado” e “assumir o cargo de professor(a)”. Os papéis de ritmo intermediário incluem elementos como “trabalhar juntos”, “tornar-se revisor(a)”, “tornar-se professor(a) titular” e “trabalhar com formuladores de políticas”.

Então, em uma coreografia cadenciada, as viagens acadêmicas pressupõem uma sensação de recorrência e regularidade que se dá nos bastidores, como nos cenários de uma ópera, subindo ou descendo, entrando ou saindo, enquanto o enredo minuciosamente coreografado se desenrola no palco. Em tal cenário, o que acontece quando um evento extraordinário (p. ex., uma crise sanitária global) surge e interrompe os ritmos da vida acadêmica?

Originalmente identificada na China em dezembro de 2019, a doença do COVID-19 se espalhou rapidamente por quase 200 países. No momento em que este artigo foi redigido (26 de maio de 2020), segundo os dados oficiais, cerca de 5 milhões de seres humanos haviam contraído o vírus, resultando em mais de 300.000 mortes (World Health Organization [WHO], 2020World Health Organization. (2020, May 22). Coronavirus disease (COVID-19): Situation Report 123. Retrieved from https://www.who.int/docs/default-source/coronaviruse/situation-reports/20200522-covid-19-sitrep-123.pdf?sfvrsn=5ad1bc3_4
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). A consequente pandemia gerou drásticas medidas de prevenção sanitária no mundo inteiro, com destaque para o confinamento social e o distanciamento presencial entre seres humanos. Como parte do esforço para conter a pandemia, os campi e as faculdades das universidades foram fechados por completo e os encontros científicos foram cancelados. Nossa análise tem por objetivo refletir sobre algumas potenciais consequências que as práticas de distanciamento físico podem gerar no âmbito das ciências sociais.

Os leitores interessados em examinar as referências perceberão que nossa análise se baseia em um número razoável de livros e coletâneas. Será que essas obras publicadas proporcionam um insight mais significativo que dê sentido às crises sociais cujo grau de turbulência e incerteza se mostre de grande magnitude? Eis uma questão importante que demanda maior investigação. Um interesse crítico é a tendência institucional da academia de administração favorecer a produção de artigos acadêmicos em vez de livros, cuja publicação raramente é incentivada (Adler & Harzing, 2009Adler, N. M., & Harzing, A. W. (2009). When knowledge wins: transcending the sense and nonsense of academic rankings. Academy of Management Learning & Education, 8(1), 72-95.).

2. O PAPEL SIGNIFICATIVO DAS CONFERÊNCIAS PRESENCIAIS NA ACADEMIA

Uma vez que as ciências sociais constituem espaços nos quais estudamos tanto realidades quanto fenômenos, o argumento aqui desenvolvido se concentra essencialmente nesses espaços. Será que, em longo prazo, o distanciamento físico enfraqueceria o esprit de corps nas comunidades acadêmicas? O distanciamento físico se traduzirá em crescentes dificuldades para os alunos de doutorado e os membros do corpo docente em início de carreira desenvolverem relacionamentos significativos e apoio mútuo com sua comunidade acadêmica? O distanciamento físico tornará cada vez mais desafiadora a identificação de autores e revisores promissores por parte dos editores de periódicos? Como poderiam ocorrer viagens acadêmicas significativas quando os ritmos da vida acadêmica podem desestabilizar-se seriamente em decorrência das medidas de distanciamento físico?

Embora a falta de visão retrospectiva diante da atual crise sanitária global vá de encontro a respostas ponderadas para essas perguntas, ainda assim, nossa análise pode ser visto como um retrato, tirado alguns meses após o início do “grande lockdown” (Agence France-Presse [AFP], 2020Agence France-Presse (2020, April 15). Le «grand confinement»: la crise de 2020 a désormais un nom. Retrieved from https://www.journaldemontreal.com/2020/04/15/le-grand-confinement-la-crise-de-2020-a-desormais-un-nom
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, tradução nossa), que traz à tona algumas preocupações sobre como as comunidades acadêmicas podem ser impactadas por um embargo sanitário a encontros pessoais no domínio da pesquisa científica.

De modo geral, os processos de produção de conhecimento em muitas áreas do mundo, particularmente desde a década de 1980, desenvolveram-se de acordo com o ritmo da globalização. Costuma-se entender que, nas últimas décadas, a globalização exerceu significativa influência sobre uma ampla gama de atividades humanas (Beck, 2000Beck, U. (2000). What is globalization? Cambridge, UK: Polity Press. ; Harvey, 2019Harvey, D. (2019). Spaces of global capitalism. London, UK: Verso. ) - inclusive sobre a academia (King, Marginson, & Naidoo, 2011King, R., Marginson, S., & Naidoo, R. (Eds.). (2011). Handbook on globalization and higher education. Cheltenham, UK: Edward Elgar. ). Basta pensar, por exemplo, nos voos de longa distância, que desempenham um papel indispensável ao levar pessoas de diferentes países até o local de alguma conferência.

Fazendo eco a essa perspectiva, e bem no início de sua viagem acadêmica, os alunos de doutorado tendem a ser instruídos acerca da importância das redes presenciais e da relevância de participar de conferências internacionais, onde eles têm a oportunidade de conhecer colegas e pesquisadores reconhecidos de diversas partes do mundo. Haggerty e Doyle (2015Haggerty, K. D., & Doyle, A. (2015). 57 ways to screw up in grad school. Chicago, IL: University of Chicago Press. , pp. 79-80, tradução nossa) defendem que, para os alunos de graduação,

[...] as conferências são um valioso fórum para formar a rede de contatos. […] A rede de contatos consiste em conhecer e compartilhar ideias e planos com os membros de sua comunidade acadêmica. Até acadêmicos renomados podem colher bons frutos ao conhecer um colega iniciante com interesses similares ​​que compartilha contatos pessoais. […] Um editor pode precisar da colaboração de um autor em um livro ou desejar que alguém escreva a resenha de um livro. Se vocês dois se conhecerem, você terá mais chance de ser convidado. Tais encontros também proporcionam a invejável oportunidade de escrever aquele e-mail que começa assim: “Você pode não se lembrar de mim, mas nos conhecemos na conferência em Minnesota há dois anos...” [...] As conferências trazem boa parte do repertório cultural compartilhado por uma comunidade acadêmica e são uma fonte recorrente de casos anedóticos e eventuais momentos de intriga.

Em resumo, uma conferência acadêmica presencial convencional é muito mais do que expor alguém a uma série de trabalhos de pesquisa e a diversas apresentações em painel. Até o início de 2020, a noção de conferência acadêmica implicava, em grande parte, uma conferência física ocorrendo em um cenário geográfico circunscrito. Em meio à pandemia de COVID-19, essa hipótese já não se mostra e surgem inúmeras tentativas de “salvar” as conferências científicas reconhecidas mediante protocolos on-line e virtuais. A atual crise sanitária global desestabiliza os pontos de referência e os marcadores culturais das comunidades acadêmicas - com uma série de experimentos virtuais em andamento, junto com dispositivos de marketing que buscam promover os benefícios e, às vezes, até a “normalidade” desses experimentos virtuais (MacDonald, 2020MacDonald, M. (2020, April 8). The sudden urgency of online academic conferences. Retrieved from https://www.universityaffairs.ca/features/feature-article/the-sudden-urgency-of-online-academic-conferences/?_ga=2.256756427.1942350231.1586734783-981374733.1586734783
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).

Considerando que não resta dúvida de que as conferências (presenciais ou virtuais) podem mostrar-se úteis para facilitar (ou dificultar) a viagem de ideias (Czarniawska & Joerges, 1996Czarniawska, B., & Joerges, B. (1996). Travels of ideas. In B. Czarniawska, & G. Sevón (Eds.), Translating organizational change (pp. 13-48). Berlin, Germany: Walter de Gruyter. ), as conferências presenciais são permeadas de símbolos e rituais que assumem um significativo papel na socialização dos recém-chegados - expondo-os, por exemplo, aos tipos de atitude pública, fala e comportamento diante dos outros que caracterizam um “bom” perfil acadêmico (Panozzo, 1997Panozzo, F. (1997). The making of the good academic accountant. Accounting, Organizations and Society, 22(5), 447-480.). Embora essa forma de socialização profissional possa ser restritiva, profundamente conformista e potencialmente estigmatizante para os acadêmicos que possam não se encaixar no “bom” perfil acadêmico, ainda assim, boa parte da socialização por emulação segue sendo alcançada mediante conferências acadêmicas presenciais. Independente de serem eventos internacionais ou regionais, sem dúvida, as conferências presenciais se mostram importantes para os alunos de doutorado e os acadêmicos em início de carreira, porque proporcionam espaços para a vital rede de contatos profissional.

Porém, as conferências presenciais também são importantes para os acadêmicos que encontram no meio ou no final de suas carreiras, pois oferecem oportunidades renovadas para manter a estatura de um acadêmico e desenvolver novas colaborações de pesquisa. As conferências convencionais possibilitam que se dê uma cara ao nome de determinado acadêmico. Encontros presenciais com acadêmicos de dentro ou de fora da própria rede acadêmica podem influenciar a viagem de um indivíduo pela vida acadêmica. As conferências presenciais permitem que os participantes tenham encontros improvisados ​​com outras pessoas - indicando, assim, o papel do acaso nos processos de desenvolvimento do conhecimento (Feyerabend, 1975Feyerabend, P. (1975). Against method: outline of an anarchistic theory of knowledge. London, UK: New Left.).

Conhecer pessoalmente um autor reconhecido pode ser interessante como fonte de aconselhamento e, por fim, como um avaliador legítimo que pode ser solicitado a redigir uma carta de avaliação acerca de um caso de promoção. Novos projetos de pesquisa também podem surgir no corredor, em conversas informais. Quando os acadêmicos mais experientes se envolvem em papéis de ritmo intermediário, como o de editor de periódico, as conferências presenciais assumem um novo significado, servindo como oportunidades para identificar autores promissores, trabalhos interessantes e apresentadores bem preparados que parecem apresentar o perfil de revisores significativos.

As conferências convencionais também representam uma pausa, um tempo para se desligar da vida profissional em alta velocidade dos acadêmicos, um oásis de tempo para poder apenas sentar e ouvir, para se surpreender com ideias de vanguarda, sem precisar responder e-mails simultaneamente, responder demandas da Cátedra ou atender um aluno que bate na porta de um escritório. Como estudantes permanentes das ciências, os acadêmicos tendem a aproveitar o tempo de inatividade inerente a viajar até certo destino e participar de uma conferência. Tal desconexão física das realidades diárias do espaço de um escritório oferece uma necessária interrupção do peso que o cronômetro assume no dia a dia da pessoa e, particularmente, abre espaço mental para ouvir, ler e pensar. Esse tempo livre pode permitir que a pessoa participe de sessões sobre tópicos novos e interessantes ou, ainda, tópicos não relacionados aos atuais projetos de pesquisa dessa pessoa.

Em suma, as conferências presenciais assumem um papel significativo nos processos de aprendizado e desenvolvimento do conhecimento, bem como as viagens acadêmicas - em decorrência da variedade de ramificações resultantes da exposição ao “repertório cultural compartilhado” das comunidades acadêmicas (Haggerty & Doyle, 2015Haggerty, K. D., & Doyle, A. (2015). 57 ways to screw up in grad school. Chicago, IL: University of Chicago Press. , p. 80, tradução nossa). Esse repertório se traduz particularmente em ideias, marcadores culturais, encontros sociais, discussões informais etc. Com base nessa breve descrição, as conferências convencionais realizadas em salas não são eventos triviais; elas constituem uma rica socialização, bem como cenários culturais - e talvez facilitem o surgimento de projetos de pesquisa colaborativos.

3. AS CONSEQUÊNCIAS DA DISSEMINAÇÃO DAS PRÁTICAS DE DISTANCIAMENTO FÍSICO

Nesse ponto surge um paradoxo interessante. Enquanto o filtro (principalmente por meio de revisões e decisões editoriais) afeta claramente a produção e a disseminação da pesquisa (Alvesson & Sandberg, 2014Alvesson, M., & Sandberg, J. (2014). Habitat and habitus: boxed-in versus box-breaking research. Organization Studies, 35(7), 967-987. ; Gabriel, 2010Gabriel, Y. (2010). Organization studies: a space for ideas, identities and agonies. Organization Studies, 31(6), 757-775. ), as comunidades acadêmicas podem ter-se submetido à ilusão de que as ideias são capazes de viajar sem restrições mediante círculos de conferências presenciais. A suposição é de que alguém (presumindo que tenha acesso a financiamento suficiente) sempre poderá participar de conferências internacionais em localidades distantes, a fim de apresentar seu trabalho, estabelecer contato com outras pessoas e, ainda, expor-se a novas ideias, bem como aos estudos mais recentes dos outros. No entanto, sob as atuais medidas de prevenção sanitária, as conferências presenciais - e a amplitude de ramificações positivas que elas geram - têm sido restringidas, como se os ritmos da vida acadêmica tivessem sido suspensos em decorrência do “grande lockdown”.

Veio à mente um trecho da entrevista realizada por Gendron em 2003 com um dos fundadores do movimento de pesquisa contabilidade comportamental. O contexto se refere à criação do Behavioral Accounting Newsletter na primeira metade da década de 1970, que então era visto como uma maneira relevante de estabelecer relações e vínculos dentro da comunidade.

Não havia, por falta de uma analogia melhor, não havia um cantinho dos oradores. Não havia nenhum lugar onde você pudesse ir já sabendo que encontraria alguém falando sobre pesquisa em contabilidade comportamental. Isso era um problema muito maior na década de 1970 em comparação com os anos 2000, porque não tínhamos e-mail; nós tínhamos um correio nacional muito lento; era lento e incerto. As viagens aéreas também eram, em termos relativos, caras. Tudo o que acelera a comunicação nos dias de hoje não existia naquela época. Portanto, realmente era muito difícil ter esse tipo de comunicação informal que permitia que soubéssemos o que as pessoas estavam fazendo. Portanto, um [boletim] não era só como um [boletim], tratava-se de uma espécie de ponto de encontro. Quem são as pessoas afins? Eu devo acompanhar o trabalho de quem? Para quem eu devo escrever cartas ou telefonar? Todos esses tipos de coisas. Isso nos trouxe nosso próprio clube, aquilo que não tínhamos antes. (Entrevistado anônimo, entrevista para pesquisa, maio de 2003, tradução nossa)

Então, a comunicação com os outros era um considerável desafio e, sob o ponto de vista de hoje, pode ser difícil para a maioria de nós imaginar como eram os ritmos da vida acadêmica no início da década de 1970. O “repertório cultural compartilhado” da vida acadêmica era muito diferente naquela época, principalmente em termos da comunicação com pessoas que se encontravam em localidades distantes. Essa imagem do passado nos levou a pensar no seguinte ponto: podemos ter de refletir sobre a possibilidade de ter de reorganizar um mundo acadêmico no qual o distanciamento físico se tornará a norma.

A pandemia nos convida a contemplar até que ponto a internet e os dispositivos de comunicação on-line possibilitam que as comunidades contrabalancem os efeitos que a privação de encontros presenciais pode causar em longo prazo. Não importa quanto tempo o distanciamento físico e a proibição de grandes encontros realmente durem, esse esforço contemplativo será relevante no sentido de entender melhor o papel dos encontros e relacionamentos presenciais em nossas viagens acadêmicas.

Partindo da linguagem neoinstitucional (Lawrence, Suddaby, & Leca, 2009Lawrence, T. B., Suddaby, R., & Leca, B. (Eds.). (2009). Institutional work: actors and agency in institutional studies of organizations. Cambridge, UK: Cambridge University Press.), atualmente estamos vivenciando a “ruptura” de algumas das principais instituições que cercaram, pelo menos ao longo de algumas décadas, o mundo da pesquisa acadêmica. Indiscutivelmente, as consequências desse tipo de ruptura são múltiplas e significativas - principalmente se o distanciamento físico for imposto por um considerável período de tempo. Por exemplo, Berger e Luckmann (1966Berger, P. L., & Luckmann, T. (1966). The social construction of reality. New York, NY: Penguin.) afirmam que a identificação de uma pessoa com um grupo se fortalece por meio de contatos e relacionamentos regulares com outras pessoas importantes para elas. Segundo os autores, o dispositivo mais eficaz de manutenção da realidade e de identificação com o grupo é a conversa presencial. Em outras palavras, a identificação com um grupo pode diminuir à medida que ocorrem menos conversas presenciais importantes entre um acadêmico e os outros membros do grupo. Então, o indivíduo não se lembra recorrentemente de várias das normas e dos valores do grupo - o que pode enfraquecer seu compromisso com tais normas e valores.

Esse compromisso é uma grande parte da construção e manutenção de uma comunidade, ou seja, um ideal, um espaço para a conscientização, a salvaguarda e a revitalização cultural (Martel, Brassard, & Jaccoud, 2011Martel, J., Brassard, R., & Jaccoud, M. (2011). When two worlds collide: aboriginal risk management in Canadian corrections. British Journal of Criminology, 51, 235-255.). Portanto, os atuais requisitos de distanciamento físico podem traduzir-se, dentro da academia, em comunidades mais fracas e mais frágeis, onde os acadêmicos, principalmente os acadêmicos em início de carreira, terão menos oportunidades de socializar-se e informar-se acerca de importantes símbolos, normas, rituais e pontos de referência comuns - mantendo cada vez menos contato com outras pessoas relevantes na comunidade. Isso levanta a questão de saber se as comunicações on-line com um pequeno número de outras pessoas relevantes podem compensar a variedade de acadêmicos à qual se está exposto e com quem se pode entrar em contato direto em conferências convencionais realizadas em salas.

Por sua vez, os acadêmicos reconhecidos podem considerar cada vez mais difícil mobilizar os membros da comunidade para se ocupar com iniciativas da vida cotidiana (p. ex., aceitar o convite para fazer uma revisão). Pode não ser exagerado prever que a proteção e a revitalização da “comunidade” possam ser prejudicadas em decorrência das práticas de distanciamento físico - se elas se estenderem por muito tempo. Assim, a possível institucionalização do distanciamento físico pode fortalecer as forças sociais que, no período pré-pandemia, já estavam motivando os acadêmicos isolados a assumir uma grande lealdade ao seu curriculum vitae (Burawoy, 2005Burawoy, M. (2005). 2004 presidential address: for public sociology. American Sociological Review, 70(1), 4-28. ), incentivando-os a publicar em periódicos que “contem” mais e com regularidade - embora o potencial interesse de seu trabalho para a sociedade não seja sua principal preocupação (Humphrey & Gendron, 2015Humphrey, C., & Gendron, Y. (2015). What is going on? The sustainability of accounting academia. Critical Perspectives on Accounting, 26, 47-66.).

Pode-se prever que vários leitores se oporão à negatividade que cerca essas conjecturas, em relação ao impacto em longo prazo do distanciamento físico nas comunidades das ciências sociais. Atualmente, diversos organizadores de conferências vêm experimentando dispositivos on-line, como o Zoom ou o Skype, em conferências virtuais que abrangem uma grande variedade de disciplinas, desde contabilidade até direito e sociedade e justiça e criminologia. Embora as conferências virtuais possam compensar, até certo ponto, uma série das preocupações enumeradas, seu impacto ao sustentar um sentimento de comunidade mediante uma rede de conversas genuínas e importantes é, por enquanto, uma questão empírica.

O crescente interesse pelas conferências virtuais precede a pandemia de COVID-19. Sua atratividade foi originalmente liderada por um impulso ambiental, uma preocupação com o impacto das emissões de carbono decorrentes de conferências acadêmicas causadas por viagens aéreas e terrestres. Em um nível mais informal, as conferências virtuais parecem atrair um crescente número de apoiadores para os quais as tecnologias on-line e digitais anunciam o fim dos desafios relativos a vistos, mau tempo, atrasos ou “voos corujão”. Enquanto permaneçam fisicamente em casa, os apoiadores podem desfrutar de apresentações transmitidas ao vivo no conforto de sua sala de estar ou via “centros” presenciais estabelecidos em todos os continentes. Também se diz que as conferências em formato virtual garantem um melhor diálogo entre os acadêmicos que contam com acesso a financiamento para cobrir os altos custos das viagens e aqueles que contam com menos recursos ou que têm a responsabilidade de cuidar de sua família.

Dito isso, por enquanto, deve-se permanecer cético diante das explosões de entusiasmo quanto aos “triunfos” e às “conquistas” das conferências virtuais. Por exemplo, as novas preocupações relativas à comunicação visual on-line indicam que os espectadores podem sentir-se exaustos devido à dissonância entre a imagem do interlocutor na tela e a falta de proximidade física (Hickman, 2020Hickman, S. (2020, April 4). Being on Zoom: the constant presence of each other’s absence. Retrieved from https://stuckinmeditation.com/2020/04/04/being-on-zoom-the-constant-presence-of-each-others-absence/
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).

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

À guisa de conclusão, os etnometodologistas acreditam que muito pode ser aprendido nos processos sociais quando o comportamento convencional é modificado e interrompido (Garfinkel, 1967Garfinkel, H. (1967). Studies in ethnomethodology. Englewood Cliffs, NJ: Prentice-Hall.). Desde março de 2020, a maioria dos seres humanos tem vivenciado o confinamento e o distanciamento físico. A academia não está imune à COVID-19 e aos efeitos decorrentes das práticas de distanciamento físico. Os ritmos institucionalizados da vida acadêmica, que ecoavam a expansão da globalização, vêm sendo desestabilizados devido à pandemia de COVID-19. O ideal de uma globalização inalterável e sua agenda otimista para promover o desenvolvimento de comunidades acadêmicas dispersas no espaço internacional, mas estreitamente interligadas, pode estar ameaçado. Nossa análise trouxe à tona uma série de consequências que a privação das conferências presenciais pode gerar, em longo prazo, nas comunidades acadêmicas. Supondo que o distanciamento físico persista por certo tempo, pode-se esperar que o esgotamento das possibilidades e oportunidades dos encontros presenciais se traduza em comunidades enfraquecidas em aspectos relevantes, por exemplo, quanto à identificação com o grupo, a mobilização dos membros, o compromisso com as normas e os valores - ao passo que pode promover um senso de individualização (Willmott, 2011Willmott, H. (2011). Journal list fetishism and the perversion of scholarship: reactivity and the ABS list. Organization, 18(4), 429-442. ). É mister que as comunidades acadêmicas reflitam sobre como o distanciamento físico pode impactá-las e como se pode promover um senso de comunidade, mesmo que a ausência de outras pessoas se faça algo presente. Tal questão se mostrará relevante mesmo que as regras de distanciamento físico não durem muito - dada a persistente preocupação com a pegada de carbono gerada pelas conferências presenciais.

A esse respeito, o conceito de reticular conference pode ajudar a superar algumas das consequências do distanciamento físicas. Esse tipo de conferência pode ser concebido como uma localidade central conectada a vários “centros” geograficamente distantes - onde cada centro envolve vários acadêmicos de determinada região ou área geográfica interagindo presencialmente (respeitando a regra dos dois metros), enquanto estiverem conectados, de tempos em tempos, a plenárias e painéis em andamento no local central. É mister pensar em diferentes maneiras de vivenciar a conectividade presencial no contexto das conferências acadêmicas, dada a turbulência decorrente da atual crise sanitária - bem como na gama de incertezas e preocupações relativas ao aquecimento global. Enquanto inúmeros cientistas biomédicos têm tentado desenvolver um medicamento ou uma vacina para combater a COVID-19, os cientistas sociais precisam tentar proteger o caráter sagrado das relações presenciais em nossas comunidades.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Set 2020
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2021
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