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Uma Análise das Diferenças em Termos dos Interesses Profissionais a Partir do Projeto de Substituição da IAS 39

Resumos

Os interesses profissionais dos distintos grupos de stakeholders são frequentemente encarados como obstáculos à plena harmonização contabilística. O estudo dos diferentes interesses profissionais no âmbito da contabilidade é importante para os organismos envolvidos no processo de harmonização contabilística internacional, na medida em que possibilita a identificação dos principais obstáculos a enfrentar para atingir a plena harmonização. Nesse sentido, este artigo propõe-se a analisar as diferenças em termos dos interesses profissionais a partir da participação de diferentes grupos de stakeholders nos processos de emissão/alteração de normas do International Accounting Standards Board (IASB). Tendo por base a análise de conteúdo, foram examinadas as comment letters enviadas ao IASB no contexto da primeira parte da primeira fase do projeto de substituição da International Accounting Standard (IAS) 39, intitulada "Financial Instruments - Recognition and Measurement", pela International Financial Reporting Standard (IFRS) 9, por sua vez intitulada "Financial Instruments". Os respondentes foram identificados consoante o grupo de stakeholders, sendo os dados coletados posteriormente submetidos ao teste não paramétrico do qui-quadrado. Os resultados deste estudo indicam a existência de diferenças significativas entre as respostas obtidas por parte dos distintos grupos de stakeholders envolvidos no processo de emissão ou revisão de uma norma do IASB, sobretudo evidenciada entre o grupo dos preparadores financeiros e dos organismos reguladores e/ou normalizadores e as associações profissionais ligadas à contabilidade.

grupos de stakeholders; harmonização contabilística; interesses profissionais; normas internacionais de contabilidade


The professional interests of the various stakeholders groups are often seen as obstacles to full accounting harmonization. Studying different professional interests in the accounting domain is significant for organizations involved in the international accounting harmonization process, insofar as it enables them to identify the main obstacles to face in order to achieve full harmonization. Thus, this article is aimed at analyzing the differences in terms of professional interests by addressing the participation of various stakeholders groups in the process of issuing/modifying standards of the International Accounting Standards Board (IASB). Based on content analysis, we examined the comment letters sent to the IASB in the context of the first part of the first phase of the project to replace the International Accounting Standard (IAS) 39, entitled "Financial Instruments - Recognition and Measurement", by the International Financial Reporting Standard (IFRS) 9, on its turn entitled "Financial Instruments". Respondents were identified according to the stakeholders group, and, later, the collected data underwent a nonparametric chi-square test. The results of this study indicate there are significant differences between the answers obtained from the various stakeholders groups involved in the process of issuing or reviewing a standard of the IASB, above all made clear between the group of financial preparers and the regulatory and/or standard-setting agencies and the professional associations related to accounting.

stakeholders groups; accounting harmonization; professional interests; international accounting standards


1 INTRODUÇÃO

Nobes e Parker (2006)Nobes, C., & Parker, P. (2006). Comparative international accounting (9a ed.). London: Prentice Hall. consideram que a contabilidade tem passado por transformações desde a Segunda Guerra Mundial, devido a alterações políticas (como a livre circulação de pessoas e bens), o forte crescimento do comércio internacional e a internacionalização dos mercados financeiros e de empresas. Essa crescente globalização torna necessária a redução de diferenças entre os sistemas contabilísticos internacionais, com o objetivo de aumentar o nível de comparabilidade entre as demonstrações financeiras das empresas de diversos países (Nobes & Parker, 2006Nobes, C., & Parker, P. (2006). Comparative international accounting (9a ed.). London: Prentice Hall.).

Assim, um dos principais objetivos da harmonização contabilística é alcançar a comparabilidade entre o relato financeiro publicado pelos países integrantes dos diversos sistemas contabilísticos. No processo de harmonização contabilística, destaca-se o trabalho desenvolvido pelo International Accounting Standards Board (IASB), organismo emissor de normas contabilísticas de alta qualidade aceitas em quase todo o mundo.

O IASB é um organismo independente emissor de normas e interpretações contabilísticas e de relato financeiro de abrangência internacional, criado em 2001, a partir de uma reestruturação do International Accounting Standard Committee (IASC), criado, por sua vez, em 1973. Integra o International Financial Reporting Standards (IFRS), cujo objetivo passa pela promoção do uso e da rigorosa aplicação das normas e interpretações do IASB e o reconhecimento de uma elevada qualidade e compreensibilidade de tais normas e interpretações por parte dos países adotantes (International Financial Reporting Standards Foundation, 2013International Financial Reporting Standards Foundation. (2013). Constitution. Recuperado de http://www.ifrs.org/The-organisation/ Governance-and-accountability/Constitution/Documents/IFRSFoundation- Constitution-January-2013.pdf
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).

Ressalve-se que, previamente à reformulação do IASB, as normas internacionais eram denominadas International Accounting Standards (IAS), sendo emitidas pelo já extinto IASC. Posteriormente, essas normas foram adotadas pelo IASB.

As normas internacionais emitidas pelo IASB têm sido objeto de grande aceitação no cenário internacional, sendo numerosos os casos de utilização, direta ou por transposição, das referidas normas. Designadamente, a União Europeia (UE) passou a adotar, sob o abrigo do Regulamento n. 1.606/2002/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 19 de julho, as normas do IASB, com caráter obrigatório, para todas as entidades com valores mobiliários admitidos à negociação em mercado regulamentado da UE. O mesmo regulamento prevê que os Estados membros abarquem, obrigatória ou facultativamente, outras entidades no âmbito da adoção dessas normas.

O tratamento contabilístico dos instrumentos financeiros tem sido considerado desde sempre um tema complexo (International Financial Reporting Standards Foundation, 2009International Financial Reporting Standards Foundation. (2009). Constitution. Recuperado de http://www.ifrs.org/Current-Projects/ IASB-Projects/Financial-Instruments-A-Replacement-of-IAS-39-Financial-Instruments-Recognitio/Phase-I-Classification-andmeasurement/ Pages/Phase-I-Classification-and-measurement.aspx
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), incluindo, designadamente, matérias tais como os instrumentos derivados (ou derivativos), instrumentos financeiros híbridos (ou compostos) e a contabilidade de cobertura (hedge accounting). Além da IFRS 9 - Instrumentos Financeiros, que se encontra em processo de aprovação por fases, encontram-se atualmente em vigor três normas do IASB que regulam os assuntos relacionados aos instrumentos financeiros em matérias relativas à apresentação, ao reconhecimento e à mensuração e à divulgação, nomeadamente:

  • IAS 32 - Instrumentos Financeiros: Apresentação. Essa norma estabelece os princípios para a apresentação dos instrumentos financeiros. Aplica-se à classificação de instrumentos financeiros sob o ponto de vista do emitente;

  • IAS 39 - Instrumentos Financeiros: Reconhecimento e Mensuração. Essa norma estabelece os princípios para o reconhecimento e a mensuração dos ativos e passivos financeiros; e

  • IFRS 7 - Instrumentos Financeiros: Divulgações. Essa norma estabelece os requisitos para a divulgação de informações sobre instrumentos financeiros.

A complexidade do tema tem levado, inclusive, a sucessivas alterações do projeto de emissão da norma e, consequentemente, do calendário relativo à sua adoção. Em novembro de 2013, designadamente, algumas alterações foram efetuadas, tendo-se inserido um capítulo relativo à hedge accounting e foi modificada a data de aplicação, anteriormente prevista para 1º de janeiro de 2015 (nas primeiras fases do projeto se previa 1º de janeiro de 2013 como data de entrada em vigor). Após as subsequentes alterações, a mais recente versão da IFRS 9, emitida em 2014, substituiu todas as versões anteriores, sendo obrigatoriamente aplicável aos períodos que se iniciam em ou após 1º de janeiro de 2018, com a adoção antecipada permitida (sujeita às exigências de endosso locais).

Em Portugal, as normas do IASB encontram-se vertidas na legislação nacional por meio das Normas Contabilísticas e de Relato Financeiro (NCRF) emitidas pela Comissão de Normalização Contabilística (CNC). A NCRF 27 - Instrumentos Financeiros é a norma portuguesa que transpõe para o normativo nacional, em simultâneo, a IAS 32, a IAS 39 e a IFRS 7 referidas.

No Brasil, o Comitê de Pronunciamentos Contábeis (CPC) é o organismo responsável pela transposição das normas internacionais emitidas pelo IASB. As normas internacionais de contabilidade relativas aos instrumentos financeiros foram vertidas para a legislação brasileira por meio dos pronunciamentos que contemplam as mesmas designações das normas em que se baseiam, nomeadamente:

  • CPC 38 - Instrumentos Financeiros: Reconhecimento e Mensuração, elaborado a partir da IAS 39;

  • CPC 39 - Instrumentos Financeiros: Apresentação, elaborado a partir da IAS 32; e

  • CPC 40 - Instrumentos Financeiros: Evidenciação, elaborado a partir da IFRS 7.

Refira-se, por fim, que o texto atualmente em vigor da IFRS 9 ainda não foi submetido à discussão pública, seja em Portugal ou no Brasil.

As normas do IASB são do tipo principle-based standards, delegando, assim, ao julgamento profissional a decisão em matérias contabilísticas a partir de conceitos especificamente delineados nas referidas normas. A existência de conceitos subjetivos nas normas, bem como a possibilidade de utilização de políticas contabilísticas em detrimento de outras políticas também previstas nas normas, pode pôr em causa a comparabilidade entre as demonstrações financeiras, uma vez que fatores como os interesses profissionais de cada grupo de stakeholders podem influenciar o julgamento profissional. Nesse sentido, torna-se importante perceber se existem, efetivamente, diferenças entre as preferências contabilísticas dos distintos grupos de stakeholders e se tais interesses encontram-se refletidos nas contribuições apresentadas ao IASB por cada um desses grupos no processo de emissão ou alteração de uma norma.

Assim, este artigo se propõe a investigar as diferenças em termos dos interesses profissionais dos utilizadores da informação financeira a partir da participação dos respondentes nos processos de emissão/alteração de normas do IASB, no sentido de dar resposta à questão levantada no parágrafo precedente. Em outras palavras, e dada a relevância da norma em análise, tendo em vista a complexidade das matérias incluídas em seu âmbito, a principal motivação para este estudo deriva da necessidade de compreender se os interesses profissionais dos respondentes encontram-se refletidos nas contribuições enviadas ao IASB no processo de discussão pública de uma norma. Tal questão é avaliada por meio das diferenças de posição apresentadas considerando os distintos grupos de stakeholders que participam dos referidos processos. Refira-se ainda que, como já indicado, os pronunciamentos do CPC, no Brasil, e as NCRF da CNC, em Portugal, têm por base as normas do IASB, razão pela qual as alterações efetuadas ao normativo internacional assumem especial relevância em matéria de relato financeiro no contexto dos dois países, aqui analisados a título de exemplo.

Para efeitos deste estudo, serão analisadas as questões postas em discussão por parte do IASB aos preparadores e utilizadores da informação financeira e organismos normalizadores relativamente à primeira parte da primeira fase do projeto de substituição da IAS 39 pela IFRS 9.

Cabe ressalvar que, no âmbito dos objetivos propostos para este estudo, foram analisados os comentários submetidos pelos participantes no âmbito do processo de discussão promovido pelo IASB sem identificar, contudo, se esses comentários foram, ou não, total ou parcialmente, incorporados pelo referido organismo.

Autores como Carmo, Ribeiro e Carvalho (2011)Carmo, C., Mussoi, A., & Carvalho, L. (2011). A influência dos grupos de interesse no processo de normatização contábil internacional: o caso do discussion paper sobre leasing. In Anais do 11º Congresso USP de Controladoria e Contabilidade. São Paulo, SP. Recuperado de http:// www.congressousp.fipecafi.org/web/artigos112011/208.pdf
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e Jorissen, Lybaert e Van de Poel (2006)Jorissen, A., Lybaert, N., & Van de Poel, K. (2006). Lobbing towards a global standard setter - do national characteristics matter? An analysis of the comment letters written to the IASB. In Gregoriou, G. N., & Gaber, M. (Eds.), International accounting: standards, regulations and financial reporting (pp. 1-40). Netherlands: Elsevier. defendem que os participantes nesse processo têm interesses distintos (muitas vezes contrários), o que leva as respostas obtidas a variar. Os estudos que serviram de base à preparação deste artigo analisaram as respostas enviadas às entidades normalizadoras sob diversas perspectivas: Tandy e Wilburn (1996)Tandy, P., & Wilburn, N. (1996). The academic community's participation in standard setting: submission of comment letters on SFAS nos. 1-117. Accounting Horizons, 10(3), 92-111. analisam a participação dos acadêmicos; Georgiou (2010)Georgiou, G. (2010). The IASB standard-setting process: participation and perceptions of financial statement users. The British Accounting Review, 42, 103-118. analisa a participação das sociedades gestoras de investimentos; autores como Jorissen et al. (2006), Orens, Jorissen, Lybaert e Van Der Tas (2011)Orens, R., Jorissen, A., Lybaert, N., & Van Der Tas, L. (2011). Corporate lobbying in private accounting standard setting: does the IASB have to reckon with national differences? Accounting in Europe, 8(2), 211-234. e Holder, Karim, Lin e Woods (2013)Holder, A., Karim, K., Lin, K., & Woods, M. (2013). A content analysis of the comment letters to the FASB and IASB: accounting for contingencies. Advances in Accounting, 29, 134-153. relacionam as respostas obtidas com fatores como a cultura, sistema fiscal, características dos países ou o fato do uso das IFRS ser obrigatório ou permitido no país de origem dos respondentes; Huian (2013)Huian, M. (2013). Stakeholder's participation in the development of the new accounting rules regarding the impairment of financial assets. Business Management Dynamics, 2(9), 23-35. analisa quais são os grupos de interessados mais participativos e Carmo, Mussoi e Carvalho (2011)Carmo, C., Mussoi, A., & Carvalho, L. (2011). A influência dos grupos de interesse no processo de normatização contábil internacional: o caso do discussion paper sobre leasing. In Anais do 11º Congresso USP de Controladoria e Contabilidade. São Paulo, SP. Recuperado de http:// www.congressousp.fipecafi.org/web/artigos112011/208.pdf
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analisam o impacto dos comentários enviados no processo de emissão das normas sob o ponto de vista de eventuais grupos de interesse associados ao processo (lobbying).

Este estudo distingue-se dos demais, por um lado, pela escolha do objeto de estudo, na medida em que analisa a existência de distintos interesses por parte dos participantes no processo de revisão normativa, tendo por base a discussão sobre o projeto de substituição da IAS 39. Essa norma assume especial relevância no contexto dos trabalhos desenvolvidos pelo IASB, despertando grande interesse por parte dos stakeholders da informação financeira, devido à complexidade das matérias incluídas em seu âmbito, particularmente no contexto da recente crise econômico-financeira de alcance internacional. Por outro lado, os estudos já realizados acerca das comment letters recebidas pelo IASB têm analisado tais respostas sob distintas perspectivas. No entanto, em termos mais específicos, apenas os estudos realizados por Carmo, Ribeiro et al. (2011)Carmo, C., Ribeiro, A., & Carvalho, L. (2011). Convergência de fato ou de direito? A influência do sistema jurídico na aceitação das normas internacionais para pequenas e médias empresas. Revista Contabilidade Financeira, 22(57), 242-262. e Adhikari, Betancourt e Alshameri (2014)Adhikari, A., Betancourt, L., & Alshameri, F. (2014). The SEC's proposed IFRS roadmap: an analysis of comment letters using content analysis and textual software. Journal of International Accounting, Auditing and Taxation, 23, 98-108. guardam maior similaridade com este, na medida em que analisam as diferenças sobre as respostas propostas por parte de distintos stakeholders. Trata-se, no entanto, de uma investigação diferente, pois, no primeiro caso, o objeto de estudo correspondia a apenas quatro questões relacionadas ao discussion paper sobre a IFRS for Small and Medium-Sized Entities (IFRS for SME) e, no segundo caso, o objeto de estudo era o documento emitido pelo Securities and Exchange Comission (SEC) com o objetivo de guiar a elaboração do reporte financeiro de acordo com as IFRS.

As conclusões apresentadas por esses estudos não são coincidentes, uma vez que em Carmo, Ribeiro et al. (2011)Carmo, C., Ribeiro, A., & Carvalho, L. (2011). Convergência de fato ou de direito? A influência do sistema jurídico na aceitação das normas internacionais para pequenas e médias empresas. Revista Contabilidade Financeira, 22(57), 242-262. não há evidência de respostas diferentes consoante o grupo de interesse, ao passo que no estudo de Adhikari et al. (2014)Adhikari, A., Betancourt, L., & Alshameri, F. (2014). The SEC's proposed IFRS roadmap: an analysis of comment letters using content analysis and textual software. Journal of International Accounting, Auditing and Taxation, 23, 98-108. existem evidências de diferentes posições, consoante o grupo de interesse dos respondentes. Assim, apesar dos distintos interesses profissionais, não é óbvio que eles influenciem as respostas enviadas aos organismos normalizadores no âmbito da emissão/alteração de normas de contabilidade.

O estudo das diferenças em torno dos interesses profissionais dos distintos grupos de stakeholders é importante para os países e organismos envolvidos no processo de harmonização contabilística internacional, na medida em que possibilita perceber quais são os principais obstáculos a enfrentar para atingir a plena harmonização. Mesmo em uma fase avançada do processo de harmonização, espera-se que este e outros estudos nesse campo de investigação continuem a prestar o suporte necessário à tomada de decisões por parte dos organismos emissores de normas internacionais, bem como pelos responsáveis nacionais pela subscrição dessas normas.

2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

As normas do IASB caraterizam-se pela sua abordagem baseada em princípios (principle-based approach). Esta se carateriza por ditar princípios e não por regular todas as situações possíveis, sendo que, em caso de dúvida, recorre-se ao princípio em questão. Os princípios estão definidos na estrutura conceitual, acompanhados por algumas regras que mostram como esses princípios devem ser aplicados em condições específicas. Essa abordagem promove a consistência e a transparência, dando às empresas respostas em situações complexas e novas e tem implícita a necessidade dos profissionais exercerem julgamentos profissionais (Guerreiro, 2008Guerreiro, M. (2008). Harmonização contabilística internacional: tendências internacionais. Revista Auditores e Revisores, 43, 46-53.).

O processo de normalização do IASB possibilita a todos os interessados a participação nas discussões públicas e a emissão de opinião por meio de comment letters.

Segundo Jorissen et al. (2006)Jorissen, A., Lybaert, N., & Van de Poel, K. (2006). Lobbing towards a global standard setter - do national characteristics matter? An analysis of the comment letters written to the IASB. In Gregoriou, G. N., & Gaber, M. (Eds.), International accounting: standards, regulations and financial reporting (pp. 1-40). Netherlands: Elsevier., os processos de normalização possibilitam, na maioria dos casos, que os interessados participem e influenciem esses processos. Uma vez que o processo de normalização do IASB também permite, ao longo de várias fases, a participação dos interessados na elaboração/alteração das normas por meio de comentários em relação às alterações propostas, existem estudos que analisam a influência de fatores como a cultura ou o sistema jurídico em relação à origem dos comentários recebidos.

Existem inúmeros trabalhos que analisam a participação dos grupos interessados nos processos de normalização do Financial Accounting Standards Board (FASB), do IASB e do Accounting Standards Board (ASB) no Reino Unido (Tandy & Wilburn, 1996Tandy, P., & Wilburn, N. (1996). The academic community's participation in standard setting: submission of comment letters on SFAS nos. 1-117. Accounting Horizons, 10(3), 92-111.; Georgiou, 2010Georgiou, G. (2010). The IASB standard-setting process: participation and perceptions of financial statement users. The British Accounting Review, 42, 103-118.; Zülch & Hoffmann, 2010Zülch, H., & Hoffmann, S. (2010). Lobbying on accounting standard setting in a parliamentary environment: a qualitative approach (HHL Working Paper n. 94) . Leipzig: HHL Leipzig Graduate School of Management.; Jorissen et al., 2006Jorissen, A., Lybaert, N., & Van de Poel, K. (2006). Lobbing towards a global standard setter - do national characteristics matter? An analysis of the comment letters written to the IASB. In Gregoriou, G. N., & Gaber, M. (Eds.), International accounting: standards, regulations and financial reporting (pp. 1-40). Netherlands: Elsevier.; Giner & Arce, 2012Giner, B., & Arce, M. (2012). Lobbying on accounting standards: evidence from IFRS 2 on share-based payments. European Accounting Review, 21(4), 655-691.; Holder et al., 2013Holder, A., Karim, K., Lin, K., & Woods, M. (2013). A content analysis of the comment letters to the FASB and IASB: accounting for contingencies. Advances in Accounting, 29, 134-153.; Huian, 2013Huian, M. (2013). Stakeholder's participation in the development of the new accounting rules regarding the impairment of financial assets. Business Management Dynamics, 2(9), 23-35.).

Tandy e Wilburn (1996)Tandy, P., & Wilburn, N. (1996). The academic community's participation in standard setting: submission of comment letters on SFAS nos. 1-117. Accounting Horizons, 10(3), 92-111. foram pioneiros nesse tipo de investigação ao analisar a participação dos acadêmicos nos processos de emissão de normas emitidas pelo FASB. Concluem, no estudo realizado, que os acadêmicos participam nos processos quando tenham conduzido investigações relacionadas aos temas em debate e possam contribuir com seus estudos e que um dos principais motivos para a pouca participação dessa classe de profissionais é a baixa expectativa de que suas opiniões possam influenciar as decisões finais.

O estudo de Anacoreta e Silva (2005)Anacoreta, L., & Silva, L. (2005). International accounting standards for SME's: an exploratory study (working paper). Porto: Universidade Católica Portuguesa. analisa estatisticamente as comment letters recebidas pelo IASB no âmbito de introdução da norma IFRS for SME, com o objetivo de identificar padrões de resposta. No referido estudo, os investigadores tentaram perceber se as pequenas e médias empresas (PMEs) almejam uma contabilidade harmonizada e se as opiniões nesse contexto são semelhantes. Concluíram que existe um grupo de respostas caraterizadas por não ter opinião em relação às perguntas do IASB. Identificaram, ainda, dois grupos, dentro das respostas com opinião, um grupo que tem preferência por normas independentes para as SMEs e outro grupo que tem preferência pela interdependência entre os dois conjuntos de normas.

Jorissen et al. (2006)Jorissen, A., Lybaert, N., & Van de Poel, K. (2006). Lobbing towards a global standard setter - do national characteristics matter? An analysis of the comment letters written to the IASB. In Gregoriou, G. N., & Gaber, M. (Eds.), International accounting: standards, regulations and financial reporting (pp. 1-40). Netherlands: Elsevier. analisaram as opiniões emitidas pelos profissionais de contabilidade e normalizadores enviadas ao IASB em formato de comment letters entre 2002 e 2005, na tentativa de estabelecer ligações entre o nível de envolvimento dos países nos processos de normalização e as características de cada país. Entre as várias hipóteses formuladas nesse estudo, foram identificadas algumas relacionadas aos valores culturais de Hofstede (1980)Hofstede, G. (1980). Culture's consequences: international differences in work-related values. Londres: Sage. e com as características dos países (p. ex., custos de não cumprimento das normas, sistema fiscal). Jorissen et al. (2006)Jorissen, A., Lybaert, N., & Van de Poel, K. (2006). Lobbing towards a global standard setter - do national characteristics matter? An analysis of the comment letters written to the IASB. In Gregoriou, G. N., & Gaber, M. (Eds.), International accounting: standards, regulations and financial reporting (pp. 1-40). Netherlands: Elsevier. concluem que os países onde os custos do não cumprimento das normas são mais elevados, os profissionais de contabilidade tentam influenciar os processos de normalização. Os países com elevados níveis de aplicação das normas, com sistemas judiciais eficazes e onde as obrigações fiscais são cumpridas têm uma participação mais ativa nos processos de normalização. Relativamente às variáveis culturais de Hofstede (1980)Hofstede, G. (1980). Culture's consequences: international differences in work-related values. Londres: Sage., foram obtidos resultados mistos, sendo que apenas em relação ao valor cultural da distância do poder se conseguiu encontrar uma relação, concluindo-se que elevados níveis de distância do poder influenciam negativamente a participação nos processos de normalização do IASB.

O trabalho de Yen, Hirst e Hopkins (2007)Yen, A., Hirst, D., & Hopkins, P. (2007). A content analysis of the comprehensive income exposure draft comment letters. Research in Accounting Regulation, 19, 53-79. apresenta a análise dos comentários submetidos ao FASB em resposta à Exposure Draft (ED) emitida no âmbito da discussão relacionada ao resultado integral. No referido estudo, foram categorizados e analisados os argumentos apresentados pelos respondentes, de modo a perceber como as entidades tentam persuadir o FASB. Os resultados demonstram que a maioria dos argumentos apresentados são relacionados a preocupações associadas à entidade que representam. Foram encontradas relações entre as alterações propostas e as alterações feitas à ED que resultaram na norma final, o que sugere que o FASB considera as opiniões emitidas.

Georgiou (2010)Georgiou, G. (2010). The IASB standard-setting process: participation and perceptions of financial statement users. The British Accounting Review, 42, 103-118. analisa as respostas a um questionário relacionado com a participação nos processos de emissão de normas do IASB por parte de empresas gestoras de investimentos no Reino Unido. O estudo revela que a participação desse tipo de empresa não é tão baixo como se julga, isso porque algumas empresas participam por meio de orgãos representativos, como as associações de empresas de gestão de investimentos e que o fator que mais inibe essas empresas de participar é o custo envolvido na participação. Os resultados demonstram, ainda, que essas empresas consideram que os profissionais de contabilidade, os normalizadores europeus e do Reino Unido são os grupos dominantes e que têm maior poder de influenciar o processo de emissão de normas do IASB.

Orens et al. (2011)Orens, R., Jorissen, A., Lybaert, N., & Van Der Tas, L. (2011). Corporate lobbying in private accounting standard setting: does the IASB have to reckon with national differences? Accounting in Europe, 8(2), 211-234. analisam, por meio de questionários a profissionais na Bélgica e no Reino Unido, se a decisão de participar ou não no processo de normalização do IASB está relacionada ao sistema legal dos países. Os autores concluem que as empresas não cotadas na Bélgica, ao contrário do que ocorre no Reino Unido, dificilmente participam nos processos de normalização, influenciando tendencialmente o IASB por meio das empresas de auditoria. As empresas não cotadas na Bélgica consideram o processo de participação menos eficaz do que as empresas não cotadas no Reino Unido, sendo que um dos principais motivos para não participar no processo é o fato de considerar que suas opiniões não influenciam o IASB. Concluiu-se também que os preparadores da informação financeira na Bélgica envolvem-se mais no processo de normalização do IASB do que os não preparadores de informação financeira. Os resultados parecem, assim, confirmar a teoria de que o sistema regulatório do país de origem influencia a participação nos processos de normalização.

Carmo et al. (2011)Carmo, C., Mussoi, A., & Carvalho, L. (2011). A influência dos grupos de interesse no processo de normatização contábil internacional: o caso do discussion paper sobre leasing. In Anais do 11º Congresso USP de Controladoria e Contabilidade. São Paulo, SP. Recuperado de http:// www.congressousp.fipecafi.org/web/artigos112011/208.pdf
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analisaram a influência dos grupos interessados (lobbing) no processo de normalização do IASB. Concluíram que apenas as opiniões dos profissionais de contabilidade, normalizadores e acadêmicos influencia a decisão final do IASB.

Huian (2013)Huian, M. (2013). Stakeholder's participation in the development of the new accounting rules regarding the impairment of financial assets. Business Management Dynamics, 2(9), 23-35. analisa o nível de envolvimento dos principais grupos de stakeholders no desenvolvimento de novas regras de contabilidade relacionadas à imparidade (impairment) de instrumentos financeiros. Os resultados sugerem que os europeus e os preparadores da informação financeira são os maiores participantes, os profissionais de contabilidade e os utilizadores são os únicos que concordam com as novas regras, sendo que quase metade dos outros grupos discorda das regras. Em termos geográficos, a maior oposição é proveniente da Europa e da Austrália, enquanto as organizações internacionais têm opiniões mais balanceadas.

Holder et al. (2013)Holder, A., Karim, K., Lin, K., & Woods, M. (2013). A content analysis of the comment letters to the FASB and IASB: accounting for contingencies. Advances in Accounting, 29, 134-153. analisaram as comment letters recebidas pelo FASB e pelo IASB no âmbito das propostas de alterações à IAS 37 e à Financial Accounting Standard (FAS) 5. Foi avaliada a forma como as respostas são afetadas pelo fato do uso das IFRS ser obrigatório ou permitido no país de origem das respostas. Foi encontrado um maior suporte para as alterações propostas pelo IASB do que pelas alterações propostas pelo FASB. O IASB recebeu mais respostas de países que permitem ou requerem o uso das IFRS do que de países sujeitos às normas nacionais. Os respondentes dos países onde é permitido ou requerido o uso das IFRS respondem tendencialmente de forma mais desfavorável às alterações propostas na ED, citando a relevância para suportar suas posições.

Larson e Herz (2013)Larson, R., & Herz, P. (2013). A multi-issue/multi-period analysis of the geographic diversity of IASB comment letter participation. Routledge, 10, 99-151. investigaram o nível de participação dos diversos países e os fatores que influenciam a diversidade geográfica das comment letters submetidas ao IASB entre 2001 e 2008. Os autores concluíram que os países mais participativos são os da UE e aqueles que possuem mercados de capitais mais desenvolvidos, sendo que 55% das respostas foram enviadas por 7 países: Austrália, Canadá, França, Alemanha, Suíça, Reino Unido e EUA. Verificaram, também, que os países que historicamente apresentam maiores divergências contabilísticas com as normas do IASB são mais participativos. Na maioria dos países, os grupos de stakeholders dos profissionais de contabilidade, normalizadores nacionais e empresas de contabilidade enviam pelo menos metade das cartas recebidas. No estudo realizado, os autores identificaram, ainda, que quando uma norma afeta, particularmente, um ou mais países, a participação destes tendencialmente aumenta.

Adhikari et al. (2014)Adhikari, A., Betancourt, L., & Alshameri, F. (2014). The SEC's proposed IFRS roadmap: an analysis of comment letters using content analysis and textual software. Journal of International Accounting, Auditing and Taxation, 23, 98-108. examinaram as comment letters enviadas ao SEC no âmbito da emissão de uma proposta de um guia para a utilização das IFRS, com o objetivo de identificar o nível de suporte dos respondentes a essa proposta, se existiam diferentes posições consoante o grupo de respondente e, ainda, se as respostas dos preparadores variavam de acordo com as características da empresa que representavam. Os autores concluíram que, apesar da maioria dos respondentes concordar com um grupo de normas contabilísticas globais de alta qualidade, uma idêntica maioria não estava de acordo com as propostas do documento, identificando também que as respostas variam conforme as características dos respondentes.

A revisão de literatura acerca dos estudos que utilizam como objeto de estudo as comment letters recebidas pelo IASB no âmbito dos processos de revisão normativa têm analisado as respostas sob diferentes perspectivas. A análise de diferenças em torno das respostas obtidas por parte de distintos grupos de stakeholders envolvidos em tais processos, no entanto, tem sido relativamente descurada na literatura sobre o tema. Este estudo tem por objetivo investigar se existem divergências nas respostas obtidas pelo IASB, tendo em vista as diferentes características e interesses dos distintos grupos de stakeholders, à semelhança do estudo realizado por Carmo, Ribeiro et al. (2011)Carmo, C., Mussoi, A., & Carvalho, L. (2011). A influência dos grupos de interesse no processo de normatização contábil internacional: o caso do discussion paper sobre leasing. In Anais do 11º Congresso USP de Controladoria e Contabilidade. São Paulo, SP. Recuperado de http:// www.congressousp.fipecafi.org/web/artigos112011/208.pdf
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. No entanto, esses autores utilizaram um diferente objeto de estudo, nomeadamente, a norma sobre as IFRS for SMEs, identificando resultados potencialmente inconclusivos.

A Tabela 1 apresenta as distinções de grupos mais utilizadas nos trabalhos relacionados à análise de comment letters.

Tabela 1
Grupos de respondentes mais usuais em trabalhos que analisam comment letters

O próximo ponto apresenta as linhas metodológicas seguidas no desenvolvimento do estudo empírico proposto para este artigo.

3 METODOLOGIA

Este estudo analisa a existência de diferenças significativas sobre as respostas apresentadas no contexto das comment letters de resposta à ED - Instrumentos Financeiros Classificação e Mensuração, relativa ao projeto de substituição da IAS 39 pela IFRS 9 (primeira parte da primeira fase do projeto), tendo por base a existência de interesses profissionais diversos e a partir de uma classificação baseada nos distintos grupos de stakeholders. A escolha desse projeto prende-se ao fato do tratamento contabilístico dos instrumentos financeiros ser considerado um tema complexo, que envolve problemáticas nas quais é possível identificar a influência de interesses profissionais nas respostas obtidas. Outro fator que esteve na base da referida escolha prende-se ao elevado índice de participação, tendo em vista o interesse que o tema desperta em diversas partes interessadas (entre outros, os preparadores, os utilizadores da informação financeira e os organismos normalizadores).

Jorissen et al. (2006)Jorissen, A., Lybaert, N., & Van de Poel, K. (2006). Lobbing towards a global standard setter - do national characteristics matter? An analysis of the comment letters written to the IASB. In Gregoriou, G. N., & Gaber, M. (Eds.), International accounting: standards, regulations and financial reporting (pp. 1-40). Netherlands: Elsevier. testaram em uma das hipóteses se o nível de envolvimento dos profissionais no processo de emissão de normas do IASB dependia de sua qualificação profissional. Os autores concluíram que os preparadores da informação financeira tendem a participar mais do que os utilizadores, que a grande maioria das respostas provém de associações profissionais e que as entidades mais diretamente afetadas pelas normas participam mais ativamente. Defendem, ainda, que os participantes no processo de discussão das normas respondem em defesa dos seus interesses e que, muitas vezes, esses interesses são diferentes e entram em conflito com os interesses de outros profissionais. Designadamente, os interesses dos utilizadores da informação podem ser distintos dos interesses dos preparadores. Apesar de defender a existência de diferenças nas respostas entre os diversos grupos de stakeholders, Jorissen et al. (2006)Jorissen, A., Lybaert, N., & Van de Poel, K. (2006). Lobbing towards a global standard setter - do national characteristics matter? An analysis of the comment letters written to the IASB. In Gregoriou, G. N., & Gaber, M. (Eds.), International accounting: standards, regulations and financial reporting (pp. 1-40). Netherlands: Elsevier. não analisaram a existência de diferenças entre as respostas obtidas, relacionando apenas as respostas com fatores como as características nacionais dos países respondentes.

Carmo, Ribeiro et al. (2011)Carmo, C., Mussoi, A., & Carvalho, L. (2011). A influência dos grupos de interesse no processo de normatização contábil internacional: o caso do discussion paper sobre leasing. In Anais do 11º Congresso USP de Controladoria e Contabilidade. São Paulo, SP. Recuperado de http:// www.congressousp.fipecafi.org/web/artigos112011/208.pdf
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consideram, no mesmo sentido, que os respondentes possuem interesses distintos e que, por isso, as respostas podem variar. No entanto, apesar de ter sido realizado um estudo quanto à existência de diferenças entre as respostas obtidas, foram analisadas apenas quatro questões do discussion paper sobre a IFRS for SMEs. Tratando-se de uma norma destinada a pequenas entidades e tendo em vista que a maioria dos respondentes nos processos de emissão/alteração de normas atuam em empresas de grande porte, a existência de divergências entre as respostas motivadas por interesses distintos poderá não ser evidente.

Para Cortese, Irvine e Kaidonis (2010)Cortese, S., Irvine, H., & Kaidonis, M. (2010). Powerful players: how constituents captured the setting of IFRS 6, an accounting standard for the extractive industries. Accounting Forum, 34, 76-88., as grandes empresas de contabilidade/auditoria multinacionais colaboram com o IASB não só por meio de comentários técnicos, mas, também, por meio de suporte monetário. Saemann (1999)Saemann, G. (1999). An examination of comment letters filed in the U.S. financial accounting standard-setting process by institutional interest groups. Abacus, 35(1), 1-28. considera que os profissionais de contabilidade podem ter posições distintas nos processos de emissão de normas, tendo o envolvimento dos profissionais por objetivo a garantia da satisfação do interesse do público. Assim, os profissionais de contabilidade procuram garantir, simultaneamente, os interesses dos utilizadores da informação financeira e de seus clientes/empregados/associados, defendendo a existência de maiores níveis de divulgação, de uniformidade e menores níveis de conservadorismo.

Segundo Durocher, Fortin e Côté (2007)Durocher, S., Fortin, A., & Côté, L. (2007). User's participation in the accounting standard-setting process: a theory-building study. Accounting, Organizations and Society, 32, 29-59. e Georgiou (2010)Georgiou, G. (2010). The IASB standard-setting process: participation and perceptions of financial statement users. The British Accounting Review, 42, 103-118., o principal objetivo da participação dos utilizadores no processo de emissão de normas do IASB é alcançar demonstrações financeiras com informação relevante e transparente para a tomada de decisão. Saemann (1999)Saemann, G. (1999). An examination of comment letters filed in the U.S. financial accounting standard-setting process by institutional interest groups. Abacus, 35(1), 1-28. considera que os utilizadores da informação financeira têm maior interesse em demonstrações financeiras uniformes, uma vez que isso aumenta a comparabilidade entre empresas, tornando a informação financeira mais percetível. Têm preferência, ainda, por elevados níveis de divulgação.

Para Zeff (2006)Zeff, S. (2006). Comparative international accounting: political lobbying on accounting standards - national and international experience. London: Prentice Hall., o principal objetivo da participação dos preparadores nos processos de emissão de normas está relacionado à manutenção da flexibilidade no gerenciamento dos resultados evidenciados nas demonstrações financeiras. Assim, os preparadores da informação financeira normalmente tomam uma posição desfavorável em relação a práticas uniformes. Saemann (1999)Saemann, G. (1999). An examination of comment letters filed in the U.S. financial accounting standard-setting process by institutional interest groups. Abacus, 35(1), 1-28. considera que os preparadores opõem-se a práticas contabilísticas que exigem maiores custos como, por exemplo, aplicações retrospetivas de novas práticas. O autor também considera que os preparadores apresentam, normalmente, posições desfavoráveis em relação a elevados níveis de divulgação, uma vez que, além de aumentar os custos de elaboração das demonstrações financeiras, tornam as empresas mais transparentes, sendo mais fácil detectar resultados desfavoráveis. Na ótica de Saemann (1999)Saemann, G. (1999). An examination of comment letters filed in the U.S. financial accounting standard-setting process by institutional interest groups. Abacus, 35(1), 1-28., os preparadores da informação financeira opõem-se tendencialmente a práticas contabilísticas que aumentem a volatilidade nas demonstrações financeiras, demonstrando uma atitude mais conservadora.

O principal objetivo dos reguladores/normalizadores, ao participar no processo de emissão de normas do IASB, é garantir a emissão de normas que forneçam informação útil à tomada de decisão (Saemann, 1999). O IASB considera que eles desempenham um papel fundamental na colaboração com o IASB para a preparação de normas contabilísticas de alta qualidade (International Financial Reporting Standards Foundation, 2013International Financial Reporting Standards Foundation. (2013). Constitution. Recuperado de http://www.ifrs.org/The-organisation/ Governance-and-accountability/Constitution/Documents/IFRSFoundation- Constitution-January-2013.pdf
http://www.ifrs.org/The-organisation/ ...
). Segundo Zeff (2006)Zeff, S. (2006). Comparative international accounting: political lobbying on accounting standards - national and international experience. London: Prentice Hall., as entidades governamentais tendem a defender legislação que vai ao encontro dos interesses das empresas nacionais. Saemann (1999)Saemann, G. (1999). An examination of comment letters filed in the U.S. financial accounting standard-setting process by institutional interest groups. Abacus, 35(1), 1-28. considera que esses organismos tendem a refletir os objetivos dos utilizadores da informação financeira, ou seja, preferência por uma maior uniformidade, transparência e menor conservadorismo.

Larson, Herz e Kenny (2011)Larson, R., Herz, P., & Kenny, S. (2011). Academics and the development of IFRS: an invitation to participate. Journal of International Accounting Research, 10(2), 97-103. consideram que a participação dos acadêmicos e suas investigações desempenham um importante papel no desenvolvimento de normas contabilísticas de grande qualidade. Para Tandy e Wilburn (1996)Tandy, P., & Wilburn, N. (1996). The academic community's participation in standard setting: submission of comment letters on SFAS nos. 1-117. Accounting Horizons, 10(3), 92-111., os acadêmicos desempenham papel fundamental no processo de emissão das normas, uma vez que são economicamente independentes e possuem os conhecimentos teóricos necessários à correta avaliação das propostas.

Tendo em vista as investigações anteriores, foi definida a seguinte hipótese para este estudo:

Hipótese geral: Existem diferenças significativas entre as respostas obtidas pelo IASB no contexto da ED "Instrumentos Financeiros: Classificação e Mensuração", tendo em vista os distintos grupos de stakeholders participantes no processo.

A classificação das respostas obtidas é apropriada, tendo em vista as características e os objetivos do estudo, à semelhança do realizado por Jorissen et al. (2006)Jorissen, A., Lybaert, N., & Van de Poel, K. (2006). Lobbing towards a global standard setter - do national characteristics matter? An analysis of the comment letters written to the IASB. In Gregoriou, G. N., & Gaber, M. (Eds.), International accounting: standards, regulations and financial reporting (pp. 1-40). Netherlands: Elsevier., Carmo, Ribeiro et al. (2011)Carmo, C., Mussoi, A., & Carvalho, L. (2011). A influência dos grupos de interesse no processo de normatização contábil internacional: o caso do discussion paper sobre leasing. In Anais do 11º Congresso USP de Controladoria e Contabilidade. São Paulo, SP. Recuperado de http:// www.congressousp.fipecafi.org/web/artigos112011/208.pdf
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, Holder et al. (2013)Holder, A., Karim, K., Lin, K., & Woods, M. (2013). A content analysis of the comment letters to the FASB and IASB: accounting for contingencies. Advances in Accounting, 29, 134-153., Huian (2013)Huian, M. (2013). Stakeholder's participation in the development of the new accounting rules regarding the impairment of financial assets. Business Management Dynamics, 2(9), 23-35., entre outros.

Assim, tendo por base a revisão de literatura apresentada, a classificação dos respondentes será efetuada tendo por base a seguinte distinção: preparadores não financeiros, preparadores financeiros, profissionais de contabilidade, acadêmicos, normalizadores e associações profissionais ligadas à contabilidade e utilizadores (Carmo, Ribeiro et al., 2011Carmo, C., Mussoi, A., & Carvalho, L. (2011). A influência dos grupos de interesse no processo de normatização contábil internacional: o caso do discussion paper sobre leasing. In Anais do 11º Congresso USP de Controladoria e Contabilidade. São Paulo, SP. Recuperado de http:// www.congressousp.fipecafi.org/web/artigos112011/208.pdf
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; Holder et al., 2013Holder, A., Karim, K., Lin, K., & Woods, M. (2013). A content analysis of the comment letters to the FASB and IASB: accounting for contingencies. Advances in Accounting, 29, 134-153.).

Para a realização do estudo proposto, os dados foram recolhidos a partir das respostas à ED analisadas pelos autores deste estudo. Tais respostas, como já referido, foram enviadas ao IASB sob o formato de comment letters entre 14 de julho de 2009 e 14 de setembro de 2009. Nesse período foram submetidas ao IASB, 246 comment letters relativas aos Instrumentos Financeiros, tendo-se identificado 10 situações em que seu conteúdo se encontrava inacessível. Adicionalmente, um dos respondentes enviou 2 comment letters, 2 das cartas não traziam identificação do país de origem e 2 dos respondentes apenas fizeram comentários, não respondendo a nenhuma das questões apresentadas em concreto. Assim, foram analisadas 231 cartas de resposta à primeira fase da minuta de exposição, objeto deste artigo. O acesso às comment letters foi obtido por meio do site da IFRS Foundation. Sempre que necessário, a informação que serviu de base à caracterização dos respondentes, tendo em vista a revisão de literatura apresentada, foi identificada por meio dos respetivos sites que constavam nas respostas enviadas.

A metodologia utilizada para examinar as comment letters foi a análise de conteúdo, por meio da qual foram obtidos os dados necessários à elaboração deste estudo. Essa abordagem é definida por Weber (1990)Weber, R. (1990). Basic content analysis (2a ed.). Newbury Park, CA: Sage. como citado por Yen et al. (2007)Weber, R. (1990). Basic content analysis (2a ed.). Newbury Park, CA: Sage. como um método de investigação que utiliza um conjunto de procedimentos com o objetivo de elaborar inferências a partir de determinado texto. Para o autor, a análise de conteúdo é particularmente útil porque possibilita transformar e codificar o texto de modo a que a pesquisa possa ser conduzida. Assim, neste estudo a abordagem utilizada é a análise de conteúdo qualitativa, uma vez que foram analisadas as respostas à ED em questão tendo em vista a opinião emitida em relação às alterações propostas.

As 15 questões apresentadas na ED foram, em uma primeira fase, analisadas e fragmentadas, para evitar a existência de múltiplas questões em um único ponto. Dessa fragmentação resultaram 60 questões finais. Uma vez que as questões que requeriam alternativas e explicações adicionais foram excluídas do âmbito deste artigo, apenas 20 questões foram alvo de análise, atendendo à possibilidade de sua codificação de modo mais objetiva, consoante a concordância ou discordância da proposta. Essas 20 questões são apresentadas na Tabela 2.

Tabela 2
Questões da Exposure Draft (2009) selecionadas para o estudo

Refira-se que, apesar da maioria dos respondentes ter seguido a estrutura das questões colocadas, alguns não o fizeram, indicando apenas sua posição em geral. Alguns respondentes deram respostas breves, ocasionalmente apenas "sim" ou "não", e outros responderam de modo exaustivo, com exemplos, explicações detalhadas de suas posições e como as alterações afetariam suas organizações e, em alguns casos, fornecendo hipóteses alternativas e sugestões de melhoria. Em alguns casos, a análise das respostas apresentou-se de forma mais direta e, em outros casos, mais subjetiva, sendo necessária uma análise mais detalhada para determinar a posição do respondente.

Para efeitos de realização do estudo proposto, as questões foram analisadas por meio da sua transformação em variáveis dicotômicas, pelo que a análise da resposta em "sim" (concordância) ou "não" (discordância) para cada uma das questões, codificadas com "1" e "0", respetivamente, foi considerada suficiente para atingir os objetivos propostos, à semelhança de Carmo, Ribeiro et al. (2011)Carmo, C., Mussoi, A., & Carvalho, L. (2011). A influência dos grupos de interesse no processo de normatização contábil internacional: o caso do discussion paper sobre leasing. In Anais do 11º Congresso USP de Controladoria e Contabilidade. São Paulo, SP. Recuperado de http:// www.congressousp.fipecafi.org/web/artigos112011/208.pdf
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.

Assim, segundo Carmo, Ribeiro et al. (2011)Carmo, C., Mussoi, A., & Carvalho, L. (2011). A influência dos grupos de interesse no processo de normatização contábil internacional: o caso do discussion paper sobre leasing. In Anais do 11º Congresso USP de Controladoria e Contabilidade. São Paulo, SP. Recuperado de http:// www.congressousp.fipecafi.org/web/artigos112011/208.pdf
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, os profissionais de contabilidade englobam as grandes empresas de contabilidade/auditoria.

O referido grupo dos utilizadores inclui as empresas de rating, investidores, associações de investidores e respostas de individuais (Holder et al., 2013Holder, A., Karim, K., Lin, K., & Woods, M. (2013). A content analysis of the comment letters to the FASB and IASB: accounting for contingencies. Advances in Accounting, 29, 134-153.).

Os preparadores não financeiros incluem as empresas não financeiras e suas associações (Holder et al., 2013Holder, A., Karim, K., Lin, K., & Woods, M. (2013). A content analysis of the comment letters to the FASB and IASB: accounting for contingencies. Advances in Accounting, 29, 134-153.).

Os preparadores financeiros incluem as instituições financeiras e associações de instituições financeiras e profissionais da área financeira. Apesar de frequentemente as instituições financeiras serem consideradas utilizadores das demonstrações financeiras, devido às suas atividades de investimento, foram consideradas preparadores neste estudo, uma vez que são os maiores utilizadores e promotores dos instrumentos financeiros (Chatham, Larson & Vietze, 2010Chatham, M., Larson, R., & Vietze, A. (2010). Issues affecting the development of an international accounting standard on financial instruments. Advances in Accounting, 26, 97-107.).

Os organismos reguladores e/ou associações profissionais ligadas à contabilidade incluem os organismos normalizadores nacionais, reguladores de mercados de capitais, outras entidades governamentais e as associações de profissionais da área contabilística (Carmo, Ribeiro et al. 2011Carmo, C., Mussoi, A., & Carvalho, L. (2011). A influência dos grupos de interesse no processo de normatização contábil internacional: o caso do discussion paper sobre leasing. In Anais do 11º Congresso USP de Controladoria e Contabilidade. São Paulo, SP. Recuperado de http:// www.congressousp.fipecafi.org/web/artigos112011/208.pdf
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).

Por último, as respostas provenientes de acadêmicos foram consideradas no grupo chamado "Acadêmicos" (Jorissen et al. 2006Jorissen, A., Lybaert, N., & Van de Poel, K. (2006). Lobbing towards a global standard setter - do national characteristics matter? An analysis of the comment letters written to the IASB. In Gregoriou, G. N., & Gaber, M. (Eds.), International accounting: standards, regulations and financial reporting (pp. 1-40). Netherlands: Elsevier.; Carmo, Ribeiro et al. 2011Carmo, C., Mussoi, A., & Carvalho, L. (2011). A influência dos grupos de interesse no processo de normatização contábil internacional: o caso do discussion paper sobre leasing. In Anais do 11º Congresso USP de Controladoria e Contabilidade. São Paulo, SP. Recuperado de http:// www.congressousp.fipecafi.org/web/artigos112011/208.pdf
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).

A Tabela 3 apresenta o número de respostas obtidas por grupo de stakeholder dos respondentes.

Tabela 3
Respostas por grupo de stakeholders dos respondentes

Verifica-se que o grupo de stakeholders mais participativo na discussão em questão foi o dos preparadores financeiros, sendo, por sua vez, os profissionais de contabilidade, os acadêmicos e os utilizadores os grupos menos participativos. A elevada participação dos preparadores financeiros pode ser vista como consequência do elevado uso e promoção dos instrumentos financeiros pelas instituições financeiras (Huian, 2013Huian, M. (2013). Stakeholder's participation in the development of the new accounting rules regarding the impairment of financial assets. Business Management Dynamics, 2(9), 23-35.). Por outro lado, a reduzida participação dos acadêmicos e dos utilizadores nos processos de normalização contabilística vê-se confirmada, tal como anteriormente identificada nos estudos de Durocher et al. (2007)Durocher, S., Fortin, A., & Côté, L. (2007). User's participation in the accounting standard-setting process: a theory-building study. Accounting, Organizations and Society, 32, 29-59. e Tandy e Wilburn (1996)Tandy, P., & Wilburn, N. (1996). The academic community's participation in standard setting: submission of comment letters on SFAS nos. 1-117. Accounting Horizons, 10(3), 92-111..

Nesse sentido, e uma vez que as respostas obtidas dos grupos dos acadêmicos, profissionais de contabilidade e utilizadores não são suficientemente representativas (inferiores a 30), não serão consideradas para efeitos deste estudo. Assim, a população do estudo vê-se reduzida para um número composto por 189 respondentes.

Para analisar as hipóteses apresentadas, foi utilizado neste estudo o teste não paramétrico do qui-quadrado, habitualmente empregado em estudos dessa natureza (p. ex., Carmo, Ribeiro et al., 2011Carmo, C., Mussoi, A., & Carvalho, L. (2011). A influência dos grupos de interesse no processo de normatização contábil internacional: o caso do discussion paper sobre leasing. In Anais do 11º Congresso USP de Controladoria e Contabilidade. São Paulo, SP. Recuperado de http:// www.congressousp.fipecafi.org/web/artigos112011/208.pdf
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). O teste do qui-quadrado foi utilizado neste estudo com recurso ao software estatístico Predictive Analytics SoftWare (PASW), tendo sido definido um nível de significância (ou p value) de 5%.

O próximo ponto dedica-se à apresentação dos resultados obtidos tendo em vista as linhas metodológicas descritas.

4 RESULTADOS

O objetivo deste estudo é identificar a existência de diferenças significativas entre as respostas obtidas e os distintos interesses profissionais, tendo em vista a classificação efetuada com base nos distintos grupos de stakeholders respondentes. Assim, serão confrontadas as respostas dos grupos com participação representativa: preparadores financeiros/preparadores não financeiros (Tabela 4); organismos reguladores e/ou normalizadores e associações profissionais ligadas à contabilidade vs. preparadores não financeiros (Tabela 5); e, por último, os organismos reguladores e/ou normalizadores e associações profissionais ligadas à contabilidade vs. preparadores financeiros (Tabela 6). Para o efeito, serão analisadas as questões postas em discussão por parte do IASB entre os preparadores e utilizadores da informação financeira e organismos normalizadores relativamente à primeira parte da primeira fase do projeto de substituição da IAS 39 - Instrumentos Financeiros: Classificação e Mensuração pela IFRS 9.

Tabela 4
Resultados obtidos entre preparadores financeiros e não financeiros

Tabela 5
Resultados obtidos entre preparadores não financeiros e organismos reguladores

Tabela 6
Resultados obtidos entre preparadores financeiros e organismos reguladores

A Tabela 4 apresenta os resultados obtidos por meio da comparação entre dois grupos: os preparadores financeiros e os preparadores não financeiros.

Verifica-se, por meio da análise da Tabela 4, no que toca aos preparadores financeiros e não financeiros, que a hipótese é suportada nas respostas às questões 5.1, 6.1 e 9.1, sendo que nas duas últimas questões evidencia-se uma maior quantidade de preparadores financeiros com preferência pela mensuração ao valor justo. É observável, ainda, com base nas respostas às questões 15.1 e 15.2, que tanto os preparadores financeiros como os não financeiros discordam em 100% da mensuração de todos os instrumentos financeiros ao valor justo.

A Tabela 5 identifica, por sua vez, a comparação entre as respostas obtidas por parte dos preparadores não financeiros e por organismos reguladores e/ou normalizadores e associações profissionais ligadas à contabilidade.

Os resultados obtidos nessa análise demonstram que a hipótese vê-se confirmada apenas nas respostas às questões 3.1, 7.1, 8.1, 9.1 e 13.1.

Relativamente à questão 3.1, verifica-se que os normalizadores/as associações profissionais ligadas à contabilidade encontram-se divididos no que toca ao aumento de instrumentos financeiros mensurados ao custo amortizado, enquanto os preparadores não financeiros preferem, na maioria dos casos, aumentar a amplitude de aplicação desse método.

No que toca à questão 7.1, verifica-se que, enquanto os normalizadores/as associações profissionais ligadas à contabilidade apresentam-se mais divididos em relação à proibição de reclassificação, os preparadores não financeiros apresentam-se em 91% dos casos contra a proibição de reclassificação de instrumentos financeiros.

Também quanto às questões 8.1 e 9.1, os normalizadores/as associações profissionais ligadas à contabilidade encontram-se mais divididos. Assim, enquanto os preparadores financeiros consideram, em 92% dos casos, que a informação financeira não se torna mais útil se todos os instrumentos financeiros forem mensurados ao valor justo, em 100% das respostas identificam-se situações em que o benefício de mensurar todos os instrumentos financeiros ao valor justo não supera o custo.

Relativamente à questão 13.1, verifica-se que, enquanto 73% dos normalizadores/das associações profissionais ligadas à contabilidade concorda com a aplicação retrospectiva da IFRS 9, a mesma percentagem de preparadores não financeiros discorda dessa medida.

A Tabela 6 apresenta, por fim, os resultados obtidos acerca dos preparadores financeiros versus normalizadores/associações profissionais ligadas à contabilidade.

A Tabela 6 apresenta um razoável suporte para a existência de diferenças significativas entre as respostas obtidas tendo em vista a classificação profissional do respondente (preparador financeiro versus normalizadores/associações profissionais ligadas à contabilidade) relativamente às questões 3.1, 4.2, 6.1, 7.1, 10.2, 12.1, 13.1, 15.1 e 15.2.

No caso da questão 3.1, os normalizadores/as associações profissionais encontram-se mais divididos, ao passo que 79% dos preparadores financeiros consideram adequado aumentar a amplitude de aplicação do custo amortizado.

Quanto à questão 4.2, é observável que, enquanto 21% dos normalizadores concorda com a proposta das tranches, apenas 8% dos preparadores financeiros concorda com essa proposta, uma vez que essa medida implica o aumento de instrumentos financeiros mensurados ao valor justo.

Verifica-se que, na questão 6.1, a categoria dos normalizadores encontra-se dividida, enquanto os preparadores financeiros concordam em 73% com a possibilidade da opção do valor justo ser permitida em outros casos.

No que toca à questão 7.1, enquanto os normalizadores se encontram divididos, os preparadores financeiros discordam em 93% da proibição de reclassificação de instrumentos financeiros.

A questão 10.2 evidencia que 65% dos normalizadores/das associações discordam da mensuração de dividendos provenientes de instrumentos financeiros diretamente em other comprehensive income, enquanto os preparadores financeiros discordam em 86%.

No que concerne às divulgações adicionais para as empresas que aplicam a IFRS 9 antes da sua data efetiva (questão 12.1), os normalizadores concordam em 86% dos casos, enquanto os preparadores financeiros concordam apenas em 60%, o que indica que se encontram mais divididos no que respeita a assuntos de divulgação.

Em relação à questão 13.1, verifica-se que, enquanto 73% dos normalizadores são a favor da aplicação retrospectiva da norma, 74% dos preparadores financeiros são contra essa aplicação, alegando custos muito elevados.

No que respeita às questões 15.1 e 15.2, verifica-se que 100% dos preparadores financeiros não concordam com a mensuração de todos os instrumentos financeiros ao valor justo. Essa percentagem reduz-se para 90% no que toca aos normalizadores/às associações profissionais ligadas à contabilidade.

No geral, verifica-se que os preparadores são, muitas vezes, influenciados pelos custos que a aplicação das medidas implica, o que não ocorre com os normalizadores/as associações profissionais ligadas à contabilidade, que se encontram mais centrados na qualidade da informação prestada. Verifica-se, ainda, que os preparadores opõem-se mais frequentemente a práticas uniformes, práticas de divulgação e práticas menos conservadoras, ao contrário dos normalizadores/das associações profissionais ligadas à contabilidade, que têm opiniões mais divididas no que toca à uniformidade, divulgação e conservadorismo, o que vai ao encontro do estabelecido por Saemann (1999)Saemann, G. (1999). An examination of comment letters filed in the U.S. financial accounting standard-setting process by institutional interest groups. Abacus, 35(1), 1-28..

Na sequência, a Tabela 7 apresenta um resumo dos resultados obtidos e já apresentados em tabelas anteriores no contexto deste estudo, tendo em vista as questões identificadas e os distintos grupos de stakeholders em análise. Com base em tais resultados, é possível observar, em termos sintéticos, um maior número de diferenças significativas (nível de significância inferior a 5%) na comparação entre os preparadores financeiros e os organismos normalizadores ou associações profissionais ligadas à contabilidade.

Tabela 7
Resumo dos resultados obtidos neste estudo

O próximo ponto apresenta, por fim, as principais conclusões, limitações e perspectivas identificadas para futuro desenvolvimento deste estudo.

5 CONCLUSÕES

Na sequência dos resultados apresentados, foi possível constatar, em termos gerais, que existem posições diferentes entre os distintos grupos de stakeholders, observáveis, sobretudo, entre o grupo dos preparadores financeiros e dos organismos reguladores e/ou normalizadores e das associações profissionais ligadas à contabilidade.

Assim, da comparação entre os distintos grupos de stakeholders, destacam-se as seguintes conclusões principais:

  1. Preparadores financeiros vs. preparadores não financeiros: de acordo com os resultados obtidos a partir da análise da Tabela 4, entre o grupo dos preparadores financeiros e o grupo dos preparadores não financeiros há evidência de diferenças em relação às respostas obtidas em apenas 3 questões, evidenciando-se uma maior quantidade de preparadores financeiros com preferência pela mensuração ao valor justo.

  2. Preparadores não financeiros vs. organismos reguladores e/ou normalizadores e associações profissionais ligadas à contabilidade: de acordo com os resultados obtidos a partir da análise da Tabela 5, entre o grupo dos preparadores não financeiros e os organismos reguladores e/ou normalizadores e as associações profissionais ligadas à contabilidade, por sua vez, existe uma maior divergência entre as respostas obtidas, sendo que a hipótese se vê confirmada em cerca de 1/3 das questões analisadas (mais precisamente, em 6 das 17 questões analisadas). Verifica-se, ainda, que os organismos reguladores e/ou normalizadores e associações profissionais ligadas à contabilidade apresentam respostas mais distintas entre si, enquanto os preparadores não financeiros apresentam pontos de vista mais homogêneos nas respostas apresentadas.

  3. Preparadores financeiros vs. organismos reguladores e/ou normalizadores e associações profissionais ligadas à contabilidade: de acordo com os resultados obtidos a partir da análise da Tabela 6, a comparação entre as respostas obtidas de preparadores financeiros e de organismos reguladores e/ou normalizadores e associações profissionais ligadas à contabilidade evidencia, por fim, um razoável suporte para a existência de diferenças significativas entre os distintos grupos de stakeholders, uma vez que, das 17 questões analisadas, 9 apresentam diferenças significativas (cerca da metade). A referida análise apresenta, nesse sentido, um suporte mais fortalecido para a hipótese proposta para este estudo, comparativamente com os resultados da análise apresentada.

Verifica-se também, em termos gerais, que os preparadores, quer sejam financeiros ou não financeiros, opõem-se mais frequentemente a práticas uniformes, práticas de divulgação e práticas menos conservadoras, ao contrário dos normalizadores/das associações profissionais ligadas à contabilidade, que têm opiniões mais divididas no que toca a uniformidade, divulgação e conservadorismo.

A existência de diferenças significativas encontradas nas respostas obtidas, tendo em vista os distintos grupos de stakeholders, está em linha com os estudos de Huian (2013) e Chatham et al. (2010) e apresenta-se oposta aos resultados obtidos por Carmo, Ribeiro et al. (2011), que não identificam diferenças significativas entre as respostas obtidas acerca dos referidos grupos.

Para futuras investigações, sugere-se a realização do estudo proposto nas restantes fases de substituição da IAS 39 pela IFRS 9, bem como a ampliação deste estudo a outras normas que se encontram igualmente em processo de substituição, abarcando, assim, outros temas distintos dos instrumentos financeiros.

A principal limitação deste estudo refere-se ao método de pesquisa utilizado, a análise de conteúdo, uma vez que este confere certa subjetividade ao trabalho, especialmente nos casos em que as respostas obtidas são pouco claras e dificultam a interpretação. O estudo das diferenças internacionais no âmbito da contabilidade e dos diferentes interesses dos grupos de stakeholders da informação financeira é importante para os países e organismos envolvidos no processo de harmonização contabilística internacional. Assim, almeja-se que os resultados obtidos neste estudo prestem o suporte necessário à tomada de decisões por parte dos organismos emissores de normas internacionais, bem como pelos responsáveis nacionais pela subscrição das referidas normas.

Perceber os impactos e a incidência dos conceitos relacionados à prática contabilística, com base no julgamento profissional, contribui para que os objetivos que estão por trás do processo de harmonização, designadamente a efetiva comparabilidade do relato financeiro em nível internacional, sejam mais facilmente atingidos.

Futuros trabalhos podem utilizar as comment letters submetidas aos organismos nacionais responsáveis pela emissão de normas de contabilidade e de relato financeiro como objeto de estudo, designadamente o CNC (em Portugal) e o CPC (no Brasil). Outros estudos podem, ainda, utilizar como objeto de estudo as discussões públicas proporcionadas pelo IASB após a emissão e/ou alteração de uma nova norma, tendo em vista, designadamente, a avaliação dos potenciais problemas que se levantam posteriormente à sua entrada em vigor.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2015

Histórico

  • Recebido
    29 Abr 2014
  • Aceito
    11 Mar 2015
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