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O voto do relator vale mais? Ancoragem em julgamentos colegiados

IS THE FIRST OPINION MORE WORTHY? ANCHORING IN TRIALS BY A PANEL OF JUDGES

Resumo

O artigo discute a influência do voto do relator na formação da decisão colegiada, considerando as particularidades do modelo de colegialidade adotado pelo direito processual civil brasileiro. A partir da literatura sobre julgamentos colegiados no Brasil e de aportes da Psicologia sobre heurísticas e vieses cognitivos, foi realizado experimento simulando julgamento de caso de responsabilidade civil por erro médico, cujos participantes atribuíram montantes indenizatórios como se fossem integrantes de um órgão jurisdicional colegiado, após a leitura do voto do relator. Os resultados consistem em evidência preliminar de que, em deliberações desse tipo, a ancoragem pode ser um viés cognitivo estimulado pela sistemática legal vigente. Aponta-se a necessidade de mais pesquisas empíricas sobre o tema, por meio de experimentos controlados ou estudos de contextos reais, e de um aprofundado debate sobre as disfunções e os rumos da colegialidade em tribunais brasileiros, considerando hipóteses de intensificação e de atenuação do fenômeno no contexto da justiça civil.

Tomada da decisão judicial; colegialidade; heurísticas; vieses cognitivos; ancoragem

Abstract

The article argues about the influence of the first opinion in a panel of judges, considering the specificities of the collegiality model adopted by the Brazilian civil procedure law. Based on the literature on collective decision-making in Brazil and the Psychology contribution on heuristics and cognitive biases, a simulation experiment of a case of civil liability for medical error was conducted by asking participants to make monetary damage awards as if they were members of a judicial panel, based on previously recommended amount from the opinion of the Rapporteur. The results consist of preliminary evidence of anchoring as a cognitive bias which is possibly encouraged by the current legal system in this kind of decision-making process. The need of more empirical research on this subject, by controlled experiments or studies of real contexts, and of a deeper discussion about the disfunctions and paths of collegiality in Brazilian courts is raised, considering hypothesis of intensification and mitigation of this phenomenon in the civil justice context.

Legal decision-making; collegiality; heuristics; cognitive biases; anchoring

Introdução

O sistema processual civil brasileiro supõe serem rigorosamente iguais os pesos dos votos dos julgadores integrantes de um órgão jurisdicional colegiado. Porém, a circunstância de um magistrado – o relator – propor a primeira solução para o julgamento, após apresentar relatório da causa aos demais membros do colegiado, há muito tempo causa a impressão, na prática forense, de que seu voto tende a ser mais influente do que os votos seguintes para a formação do acórdão:

É fora de dúvida que os primeiros votos proferidos – independentemente, em certa medida, da solidez dos argumentos em que se apoiem – costumam exercer maior influência sobre o sentido da deliberação do que os proferidos mais para o fim. Isso se acentua notavelmente quando a marcha da votação desde logo revela tendência nítida ao prevalecimento de qualquer das teses em jogo; mais ainda, quando se atinge determinada altura sem divergência alguma. Não poucos juízes inclinam-se de hábito a aderir à corrente predominante, e são em número ainda maior os que hesitam em adotar posição totalmente isolada. (BARBOSA MOREIRA, 1994BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Notas sobre alguns fatores extrajurídicos no julgamento colegiado. Revista da Academia Brasileira de Letras Jurídicas, [s.l.], v. 8, n. 5, p. 225-249, 1994., p. 237, grifo do autor)

Amparado em sua experiência como magistrado, Barbosa Moreira (1994BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Notas sobre alguns fatores extrajurídicos no julgamento colegiado. Revista da Academia Brasileira de Letras Jurídicas, [s.l.], v. 8, n. 5, p. 225-249, 1994., p. 237) especulou também sobre as possíveis causas para tal impressão, como motivações idiossincráticas ou psicológicas do julgador (timidez, insegurança, comodismo, fadiga em redigir voto divergente ou até aspirações políticas na carreira da magistratura); razões de ordem utilitária (não retardamento do desfecho ou inutilidade prática da discordância); e até situações de incerteza sobre o juízo, quando, “na dúvida, o melhor é ficar com a maioria” (BARBOSA MOREIRA, 1994BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Notas sobre alguns fatores extrajurídicos no julgamento colegiado. Revista da Academia Brasileira de Letras Jurídicas, [s.l.], v. 8, n. 5, p. 225-249, 1994., p. 237). Afirmou que, “[e]m última análise, tudo pode depender do lugar que, na ordem de votação, toque a juiz ou juízes em situações como as indicadas” (BARBOSA MOREIRA, 1994BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Notas sobre alguns fatores extrajurídicos no julgamento colegiado. Revista da Academia Brasileira de Letras Jurídicas, [s.l.], v. 8, n. 5, p. 225-249, 1994., p. 237).

Sem desmerecer a relevância desse relato prático, atualmente é possível se valer de aportes de áreas distintas do Direito para embasar uma abordagem mais científica sobre o tema. Já existem pesquisas, em perspectiva sociojurídica, que evidenciam a prevalência do voto do relator e que se propõem a investigar as causas para o dissenso nos tribunais – essas últimas com contribuições sobretudo da Economia e da Ciência Política. Porém, ainda são escassos estudos sobre a temática na perspectiva da Psicologia Cognitiva, a partir da qual é possível cogitar, por exemplo, que o modelo de colegialidade adotado pelo direito processual civil brasileiro estimula a incidência de automatismos (i.e., heurísticas) nos respectivos processos decisórios, de modo a conferir maior peso ao voto do relator. Entre os vários possíveis, está a ancoragem, fenômeno psicológico descrito por Tversky e Kahneman (1974)TVERSKY, Amos; KAHNEMAN, Daniel. Judgment under Uncertainty: Heuristics and Biases. Science, [s.l.], v. 185, n. 4.157, p. 1124-1131, 1974. como a estimativa enviesada por uma informação decisória inicialmente recebida ou autogerada, geralmente um valor relevante ajustado de modo insuficiente, que, como uma “âncora”, baliza o julgamento e a tomada de decisão subsequentes (i.e., produz um viés cognitivo).

Este artigo discute a influência do voto do relator na formação da decisão colegiada, considerando as particularidades do modelo de colegialidade adotado pelo processo civil brasileiro. A partir de aportes da Psicologia Cognitiva e de experimento controlado, tendo como referencial empírico a atribuição de montante indenizatório em caso de erro médico, testa a hipótese de que a ancoragem é um possível automatismo estimulado pela sistemática vigente e corresponsável pela frequente prevalência do voto do relator. Ressaltando a necessidade de mais pesquisas empíricas sobre o tema, pretende contribuir para a discussão mais ampla sobre as disfunções e os rumos da colegialidade em nossos tribunais.

1. A colegialidade nos tribunais brasileiros e o papel do relator

O sistema processual civil brasileiro estabelece que os julgamentos proferidos pelos tribunais, em regra, sejam colegiados.1 1 São diversos os dispositivos do Código de Processo Civil de 2015 (CPC/2015) que remetem à colegialidade ao disporem sobre os julgamentos nos tribunais. Exemplos são o art. 204, definindo acórdão como “o julgamento colegiado proferido pelos tribunais”, e o art. 941, § 2o, determinando que, no julgamento da apelação ou do agravo de instrumento, a decisão, no órgão colegiado, é proferida mediante votos de três magistrados. Além disso, o art. 942 prevê técnica ampliativa da colegialidade para o julgamento de apelações cíveis não unânimes. Embora os fundamentos da colegialidade constituam temática tradicionalmente pouco explorada pela dogmática jurídica,2 2 Para uma arqueologia conceitual sobre a colegialidade na dogmática jurídica brasileira, cf. Santos (2017). é possível apontar três justificativas para esse modelo de deliberação no Brasil, conforme Sokal (2012SOKAL, Guilherme Jales. O julgamento colegiado nos tribunais: procedimento recursal, colegialidade e garantias fundamentais do processo. São Paulo: Método, 2012., p. 81-108): (i) o reforço da cognição judicial, (ii) a garantia da independência dos membros julgadores e (iii) a contenção do arbítrio individual.3 3 Para Mendes (2013, p. 128-129, tradução nossa), a colegialidade relaciona-se a um projeto colaborativo, preocupando-se com deliberação e unidade e abrangendo “certo nível de respeito, comprometimento em argumentar e cooperar e disposição em empenhar-se por uma decisão supraindividual”. Também se pode acrescentar a esse rol a relação frequentemente presente na doutrina entre maior probabilidade de segurança (ou mesmo de correção) da decisão e a possibilidade de revisão dos julgamentos de primeira instância por corpos de magistrados, em tese, mais experientes (PONTES DE MIRANDA, 1960PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentários ao Código de Processo Civil: arts. 808-852. 2. ed. Rio de Janeiro: Revista Forense, 1960. t. XI., p. 10; BARBOSA MOREIRA, 2003BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Comentários ao Código de Processo Civil: arts. 476 a 565. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003. v. V., p. 237; CINTRA, GRINOVER e DINAMARCO, 2015, p. 99).4 4 Para uma crítica que aponta a “desconfiança” nos juízes de primeiro grau como implícita no sistema recursal brasileiro, cf. Baptista da Silva (2004, p. 239-263).

Para alguns autores, apenas certos tribunais teriam a colegialidade como qualidade intrínseca. Marinoni e Mitidiero (2016MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016. v. XV., p. 237) defendem que “[o] método pelo qual determinado julgamento tem de ocorrer deve refletir, em primeiro lugar, aquilo que se espera da Corte encarregada de realizá-lo”. Em razão disso, sustentam a distinção ideal entre julgamentos plurais, pertinentes às denominadas cortes de justiça no controle da interpretação do direito e dos fatos da causa, e julgamentos colegiados, aplicáveis às chamadas cortes supremas na formação de precedentes. Nos julgamentos plurais (ou fragmentados ou por agregação), o colegiado constituiria “a simples soma de três posições individuais sobre determinado ponto ou questão”(MARINONI e MITIDIERO, 2016MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016. v. XV., p. 239), oportunizando a adoção de fundamentos concorrentes e interessando o acordo quanto ao dispositivo e não quanto às razões para obtê-lo. Já os julgamentos colegiados possibilitariam a busca de fundamentos compartilhados, mesmo com votos dissidentes, pois o propósito seria lançar mão de entendimentos a serem adotados para julgamentos futuros, a partir das rationes decidendi (MARINONI e MITIDIERO, 2016MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016. v. XV., p. 239).5 5 “Uma ratio decidendi é uma justificação formal explícita ou implicitamente formulada por um juiz, e suficiente para decidir uma questão jurídica suscitada pelos argumentos das partes, questão sobre a qual uma resolução era necessária para a justificação da decisão no caso” (MACCORMICK, 2008, p. 203). Na prática, os julgamentos colegiados de nossas cortes supremas ainda parecem longe da busca de fundamentos compartilhados visando à construção de rationes decidendi quando da formação de precedentes. Para uma crítica ao modelo de racionalidade jurídica adotado pelas cortes no Brasil, cf. Rodriguez (2013, p. 59-112). Entendemos que a busca por fundamentos compartilhados é desejável também em cortes locais, sendo salutar que seus julgamentos sejam produto de ponderação de distintos pontos de vista. Nessa perspectiva, os julgamentos plurais, como modelo teórico, são indesejáveis, pois esvaziam a colegialidade em instâncias jurisdicionais nela estruturadas.

Também é bem conhecida a distinção entre os modelos de julgamento per curiam e seriatim. Conforme Mendes (2013MENDES, Conrado Hübner. Constitutional Courts and Deliberative Democracy. Oxford: Oxford University Press, 2013., p. 111), no primeiro modelo, a decisão materializa-se por meio de um texto único, que se apresenta como uma “voz única” do tribunal para o julgamento do caso; no segundo modelo, a decisão compõe-se de pronunciamentos individuais, isto é, de “múltiplas vozes” emanadas da mesma corte. Além das versões puras desses modelos, observam-se modelos híbridos, como aqueles que possibilitam a coexistência da opinion of the court com votos concorrentes e/ou dissidentes. Todavia, não há “causalidade imediata ou infalível entre o compromisso com a colegialidade e uma única voz, nem entre a falta de deliberação interna e uma decisão de múltiplas vozes” (MENDES, 2013MENDES, Conrado Hübner. Constitutional Courts and Deliberative Democracy. Oxford: Oxford University Press, 2013., p. 111, tradução nossa), podendo esses modelos, na prática, ser tanto deliberativos como não deliberativos.

Independentemente do modelo de julgamento preconizado, a previsão de um relator com numerosas atribuições é importante característica da sistemática brasileira de órgãos colegiados.6 6 Embora sejam comuns referências à influência da sistemática italiana na sistemática brasileira, as duas se diferenciaram em diversos aspectos ao longo do tempo, sendo exemplo a tendência de majoração das atribuições do relator no processo civil brasileiro, contrária à do processo civil italiano (SANTOS, 2017). No Brasil, o CPC/1939 e CPC/1973 já previam diversas atribuições para o relator. No direito processual civil, determina-se a distribuição do processo ao magistrado incumbido dessa função, devendo redigir voto e encaminhá-lo com relatório à secretaria (art. 931 do CPC/2015) para ciência dos demais integrantes do colegiado (vogais). Na sessão de julgamento, o relator apresenta o resumo oral da causa (art. 937 do CPC/2015) e é o primeiro a proferir voto oralmente, seguido pelos demais julgadores, para materializar o julgamento por meio do acórdão.7 7 Embora tal ordem fosse expressamente prevista no art. 875, § 1o, do CPC/1939 e na redação original do art. 555 do CPC/1973, foi suprimida em nível de código processual civil com a Lei n. 10.352/2001 e não voltou a ser reproduzida no CPC/2015. Ainda assim, permanece nos regimentos internos de vários tribunais – p. ex., no art. 135 do Regimento do STF e no art. 163 do Regimento do STJ.

Além dessas tradicionais atribuições, no processo civil brasileiro, o relator tem sido dotado de poderes cada vez mais amplos, com fins de, em síntese, dirigir o processo e zelar pela higidez do procedimento, decidir ou até propor questões incidentais e proferir julgamentos monocráticos.8 8 Essa concentração de atribuições pode ser constatada no exame de diversos dispositivos do CPC/2015. Os poderes para dirigir o processo e zelar pela higidez do procedimento encontram-se nos arts. 932, I, VII, VIII e parágrafo único; 933; 938, §§ 1o e 3o; 954; 970; 972; 982; 983; 989; e 1.007, §§ 6o e 7o. Já os poderes para decidir questões incidentais estão nos arts. 99, § 7o; 932, II e VI; 955, parágrafo único; 995, parágrafo único; 1.012, § 3o, II; 1.026, § 1o; 1.029, § 5o, II; 1.031, §§ 2o e 3o; 1.032; e 1.035, §§ 4o e 5o; cabe ainda menção àqueles para propor incidentes (arts. 138; 947, § 1o; 948; 977, I; 1.036, § 5o; 1.037; e 1.038). Por fim, os poderes para julgar monocraticamente verificam-se nos arts. 932, III, e 1.018, § 1o, tratando-se de inadmissibilidade formal, e no art. 932, IV e V, para a aplicação de precedentes e súmulas. Historicamente, essa majoração dos poderes do relator teve como marco o advento das Leis n. 9.139/1995 e 9.756/1998,9 9 Não obstante, esse movimento reformador já se verificava ao menos desde a década de 1960, com alteração regimental do STF que permitiu ao relator mandar arquivar recurso com pedido contrário à “jurisprudência compendiada em súmula”. Para um escorço histórico, cf. Carvalho (2008, p. 13-22). especialmente ao alterar o disposto no art. 557 do CPC/1973, a fim de permitir julgamentos monocráticos em recursos inadmissíveis, manifestamente improcedentes, prejudicados ou contrários a “jurisprudência dominante”. Tais reformas objetivaram aumentar a produtividade dos tribunais e conferir mais celeridade ao sistema recursal (TEIXEIRA, 1999TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo. A Lei 9.756/98 e suas inovações. Revista de Informação Legislativa, Brasília, n. 141, p. 5-8, jan./mar. 1999.). Porém, com o decorrer do tempo, o que deveria ser a exceção tornou-se a regra: em diversos tribunais, as decisões monocráticas passaram a superar em quantidade as decisões colegiadas,10 10 É o que evidenciam estudos como os de Hartmann e Ferreira (2015), sobre o STF, com 93% de decisões monocráticas entre 1992 e 2013; e de Ferraz (2014), sobre o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul (TJ/RS), cujas câmaras cíveis em 2010 já proferiam 48,3% de decisões do tipo, percentual que era de 22,4% em 2003. Nos anos 1990, Barbosa Moreira (1999, p. 29) prenunciava: “Não se afigura temerário conjecturar que, mais dia, menos dia, a manter-se inalterado o rumo, o relator se verá investido do poder de decidir, por si, qualquer recurso. O julgamento monocrático, antes característico, entre nós, do primeiro grau de jurisdição, vai-se impondo também nos superiores, em detrimento da colegialidade” (grifo do autor). ainda que garantido recurso à colegialidade (art. 1.021 do CPC/2015).

Não bastasse isso, é razoável formular a hipótese de que o progressivo aumento dos poderes do relator, combinado com a crescente sobrecarga de trabalho nos tribunais, provavelmente concorreu para um efeito colateral: os magistrados passaram a dedicar maiores esforços aos processos de sua relatoria, em detrimento daqueles nos quais figuram como vogais. Em nível de tribunal local, foi o que constatou Lupetti Baptista (2008LUPETTI BAPTISTA, Bárbara Gomes. Os ritos judiciários e o princípio da oralidade. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2008., p. 273) em etnografia acerca da oralidade nos ritos judiciários do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJ/RJ), descrevendo os julgadores vogais como aqueles que, em regra, “não leem o processo antes da sessão, conhecendo-o, pela primeira vez, no dia do julgamento”. Em nível de tribunal superior, Silva (2015SILVA, Virgílio Afonso da. “Um voto qualquer”? O papel do ministro relator na deliberação no Supremo Tribunal Federal. Revista de Estudos Institucionais, [s.l.], v. 1, n. 1, p. 180-200, 2015., p. 188-189), após entrevistar ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), colheu percepções, de um lado, sobre o papel de preponderância do relator em casos “comuns”, a partir de expressões como “ele baliza todo o debate”, “ele fixa a moldura do debate”, “é um ponto de partida para discussão” e “é uma posição preponderante”; e, de outro lado, sobre o volume de trabalho como obstáculo à deliberação mais qualificada.

Esse cenário pode ter contribuído para uma maior influência do primeiro julgador a votar – o relator – sobre os demais integrantes do órgão colegiado. Há evidências dessa influência, principalmente, em pesquisas empíricas sobre os processos decisórios do STF, como aqueles em que Oliveira (2012a e 2012b) analisou 1.277 Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) com o mérito julgado entre 1999 e 2006. A autora constatou que, subtraindo aquelas com decisão final monocrática (585 ADIs), em 99% das demandas julgadas colegiadamente (686 de 692 ADIs) os acórdãos adotaram o mesmo sentido do voto do relator (OLIVEIRA, 2012b). Dado ainda mais impressionante foi que, mesmo computando as ações com acórdão não unânime, tal percentual diminuíra apenas para 98% (159 entre 163 ADIs) (OLIVEIRA, 2012a). Ao final de um desses estudos, observou que o “voto do relator importa” e que o tema merecia maior atenção (OLIVEIRA, 2012b, p. 112-113).

Constatações semelhantes foram as de Sundfeld e Souza (2012)SUNDFELD, Carlos Ari; SOUZA, Rodrigo Pagani de. Accountability e jurisprudência do STF: estudo empírico de variáveis institucionais e estrutura das decisões. In: VOJVODIC, Adriana et al. (org.). Jurisdição constitucional no Brasil. São Paulo: Malheiros Editores, 2012. p. 75-116.. Após o exame de 267 acórdãos proferidos pela Corte entre 2006 e 2010, também no controle concentrado de constitucionalidade (ADIs, ADCs e ADPFs), verificaram que, em 242 deles (quase 91%), “as manifestações sem declaração de voto e o voto do relator já seriam suficientes para formar a maioria” (SUNDFELD e SOUZA, 2012SUNDFELD, Carlos Ari; SOUZA, Rodrigo Pagani de. Accountability e jurisprudência do STF: estudo empírico de variáveis institucionais e estrutura das decisões. In: VOJVODIC, Adriana et al. (org.). Jurisdição constitucional no Brasil. São Paulo: Malheiros Editores, 2012. p. 75-116., p. 87, grifo nosso) – equivalendo, portanto, a uma proporção na qual 9 de cada 10 acórdãos não só aderiram ao voto do relator, como foram justificados a partir das razões de decidir por ele propostas. Ainda observaram que cerca de 60% das manifestações dos ministros sequer tinham declaração de voto. Tal cenário mostra que “o relator tem, na maioria das vezes, a importante função de fixar a decisão e sua respectiva fundamentação” (SUNDFELD e SOUZA, 2012SUNDFELD, Carlos Ari; SOUZA, Rodrigo Pagani de. Accountability e jurisprudência do STF: estudo empírico de variáveis institucionais e estrutura das decisões. In: VOJVODIC, Adriana et al. (org.). Jurisdição constitucional no Brasil. São Paulo: Malheiros Editores, 2012. p. 75-116., p. 87). Essa frequente remissão das razões de decidir coletivas ao voto do relator também foi constatada por Almeida e Bogossian (2016)ALMEIDA, Danilo dos Santos; BOGOSSIAN, Andre Martins. “Nos Termos do Voto do Relator”: considerações acerca da fundamentação coletiva nos acórdãos do STF. Revista de Estudos Institucionais, [s.l.], v. 2, n. 1, p. 263-297, 2016..

Há evidências na literatura de outras questões como (i) a generalizada percepção, entre os ministros, do papel decisivo do relator na maioria das deliberações, excetuados os casos de maior visibilidade (SILVA, 2015SILVA, Virgílio Afonso da. “Um voto qualquer”? O papel do ministro relator na deliberação no Supremo Tribunal Federal. Revista de Estudos Institucionais, [s.l.], v. 1, n. 1, p. 180-200, 2015.); (ii) a menor tendência dos julgadores em divergir diante de maior número de casos a serem decididos (ROSEVEAR, HARTMANN e ARGUELHES, 2015); (iii) a elevada influência do relator nas decisões sobre temas com repercussão geral (MEDINA, 2016MEDINA, Damares. A repercussão geral no Supremo Tribunal Federal. São Paulo: Saraiva, 2016.); e (iv) o baixo índice de julgamentos com atenção decisória de outros ministros além do relator (PEREIRA, ARGUELHES e ALMEIDA, 2020).

Várias causas podem ser cogitadas para explicar esse fenômeno. Especificamente quanto ao STF, Almeida e Bogossian (2016ALMEIDA, Danilo dos Santos; BOGOSSIAN, Andre Martins. “Nos Termos do Voto do Relator”: considerações acerca da fundamentação coletiva nos acórdãos do STF. Revista de Estudos Institucionais, [s.l.], v. 2, n. 1, p. 263-297, 2016. e 2017) propõem a hipótese do “delegacionismo”: a Corte, por ter “incapacidade estrutural de produzir razões institucionais para suas decisões” (ALMEIDA e BOGOSSIAN, 2017ALMEIDA, Danilo dos Santos; BOGOSSIAN, Andre Martins. O delegacionismo no STF: uma tréplica a Virgílio Afonso da Silva. Revista de Estudos Institucionais, [s.l.], v. 3, n. 2, p. 1393-1422, 2017., p. 1.399), incorreria na prática corriqueira da “adoção dos fundamentos do voto do relator do acórdão como fundamentos para o próprio acórdão” (ALMEIDA e BOGOSSIAN, 2017ALMEIDA, Danilo dos Santos; BOGOSSIAN, Andre Martins. O delegacionismo no STF: uma tréplica a Virgílio Afonso da Silva. Revista de Estudos Institucionais, [s.l.], v. 3, n. 2, p. 1393-1422, 2017., p. 1.399). Essa hipótese é reforçada por literatura, principalmente estrangeira, acerca das causas para o dissenso nos tribunais, com aportes sobretudo da Economia e da Ciência Política. Tais estudos apontam correlações negativas entre sobrecarga de trabalho e divergência nas decisões (PETERSON, 1981PETERSON, Steven. Dissent in American Courts. The Journal of Politics, [s.l.], v. 43, n. 2, p. 412-434, 1981.; EPSTEIN, LANDES e POSNER, 2011; ROSEVEAR, HARTMANN e ARGUELHES, 2015). A principal explicação defendida para esse dado é que, havendo custos para divergir, os julgadores em geral preferem dedicar seus esforços para fazê-lo em número reduzido de processos, geralmente aqueles mais complexos ou de maior repercussão pública.11 11 Sobre o STF, Rosevear, Hartmann e Arguelhes (2015) só não constataram correlação negativa significativa entre carga de trabalho e divergência das decisões nos acórdãos do Plenário – o que supuseram ser explicado pela complexidade ou repercussão pública dos casos nele julgados, que constituiriam incentivos para os julgadores os examinarem com maior atenção e, portanto, divergirem com mais frequência. Também não se podem ignorar outros possíveis fatores de desestímulo para a divergência entre os julgadores, como orientações políticas (OLIVEIRA, 2012a e 2012b) e relações pessoais (SILVA, 2015SILVA, Virgílio Afonso da. “Um voto qualquer”? O papel do ministro relator na deliberação no Supremo Tribunal Federal. Revista de Estudos Institucionais, [s.l.], v. 1, n. 1, p. 180-200, 2015.).

Na perspectiva da Psicologia Cognitiva, ainda pouco explorada nessa temática, pode-se cogitar que, sobretudo nos casos “comuns”, o modelo de colegialidade adotado pelo processo civil brasileiro, tanto em tribunais superiores como em tribunais locais, favorece a incidência de automatismos que desestimulam o dissenso entre os julgadores e, portanto, contribuem para a prevalência do voto do relator. É o que se passará a analisar especificamente quanto à chamada ancoragem, um dos automatismos mais conhecidos.

2. A ancoragem na tomada da decisão judicial

2.1. Considerações gerais sobre a ancoragem

Ancoragem é um fenômeno psicológico definível como a estimativa enviesada por uma informação decisória inicialmente recebida ou autogerada – geralmente um valor relevante ajustado de forma insuficiente – que serve como uma “âncora” para a tomada da decisão.

O fenômeno foi pesquisado sistematicamente, primeiro, pelos psicólogos israelenses Amos Tversky e Daniel Kahneman (1974),12 12 Apesar de a sistematização ter sido proposta por Tversky e Kahneman, não foram eles os primeiros a observarem os efeitos da ancoragem. Há registros de estudos anteriores, como os de Slovic (1967), sobre avaliações de atratividade de apostas com base em valores inicialmente fornecidos, que hoje poderiam ser compreendidos como âncoras. que, com os seus estudos sobre julgamento e tomada de decisão a partir da década de 1970, confrontaram teorias tradicionais sobre a racionalidade humana e incentivaram novas agendas de pesquisa em diversos campos científicos.13 13 Outros experimentos de Tversky e Kahneman publicados nos anos 1970 podem ser lidos em Kahneman, Slovic e Tversky (1982). Para uma revisão geral sobre a temática, cf. Tonetto et al. (2006). O mote desses estudos iniciais, em suma, foi evidenciar a atuação de estratégias rápidas e automáticas nos processos decisórios dos seres humanos, bem como a consequente ocorrência de erros sistemáticos e destoantes de padrões de julgamento e tomada de decisão até então idealizados como racionais baseados em estatística e lógica. Nessas pesquisas, as estratégias decisórias foram denominadas heurísticas, e os erros sistemáticos, vieses cognitivos. A ancoragem, em tal perspectiva, seria uma dessas estratégias.

Tversky e Kahneman (1974)TVERSKY, Amos; KAHNEMAN, Daniel. Judgment under Uncertainty: Heuristics and Biases. Science, [s.l.], v. 185, n. 4.157, p. 1124-1131, 1974. também publicaram o experimento provavelmente mais conhecido sobre o tema: estudantes universitários, separados em dois grupos, assistiram ao giro de uma roda da fortuna, que, embora dispusesse de números de 0 a 100, havia sido sigilosamente programada pelos pesquisadores para sempre marcar 10 ou 65, conforme o grupo analisado. Na sequência, os participantes, instruídos a anotarem o valor marcado, foram indagados com duas perguntas, nessa ordem: “A porcentagem de países africanos na ONU é maior ou menor do que o número que você acabou de escrever?” e “Qual a sua melhor estimativa para a porcentagem de países africanos na ONU?”. Apesar de, em tese, números aleatórios indicados como 10 ou 65 não serem capazes de fornecer informação útil sobre temas pouco conhecidos, as estimativas médias dos participantes vincularam-se espantosamente àqueles valores: foram de 25% para os que haviam anotado o número 10 e de 45% para os que haviam escrito o número 65.

Na oportunidade, a ancoragem foi classificada como uma heurística e explicada em termos de ajustamento insuficiente. Em tal perspectiva, as pessoas realizariam estimativas adotando como parâmetro inicial dado valor que, então, seria mentalmente ajustado para produzir a resposta definitiva, sendo frequentes as insuficiências desses ajustes – no caso do experimento, em determinar o valor real de países africanos na ONU. Ou seja, a estimativa produzida seria um valor ainda bastante próximo do valor fornecido, mesmo que distante da resposta considerada correta.

Outros pesquisadores, contudo, consideraram inadequada ou incompleta essa explanação. Além de indagações sobre as causas que levariam às insuficiências de ajuste,14 14 Epley e Gilovich (2006) propõem como explicação para os ajustamentos insuficientes a tese de que as pessoas, ao realizarem uma estimativa a partir de uma âncora, tenderiam a ajustar o valor fornecido ou autogerado até que outro, em amplitude de valores subjetivamente plausíveis, seja por elas mentalmente alcançado, a menos que haja possibilidade e disposição em buscar uma estimativa mais precisa. também surgiram críticas direcionadas ao fato de a explicação original não considerar âncoras que, em razão de sua aparente razoabilidade ou plausibilidade como estimativa final, não necessitariam de ajustamento (MUSSWEILER, ENGLICH e STRACK, 2004, p. 189). Com isso, nas décadas subsequentes, diversos experimentos evidenciaram a atuação, na ancoragem, de outros mecanismos cognitivos – passando a ser questionada a própria ideia de ajustamento insuficiente (CHAPMAN e JOHNSON, 2002CHAPMAN, Gretchen; JOHNSON, Eric. Incorporating the Irrelevant: Anchors in Judgements of Belief and Value. In: GILOVICH, Thomas; GRIFFIN, Dale; KAHNEMAN, Daniel (orgs.). The Psychology of Intuitive Judgment. Nova York: Cambridge University Press, 2002. p. 120-138., p. 127-130). Ademais, estudos posteriores constataram efeitos da ancoragem provocados não só por números, mas a partir do processamento de informações de naturezas muito distintas, inclusive estímulos físicos (LEBOEUF e SHAFIR, 2006LEBOEUF, Robyn; SHAFIR, Eldar. The Long and Short of It: Physical Anchoring Effects. Journal of Behavioral Decision Making, [s.l.], v. 19, n. 4, p. 393-406, 2006.), bem como em decisões de outros tipos além de estimativas (CHAPMAN e BORNSTEIN, 1996CHAPMAN, Gretchen; BORNSTEIN, Brian. The More You Ask for, the More You Get: Anchoring in Personal Injury Verdicts. Applied Cognitive Psychology, [s.l.], v. 10, n. 6, p. 519-540, 1996.).

Kahneman (2003KAHNEMAN, Daniel. A Perspective on Judgment and Choice: Mapping Bounded Rationality. American Psychologist, [s.l.], v. 58, n. 9, 2003, p. 697-720, 2003. e 2011, p. 119-128), posteriormente, revisou a sua explicação sobre a ancoragem, passando a analisar o fenômeno a partir da sua versão das chamadas teorias de duplo processo. Ainda que sob visões mais ou menos variadas, tais teorias sustentam a existência de dois modos de pensamento decorrentes de dois processos cognitivos distintos: um processo inconsciente, intuitivo e automático, e outro processo consciente, reflexivo e controlado.15 15 Para um panorama sobre o debate, cf. Stanovich e West (2000) e Brust-Renck, Weldon e Reyna (2021). Kahneman, explicando-os a partir de uma metáfora segundo a qual dois agentes, o Sistema 1 e o Sistema 2, seriam responsáveis, respectivamente, pelo pensamento rápido e pelo pensamento devagar, passou a relacionar cada um deles a um tipo de ancoragem: (i) a ancoragem como ajustamento, atividade consciente e controlada, produto do Sistema 2; e (ii) a ancoragem como efeito de primazia, atividade inconsciente e automática, originada do Sistema 1. No primeiro caso, a mente, ao avaliar a âncora como muito baixa ou muito alta, deliberadamente faria um ajuste, porém muitas vezes insuficiente em razão de, por exemplo, sobrecarga de esforço mental. No segundo caso, a mente operaria a partir de uma sugestão, tentando selecionar informações compatíveis ou coerentes com a âncora, a fim de construir um cenário mental em que ela constituísse uma informação verdadeira.

Embora os efeitos da ancoragem sejam perceptíveis, induzíveis e, em certa medida, mensuráveis,16 16 Como refere Kahneman (2011, p. 123-124), embora muitos fenômenos psicológicos possam ser demonstrados experimentalmente, poucos, na prática, são capazes de ter intensidade mensurada. A ancoragem constituiria uma dessas exceções, sobretudo ao envolver âncoras numéricas. Nessa perspectiva, seria possível, em termos percentuais, medir a vinculação do decisor à informação inicialmente fornecida. sua natureza ainda é de difícil e controversa explicação devido aos variados mecanismos cognitivos potencialmente envolvidos (FREDERICK, KAHNEMAN e MOCHON, 2010, p. 17; TEOVANOVIĆ, 2019TEOVANOVIĆ, Predrag. Individual Differences in Anchoring Effect: Evidence for the Role of Insufficient Adjustment. Europe’s Journal of Psychology, [s.l.], v. 15, n. 1, p. 8-24, 2019., p. 19). Mussweiler, Englich e Strack (2004, p. 196, tradução nossa) afirmam que, de um ponto de vista mais focado em processos psicológicos do que em efeitos no julgamento e na tomada de decisão, o que hoje se conhece por “ancoragem” seria mais um “conglomerado de fenômenos muito diversos cuja similaridade resta unicamente no resultado líquido que eles produzem”. Apesar desses questionamentos, os efeitos da ancoragem são frequentemente apontados entre os mais robustos até hoje verificados na Psicologia Cognitiva17 17 Há evidências de incidência de ancoragem diante de fatores como (i) âncoras aleatórias, arbitrárias ou não informativas (TVERSKY e KAHNEMAN, 1974); (ii) âncoras extremas ou implausíveis (GALINSKY e MUSSWEILER, 2001; STRACK e MUSSWEILER, 1997); (iii) decurso de longo período após a exposição à âncora (MUSSWEILER, 2001); (iv) expertise sobre o tema (NORTHCRAFT e NEALE, 1987); (v) advertência prévia sobre os efeitos da ancoragem (WILSON et al., 1996); e (vi) motivação pessoal do decisor (WILSON et al., 1996). (MUSSWEILER, ENGLICH e STRACK, 2004, p. 184-186; KAHNEMAN, 2011KAHNEMAN, Daniel. Thinking, Fast and Slow. Nova York: Farrar, Straus and Giroux, 2011., p. 119).

2.2. A literatura sobre a ancoragem na tomada da decisão judicial

Há numerosos estudos sobre os efeitos da ancoragem na tomada da decisão judicial.18 18 Para uma revisão de estudos sobre ancoragem na decisão judicial, cf. Teichman e Zamir (2014, p. 678-680) e Feldman, Schurr e Teichman (2016, p. 303-308). Tais pesquisas versam sobre diversas fontes de âncoras incidentes nesse tipo de processo decisório, sendo exemplos o pedido da parte (CHAPMAN, BORNSTEIN, 1996; GUTHRIE, RACHLINSKI e WISTRICH, 2001; ENGLICH e MUSSWEILER, 2001ENGLICH, Birte; MUSSWEILER, Thomas. Sentencing under Uncertainty: Anchoring Effects in the Courtroom. Journal of Applied Social Psychology, [s.l.], v. 31, p. 1535-1551, 2001.; KALIL, 2005KALIL, Lisiane Lindenmeyer. Julgamento e tomada de decisão no âmbito jurídico: uma abordagem da Psicologia Cognitiva. 2005. 92 f. Dissertação (Mestrado em Psicologia) – Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2005.; RACHLINSKI, WISTRICH e GUTHRIE, 2015; REYNA et al., 2015; HANS, HELM e REYNA, 2018), a prova ilícita (WISTRICH, GUTHRIE e RACHLINSKI, 2005) e a manifestação do perito (RAITZ et al., 1990), e sobre distintos tipos de decisões, sendo os mais recorrentes a quantificação da pena, em matéria penal, e a atribuição de montante indenizatório, em matéria cível, conforme se passa a exemplificar.19 19 Mais recentemente, outros tipos de decisões judiciais além de quantificações numéricas têm sido objeto de estudo nessa perspectiva. Por exemplo, Feldman, Schurr e Teichman (2016), em experimento controlado, constataram efeitos de ancoragem sobre a interpretação de conceitos jurídicos indeterminados – e, por conseguinte, sobre a decisão final acerca da tutela ou não do direito material afirmado em juízo.

Relativamente ao processo penal, conhecido experimento com magistrados e estudantes de Direito simulou julgamento de crime de estupro com quantificação de pena após diferentes pedidos de condenação do acusador: alguns participantes receberam um pedido de 12 meses de reclusão, enquanto outros, um de 34 meses. O estudo constatou ancoragem até mesmo nas penas indicadas por juízes com média de 15 anos de experiência profissional: as condenações médias dos magistrados foram de 28 meses entre aqueles com a âncora de 12 meses, e de 35,75 meses para os que receberam a de 34 meses. Chamou a atenção a percepção referida pelos juízes de não terem considerado a pena requerida pela acusação (ENGLICH e MUSSWEILER, 2001ENGLICH, Birte; MUSSWEILER, Thomas. Sentencing under Uncertainty: Anchoring Effects in the Courtroom. Journal of Applied Social Psychology, [s.l.], v. 31, p. 1535-1551, 2001.). A partir desse caso, foram realizados novos experimentos, com a diferença de serem as âncoras apresentadas não como pedidos do acusador, mas como valores aleatórios, arbitrários ou não informativos, persistindo a sua influência inclusive em magistrados (ENGLICH, MUSSWEILER e STRACK, 2006).

Quanto ao processo civil, são frequentes experimentos simulando júri cível.20 20 O júri cível – inexistente no Brasil, país de tradição civil law – costuma ser referido como peculiaridade dos países de tradição common law. Porém, conforme Taruffo (2013, p. 22-23), enquanto na Inglaterra o instituto já é extinto há décadas, nos Estados Unidos, embora presente em número de casos ainda não desprezível, ocorre com frequência bem menor do que julgamentos de juízes togados. As razões para a sua permanência no direito norte-americano seriam a garantia da VII Emenda à Constituição estadunidense e o caráter popular e folclórico desses julgamentos. Um deles, ao constatar ancoragem em decisões envolvendo caso fictício de danos causados pela ingestão de pílula contraceptiva, concluiu que, quanto mais o demandante pedia, maiores tendiam a ser os valores indenizatórios atribuídos pelos jurados, representados por estudantes universitários. Também verificou uma “modalidade cruzada” de ancoragem, isto é, a influência de âncoras de uma escala de julgamento em outra escala: de um lado, âncoras monetárias não afetaram apenas decisões dos jurados expressas em escala monetária, mas também avaliações do nexo de causalidade; e, de outro lado, âncoras relacionadas à prova do nexo causal influenciaram não só a aferição da causalidade, mas também a percepção do montante indenizatório devido (CHAPMAN e BORNSTEIN, 1996CHAPMAN, Gretchen; BORNSTEIN, Brian. The More You Ask for, the More You Get: Anchoring in Personal Injury Verdicts. Applied Cognitive Psychology, [s.l.], v. 10, n. 6, p. 519-540, 1996.).

Também em matéria cível, experimento com juízes federais norte-americanos, dividindo-os em dois grupos e apresentando-lhes um caso simulado de danos decorrentes de acidente de trânsito, constatou ancoragem a partir da oposição ou não de defesa pelo réu. Enquanto um dos grupos não foi submetido a âncora numérica, o outro grupo recebeu a informação de que o réu teria alegado não haver valor da causa suficiente para o seu processamento na esfera federal, isto é, US$ 75 mil. Com isso, o primeiro grupo, não exposto à âncora, atribuiu montante indenizatório médio de US$ 1.249 milhão, e o segundo grupo, exposto à âncora, apresentou média de indenização de US$ 882 mil (GUTHRIE, RACHLINSKI e WISTRICH, 2001). Observa-se, ainda, que estudos mais recentes envolvendo decisões judiciais sobre indenizações têm apontado que as âncoras mais influentes costumam ser aquelas dotadas de maior relevância ou plausibilidade (REYNA et al., 2015; HANS, HELM e REYNA, 2018).

No Brasil, estudo de Kalil (2005)KALIL, Lisiane Lindenmeyer. Julgamento e tomada de decisão no âmbito jurídico: uma abordagem da Psicologia Cognitiva. 2005. 92 f. Dissertação (Mestrado em Psicologia) – Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2005. versou acerca da ancoragem no arbitramento de indenização por danos decorrentes de acidente de trânsito, em função de pedido determinado ou indeterminado do autor.21 21 Embora o CPC/1973, vigente à época deste estudo, admitisse a formulação de pedido genérico de condenação na ação indenizatória fundada em dano moral, o CPC/2015 (art. 292, V) passou a exigir a quantificação do valor pretendido pelo autor. Os participantes do experimento – categorizados em novatos (estudantes de Direito), intermediários (bacharéis em Direito) e expertos (juízes de Direito) – foram divididos em grupos, tendo alguns recebido, como âncora, pedido indenizatório de R$ 950 mil, e outros, pedido genérico de condenação. Embora o estudo tenha concluído pela importância da expertise na tomada da decisão judicial, uma vez que os magistrados expostos à âncora apresentaram menor vinculação aos seus efeitos – atribuindo indenização média de R$ 194 mil, contra R$ 313 mil no caso dos bacharéis e R$ 368 mil no caso dos estudantes –, percebe-se que nem mesmo juízes deixaram de tomar decisões enviesadas. Isso porque todas as categorias de participantes não submetidas à âncora fixaram montantes indenizatórios médios menores (R$ 145 mil no caso dos magistrados, R$ 217 mil no caso dos bacharéis e R$ 179 mil no caso dos estudantes), em comparação com aquelas submetidas.

Também em âmbito nacional, Nojiri (2021)NOJIRI, Sergio. Emoção e intuição: como (de fato) se dá o processo de tomada da decisão judicial. Belo Horizonte: Arraes Editores, 2021., adaptando o experimento de Guthrie, Rachlinski e Wistrich (2001) com simulação de causa envolvendo danos de acidente de trânsito, investigou os efeitos de ancoragem em pesquisa com 71 magistrados federais. Em vez de apresentar aos participantes versões com e sem âncora nos pedidos de uma das partes, esse estudo testou duas versões com diferentes âncoras geradas nas negociações entre autor e réu: em uma, as partes iniciavam as tratativas por R$ 1,25 milhão; em outra, por R$ 125 mil. No grupo exposto à primeira âncora, o valor médio atribuído a título de indenização foi de R$ 1.210.606,00; no grupo exposto à segunda âncora, o montante médio foi de R$ 854.571,00.

Há, portanto, numerosas evidências de que a ancoragem constitui significativo fator de influência na tomada da decisão judicial. Apesar disso, ressalvados os esforços de juristas para incorporar o estudo da ancoragem e, mais amplamente, das heurísticas e dos vieses no campo jurídico (FREITAS, 2013FREITAS, Juarez. A hermenêutica jurídica e a ciência do cérebro: como lidar com os automatismos mentais. Revista da Ajuris, [s.l.], v. 40, n. 130, p. 223-244, 2013.; TOMKOWSKI, 2017TOMKOWSKI, Fábio Goulart. Direito tributário e heurísticas. São Paulo: Almedina, 2017.; COSTA, 2018COSTA, Eduardo José da Fonseca. Levando a imparcialidade a sério: proposta de um modelo interseccional entre direito processual, economia e psicologia. Salvador: JusPodivm, 2018.; NUNES, LUD e PEDRON, 2018; HORTA, 2019HORTA, Ricardo Lins. Por que existem vieses cognitivos na tomada de decisão judicial? A contribuição da Psicologia e das Neurociências para o debate jurídico. Revista Brasileira de Políticas Públicas, Brasília, v. 9, n. 3, p. 83-122, dez. 2019.), nota-se a escassez de experimentos sobre a temática no Brasil, considerando as particularidades decisórias do nosso sistema processual. Exceções são estudos de Leal e Ribeiro (2016LEAL, Fernando; RIBEIRO, Leandro Molhano. O direito é sempre relevante? Heurística de ancoragem e fixação de valores indenizatórios em pedidos de dano moral em juizados especiais do Rio de Janeiro. Direitos Fundamentais & Justiça, Belo Horizonte, ano 10, n. 35, p. 253-284, jul./dez. 2016. e 2018), que investigaram casos reais de fixação de indenizações por danos morais a consumidores em processos de Juizados Especiais Cíveis do Rio de Janeiro/RJ. No primeiro estudo, analisaram-se 1.102 processos com sentenças de procedência proferidas entre 2004 e 2015, correlacionando-se valor da causa com montante atribuído judicialmente (LEAL e RIBEIRO, 2016LEAL, Fernando; RIBEIRO, Leandro Molhano. O direito é sempre relevante? Heurística de ancoragem e fixação de valores indenizatórios em pedidos de dano moral em juizados especiais do Rio de Janeiro. Direitos Fundamentais & Justiça, Belo Horizonte, ano 10, n. 35, p. 253-284, jul./dez. 2016.). Na segunda pesquisa, examinaram-se 524 processos com julgamentos de procedência entre 2011 e 2014, correlacionando-se pedido com valor deferido (LEAL e RIBEIRO, 2018LEAL, Fernando; RIBEIRO, Leandro Molhano. Heurística de ancoragem e fixação de danos morais em juizados especiais cíveis no Rio de Janeiro: uma nova análise. Revista Brasileira de Políticas Públicas, Brasília, v. 8, n. 2, p. 777-799, 2018.). Embora as correlações tenham se mostrado baixas em geral – o que, para os autores, pode sugerir o uso de outras âncoras, como o tabelamento de danos morais –, em ambos os estudos foi constatada maior tendência de vinculação do juízo à âncora quando as partes pediram valores baixos ou “quebrados”. Como hipóteses explicativas, aventou-se que os magistrados podem ter maior confiança, respectivamente, nos montantes pedidos em causas de valores abaixo de 20 salários mínimos, teto legal para litigar sem advogado, ou quando o pedido demonstra esforço para quantificar com maior precisão os danos sofridos.

A literatura sobre a temática ainda carece de mais estudos no Brasil, considerando particularidades como nosso modelo de colegialidade, que, como visto, confere um papel de preponderância ao relator. Por isso, o experimento a seguir exposto, valendo-se de metodologia bastante replicada, busca contribuir para essa agenda de pesquisa no contexto do direito processual civil brasileiro.

3. Um experimento de ancoragem em julgamentos colegiados

O experimento testou a hipótese de que a sistemática de julgamentos colegiados adotada pelo processo civil brasileiro, ao designar um julgador para relatar o caso e votar antes dos demais, tende a atribuir ao relator um papel decisivo em deliberações envolvendo quantificações de montantes indenizatórios, uma vez que seu voto constitui âncora relevante para balizar o resultado do julgamento.

O referencial empírico, a exemplo de outros estudos citados, consistiu na atribuição de indenização em julgamento simulado de caso cível de responsabilidade civil. Apesar de ser relevante o debate sobre a viabilidade de se estabelecer parâmetros objetivos para a quantificação de danos morais, a fim de promover maior segurança jurídica para julgamentos do tipo,22 22 Não obstante, pesquisa coordenada por Püschel (2011), após o exame de 1.044 acórdãos de diversos tribunais estaduais e federais, demonstrou a ausência de indícios de discricionariedade excessiva do Judiciário brasileiro na atribuição de indenizações por danos morais. Refutou, assim, a percepção bastante difundida de que haveria no Brasil uma “indústria do dano moral”, ao menos quanto a condenações em valores exorbitantes. É certo que a jurisprudência brasileira, por iniciativa do STJ, tem tentado objetivar esses parâmetros com a adoção do chamado método bifásico de fixação de indenizações por danos morais. Na primeira fase, parte-se de um valor-base para a indenização a partir de um conjunto de julgados semelhantes, que envolvem o mesmo interesse jurídico lesado; na segunda fase, verificam-se as circunstâncias do caso concreto, a fim de aumentar ou reduzir o valor-base obtido na fase anterior (MIRAGEM, 2015, p. 383-384). Sob a perspectiva aqui estudada, pode-se supor que esse valor-base seja assimilado pelo decisor como âncora, de modo a balizar sua tomada de decisão. Todavia, deve-se ter cautela com o uso de âncoras decorrentes de tarifação dos danos morais, sob pena de se prescindir da análise acurada dos casos concretos. a presente discussão restringe-se aos efeitos da ancoragem nos processos decisórios colegiados de nosso sistema processual civil, tendo como propósito suscitar reflexões sobre as disfunções e os rumos da colegialidade no Brasil.

3.1. Metodologia

O experimento foi executado junto a estudantes de graduação e de pós-graduação em Direito na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Foram elaborados dois modelos de questionário (MQ5 e MQ50), simulando julgamento de recurso de apelação por câmara cível de tribunal de justiça. O caso apresentado, também fictício, versava sobre responsabilidade civil por erro médico. Em resumo, um médico, réu no processo, teria erroneamente atribuído diagnóstico de câncer a paciente, autor da ação, com base na constatação de sintomas triviais (dor de cabeça, náuseas e tonturas), sem tomar as mínimas providências recomendadas pela literatura médico-oncológica para tal conclusão (exames laboratoriais, de registros gráficos, endoscópicos e radiológicos). A sentença havia sido de improcedência, da qual o autor recorreu.

Em ambos os modelos de questionário, constava o voto do relator do recurso, escrito sinteticamente e estruturado nos termos da legislação processual civil – dividido em relatório, fundamentação e dispositivo (art. 489 do CPC/2015). O relator, diferentemente do magistrado de primeiro grau, considerava devida a condenação civil do médico ao pagamento de indenização por danos morais ao paciente. Havia uma única diferença entre os modelos de questionário: no MQ5, a quantia arbitrada pelo relator para indenização era de R$ 5 mil; já no MQ50, era de R$ 50 mil.

Cada participante, ao receber aleatoriamente apenas um desses questionários impressos – sua exclusiva fonte de informações para o julgamento, sem saber da existência do outro modelo e sem se comunicar com os outros participantes23 23 Essas condições foram asseguradas pelos pesquisadores ao aplicarem presencialmente os questionários, o que ocorreu em 2016 nas turmas de graduação, e em 2017 nas turmas de pós-graduação. Apesar de elas não terem sido simultâneas, devido às diferenças entre os dias e os horários das turmas pesquisadas, considera-se que as chances de comunicação entre os participantes de turmas diferentes e/ou de ciência prévia sobre a pesquisa foram mínimas, pois não houve divulgação nem discussão sobre o experimento, para além do grupo de pesquisa em que ele foi realizado. Em cada turma, tanto para o docente, previamente contatado para autorizar a aplicação dos questionários durante sua aula, como para os discentes, era anunciado apenas que se tratava de estudo sobre danos morais. Por fim, assumindo-se a possibilidade de alunos integrarem mais de uma turma pesquisada – o que era menos provável nas turmas de graduação, por serem de períodos distintos, e mais provável nas turmas de pós-graduação, sem divisão por períodos –, era solicitado que alunos que já tivessem participado do experimento informassem tal condição ao receberem o questionário, para que se abstivessem de novamente respondê-lo. Foram identificados poucos casos de abstenção por esse motivo. –, deveria anonimamente responder à pergunta “Se você fosse o(a) próximo(a) desembargador(a) a votar nesse caso, qual valor de indenização julgaria adequado?”, seguida de questionamentos sobre alguns fatores sociodemográficos.24 24 Além da questão principal, foram coletados os seguintes dados: idade, gênero, estágio acadêmico (graduação e a respectiva semestralidade ou pós-graduação), experiência profissional na área de direito civil, presença de médico na família, vivência de situação semelhante à do caso julgado e grau de segurança na resposta (1 a 10). Assim, por meio de um método de pesquisa quase experimental, os voluntários foram solicitados a exercer o papel de segundos julgadores do órgão colegiado que julgaria essa apelação cível, a partir de um ou de outro parâmetro inicial (R$ 5 mil ou R$ 50 mil).

Conforme Mussweiler, Englich e Strack (2004, p. 184), os efeitos da ancoragem podem ser verificados, com confiabilidade dos resultados, mediante uma amostragem mínima de 20 pessoas. O presente estudo foi bastante além em termos de amostragem: participaram, no total, 632 pessoas, todas estudantes vinculados à Faculdade de Direito da UFRGS. Desse universo de participantes, 500 eram alunos da graduação, situados entre o terceiro e o oitavo semestre do curso, e 132 eram alunos da pós-graduação, entre doutorandos, mestrandos, especializandos e bacharéis que acompanhavam as disciplinas. Algumas respostas pareceram indicar falta de interesse dos respectivos participantes, ou ofereciam parâmetros decisórios não quantificáveis para este estudo, sendo desconsiderados 23 questionários do tipo.25 25 Por falta de interesse, foram desconsideradas respostas como “Não sei.”, “Faltam elementos para decidir.” e “R$ 0.”. Já por ausência de parâmetros quantificáveis, foram desconsideradas respostas como “Valor equivalente a ‘x’ dias de trabalho do autor.”, “‘X’ vezes o valor do salário médio do médico.”, “O valor referente aos gastos com medicamentos.” e “Valor inferior/superior a R$ 5.000,00/50.000,000”.

Este estudo apresenta limitações próprias à metodologia adotada: como experimento controlado, embora tenha a vantagem de mais facilmente isolar o fator de influência pesquisado, certamente não reproduz integralmente a realidade que se quer conhecer.26 26 Sobre essa discussão metodológica, cf. Holleman et al. (2020). Apesar disso, acredita-se ter reproduzido satisfatoriamente um contexto frequentemente observado na prática forense: o de um julgamento colegiado de caso considerado “comum”, sem especial complexidade ou repercussão pública, no qual o julgador vogal, já sobrecarregado com outras tarefas, conta com significativa limitação de tempo e de informações para decidir, além daquelas constantes do relatório e do voto apresentados pelo relator.

3.2. Resultados

Entre os 609 participantes com respostas computadas, dos quais 310 responderam ao MQ5 e 299 ao MQ50, a média de idade era de 24,86 anos (desvio-padrão = 7,77 anos). Em torno de 58% dos participantes eram do gênero feminino, 32% tinham familiar médico e 9% já haviam vivenciado situação semelhante à do caso do estudo. Em relação à experiência, 61% dos participantes já haviam realizado estágio ou trabalhado com direito civil. A distribuição dos participantes para os dois grupos (MQ5 e MQ50) foi relativamente proporcional, com a única diferença entre grupos sendo a experiência com direito civil (𝛘2 = 7,16, p = 0,007). Nesse caso, o grupo MQ50 tinha a menor quantidade de participantes sem experiência (n = 98). Apesar disso, não se verificou diferença nos valores das indenizações por nível de experiência.

Quando a âncora foi baixa, no valor de R$ 5.000,00 (MQ5), a média do valor das indenizações foi de R$ 20.481,69 (DP = R$ 65.430,81), e a mediana foi de R$ 10.000,00. Com a âncora alta, de R$ 50.000,00 (MQ50), a média do valor das indenizações foi de R$ 44.126,22 (DP = R$ 49.799,13), e a mediana foi de R$ 30.000,00. Os resultados sugerem uma distribuição assimétrica dos dados, que foram normalizados a partir de uma transformação logarítmica para comparações subsequentes. Na nova distribuição, o grupo do MQ5 passou a ter média de 9,39 (DP = 0,87), e o grupo do MQ50, de 10,27 (DP = 0,95).

Uma Análise de Variância (ANOVA) Univariada para os dados normalizados foi realizada para comparar a diferença estatística entre as indenizações indicadas pelos participantes quando diante de âncoras baixas (MQ5) e altas (MQ50). Os resultados indicam que o primeiro voto, qualquer que fosse o valor apresentado a título de âncora (MQ5 ou MQ50), mostrou-se decisivo para influenciar o voto subsequente, F(1,608) = 174,59, p < 0,001. Em média, o grupo com âncora baixa indicou que a indenização deveria ser de R$ 20.481,60 (DP = R$ 65.430,81), valor mais baixo do que aquele do grupo com âncora alta, que atribuiu indenização de R$ 44.126,22 (DP = R$ 49.799,12).27 27 Os dados normalizados têm média pouco interpretável, por isso os valores reais são apresentados no texto. O Gráfico 1 apresenta os resultados.

gráfico 1
Valor médio de indenização para cada âncora*

As experiências prévias do decisor (estágio ou trabalho em direito civil, vivência de situação semelhante à do caso julgado e presença de médico na família) estatisticamente não influenciaram o montante indenizatório atribuído. Apesar de os participantes indicarem, em suas respostas, grau de segurança médio de 6,88 (DP = 2,28; escala de 1 a 10) – sem diferenças consideráveis na comparação entre os grupos (MQ5 e MQ50) –, verificou-se de modo geral o efeito de ancoragem a partir do valor fornecido inicialmente como âncora.

3.3. Discussão

Os resultados obtidos, embora não conclusivos, dadas as limitações do experimento, fortalecem a hipótese de que o modelo de colegialidade adotado pelo direito processual civil brasileiro tende a atribuir ao relator um papel decisivo em deliberações envolvendo quantificações de montantes indenizatórios. Com base na literatura da Psicologia Cognitiva sobre julgamento e tomada de decisão, é possível supor que a simples circunstância de um julgador ser designado para relatar o caso e votar antes dos demais, em decisões desse tipo, torna o primeiro voto âncora relevante para balizar o resultado do julgamento – produzindo assim os chamados efeitos de ancoragem. Em tal perspectiva, o voto do relator tenderia a ser considerado pelos vogais uma informação ou um conjunto de informações a serem ajustadas para formularem seus próprios votos, frequentemente prevalecendo, ou sendo ajustadas de modo insuficiente, em detrimento de outras opções decisórias possíveis.

Trata-se de evidência preliminar, obtida de experimento controlado, que pode se somar a evidências frutos de pesquisas empíricas sobre os processos decisórios do STF, indicando que o voto do relator, no sistema processual brasileiro, possivelmente tem peso maior do que os demais votos (OLIVEIRA, 2012a e 2012b; SUNDFELD e SOUZA, 2012SUNDFELD, Carlos Ari; SOUZA, Rodrigo Pagani de. Accountability e jurisprudência do STF: estudo empírico de variáveis institucionais e estrutura das decisões. In: VOJVODIC, Adriana et al. (org.). Jurisdição constitucional no Brasil. São Paulo: Malheiros Editores, 2012. p. 75-116.; SILVA, 2015SILVA, Virgílio Afonso da. “Um voto qualquer”? O papel do ministro relator na deliberação no Supremo Tribunal Federal. Revista de Estudos Institucionais, [s.l.], v. 1, n. 1, p. 180-200, 2015.; ALMEIDA e BOGOSSIAN, 2016ALMEIDA, Danilo dos Santos; BOGOSSIAN, Andre Martins. “Nos Termos do Voto do Relator”: considerações acerca da fundamentação coletiva nos acórdãos do STF. Revista de Estudos Institucionais, [s.l.], v. 2, n. 1, p. 263-297, 2016.; MEDINA, 2016MEDINA, Damares. A repercussão geral no Supremo Tribunal Federal. São Paulo: Saraiva, 2016.). Também se assume como provável a hipótese de que, nesse aspecto, deve-se distinguir os casos considerados “comuns” daqueles mais complexos ou de maior repercussão pública, nos quais a prevalência do primeiro voto, sobretudo no âmbito do STF, parece ser menos significativa, dada a tendência de maior atenção dos demais julgadores28 28 Os ministros do STF relatam que, nos casos de maior repercussão pública, cada julgador tende a levar seu voto já pronto para a sessão de julgamento e dificilmente modifica seu entendimento, independentemente da posição do primeiro a votar (SILVA, 2015). Nesses casos, os votos, embora em tese mais refletidos, podem, por hipótese, ser mais suscetíveis a outras âncoras, diferentes do voto do relator. Nos demais casos, a prática de o voto do relator não ser previamente conhecido pelos demais ministros, no STF, não parece afastar a sua influência quando do julgamento, haja vista práticas frequentes como a remissão das razões de decidir coletivas ao voto do relator (ALMEIDA e BOGOSSIAN, 2016) e o baixo índice de decisões proferidas após debate presencial e análise específica dos casos (PEREIRA, ARGUELHES e ALMEIDA, 2020). (SILVA, 2015SILVA, Virgílio Afonso da. “Um voto qualquer”? O papel do ministro relator na deliberação no Supremo Tribunal Federal. Revista de Estudos Institucionais, [s.l.], v. 1, n. 1, p. 180-200, 2015. e 2016). Todavia, considerando que os casos “comuns” são a maioria, principalmente em tribunais locais, referencial do experimento aqui realizado, não deixa de ser relevante desenvolver uma agenda de pesquisa sobre a preponderância do papel do relator nos processos decisórios colegiados do direito processual civil brasileiro.

Além disso, as conhecidas correlações negativas entre sobrecarga de trabalho e dissenso nas decisões colegiadas (PETERSON, 1981PETERSON, Steven. Dissent in American Courts. The Journal of Politics, [s.l.], v. 43, n. 2, p. 412-434, 1981.; EPSTEIN, LANDES e POSNER, 2011; ROSEVEAR, HARTMANN e ARGUELHES, 2015) são compatíveis com a hipótese de uma elevada probabilidade de incidência de automatismos como a ancoragem nos julgamentos colegiados dos tribunais brasileiros. É plausível supor que um contexto de massificação de julgamentos como o nosso, com poucos incentivos para os vogais analisarem minuciosamente os casos além de sua própria relatoria, tenda a gerar processos decisórios mais rápidos e automáticos (i.e., menos baseados em reflexão) (KAHNEMAN, 2003KAHNEMAN, Daniel. A Perspective on Judgment and Choice: Mapping Bounded Rationality. American Psychologist, [s.l.], v. 58, n. 9, 2003, p. 697-720, 2003. e 2011) e, por conseguinte, maior probabilidade de aceitação do voto daquele julgador que, em tese, estudou mais o caso em análise – o relator. Em certa medida, o experimento aqui realizado buscou simular um cenário com significativa limitação de tempo e de informações disponíveis para decidir, conforme se acredita ocorrer frequentemente em nossa prática forense.

Futuros experimentos, considerando as particularidades do modelo brasileiro de colegialidade, podem averiguar a incidência de ancoragem em decisões que envolvem montantes indenizatórios, a partir do voto do relator, em contextos reais. Também podem investigar tais efeitos em decisões de outros tipos além de montantes indenizatórios, pois, como visto, trata-se de fenômeno incidente não apenas em estimativas (CHAPMAN e BORNSTEIN, 1996CHAPMAN, Gretchen; BORNSTEIN, Brian. The More You Ask for, the More You Get: Anchoring in Personal Injury Verdicts. Applied Cognitive Psychology, [s.l.], v. 10, n. 6, p. 519-540, 1996.). Além disso, outros automatismos e vieses cognitivos podem ser cogitados a partir do primeiro voto, sendo exemplos aqueles estudados por Guthrie, Rachlinski e Wistrich (2001).29 29 Nesse estudo, foram investigadas influências, na decisão judicial, de outros fenômenos psicológicos além da ancoragem, como o efeito de enquadramento, o viés retrospectivo, a heurística da representatividade e o viés egocêntrico. Do mesmo modo, merecem investigação outros fatores de desestímulo para a divergência entre os julgadores, como orientações políticas (OLIVEIRA, 2012a e 2012b) e relações pessoais (SILVA, 2015SILVA, Virgílio Afonso da. “Um voto qualquer”? O papel do ministro relator na deliberação no Supremo Tribunal Federal. Revista de Estudos Institucionais, [s.l.], v. 1, n. 1, p. 180-200, 2015.).

Também não se ignora que outras fontes de ancoragem possam ser investigadas como fatores de influência para a formação da decisão colegiada. Pode-se pensar, por exemplo, na decisão recorrida, no pedido da parte, no parecer do Ministério Público, em parâmetros fixados por precedentes judiciais ou pela jurisprudência, como o tabelamento de danos morais, ou mesmo em contatos privados ocorridos entre advogados e magistrados antes das sessões de julgamento.30 30 Para evidências sobre esses contatos privados, cf. Lupetti Baptista (2008, p. 284-290; 2013, p. 235-242). De modo mais amplo, é viável cogitar a incidência, nos processos decisórios colegiados, de outros automatismos e vieses cognitivos sistematicamente induzidos por normas ou institutos do direito processual civil brasileiro.31 31 Cf. Freitas (2013); Tomkowski (2017); Costa (2018); Nunes, Lud e Pedron (2018); e Horta (2019).

Quanto à ancoragem, embora ela seja, em maior ou menor medida, inevitável em processos decisórios humanos, pode-se adotar certas estratégias individuais para mitigar os seus efeitos diante de situações nas quais sua ocorrência seja mais provável.32 32 Cf. Kahneman (2011, p. 28). Identificar tais situações tende a levar a raciocínios mais reflexivos e tomadas de decisão mais ponderadas, inclusive em decisões judiciais – nas quais não é viável, nem desejável, eliminar completamente os automatismos.33 33 Cf. Posner (2008, p. 93-121). A questão principal, aqui, envolve um possível enviesamento sistemático das decisões colegiadas, estimulado pelo próprio sistema processual civil brasileiro. Embora o modelo de julgamentos colegiados abstratamente atribua pesos iguais aos votos dos seus integrantes, na prática, parece se verificar peso maior conferido à manifestação do relator. Duas ressalvas merecem ser feitas, no entanto.

Em primeiro lugar, não se está a sustentar que a tomada da decisão judicial seja um fenômeno explicável apenas por meio de variáveis psicológicas, o que equivaleria a retomar pautas preconizadas pelo Realismo Jurídico norte-americano.34 34 O Realismo Jurídico norte-americano teve como um de seus motes a crítica à teoria do silogismo judicial, contestando a estrutura decisória de aplicação da norma ao fato e de verificação dos fatos alegados em juízo (TARUFFO, 2015, p. 103-105). Para os realistas estadunidenses, as razões enunciadas na fundamentação da decisão judicial não corresponderiam aos reais motivos considerados pelo magistrado ao decidir – sendo, inclusive, irrelevantes como estrutura racional de discurso justificativo, pela sua incapacidade de captar a integralidade do processo decisório, este suscetível à influência dos mais variados fatores extrajurídicos. O movimento é objeto de inúmeras críticas, como as do juiz estadunidense Kozinski (1993), para quem uma boa noite de sono ou um bom café da manhã – suscitado pelos realistas na célebre frase “a justiça é o que o juiz comeu no café da manhã” – seriam fatores de influência frívolos na tomada da decisão judicial. Certo é que, ao aventar inúmeros fatores de influência extrajurídicos que acometeriam esse decidir, o Realismo não embasara cientificamente tais proposições, tampouco propusera soluções concretas para um maior controle do processo decisório do juiz e, por conseguinte, para a promoção de maior segurança jurídica – mesmo porque, para os realistas, o próprio Direito, por natureza, seria objeto de máxima insegurança (FRANK, 1949, p. 5). Mesmo assim, deve-se reconhecer o hoje promissor diálogo do Direito, em geral, e do direito processual civil, em particular, com outros ramos do conhecimento humano, a fim de melhor se compreender o funcionamento dos fenômenos jurídicos – como os processos decisórios dos juízes – e adequadamente diagnosticar disfunções que não poderiam ser constatadas a partir de estudos estritamente dogmáticos. Isso viabiliza a adoção de medidas, sobretudo legislativas, idôneas a mitigar essas disfunções ou, até mesmo, a corrigi-las, a fim de que, em última análise, se promova maior segurança jurídica. Para tanto, importa não só o estudo do contexto de justificação da decisão judicial, mas também o seu contexto de descoberta.35 35 Cf. Struchiner (2018) e Scarparo (2021).

Em segundo lugar, ao se atentar criticamente para a possível tendência de o voto do relator, na prática, ter peso maior do que o dos votos dos demais julgadores em nossa sistemática de julgamentos colegiados, não se está a afirmar que uma decisão tomada sob divergência seja ontologicamente “melhor” do que uma decisão unânime. Acompanhar o relator não significa necessariamente decidir com base em pouca reflexão. Do mesmo modo, divergir não é sinônimo de contribuir mais para a decisão colegiada, até porque, como observa Mendes (2013MENDES, Conrado Hübner. Constitutional Courts and Deliberative Democracy. Oxford: Oxford University Press, 2013., p. 130, tradução nossa), a colegialidade fica em xeque quando um juiz, “embora tenha cuidadosamente estudado o caso e elaborado razões bem refletidas para decidir, não sente responsabilidade alguma em interagir e comunicar-se com seus colegas”. O que se quer evidenciar é que o modelo de colegialidade estabelecido em nossa prática forense parece resultar em uma desequilibrada distribuição de poderes entre os julgadores, em contraste com o modelo idealmente preconizado pelo sistema processual civil, e que provavelmente incentiva a incidência de automatismos (heurísticas) e vieses cognitivos que, embora não necessariamente levem a decisões “equivocadas”, descaracterizam ou diminuem o seu caráter colegiado.

Dito isso, a agenda de pesquisa empírica sobre o tema é bastante diversificada, seja para experimentos em contextos simulados, seja para estudos de contextos reais. Nela há muito potencial para identificar diversas disfuncionalidades da atual sistemática brasileira de julgamentos colegiados – tanto no processo civil, foco do presente estudo, como em outros ramos, a exemplo do processo penal. Identificando tais disfunções, viabiliza-se um melhor embasamento em dados da realidade para repensar e aprimorar tal sistemática. A seguir, indicam-se brevemente possíveis pontos de reflexão para posterior debate em sede de estudos dogmáticos ou de políticas legislativas.

Relativamente à distribuição de poderes entre os membros dos órgãos jurisdicionais colegiados, pode-se analisar criticamente a exclusão, pelo CPC/2015, da figura do revisor, prevista no CPC/1973 (art. 551) e no CPC/1939 (art. 874). Ainda que, com o passar das décadas, a função de revisão tenha sido cada vez mais restringida a ponto de restar quase esvaziada,36 36 A revisão, no CPC/1939, justificava-se pelo difícil acesso simultâneo aos autos pelos julgadores. Dita função perdeu em parte esse propósito, o que foi alvo de crítica dogmática (BARBOSA MOREIRA, 2003, p. 637), e foi restringida com as Leis n. 6.830/1980, 8.038/1990 e 8.950/1994. Atualmente, persiste na ação rescisória, na ação penal originária e na revisão criminal no STJ (art. 40 da Lei n. 8.038/1990). sua supressão pelo atual código não deixou de representar um reforço do já preponderante papel do relator. Considerando ser corriqueiro que, em processos decisórios desse tipo, um julgador se atenha mais detalhadamente aos autos (o relator) e os demais só tenham contato mais aprofundado com a causa durante a sessão de julgamento (os vogais) (LUPETTI BAPTISTA, 2008LUPETTI BAPTISTA, Bárbara Gomes. Os ritos judiciários e o princípio da oralidade. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2008.), pode ser profícuo cogitar a retomada da função de revisão ou até mesmo novos modos de redistribuição de poderes entre os integrantes do colegiado, a fim de estimular maior participação de todos os julgadores na formação da decisão.

Outra possível problematização diz respeito aos debates orais ocorridos durante as sessões de julgamento (art. 937 do CPC/2015) e à sua possível tendência em contribuir para a prevalência do primeiro voto. Uma vez que há muito tempo se estabeleceu em nossos tribunais a prática de os votos dos relatores serem elaborados previamente às sessões de julgamento (LUPETTI BAPTISTA, 2008LUPETTI BAPTISTA, Bárbara Gomes. Os ritos judiciários e o princípio da oralidade. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2008.), a parte que pretende sustentar oralmente posição contrária à do relator, em tese ainda não anunciada, frequentemente se depara com uma difícil missão: a de tentar, mediante uma fala de poucos minutos, convencer os vogais inicialmente inclinados a acompanharem o primeiro voto a divergirem ou ao menos a pedirem vista, em contexto de massificação de julgamentos que pressiona para a resolução do caso naquele instante e oferece cada vez menos incentivos para a divergência. A dificuldade é tal que cabe aos advogados, muitas vezes, buscar dissuadir os vogais da proposta de julgamento escrita pelo relator, sem nem sequer conhecerem seu teor. Diante desse panorama, podem ser rediscutidos os usos da oralidade nessa fase processual, para que ela influencie mais na formação do convencimento judicial.37 37 Para uma apreciação crítica, cf. Gawski (2020).

Por fim, a própria forma de tomada dos votos pode ser objeto de questionamento. Considerando que a atual sistemática estabelece uma ordem de votação na qual é provável que o primeiro voto tenda a balizar o resultado do julgamento, pode-se pensar, de um lado, em sistemáticas nas quais os votos sejam preliminarmente proferidos de modo independente, cada qual elaborado sem prévio acesso aos demais, para que posteriormente sejam aglutinados em um voto único. De outro lado, podem-se cogitar sistemáticas em que a redação da decisão só ocorra após debate entre os integrantes do colegiado. Em qualquer dos casos, poderia permanecer sob o relator a função de ao final sintetizar, no acórdão, os pontos de convergência e de divergência do órgão colegiado para aquele julgamento, de modo a substituir, ao menos em parte, o atual modelo seriatim por um modelo per curiam.

A importância da discussão sobre propostas de eventuais reformas legislativas como essas está em modificar o que hoje parece vigorar no direito processual civil brasileiro como uma colegialidade formal, aquela que, apesar da aparência e do rito de julgamento colegiado, na maioria das vezes equivale a um julgamento monocrático. Em última análise, a instituição de uma colegialidade material – aquela que, por seu turno, concretiza maior segurança das decisões, reforço da cognição, garantia da independência dos julgadores e contenção do arbítrio individual – pode contribuir, inclusive, para a mitigação de outros automatismos e vieses além da própria ancoragem, provocados não só pelo voto de um dos julgadores, mas também por fontes de enviesamento como outros sujeitos do processo ou certos mecanismos processuais.38 38 Sobre o debiasing em decisões colegiadas, cf. Nunes, Lud e Pedron (2018, p. 234-260).

Conclusões

Embora a colegialidade, em tese, seja destinada a promover maior segurança às decisões judiciais – além de reforçar a cognição, garantir a independência dos julgadores e conter o arbítrio individual –, a atual sistemática de julgamentos colegiados no direito processual brasileiro parece resultar em desequilibrada distribuição de poderes entre os julgadores. Isso porque, além de se verificar progressivo aumento das atribuições do relator e de massificação dos julgamentos nas últimas décadas, entre nós vem se desenvolvendo literatura que evidencia a prevalência do voto do relator nas decisões colegiadas. Além disso, há estudos, sobretudo em âmbito internacional, que indicam correlação negativa entre sobrecarga de trabalho e divergência nos órgãos jurisdicionais colegiados. Para explicar tal panorama, aportes da Psicologia Cognitiva sugerem a provável incidência, nesses processos decisórios, de automatismos (i.e., heurísticas) institucionalmente estimulados – sendo exemplo a ancoragem, objeto deste estudo.

O experimento produziu evidência, ainda que preliminar, de que a sistemática de julgamentos colegiados adotada pelo processo civil brasileiro, ao designar um julgador para relatar o caso e votar antes dos demais, pode atribuir ao relator um papel decisivo em deliberações que envolvam quantificações de montantes indenizatórios, contexto em que sua manifestação funcionaria como âncora relevante para balizar o resultado do julgamento. Em tal perspectiva, o primeiro voto tenderia a ser considerado pelos vogais uma informação ou um conjunto de informações a serem ajustadas para formularem seus próprios votos, frequentemente prevalecendo, ou sendo ajustadas de modo insuficiente, em detrimento de outras opções decisórias possíveis.

Ainda que um experimento controlado possa mais facilmente isolar o fator de influência pesquisado, há limitações próprias à metodologia adotada, entre elas a dificuldade de reprodução de contextos reais, em que outras informações podem funcionar como âncora. Futuros estudos podem investigar os efeitos de ancoragem em decisões relativas a montantes indenizatórios, a partir do voto do relator, nesses contextos. Novos estudos também podem averiguar tal fenômeno em decisões colegiadas de outros tipos além de indenizações, bem como outros automatismos e vieses cognitivos podem ser investigados a partir do primeiro voto. A problemática ora exposta afigura-se idônea a suscitar o debate sobre as disfunções e os rumos da colegialidade no direito processual civil brasileiro. Entre outros, três pontos de reflexão podem ser cogitados com vista à promoção de uma colegialidade material e não apenas formal: (i) a redistribuição de poderes entre os membros dos órgãos colegiados, (ii) a rediscussão sobre os usos da oralidade nos tribunais e (iii) a reformulação da forma de tomada dos votos.

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  • 1
    São diversos os dispositivos do Código de Processo Civil de 2015 (CPC/2015) que remetem à colegialidade ao disporem sobre os julgamentos nos tribunais. Exemplos são o art. 204, definindo acórdão como “o julgamento colegiado proferido pelos tribunais”, e o art. 941, § 2o, determinando que, no julgamento da apelação ou do agravo de instrumento, a decisão, no órgão colegiado, é proferida mediante votos de três magistrados. Além disso, o art. 942 prevê técnica ampliativa da colegialidade para o julgamento de apelações cíveis não unânimes.
  • 2
    Para uma arqueologia conceitual sobre a colegialidade na dogmática jurídica brasileira, cf. Santos (2017)SANTOS, Carlos Vitor Nascimento dos. A colegialidade nos tribunais: quando uma ideologia vira dogma e o dogma um princípio. Revista Estudos Institucionais, [s.l.], v. 3, n. 1, p. 475-524, 2017..
  • 3
    Para Mendes (2013MENDES, Conrado Hübner. Constitutional Courts and Deliberative Democracy. Oxford: Oxford University Press, 2013., p. 128-129, tradução nossa), a colegialidade relaciona-se a um projeto colaborativo, preocupando-se com deliberação e unidade e abrangendo “certo nível de respeito, comprometimento em argumentar e cooperar e disposição em empenhar-se por uma decisão supraindividual”.
  • 4
    Para uma crítica que aponta a “desconfiança” nos juízes de primeiro grau como implícita no sistema recursal brasileiro, cf. Baptista da Silva (2004BAPTISTA DA SILVA, Ovídio Araújo. Processo e ideologia: o paradigma racionalista. Rio de Janeiro: Forense, 2004., p. 239-263).
  • 5
    “Uma ratio decidendi é uma justificação formal explícita ou implicitamente formulada por um juiz, e suficiente para decidir uma questão jurídica suscitada pelos argumentos das partes, questão sobre a qual uma resolução era necessária para a justificação da decisão no caso” (MACCORMICK, 2008MACCORMICK, Neil. Retórica e o Estado de Direito. Tradução Conrado Hübner Mendes e Marcos Paulo Veríssimo. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008., p. 203). Na prática, os julgamentos colegiados de nossas cortes supremas ainda parecem longe da busca de fundamentos compartilhados visando à construção de rationes decidendi quando da formação de precedentes. Para uma crítica ao modelo de racionalidade jurídica adotado pelas cortes no Brasil, cf. Rodriguez (2013RODRIGUEZ, José Rodrigo. Como decidem as Cortes? Para uma crítica do direito (brasileiro). Rio de Janeiro: FGV, 2013., p. 59-112). Entendemos que a busca por fundamentos compartilhados é desejável também em cortes locais, sendo salutar que seus julgamentos sejam produto de ponderação de distintos pontos de vista. Nessa perspectiva, os julgamentos plurais, como modelo teórico, são indesejáveis, pois esvaziam a colegialidade em instâncias jurisdicionais nela estruturadas.
  • 6
    Embora sejam comuns referências à influência da sistemática italiana na sistemática brasileira, as duas se diferenciaram em diversos aspectos ao longo do tempo, sendo exemplo a tendência de majoração das atribuições do relator no processo civil brasileiro, contrária à do processo civil italiano (SANTOS, 2017SANTOS, Carlos Vitor Nascimento dos. A colegialidade nos tribunais: quando uma ideologia vira dogma e o dogma um princípio. Revista Estudos Institucionais, [s.l.], v. 3, n. 1, p. 475-524, 2017.). No Brasil, o CPC/1939 e CPC/1973 já previam diversas atribuições para o relator.
  • 7
    Embora tal ordem fosse expressamente prevista no art. 875, § 1o, do CPC/1939 e na redação original do art. 555 do CPC/1973, foi suprimida em nível de código processual civil com a Lei n. 10.352/2001 e não voltou a ser reproduzida no CPC/2015. Ainda assim, permanece nos regimentos internos de vários tribunais – p. ex., no art. 135 do Regimento do STF e no art. 163 do Regimento do STJ.
  • 8
    Essa concentração de atribuições pode ser constatada no exame de diversos dispositivos do CPC/2015. Os poderes para dirigir o processo e zelar pela higidez do procedimento encontram-se nos arts. 932, I, VII, VIII e parágrafo único; 933; 938, §§ 1o e 3o; 954; 970; 972; 982; 983; 989; e 1.007, §§ 6o e 7o. Já os poderes para decidir questões incidentais estão nos arts. 99, § 7o; 932, II e VI; 955, parágrafo único; 995, parágrafo único; 1.012, § 3o, II; 1.026, § 1o; 1.029, § 5o, II; 1.031, §§ 2o e 3o; 1.032; e 1.035, §§ 4o e 5o; cabe ainda menção àqueles para propor incidentes (arts. 138; 947, § 1o; 948; 977, I; 1.036, § 5o; 1.037; e 1.038). Por fim, os poderes para julgar monocraticamente verificam-se nos arts. 932, III, e 1.018, § 1o, tratando-se de inadmissibilidade formal, e no art. 932, IV e V, para a aplicação de precedentes e súmulas.
  • 9
    Não obstante, esse movimento reformador já se verificava ao menos desde a década de 1960, com alteração regimental do STF que permitiu ao relator mandar arquivar recurso com pedido contrário à “jurisprudência compendiada em súmula”. Para um escorço histórico, cf. Carvalho (2008CARVALHO, Fabiano. Poderes do relator nos recursos: art. 557 do CPC. São Paulo: Saraiva, 2008., p. 13-22).
  • 10
    É o que evidenciam estudos como os de Hartmann e Ferreira (2015)HARTMANN, Ivar Alberto Martins; FERREIRA, Lívia da Silva. Ao relator, tudo: o impacto do aumento do poder do ministro relator no Supremo. Revista Opinião Jurídica, Fortaleza, ano 13, n. 17, p. 268-283, 2015., sobre o STF, com 93% de decisões monocráticas entre 1992 e 2013; e de Ferraz (2014)FERRAZ, Leslie Shérida. Decisão monocrática e agravo interno no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul: uma análise empírica. Revista da Ajuris, [s.l.], v. 41, n. 136, p. 295-320, 2014., sobre o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul (TJ/RS), cujas câmaras cíveis em 2010 já proferiam 48,3% de decisões do tipo, percentual que era de 22,4% em 2003. Nos anos 1990, Barbosa Moreira (1999BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Algumas inovações da Lei n. 9.756 em matéria de recursos cíveis. Revista de Direito da Procuradoria-Geral do Estado do Rio de Janeiro, [s.l.], n. 52, p. 25-35, 1999., p. 29) prenunciava: “Não se afigura temerário conjecturar que, mais dia, menos dia, a manter-se inalterado o rumo, o relator se verá investido do poder de decidir, por si, qualquer recurso. O julgamento monocrático, antes característico, entre nós, do primeiro grau de jurisdição, vai-se impondo também nos superiores, em detrimento da colegialidade” (grifo do autor).
  • 11
    Sobre o STF, Rosevear, Hartmann e Arguelhes (2015) só não constataram correlação negativa significativa entre carga de trabalho e divergência das decisões nos acórdãos do Plenário – o que supuseram ser explicado pela complexidade ou repercussão pública dos casos nele julgados, que constituiriam incentivos para os julgadores os examinarem com maior atenção e, portanto, divergirem com mais frequência.
  • 12
    Apesar de a sistematização ter sido proposta por Tversky e Kahneman, não foram eles os primeiros a observarem os efeitos da ancoragem. Há registros de estudos anteriores, como os de Slovic (1967)SLOVIC, Paul. The Relative Influence of Probabilities and Payoffs upon Perceived Risk of a Gamble. Psychonomic Science, [s.l.], v. 9, p. 223-224, 1967., sobre avaliações de atratividade de apostas com base em valores inicialmente fornecidos, que hoje poderiam ser compreendidos como âncoras.
  • 13
    Outros experimentos de Tversky e Kahneman publicados nos anos 1970 podem ser lidos em Kahneman, Slovic e Tversky (1982). Para uma revisão geral sobre a temática, cf. Tonetto et al. (2006).
  • 14
    Epley e Gilovich (2006)EPLEY, Nicholas; GILOVICH, Thomas. The Anchoring-and-Adjustment Heuristic: Why the Adjustments Are Insufficient. Psychological Science, [s.l.], v. 17, n. 4, p. 311-318, 2006. propõem como explicação para os ajustamentos insuficientes a tese de que as pessoas, ao realizarem uma estimativa a partir de uma âncora, tenderiam a ajustar o valor fornecido ou autogerado até que outro, em amplitude de valores subjetivamente plausíveis, seja por elas mentalmente alcançado, a menos que haja possibilidade e disposição em buscar uma estimativa mais precisa.
  • 15
    Para um panorama sobre o debate, cf. Stanovich e West (2000)STANOVICH, Keith; WEST, Richard. Individual Differences in Reasoning: Implications for the Rationality Debate? Behavioral and Brain Sciences, [s.l.], v. 23, p. 645-726, 2000. e Brust-Renck, Weldon e Reyna (2021).
  • 16
    Como refere Kahneman (2011KAHNEMAN, Daniel. Thinking, Fast and Slow. Nova York: Farrar, Straus and Giroux, 2011., p. 123-124), embora muitos fenômenos psicológicos possam ser demonstrados experimentalmente, poucos, na prática, são capazes de ter intensidade mensurada. A ancoragem constituiria uma dessas exceções, sobretudo ao envolver âncoras numéricas. Nessa perspectiva, seria possível, em termos percentuais, medir a vinculação do decisor à informação inicialmente fornecida.
  • 17
    Há evidências de incidência de ancoragem diante de fatores como (i) âncoras aleatórias, arbitrárias ou não informativas (TVERSKY e KAHNEMAN, 1974TVERSKY, Amos; KAHNEMAN, Daniel. Judgment under Uncertainty: Heuristics and Biases. Science, [s.l.], v. 185, n. 4.157, p. 1124-1131, 1974.); (ii) âncoras extremas ou implausíveis (GALINSKY e MUSSWEILER, 2001GALINSKY, Adam; MUSSWEILER, Thomas. First Offers as Anchors: The Role of Perspective-Taking and Negotiator Focus. Journal of Personality and Social Psychology, [s.l.], v. 81, n. 4, p. 657-669, 2001.; STRACK e MUSSWEILER, 1997STRACK, Fritz; MUSSWEILER, Thomas. Explaining the Enigmatic Anchoring Effect: Mechanisms of Selective Accessibility. Journal of Personality and Social Psychology, [s.l.], v. 73, n. 3, p. 437-446, 1997.); (iii) decurso de longo período após a exposição à âncora (MUSSWEILER, 2001MUSSWEILER, Thomas. The Durability of Anchoring Effects. European Journal of Social Psychology, [s.l.], v. 31, n. 4, p. 431-442, 2001.); (iv) expertise sobre o tema (NORTHCRAFT e NEALE, 1987NORTHCRAFT, Gregory; NEALE, Margaret. Experts, Amateurs, and Real Estate: An Anchoring-and-Adjustment Perspective on Property Pricing Decisions. Organizational Behavior and Human Decision Processes, [s.l.], v. 39, p. 84-97, 1987.); (v) advertência prévia sobre os efeitos da ancoragem (WILSON et al., 1996); e (vi) motivação pessoal do decisor (WILSON et al., 1996).
  • 18
    Para uma revisão de estudos sobre ancoragem na decisão judicial, cf. Teichman e Zamir (2014TEICHMAN, Doron; ZAMIR, Eyal. Judicial Decision-Making: A Behavioral Perspective. In: TEICHMAN, Doron; ZAMIR, Eyal (orgs.). The Oxford Handbook of Behavioral Law Economics and the Law. Oxford: Oxford University Press, 2014. p. 664-702., p. 678-680) e Feldman, Schurr e Teichman (2016, p. 303-308).
  • 19
    Mais recentemente, outros tipos de decisões judiciais além de quantificações numéricas têm sido objeto de estudo nessa perspectiva. Por exemplo, Feldman, Schurr e Teichman (2016), em experimento controlado, constataram efeitos de ancoragem sobre a interpretação de conceitos jurídicos indeterminados – e, por conseguinte, sobre a decisão final acerca da tutela ou não do direito material afirmado em juízo.
  • 20
    O júri cível – inexistente no Brasil, país de tradição civil law – costuma ser referido como peculiaridade dos países de tradição common law. Porém, conforme Taruffo (2013TARUFFO, Michele. Aspectos fundamentais do processo civil de civil law e de common law. In: TARUFFO, Michele. Processo civil comparado: ensaios. Apresentação, organização e tradução de Daniel Mitidiero. São Paulo: Marcial Pons, 2013. p. 11-34., p. 22-23), enquanto na Inglaterra o instituto já é extinto há décadas, nos Estados Unidos, embora presente em número de casos ainda não desprezível, ocorre com frequência bem menor do que julgamentos de juízes togados. As razões para a sua permanência no direito norte-americano seriam a garantia da VII Emenda à Constituição estadunidense e o caráter popular e folclórico desses julgamentos.
  • 21
    Embora o CPC/1973, vigente à época deste estudo, admitisse a formulação de pedido genérico de condenação na ação indenizatória fundada em dano moral, o CPC/2015 (art. 292, V) passou a exigir a quantificação do valor pretendido pelo autor.
  • 22
    Não obstante, pesquisa coordenada por Püschel (2011)PÜSCHEL, Flavia Portella (coord.). A quantificação do dano moral no Brasil: justiça, segurança e eficiência. São Paulo: Ministério da Justiça, 2011., após o exame de 1.044 acórdãos de diversos tribunais estaduais e federais, demonstrou a ausência de indícios de discricionariedade excessiva do Judiciário brasileiro na atribuição de indenizações por danos morais. Refutou, assim, a percepção bastante difundida de que haveria no Brasil uma “indústria do dano moral”, ao menos quanto a condenações em valores exorbitantes. É certo que a jurisprudência brasileira, por iniciativa do STJ, tem tentado objetivar esses parâmetros com a adoção do chamado método bifásico de fixação de indenizações por danos morais. Na primeira fase, parte-se de um valor-base para a indenização a partir de um conjunto de julgados semelhantes, que envolvem o mesmo interesse jurídico lesado; na segunda fase, verificam-se as circunstâncias do caso concreto, a fim de aumentar ou reduzir o valor-base obtido na fase anterior (MIRAGEM, 2015MIRAGEM, Bruno. Direito civil: responsabilidade civil. São Paulo: Saraiva, 2015., p. 383-384). Sob a perspectiva aqui estudada, pode-se supor que esse valor-base seja assimilado pelo decisor como âncora, de modo a balizar sua tomada de decisão. Todavia, deve-se ter cautela com o uso de âncoras decorrentes de tarifação dos danos morais, sob pena de se prescindir da análise acurada dos casos concretos.
  • 23
    Essas condições foram asseguradas pelos pesquisadores ao aplicarem presencialmente os questionários, o que ocorreu em 2016 nas turmas de graduação, e em 2017 nas turmas de pós-graduação. Apesar de elas não terem sido simultâneas, devido às diferenças entre os dias e os horários das turmas pesquisadas, considera-se que as chances de comunicação entre os participantes de turmas diferentes e/ou de ciência prévia sobre a pesquisa foram mínimas, pois não houve divulgação nem discussão sobre o experimento, para além do grupo de pesquisa em que ele foi realizado. Em cada turma, tanto para o docente, previamente contatado para autorizar a aplicação dos questionários durante sua aula, como para os discentes, era anunciado apenas que se tratava de estudo sobre danos morais. Por fim, assumindo-se a possibilidade de alunos integrarem mais de uma turma pesquisada – o que era menos provável nas turmas de graduação, por serem de períodos distintos, e mais provável nas turmas de pós-graduação, sem divisão por períodos –, era solicitado que alunos que já tivessem participado do experimento informassem tal condição ao receberem o questionário, para que se abstivessem de novamente respondê-lo. Foram identificados poucos casos de abstenção por esse motivo.
  • 24
    Além da questão principal, foram coletados os seguintes dados: idade, gênero, estágio acadêmico (graduação e a respectiva semestralidade ou pós-graduação), experiência profissional na área de direito civil, presença de médico na família, vivência de situação semelhante à do caso julgado e grau de segurança na resposta (1 a 10).
  • 25
    Por falta de interesse, foram desconsideradas respostas como “Não sei.”, “Faltam elementos para decidir.” e “R$ 0.”. Já por ausência de parâmetros quantificáveis, foram desconsideradas respostas como “Valor equivalente a ‘x’ dias de trabalho do autor.”, “‘X’ vezes o valor do salário médio do médico.”, “O valor referente aos gastos com medicamentos.” e “Valor inferior/superior a R$ 5.000,00/50.000,000”.
  • 26
    Sobre essa discussão metodológica, cf. Holleman et al. (2020).
  • 27
    Os dados normalizados têm média pouco interpretável, por isso os valores reais são apresentados no texto.
  • 28
    Os ministros do STF relatam que, nos casos de maior repercussão pública, cada julgador tende a levar seu voto já pronto para a sessão de julgamento e dificilmente modifica seu entendimento, independentemente da posição do primeiro a votar (SILVA, 2015SILVA, Virgílio Afonso da. “Um voto qualquer”? O papel do ministro relator na deliberação no Supremo Tribunal Federal. Revista de Estudos Institucionais, [s.l.], v. 1, n. 1, p. 180-200, 2015.). Nesses casos, os votos, embora em tese mais refletidos, podem, por hipótese, ser mais suscetíveis a outras âncoras, diferentes do voto do relator. Nos demais casos, a prática de o voto do relator não ser previamente conhecido pelos demais ministros, no STF, não parece afastar a sua influência quando do julgamento, haja vista práticas frequentes como a remissão das razões de decidir coletivas ao voto do relator (ALMEIDA e BOGOSSIAN, 2016ALMEIDA, Danilo dos Santos; BOGOSSIAN, Andre Martins. “Nos Termos do Voto do Relator”: considerações acerca da fundamentação coletiva nos acórdãos do STF. Revista de Estudos Institucionais, [s.l.], v. 2, n. 1, p. 263-297, 2016.) e o baixo índice de decisões proferidas após debate presencial e análise específica dos casos (PEREIRA, ARGUELHES e ALMEIDA, 2020).
  • 29
    Nesse estudo, foram investigadas influências, na decisão judicial, de outros fenômenos psicológicos além da ancoragem, como o efeito de enquadramento, o viés retrospectivo, a heurística da representatividade e o viés egocêntrico.
  • 30
    Para evidências sobre esses contatos privados, cf. Lupetti Baptista (2008LUPETTI BAPTISTA, Bárbara Gomes. Os ritos judiciários e o princípio da oralidade. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2008., p. 284-290; 2013, p. 235-242).
  • 31
    Cf. Freitas (2013)FREITAS, Juarez. A hermenêutica jurídica e a ciência do cérebro: como lidar com os automatismos mentais. Revista da Ajuris, [s.l.], v. 40, n. 130, p. 223-244, 2013.; Tomkowski (2017)TOMKOWSKI, Fábio Goulart. Direito tributário e heurísticas. São Paulo: Almedina, 2017.; Costa (2018)COSTA, Eduardo José da Fonseca. Levando a imparcialidade a sério: proposta de um modelo interseccional entre direito processual, economia e psicologia. Salvador: JusPodivm, 2018.; Nunes, Lud e Pedron (2018); e Horta (2019)HORTA, Ricardo Lins. Por que existem vieses cognitivos na tomada de decisão judicial? A contribuição da Psicologia e das Neurociências para o debate jurídico. Revista Brasileira de Políticas Públicas, Brasília, v. 9, n. 3, p. 83-122, dez. 2019..
  • 32
    Cf. Kahneman (2011KAHNEMAN, Daniel. Thinking, Fast and Slow. Nova York: Farrar, Straus and Giroux, 2011., p. 28).
  • 33
    Cf. Posner (2008POSNER, Richard. How Judges Think. Cambridge: Harvard University Press, 2008., p. 93-121).
  • 34
    O Realismo Jurídico norte-americano teve como um de seus motes a crítica à teoria do silogismo judicial, contestando a estrutura decisória de aplicação da norma ao fato e de verificação dos fatos alegados em juízo (TARUFFO, 2015TARUFFO, Michele. A motivação da sentença civil. Tradução Daniel Mitidiero, Rafael Abreu e Vitor de Paula Ramos. São Paulo: Marcial Pons, 2015., p. 103-105). Para os realistas estadunidenses, as razões enunciadas na fundamentação da decisão judicial não corresponderiam aos reais motivos considerados pelo magistrado ao decidir – sendo, inclusive, irrelevantes como estrutura racional de discurso justificativo, pela sua incapacidade de captar a integralidade do processo decisório, este suscetível à influência dos mais variados fatores extrajurídicos. O movimento é objeto de inúmeras críticas, como as do juiz estadunidense Kozinski (1993)KOZINSKI, Alex. What I Ate for Breakfast and Other Mysteries of Judicial Decision Making. Loyola of Los Angeles Law Review, [s.l.], v. 26, n. 4, p. 993-999, 1993., para quem uma boa noite de sono ou um bom café da manhã – suscitado pelos realistas na célebre frase “a justiça é o que o juiz comeu no café da manhã” – seriam fatores de influência frívolos na tomada da decisão judicial. Certo é que, ao aventar inúmeros fatores de influência extrajurídicos que acometeriam esse decidir, o Realismo não embasara cientificamente tais proposições, tampouco propusera soluções concretas para um maior controle do processo decisório do juiz e, por conseguinte, para a promoção de maior segurança jurídica – mesmo porque, para os realistas, o próprio Direito, por natureza, seria objeto de máxima insegurança (FRANK, 1949FRANK, Jerome. Law and the Modern Mind. Londres: Stevens & Sons Limited, 1949., p. 5).
  • 35
    Cf. Struchiner (2018)STRUCHINER, Noel. Contexto de descoberta: uma análise filosófica de aspectos psicológicos da argumentação judicial. In: REIS, Isaac (org.). Diálogos sobre retórica e argumentação. Curitiba: Alteridade, 2018. p. 43-59. e Scarparo (2021)SCARPARO, Eduardo. Retórica forense: história, argumentação e invenção retórica. Rio de Janeiro: Marcial Pons, 2021..
  • 36
    A revisão, no CPC/1939, justificava-se pelo difícil acesso simultâneo aos autos pelos julgadores. Dita função perdeu em parte esse propósito, o que foi alvo de crítica dogmática (BARBOSA MOREIRA, 2003BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Comentários ao Código de Processo Civil: arts. 476 a 565. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003. v. V., p. 637), e foi restringida com as Leis n. 6.830/1980, 8.038/1990 e 8.950/1994. Atualmente, persiste na ação rescisória, na ação penal originária e na revisão criminal no STJ (art. 40 da Lei n. 8.038/1990).
  • 37
    Para uma apreciação crítica, cf. Gawski (2020)GAWSKI, Mártin Barcellos. Desnaturalizando o disfuncional: fundamentos e disfunções das sustentações orais nos tribunais brasileiros. In: SCARPARO, Eduardo. Ensaios de retórica forense. Porto Alegre: Editora Fi, 2020. p. 224-263..
  • 38
    Sobre o debiasing em decisões colegiadas, cf. Nunes, Lud e Pedron (2018, p. 234-260).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Jul 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    09 Out 2020
  • Aceito
    21 Mar 2022
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