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Técnicas subliminares, o Direito e os sentidos

SUBLIMINAL TECHNIQUES, THE LAW AND THE SENSES

TÉCNICAS SUBLIMINALES, LA LEY Y LOS SENTIDOS

Resenha de: NEUWIRTH, Rostam J. . The EU Artificial Intelligence Act: Regulating Subliminal AI Systems. Londres: Routledge, 2023.

Resumo

Após um longo processo de discussão, o Regulamento Inteligência Artificial da União Europeia assumirá em breve a posição de diploma pioneiro na disciplina legal da inteligência artificial de forma abrangente. Dentre os usos proibidos dessa tecnologia destacam-se as técnicas subliminares, ou seja, técnicas direcionadas para a percepção de estímulos capturados pelos sentidos sob o limiar da consciência. Essas técnicas podem resultar na manipulação da mente de seres humanos, trazendo riscos para o seu bem-estar e sua segurança. A recente monografia The EU Artificial Intelligence Act: Regulating Subliminal AI Systems (em tradução livre: O Regulamento Inteligência Artificial da UE: regulação de sistemas de IA subliminares), de Rostam J. Neuwirth, debruça-se sobre esse tema de maneira profunda e original, tomando a perspectiva da semiótica jurídica e da filosofia do Direito. Discutindo os conceitos de sinestesia, oxímoro e fuzzy logic, o autor propõe uma visão abrangente, atualizada e flexível do Direito, capaz de acorrer às necessidades dos seres humanos face a essas tecnologias. Em particular, Neuwirth faz uma defesa convincente de um entendimento do direito à liberdade de pensamento que inclua a proibição da manipulação mental. O Brasil tem assumido também um papel pioneiro na regulação de novas tecnologias. Nesse sentido, perspectivas como a de Neuwirth poderão constituir um contributo valioso para o debate em curso.

Palavras-chave
Inteligência artificial; semiótica do Direito; Direito europeu; Direito e tecnologia

Abstract

After a long discussion process, the European Union’s Artificial Intelligence Act will soon assume the position of a pioneering step towards the regulation of artificial intelligence in a comprehensive way. Among the prohibited uses of this technology are subliminal techniques, that is, techniques aimed at the perception of stimuli captured by the senses under the threshold of consciousness. These techniques can result in the manipulation of the minds of human beings, bringing risks to their well-being and safety. The recent monograph The EU Artificial Intelligence Act: Regulating Subliminal AI Systems, by Rostam J. Neuwirth, addresses this topic in a profound and original way, taking the perspective of Legal Semiotics and the Philosophy of Law. Discussing the concepts of synaesthesia, oxymoron and fuzzy logic, the author proposes a comprehensive, updated and flexible vision of Law, capable of meeting the needs of human beings in the face of these technologies. In particular, Neuwirth makes a convincing case for an understanding of the right to freedom of thought that includes the prohibition of mental manipulation. Brazil has also taken on a pioneering role in regulating new technologies. In this sense, perspectives such as Neuwirth’s could constitute a valuable contribution to the ongoing debate.

Keywords
Artificial Intelligence; Semiotics of Law; European Law; Law and technology

Resumen

Después de un largo proceso de discusión, el Reglamento de Inteligencia Artificial de la Unión Europea pronto asumirá la posición de un diploma pionero en la disciplina jurídica de la inteligencia artificial de manera integral. Entre los usos prohibidos de esta tecnología destacan las técnicas subliminales, es decir, técnicas dirigidas a la percepción de estímulos captados por los sentidos bajo el umbral de la conciencia. Estas técnicas pueden resultar en la manipulación de la mente de los seres humanos, trayendo riesgos para su bienestar y seguridad. La reciente monografía The EU Artificial Intelligence Act: Regulating Subliminal AI Systems, de Rostam J. Neuwirth, aborda este tema de una manera profunda y original, tomando la perspectiva, concretamente, de la semiótica jurídica y de la filosofía del Derecho. Discutiendo los conceptos de sinestesia, oxímoron y lógica difusa, el autor propone una visión del Derecho integral, actualizada y flexible, capaz de satisfacer las necesidades del ser humano frente a estas tecnologías. En particular, Neuwirth defiende de manera convincente una comprensión del derecho a la libertad de pensamiento que incluya la prohibición de la manipulación mental. Brasil también ha asumido un papel pionero en la regulación de nuevas tecnologías. En este sentido, perspectivas como la de Neuwirth podrían constituir una valiosa contribución al debate en curso.

Palabras clave
Inteligencia artificial; semiótica del Derecho; Derecho europeo; Derecho y tecnología

Na conhecida obra Laranja Mecânica (Burgess, 1962BURGESS, Anthony. A Clockwork Orange. Londres: Heinemann, 1962.), Alex, um jovem delinquente, é condenado a 14 anos de prisão pela prática de crimes violentos. De modo a encurtar essa pena, Alex aceita fazer parte de um programa de reabilitação, no decurso do qual é exposto a imagens de atrocidades do regime nazista, ao mesmo tempo em que ouve música de Ludwig van Beethoven. O tratamento faz com que Alex passe mal cada vez que tente se comportar de forma violenta, ou ouça música de Beethoven.

O enredo poderá ter parecido distópico aos leitores da época, mas em 2023, com a profusão de meios digitais de vigilância, processamento de dados (especialmente nos recentes anos de pandemia) e inteligência artificial, a hipótese apresenta-se com um crescente realismo. Podemos dizer, então, que, em matéria de manipulação mental, a ficção se tornou realidade? Rostam J. Neuwirth, autor da recente monografia The EU Artificial Intelligence Act: Regulating Subliminal AI Systems (em tradução livre: O Regulamento Inteligência Artificial da UE: regulação de sistemas de IA subliminares), entende que sim. Mais do que isso, nas palavras do autor, chegamos a um ponto em que é possível “prever o futuro o criando” (Neuwirth, 2023NEUWIRTH, Rostam J. The EU Artificial Intelligence Act: Regulating Subliminal AI Systems. Londres: Routledge, 2023., p. 103).

A análise de Neuwirth centra-se na relevância jurídica do conceito de percepção subliminar (subliminal perception), a qual resulta em estímulos capturados pelos sentidos sob o limiar subjetivo da consciência (Sandberg et al., 2022SANDBERG, Kristian et al. A Window of Subliminal Perception. Behavioural Brain Research, [s.l.], v. 426, n. 113842, 2022.). As áreas de interação entre o Direito e a percepção subliminar são várias. A título de exemplo, há que referir a proibição da utilização de técnicas subliminares nas comunicações audiovisuais comerciais (subliminal advertising), adoptada na União Europeia por meio do art. 9(1)(b) da Diretiva “Serviços de Comunicação Social Audiovisual” (Portugal, 2010PORTUGAL. Directiva 2010/13/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 10 de março de 2010, relativa à coordenação de certas disposições legislativas, regulamentares e administrativas dos Estados-Membros respeitantes à oferta de serviços de comunicação social audiovisual (Directiva «Serviços de Comunicação Social Audiovisual»). Jornal Oficial da União Europeia, 15 abr. 2010. Disponível em: Disponível em: https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:32010L0013&from=EN . Acesso em: 3 abr. 2023.
https://eur-lex.europa.eu/legal-content/...
). Tal proibição, que já encontrava precedente na Convenção Europeia de Televisão Transfronteiras do Conselho da Europa de 1989 (art. 13.2) (Portugal, s.d.PORTUGAL. Ministério Público. Procuradoria-Geral da República. Convenção Europeia sobre a televisão transfronteiras, [s.d.]. Disponível em: Disponível em: https://gddc.ministeriopublico.pt/sites/default/files/documentos/instrumentos/convencao_europeia_televisao_transfronteiras.pdf . Acesso em: 3 abr. 2023.
https://gddc.ministeriopublico.pt/sites/...
), terá procurado dar resposta a práticas que proliferavam há várias décadas na área da publicidade, muitas das quais haviam sido denunciadas por Vance Packard no livro The Hidden Persuaders (em tradução livre: Os persuasores ocultos) (Packard, 1957PACKARD, Vance. The Hidden Persuaders. [S.l.]: Longmans: Green & Co, 1957.). Um exemplo muitas vezes mencionado é o de uma experiência realizada em 1957, em que as mensagens “comam pipoca” (“eat popcorn”) e “bebam Coca-Cola” (“drink Coca-Cola”) foram mostradas durante apenas 1/3.000 de segundo durante a exibição de um filme no cinema, tendo sido verificado nessa ocasião considerável aumento nas vendas de ambos os produtos (Neuwirth, 2023NEUWIRTH, Rostam J. The EU Artificial Intelligence Act: Regulating Subliminal AI Systems. Londres: Routledge, 2023., p. 43).

No entanto, o mote para a discussão abordada pela obra em análise é dado pela recente proposta de um regulamento da União Europeia que estabelece “regras harmonizadas em matéria de inteligência artificial” (Regulamento Inteligência Artificial - RIA) (Comissão Europeia, 2021COMISSÃO EUROPEIA. Proposta de Regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho, que estabelece regras harmonizadas em matéria de inteligência artificial (regulamento inteligência artificial) e altera determinados atos legislativos da União. Exposição de motivos. Bruxelas, 21 abr. 2021. Disponível em: Disponível em: https://data.consilium.europa.eu/doc/document/ST-5662-2024-INIT/en/pdf . Acesso em: 5 abr. 2024.
https://data.consilium.europa.eu/doc/doc...
). A proposta do RIA, apresentada pela Comissão Europeia em 2021, para ser adoptada pelo Conselho e pelo Parlamento Europeu (PE), “estabelece regras harmonizadas para o desenvolvimento, a colocação no mercado e a utilização de sistemas de IA na União na sequência de uma abordagem proporcionada baseada no risco” (Comissão Europeia, 2021COMISSÃO EUROPEIA. Proposta de Regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho, que estabelece regras harmonizadas em matéria de inteligência artificial (regulamento inteligência artificial) e altera determinados atos legislativos da União. Exposição de motivos. Bruxelas, 21 abr. 2021. Disponível em: Disponível em: https://data.consilium.europa.eu/doc/document/ST-5662-2024-INIT/en/pdf . Acesso em: 5 abr. 2024.
https://data.consilium.europa.eu/doc/doc...
, Ponto 1.1, tradução nossa). O modelo seguido foca-se nos sistemas de inteligência artificial de risco elevado, estipulando obrigações para os respectivos fornecedores. No entanto, determinadas práticas merecem uma proibição total da parte do legislador europeu.

Tais práticas proibidas constam do art. 5 da proposta de RIA, que abrange

[…] práticas com potencial significativo para manipular as pessoas por meio de técnicas subliminares que lhes passam despercebidas ou explorar as vulnerabilidades de grupos específicos, como as crianças ou as pessoas com deficiência, para distorcer substancialmente o seu comportamento de uma forma que seja suscetível de causar danos psicológicos ou físicos a essa ou a outra pessoa (Comissão Europeia, 2021COMISSÃO EUROPEIA. Proposta de Regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho, que estabelece regras harmonizadas em matéria de inteligência artificial (regulamento inteligência artificial) e altera determinados atos legislativos da União. Exposição de motivos. Bruxelas, 21 abr. 2021. Disponível em: Disponível em: https://data.consilium.europa.eu/doc/document/ST-5662-2024-INIT/en/pdf . Acesso em: 5 abr. 2024.
https://data.consilium.europa.eu/doc/doc...
, Ponto 5.2.2, tradução nossa).

A alínea a do número 1 do referido artigo especifica as condições para a proibição de técnicas subliminares - uma dentre as várias práticas proibidas:

A colocação no mercado, a colocação em serviço ou a utilização de um sistema de IA que empregue técnicas subliminares que contornem a consciência de uma pessoa para distorcer substancialmente o seu comportamento de uma forma que cause ou seja suscetível de causar danos físicos ou psicológicos a essa ou a outra pessoa (Comissão Europeia, 2021COMISSÃO EUROPEIA. Proposta de Regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho, que estabelece regras harmonizadas em matéria de inteligência artificial (regulamento inteligência artificial) e altera determinados atos legislativos da União. Exposição de motivos. Bruxelas, 21 abr. 2021. Disponível em: Disponível em: https://data.consilium.europa.eu/doc/document/ST-5662-2024-INIT/en/pdf . Acesso em: 5 abr. 2024.
https://data.consilium.europa.eu/doc/doc...
, art. 5, 1, a, tradução nossa).

Após um processo de negociação, uma “versão final” do RIA foi aprovada pelo Parlamento Europeu em 13 de março de 2024. Apesar de o texto do art. 5, alínea a, ter sofrido algumas alterações, mantém-se, no essencial, o sentido da norma. Quaisquer referências à proposta de RIA reportam-se à proposta emitida em 2021 pela Comissão Europeia.

Ao passo que a proposta de RIA faz referência à proteção dos direitos fundamentais, nomeadamente o bem-estar físico e psicológico das pessoas, que são postos em causa com a manipulação mental, Neuwirth envereda por uma análise mais profunda do fenómeno, ancorada em noções de Neurociência e Semiótica. Dois temas que são caros ao autor surgem como pedras de toque da sua argumentação, nomeadamente a ideia de sinestesia e a importância dos oximoros no Direito e no pensamento jurídico (Neuwirth, 2018NEUWIRTH, Rostam J. Law in the Time of Oxymora: A Synaesthesia of Language, Logic and Law. Londres: Routledge, 2018.).

A sinestesia, definida como a mútua influência dos sentidos na nossa percepção de mundo (Neuwirth, 2023NEUWIRTH, Rostam J. The EU Artificial Intelligence Act: Regulating Subliminal AI Systems. Londres: Routledge, 2023., p. 3), apresenta-se como uma alternativa ao ocular-centrismo que, de acordo com o autor, permeia o Direito atual. Essa primazia da visão sobre os demais sentidos coloca o Direito em uma posição de desvantagem quando é chamado a lidar com fenómenos como o das técnicas subliminares. Isso porque quem as usa para manipular a mente de outros serve-se precisamente do imenso potencial dos nossos sentidos, que, por esse prisma, também é uma fonte de vulnerabilidade.

Os exemplos oferecidos pelo autor são persuasivos. Pense-se na inclusão de mensagens subliminares antifurto na música de fundo de uma loja ou na técnica de backward masking, que incorpora mensagens de trás para a frente em canções. Essa última deu lugar a duas famosas ações judiciais nos Estados Unidos, em que a banda Judas Priest foi acusada de, dessa forma, ter incitado jovens ao suicídio (Neuwirth, 2023NEUWIRTH, Rostam J. The EU Artificial Intelligence Act: Regulating Subliminal AI Systems. Londres: Routledge, 2023., p. 52). A eficácia das técnicas subliminares tem sido questionada, circunstância essa que é reconhecida pelo autor. Uma das técnicas em questão é o priming subliminar, que consiste na sujeição da pessoa a dois estímulos sucessivos: o prime, que “não deve ser percebido conscientemente”, e o alvo; o efeito do priming subliminar se considera verificado “quando há evidência de que a apresentação do prime facilitou [a] resposta” dada ao alvo (Busnello; Stein; Salles, 2008BUSNELLO, Rosa; STEIN, Lilian Milnitsky; SALLES, Jerusa Fumagalli de. Efeito de priming de identidade subliminar na decisão lexical com universitários brasileiros. Psico, [s.l.], v. 39, n. 1, p. 41-47, jan./mar. 2008., p. 41). Em um estudo de 2006, os participantes foram expostos subliminarmente ao nome de uma marca de chá gelado, tendo posteriormente sido aferida a probabilidade de eles pedirem essa bebida em uma esplanada. Concluiu-se que essa probabilidade aumentou com o priming, mas apenas para indivíduos que estavam com sede (Karremans; Stroebe; Claus, 2006KARREMANS, Johan C.; STROEBE, Wolfgang; CLAUS, Jasper. Beyong Vicary’s Fantasies: The Impact of Subliminal Priming and Brand Choice. Journal of Experimental Social Psychology, [s.l.], v. 42, n. 6, p. 792-798, nov. 2006.). Neuwirth (2022, p. 43-44) refere, ainda, outros estudos no sentido da produção de efeitos pelas técnicas subliminares, quer no nível do processamento e da retenção de informação, quer no nível da reação a ela.

A tecnologia de que hoje dispomos oferece um potencial de aperfeiçoamento e disseminação desses expedientes que exacerba os riscos associados a eles. Assim, a proibição prevista na proposta de RIA é um passo no bom caminho, mas restam ainda questões quanto à sua fiscalização e aplicação. Nesse contexto, a ideia de sinestesia torna evidente a necessidade de o Direito adotar uma perspectiva mais rica e abrangente, capaz de lidar com manipulações da mente por meio dos vários sentidos:

Para a regulação da IA, a questão fundamental dos parâmetros de uma possível violação da proibição de técnicas subliminares dependerá, em última análise, dos limiares estabelecidos, quer para cada um dos sentidos, quer para todos eles em conjunto. Esta é a questão principal, ou seja, que tipo de informação passa sob os limites da percepção humana, de modo que possa ser subliminarmente percepcionada (Neuwirth, 2023NEUWIRTH, Rostam J. The EU Artificial Intelligence Act: Regulating Subliminal AI Systems. Londres: Routledge, 2023., p. 66, tradução nossa).

No entanto, os oximoros - ou a justaposição de conceitos de significado oposto - surgem nessa obra como um elemento de continuidade diante do pensamento do autor, expresso em escritos anteriores, como Law in the Time of Oxymora: A Synaesthesia of Language, Logic and Law (Neuwirth, 2018NEUWIRTH, Rostam J. Law in the Time of Oxymora: A Synaesthesia of Language, Logic and Law. Londres: Routledge, 2018.). Assim, a escolha de um tema - a inteligência artificial - que é ele próprio descrito como um oximoro não será mera coincidência. Porém, como pode uma figura de estilo ajudar-nos a compreender o problema da percepção subliminar? A resposta, segundo Neuwirth, prende-se com o significado da proliferação de oximoros na linguagem e no Direito e suas respectivas consequências. Neuwirth (2018NEUWIRTH, Rostam J. Law in the Time of Oxymora: A Synaesthesia of Language, Logic and Law. Londres: Routledge, 2018.) critica o raciocínio jurídico tradicional, pautado pelo dualismo e pela lógica clássica. Assim, o Direito tem recorrido extensamente, por um lado, a dicotomias, como “público-privado”, “masculino-feminino”, “substância-forma” ou “dolo-mera culpa”, e, por outro lado, ao silogismo jurídico (assente ele próprio na dicotomia “factos-Direito”), que pretende resolver casos concretos pela subsunção deles mesmos em previsões legais. Esse raciocínio tradicional encara, nos nossos dias, desafios provenientes da complexificação da sociedade, da globalização e do avanço tecnológico. É nesse contexto que se tem observado uma proliferação de conceitos essencialmente oximorônicos (essentially oxymoronic concepts), como “real-fake” (verdadeiro-falso), “wilful negligence” (negligência intencional) ou “substantive due process” (processo equitativo substancial). Segundo Neuwirth (2023NEUWIRTH, Rostam J. The EU Artificial Intelligence Act: Regulating Subliminal AI Systems. Londres: Routledge, 2023.), esse tipo de conceito dilui dicotomias, estabelecendo pontes entre os seus termos, e apresenta-se como mais adequado à sociedade atual, com toda a sua complexidade e diversidade. No âmbito jurídico, esse fenômeno convida-nos a reconsiderar o raciocínio jurídico tradicional e dualista, flexibilizando-o, com recurso à chamada fuzzy logic (ou lógica difusa, em tradução livre) e à própria intuição do decisor. Nas palavras do autor:

Por fim, realidades complexas, presentes e futuras, incluindo as chamadas “realidades virtuais” criadas pela IA e por máquinas cognoscentes, também requererão mudanças cognitivas mais amplas, designadamente no campo da lógica. Para o Direito em particular, tal requererá que o modo tradicionalmente binário de raciocínio jurídico seja complementado por uma lógica jurídica mais flexível e multivalente (Neuwirth, 2023NEUWIRTH, Rostam J. The EU Artificial Intelligence Act: Regulating Subliminal AI Systems. Londres: Routledge, 2023., p. 69, tradução nossa).

No contexto da percepção subliminar, essa flexibilização impõe-se por virtude da dificuldade em quantificar o ponto a partir do qual estamos perante uma manipulação subliminar, especialmente quando esta se baseia no estímulo simultâneo de vários sentidos. Pense-se, por exemplo, nos julgamentos mediáticos dos nossos dias, cobertos já não apenas pelos meios de comunicação social tradicionais, mas por inúmeras outras fontes. Recentemente, a atriz Gwyneth Paltrow apareceu em tribunal para responder por danos causados no decurso de um acidente de esqui. Grande atenção foi dada ao seu guarda-roupa, apelidado de minimalista ou “riqueza discreta” (“stealth wealth”), e múltiplas imagens da atriz foram partilhadas on-line, deixando quer os factos, quer o Direito para segundo plano (Dweck, 2023DWECK, Sophie. Everything Gwyneth Paltrow Wore to Her Ski Trial. Town & Country, 31 mar. 2023. Disponível em: Disponível em: https://www.townandcountrymag.com/style/fashion-trends/g43452321/gwyneth-paltrow-ski-accident-courtroom-style/ . Acesso em: 4 abr. 2023.
https://www.townandcountrymag.com/style/...
). A dificuldade em chegar à verdade dos factos, ante as narrativas produzidas em juízo e a falibilidade dos meios de prova, foi já uma preocupação da escola realista norte-americana, em particular do chamado cepticismo sobre os factos (fact scepticism) (Frank, 1949FRANK, Jerome. Courts on Trial: Myth and Reality in American Justice. Princeton: Princeton University Press, 1949., p. 418-423). Atualmente, a multiplicidade de estímulos sensoriais que rodeiam a prática judicial apresenta-se também como desafio ao pensamento jurídico tradicional. Assim, imagens como as de Gwyneth Paltrow e a avalanche de publicações e comentários sobre o seu estilo, direcionadas por meio de algoritmos destinados a proporcionar a cada um uma experiência digital moldada às suas próprias preferências, têm o potencial de influenciar não só a opinião pública, mas também a percepção de testemunhas, de peritos e do próprio decisor. Na era da inteligência artificial e da realidade virtual, é possível conceber cenários em que um conjunto de estímulos ainda mais diversificado e intenso venha a atingir esses decisores a ponto de manipular as suas decisões. É nesse âmbito que se torna premente debater o reconhecimento dessa complexidade e as possíveis respostas a dar, nomeadamente, como propõe Neuwirth (2023NEUWIRTH, Rostam J. The EU Artificial Intelligence Act: Regulating Subliminal AI Systems. Londres: Routledge, 2023.), à flexibilização do método jurídico e do Direito em si.

É, porém, na parte final da obra que são colocadas as questões mais abrangentes e fundamentais, entre as quais a necessária interação entre o Direito e a ciência e as implicações que a temática em análise tem em relação ao Direito no seu todo. Estas apresentam-se como pervasivas, espalhando-se por múltiplas áreas do Direito - nomeadamente o direito constitucional, os direitos do consumidor, o direito da concorrência, a propriedade intelectual ou o direito do comércio internacional. Essa dispersão acarreta necessidades de coerência, de modo a respeitar a unidade do sistema jurídico.

Nas palavras do autor:

Hoje em dia a IA foi já reconhecida como game changer com um impacto duradouro em múltiplas áreas e com implicações bem mais amplas. Para o Direito, ela requererá, portanto, um novo pensamento baseado em análises mais profundas e em um estudo mais coordenado de vários regimes jurídicos em todos os níveis de governação (Neuwirth, 2023NEUWIRTH, Rostam J. The EU Artificial Intelligence Act: Regulating Subliminal AI Systems. Londres: Routledge, 2023., p. 93, tradução nossa).

No Direito europeu, a busca dessa coerência traduz-se, desde logo, na necessidade de harmonizar as várias iniciativas regulatórias, já aprovadas ou em fase de discussão, relacionadas às novas tecnologias, nomeadamente o Regulamento Geral de Proteção de Dados (GDPR), o Regulamento Serviços Digitais (DSA), o Regulamento Mercados Digitais (DMA) e o RIA, entre outras.

No entanto, uma perspectiva unificadora deve ancorar-se, antes, no direito constitucional, tendo em conta a relevância do tema em matéria de direitos fundamentais. No contexto europeu, tal perspectiva implica uma análise dos tratados, bem como da Carta de Direitos Fundamentais, integrada no Tratado de Lisboa.

Em particular, diz Neuwirth, há que dar novo sentido ao direito à liberdade de pensamento, tendo em conta a possibilidade de interferência com a mente humana que as técnicas subliminares oferecem, especialmente quando coadjuvadas e postas em prática por sistemas de inteligência artificial. Também o direito à privacidade deverá ser entendido a essa luz, abandonando-se noções como a de “direito a ser deixado em paz”, que pautaram em tempos o entendimento deste (Warren; Brandeis, 1890WARREN, Samuel D.; BRANDEIS, Louis D. The Right to Privacy. Harvard Law Review, [s.l.], v. IV, n. 5, p. 193-220, 15. dez. 1890.). Há ainda que concatenar esses direitos com o direito à liberdade de expressão, que poderá, à primeira vista, parecer ser coartado por proibições como a do art. 5 da proposta de RIA.

Em matéria de disciplina constitucional das novas tecnologias, o Brasil assumiu um papel pioneiro com a entrada em vigor, em 2014, do Marco Civil da Internet (MCI) (Brasil, 2014BRASIL. Lei n. 12.965, de 23 de abril de 2014. Estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para uso da Internet no Brasil. Brasília: Presidência da República, 2014. Disponível em: Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/lei/l12965.htm . Acesso em: 28 mar. 2024.
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). Progride agora para uma fase mais avançada do debate sobre o Marco da Inteligência Artificial (MIA). Os temas encontram-se profundamente interligados, uma vez que é a conectividade universal oferecida pela internet que possibilita o incomensurável avolumar de dados que, por seu turno, serve de substrato à inteligência artificial. Por sua vez, a inteligência artificial vai, cada vez mais, mudando a forma como a internet é utilizada e experienciada (Gravrock, 2018GRAVROCK, Einaras von. How AI Empowers the Future of the Internet. Forbes, 15 nov. 2018. Disponível em: Disponível em: https://www.forbes.com/sites/forbeslacouncil/2018/11/15/how-ai-empowers-the-evolution-of-the-internet/?sh=57d3a5683256 . Acesso em: 30 dez. 2022.
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).

Assim sendo, como deverão relacionar-se os dois normativos e os direitos contemplados em cada um deles (Thompson, 2012THOMPSON, Marcelo. Marco Civil ou demarcação de direitos? Democracia, razoabilidade e as fendas na internet do Brasil. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 261, p. 203-251, set./dez. 2012.)? Deve o MCI ser entendido como superior, por conter a proclamação dos direitos fundamentais da era digital? Ele deve ser revisto? Nesse contexto, sobressai a inclusão entre os princípios do uso da internet no Brasil da “garantia da liberdade de expressão, comunicação e manifestação de pensamento, nos termos da Constituição Federal” (art. 3o, I, do MCI) (Brasil, 2014BRASIL. Lei n. 12.965, de 23 de abril de 2014. Estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para uso da Internet no Brasil. Brasília: Presidência da República, 2014. Disponível em: Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/lei/l12965.htm . Acesso em: 28 mar. 2024.
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_a...
). Diante dos expedientes de manipulação mental descritos, pode porventura se questionar se é ainda suficiente proteger a exteriorização do pensamento ou se se impõe já uma proteção da própria mente, que a defenda de técnicas subliminares e outras intrusões maliciosas.

Outros exemplos poderiam ser aventados para evidenciar a relevância prática do escrito em análise, mas tal desafio é transmitido ao leitor - quer seja este intérprete, aplicador, produtor ou destinatário do Direito. Como a própria obra sugere, as fronteiras entre essas e outras categorias tendem hoje a esbater-se, e é esse carácter fuzzy (difuso, vago, nebuloso) do Direito que teremos de aprender a navegar nesta era. Também por isso, uma obra que amalgama Direito, Tecnologia, Neurociência, Filosofia, Linguística, Literatura e cultura popular surge como leitura indispensável no tempo atual.

REFERÊNCIAS

  • BRASIL. Lei n. 12.965, de 23 de abril de 2014 Estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para uso da Internet no Brasil. Brasília: Presidência da República, 2014. Disponível em: Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/lei/l12965.htm Acesso em: 28 mar. 2024.
    » https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/lei/l12965.htm
  • BURGESS, Anthony. A Clockwork Orange Londres: Heinemann, 1962.
  • BUSNELLO, Rosa; STEIN, Lilian Milnitsky; SALLES, Jerusa Fumagalli de. Efeito de priming de identidade subliminar na decisão lexical com universitários brasileiros. Psico, [s.l.], v. 39, n. 1, p. 41-47, jan./mar. 2008.
  • COMISSÃO EUROPEIA. Proposta de Regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho, que estabelece regras harmonizadas em matéria de inteligência artificial (regulamento inteligência artificial) e altera determinados atos legislativos da União. Exposição de motivos Bruxelas, 21 abr. 2021. Disponível em: Disponível em: https://data.consilium.europa.eu/doc/document/ST-5662-2024-INIT/en/pdf Acesso em: 5 abr. 2024.
    » https://data.consilium.europa.eu/doc/document/ST-5662-2024-INIT/en/pdf
  • DWECK, Sophie. Everything Gwyneth Paltrow Wore to Her Ski Trial. Town & Country, 31 mar. 2023. Disponível em: Disponível em: https://www.townandcountrymag.com/style/fashion-trends/g43452321/gwyneth-paltrow-ski-accident-courtroom-style/ Acesso em: 4 abr. 2023.
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  • FRANK, Jerome. Courts on Trial: Myth and Reality in American Justice. Princeton: Princeton University Press, 1949.
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  • Como citar este artigo

    MATIAS, Célia F. Técnicas subliminares, o Direito e os sentidos. Resenha de: NEUWIRTH, Rostam J. The EU Artificial Intelligence Act: Regulating Subliminal AI Systems. Londres: Routledge, 2023. Revista Direito GV, São Paulo, v. 20, e2412, 2024. https://doi.org/10.1590/2317-6172202412

Editora responsável

Catarina Helena Cortada Barbieri (Editora-chefe)

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Maio 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    03 Jan 2023
  • Aceito
    10 Ago 2023
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