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Duas concepções de justiça e o direito privado: Rawls e Forst

TWO CONCEPTIONS OF JUSTICE AND PRIVATE LAW: RAWLS AND FORST

Resumo

Este artigo trata do lugar do direito privado nas teorias da justiça de John Rawls e Rainer Forst. Com relação ao primeiro, argumenta-se, contra a ideia de uma estrita divisão institucional do trabalho, que o direito privado, mais precisamente, os grandes contornos do regime de direito privado, pode fazer parte das instituições que impactam decisivamente as expectativas dos cidadãos quanto à distribuição de bens primários e que devem, portanto, conformar-se à concepção de justiça (a justiça como equidade), que, segundo Rawls, seria escolhida na posição original. Nas seções finais do artigo, as implicações da teoria da justiça de Rawls para o direito privado são contrastadas com as da concepção de justiça como direito de justificação de Rainer Forst. Nelas, argumenta-se que a justiça como direito de justificação supre um défice deliberativo da concepção rawlsiana de justiça e sujeita o direito privado a outras demandas além das da justiça distributiva.

Direito privado; justiça; justiça como equidade; direito de justificação; Rawls; Forst

Abstract

This article deals with the place of private law in the theories of justice of John Rawls and Rainer Forst. In relation to the first, it is argued, against the idea of a strict institutional division of labor, that private law (more precisely, the broad contours of the private law regime) can be part of the institutions that decisively impact on the expectations of citizens as to the distribution of primary goods and which must, therefore, conform to the conception of justice (justice as fairness) which, according to Rawls, would be chosen in the original position. In the final sections, the implications of Rawls’s theory of justice for private law are contrasted with Rainer Forst’s conception of justice as the right of justification. In these sections, it is argued that justice as a right of justification makes up for a deliberative deficit of the Rawlsian conception of justice and subjects private law to demands other than those arising from distributive justice.

Private law; justice; justice as fairness; right to justification; Rawls; Forst

INTRODUÇÃO

Neste artigo, apresento e contraponho duas concepções sobre a justiça e suas respectivas implicações para o direito privado. Uma é a concepção de justiça como equidade defendida por John Rawls, enquanto a outra, à qual se dedicam as seções finais deste artigo, é a da justiça como direito de justificação de Rainer Forst. Meu interesse por essas duas concepções de justiça deve-se, no caso de Rawls, à fundamentação de uma concepção de justiça distributiva para o direito privado (mais precisamente, como veremos, para as grandes linhas do regime de direito privado). No caso de Forst, em contrapartida, trata-se de superar certas deficiências da teoria da justiça rawlsiana, em particular as que se referem à deliberação pública acerca da justiça e às condições para a participação dos cidadãos em procedimentos discursivos de justificação de normas.

O artigo é organizado da seguinte maneira: a seção 1 faz uma apresentação sumária da concepção de justiça de Rawls, a justiça como equidade, enquanto a seção 2 esboça, ainda um tanto acriticamente, as suas implicações para o direito privado. A seção 3 ressalta a ideia de que a sujeição do direito privado a uma concepção de justiça distributiva, como a de Rawls, nada determina quanto aos resultados de particulares interações, como contratos – algo que vem à luz quando se tem em vista a justiça como equidade como concepção de justiça procedimental pura. A seção 4 trata da tese da mão invisível perversa, endossada por Rawls sobre os efeitos acumulados de transações individuais para as condições de equanimidade dessas transações. A tese da mão invisível perversa enseja que Rawls se refere a uma divisão institucional do trabalho, divisão essa que tem sido, por vezes, interpretada no sentido de eximir o direito privado de quaisquer demandas distributivas. Essa interpretação é refutada na seção 5. A seção 6 trata, por sua vez, do problema da “colonização distributiva” do direito privado, isto é, da incompatibilidade de normas distributivas com as normas ou valores “bilaterais” próprios das relações de direito privado. A seção 7 delineia a concepção de justiça como direito de justificação de Forst, com ênfase para suas diferenças em relação à concepção de Rawls. Ainda que sumária, na seção 8, essa exposição permite chegar a duas breves descrições, uma rawlsiana, outra forstiana, sobre a justiça no direito privado.

1. RAWLS E A JUSTIÇA COMO EQUIDADE

Para Rawls, a questão com a qual a justiça se ocupa é: sob qual ou quais princípios uma estrutura básica de cooperação deve ser moldada de tal maneira a se conformar à vontade de cidadãos representados como pessoas livres e iguais?

Um primeiro ponto a salientar é que se trata de princípios para a estrutura básica da sociedade, isto é, de princípios para as regras ou instituições basilares da cooperação social. A razão pela qual essa estrutura é objeto da justiça se refere ao seu impacto sobre as expectativas dos cidadãos:

[t]omadas como um todo, as grandes instituições definem os direitos e deveres das pessoas e influenciam suas chances na vida, aquilo que elas podem esperar ser e como poderão consegui-lo. A estrutura básica é o objeto primário da justiça porque seus efeitos são tão profundos e se fazem presentes desde muito cedo. ( RAWLS, 1971RAWLS, John. A Theory of Justice. Cambridge: Belknap Press, 1971. , p. 7, tradução minha)1 1 No original: “[t]aken together as one scheme, the major institutions define men’s rights and duties and influence their life prospects, what they can expect to be and how well they can hope to do. The basic structure is the primary subject of justice because its effects are so profound and present from the start”.

O critério do impacto define tanto a estrutura básica como objeto da justiça quanto o critério a partir do qual se determinam as instituições que fazem parte dessa estrutura. A estrutura básica é objeto da justiça devido ao seu impacto sobre as expectativas dos cidadãos, e as instituições que ela compreende são, consequentemente, aquelas às quais se atribui maior impacto sobre essas expectativas.

A razão de adequação material é o motivo pelo qual os princípios reguladores da estrutura básica não se aplicam para além dessa estrutura, ou ao menos não se afirmam como princípios aplicáveis a outros objetos, como instituições de impacto secundário e condutas individuais. Os princípios da concepção de justiça de Rawls são tidos como princípios adequados a regular a estrutura básica da sociedade, mas não condutas individuais e de associações, como a família, no interior dessa estrutura ( RAWLS, 2001RAWLS, John. Justice as Fairness: A Restatement. Cambridge: Belknap Press, 2001. , p. 10).

Outro ponto importante da definição anterior é que os princípios de justiça reguladores da estrutura básica são os princípios que se conformam à vontade dos cidadãos representados como pessoas livres e iguais. Uma sociedade governada por princípios de justiça como esses é, portanto, a realização de um ideal de autonomia política, na qual a estrutura básica da cooperação social é regulada por princípios que os cidadãos dariam a si mesmos. A escolha desses princípios é informada tanto pelos interesses racionais de cidadãos que se reconhecem como livres e iguais quanto pelos limites que são razoáveis estipular a tal escolha. Em consequência, os princípios de justiça são os princípios que seriam escolhidos em uma “posição original” caracterizada por um “véu de ignorância” ( RAWLS, 1971RAWLS, John. A Theory of Justice. Cambridge: Belknap Press, 1971. , p. 12). Trata-se dos princípios estruturantes que escolheríamos se nossa escolha não sofresse a influência de contingências moralmente irrelevantes (tal como a distribuição natural dos talentos) ou por estruturas sociais opressivas.

Rawls denomina de “justiça como equidade” ( justice as fairness ) a concepção de justiça que, segundo ele, seria escolhida na posição original. A cogência dessa concepção decorre simplesmente de ser a concepção à qual os cidadãos se submeteriam em uma decisão sob condições razoáveis –, isto é, as condições da posição original. De acordo com Rawls (2001RAWLS, John. Justice as Fairness: A Restatement. Cambridge: Belknap Press, 2001. , p. 42-43), a justiça como equidade se constitui de dois princípios, os quais serão enunciados da seguinte maneira:

  1. cada pessoa tem o mesmo direito inviolável a um regime plenamente adequado de iguais liberdades básicas, regime esse que seja compatível com que todos usufruam das mesmas liberdades; e

  2. igualdades sociais e econômicas devem satisfazer a duas condições: primeiro, devem estar atreladas a cargos e posições abertos a todos sob condições de equitativa igualdade de oportunidades; segundo, devem ser tais que beneficiem o máximo possível os membros da sociedade em pior situação (o princípio da diferença) [nota de rodapé omitida].2 2 No original: “(a) Each person has the same indefeasible claim to a fully adequate scheme of equal basic liberties, which scheme is compatible with the same scheme of liberties for all; and (b) Social and economic inequalities are to satisfy two conditions: first, they are to be attached to offices and positions open to all under conditions of fair equality of opportunity; and second, they are to be to the greatest benefit of the least-advantaged members of society (the difference principle)”. (Tradução minha)

As diferentes partes dessa concepção encontram-se rigidamente hierarquizadas (ou em ordem léxica). Assim, o primeiro princípio (“a”), ou princípio das liberdades básicas, não pode ser sacrificado para a realização do segundo princípio (“b”) ( RAWLS, 1971RAWLS, John. A Theory of Justice. Cambridge: Belknap Press, 1971. , p. 43). Do mesmo modo, no segundo princípio, a primeira parte, a equitativa igualdade de oportunidades, sobrepõe-se à segunda, o princípio da diferença ( RAWLS, 1971RAWLS, John. A Theory of Justice. Cambridge: Belknap Press, 1971. , p. 89).3 3 Rawls manifesta dúvida sobre a relação de prioridade léxica entre o princípio da equitativa igualdade de oportunidades e o princípio da diferença (2001, p. 163).

Uma característica a ser salientada quanto à escolha dos princípios na posição original é que ela se submete à condição de finalidade ( RAWLS, 1971RAWLS, John. A Theory of Justice. Cambridge: Belknap Press, 1971. , p. 135). Ao decidirem sobre uma concepção de justiça, os contratantes na posição original devem ter em mente que essa é uma decisão final, ou seja, não é passível de revisão à luz das informações que lhes são sonegadas – por exemplo, informações sobre seus talentos ou suas preferências. Uma implicação é que, para Rawls, os princípios de justiça não são princípios cuja validade tenha de ser reconhecida em processos discursivos reais.

Com relação à justiça como equidade – a concepção de justiça que, de acordo com Rawls, seria escolhida na posição original –, é importante ressaltar que ela se ocupa, eminentemente, com a distribuição de bens primários ( RAWLS, 1971RAWLS, John. A Theory of Justice. Cambridge: Belknap Press, 1971. , p. 62). A escolha das partes na posição original é uma escolha racional (sujeita a limites razoáveis) ( RAWLS, 1971RAWLS, John. A Theory of Justice. Cambridge: Belknap Press, 1971. , p. 142). Como representantes de cidadãos livres e iguais, as partes atuam consoantes aos interesses de cidadãos assim concebidos, interesses esses que, no caso de Rawls, são interesses em liberdades adequadas ao desenvolvimento e exercício de capacidades morais básicas (as capacidades para uma concepção de bem e para um senso de justiça), oportunidades, em uma distribuição equitativa das vantagens da cooperação social (riqueza e renda) e nas bases sociais do autorrespeito. Deve-se reconhecer, pois, que questões de distribuição ocupam o primeiro plano – o que não equivale afirmar, entretanto, que os princípios da justiça como equidade não possuam quaisquer implicações para as relações de produção.

Outro ponto a ressaltar é que, como concepção de justiça para a estrutura básica da sociedade, a justiça como equidade é, nos termos de Rawls, uma concepção de justiça procedimental pura. Em contraposição a concepções de justiça que se aplicam a estados de coisas distributivos – e, consequentemente, permitem julgar esses estados de coisas como justos e injustos4 4 Rawls chama essas concepções de justiça de alocativas. Para a diferença entre a justiça como equidade, como exemplo de concepção de justiça procedimental pura, e concepções alocativas de justiça, ver Rawls (2001 , p. 50-51). –, uma concepção de justiça procedimental pura afere a justeza de um procedimento independentemente de seus resultados. Em outras palavras, uma vez que a estrutura básica da sociedade se conforme aos seus princípios, a justiça como equidade se dá como satisfeita apesar dos resultados das ações praticadas pelos cidadãos, incluindo operações de mercado, no interior da referida estrutura.

Por fim, um comentário sobre o ideal social na teoria da justiça de Rawls. Rawls concebe uma sociedade bem ordenada como uma cujas principais instituições se conformam a certa concepção pública de justiça e são reconhecidas como tais pelos cidadãos, os quais aceitam essa mesma concepção ( RAWLS, 1971RAWLS, John. A Theory of Justice. Cambridge: Belknap Press, 1971. , p. 453-454). Na posição original, diferentes sociedades bem ordenadas (submetidas a diferentes concepções de justiça) são comparadas tendo em vista sua tendência à estabilidade. “Todo o restante sendo igual”, diz Rawls, “as pessoas na posição original adotarão o conjunto mais estável de princípios” ( RAWLS, 1971RAWLS, John. A Theory of Justice. Cambridge: Belknap Press, 1971. , p. 455).5 5 No original: “Other things equal, the persons in the original position will adopt the more stable scheme of principles”. Ao descrever a sociedade bem ordenada como uma cujas instituições satisfazem a certa concepção de justiça, a teoria da justiça de Rawls relega a um segundo plano problemas relacionados à aplicação dos princípios que são justificados com o artifício da posição original.

2. RAWLS, A JUSTIÇA COMO EQUIDADE E DIREITO PRIVADO: PRIMEIRAS CONSIDERAÇÕES

Como concepção de justiça para a estrutura básica da sociedade, a justiça como equidade se aplica ao direito privado como parte dessa estrutura.6 6 Nesse sentido, ver Kordana e Tabachnick (2005) , Scheffler (2015) e Freeman (2018 , cap. 5). Se, e em que medida, o direito privado pertence à estrutura básica é questão a ser respondida de acordo com o critério do impacto.7 7 Como visto, Rawls (1971 , p. 7) alude ao critério do impacto, ao afirmar que “a estrutura básica é o objeto primário da justiça porque seus efeitos são tão profundos e se fazem presentes desde muito cedo” (no original: “[t]he basic structure is the primary subject of justice because its effects are so profound and present from the start”). É uma questão duvidosa a de saber se, além do impacto, é uma condição necessária para que uma instituição pertença à estrutura básica da sociedade a de que ela seja coerciva (sobre a ambiguidade de Rawls a esse respeito, ver Cohen (2008 , p. 132-134). Como, no entanto, as instituições de direito privado são instituições coercivas, o eventual acréscimo dessa condição não prejudica a tese defendida acima, a saber, a de que o direito privado, a depender do seu impacto, inclui-se entre as instituições sujeitas à justiça como equidade. Muito embora os resultados da aplicação desse critério variem caso a caso, duas proposições apresentam-se, à primeira vista, plausíveis:

  1. Tendo em vista as consequências para as expectativas dos cidadãos de regras, como as da propriedade, dos contratos e da família, ao menos parte do direito privado (ou de regras que eventualmente o suplantem) está, usualmente, entre as instituições da estrutura básica.

  2. Devido ao seu baixo impacto para as expectativas dos cidadãos, pontos secundários ou de detalhamento do regime de direito privado não fazem parte da estrutura básica e não se sujeitam, portanto, aos princípios da justiça como equidade.

Um comentário sobre os parênteses na primeira das duas conclusões anteriores: na justiça como equidade, as instituições são posteriores aos princípios de justiça –, isto é, as instituições são determinadas de acordo com os princípios, e não o contrário. Consequentemente, nada assegura de antemão que, entre as instituições que a justiça requer, estejam instituições de direito privado –, ou seja, algo que costumamos chamar de direito privado. Pode-se, é claro, argumentar no sentido de que, sob certas circunstâncias, o direito privado é, no todo ou em parte, um imperativo da justiça, isto é, que a supressão do todo ou de partes do direito privado – por exemplo, a substituição do direito da responsabilidade civil por um seguro social – atenta contra algum dos princípios da justiça como equidade. Porém que esse seja, de fato, o caso é algo que depende de verificação.

3. DIREITO PRIVADO E JUSTIÇA PROCEDIMENTAL PURA

Admitindo-se que a estrutura básica de uma sociedade bem ordenada, segundo a justiça como equidade (isto é, uma sociedade cuja estrutura básica se conforma a essa concepção de justiça), inclua o direito privado, há uma implicação importante a reparar no fato de a justiça como equidade ser uma concepção de justiça procedimental pura. Se entre as instituições de uma sociedade bem ordenada estiverem instituições de direito privado, basta, para a justiça como equidade, que essas instituições (junto às demais) se conformem aos seus dois princípios. Verificada a obediência das instituições aos princípios, a justiça como equidade estará atendida independentemente dos resultados que decorram das transações sujeitas a essas instituições.

Permita-me ilustrar as implicações do fato de a justiça como equidade ser uma concepção de justiça procedimental pura por meio de um exemplo. Para a justiça como equidade, é indiferente que um contrato seja feito ou não com justo preço, entendendo-se como justo preço certa equivalência entre as prestações contratuais. As consequências distributivas de um tal contrato são parte dos resultados do processo de cooperação, resultados que, para uma concepção de justiça procedimental pura, não importam. Daí não se exclui, contudo, que entre as condições institucionais de validade contratual (condições essas que, devido ao seu impacto, incluam-se entre as características do direito contratual sujeitas aos dois princípios de justiça) estejam condições que subordinem, de alguma maneira, a validade de contratos a um justo preço. O que pode interessar à justiça como equidade, em todo o caso, é a conformação do direito contratual quanto a contratos aos quais falte um justo preço, isto é, as condições de validade às quais esses contratos em geral se sujeitam, e não as consequências desses contratos individualmente considerados.

4. A TESE DA MÃO INVISÍVEL PERVERSA

Em um artigo (posteriormente incluído em RAWLS, 2005RAWLS, John. Political Liberalism. Ed. ampl. Nova York: Columbia University Press, 2005. ) sobre a estrutura básica como objeto da justiça, Rawls enuncia a seguinte tese sobre a relação entre atos negociais e a justiça como equidade:

[...] suponha que comecemos com a ideia inicialmente atraente de que as circunstâncias sociais e as relações das pessoas umas com as outras devam se desenvolver ao longo do tempo em conformidade com acordos livres alcançados de maneira justa e integralmente honrados. De imediato nos faltará alguma descrição sobre quando acordos são livres e sobre quando as circunstâncias sociais sob as quais esses acordos são alcançados são equânimes. Além disso, enquanto essas condições podem se mostrar equânimes ao início, o resultado acumulado de muitos acordos independentes e patentemente equânimes, junto com tendências sociais e contingências históricas, é propenso a mudar as oportunidades e as relações entre os cidadãos ao longo do tempo, de tal maneira que as condições para acordos livres e justos não se façam mais presentes. O papel das instituições que pertencem à estrutura básica é assegurar justas condições de fundo sob as quais as ações de indivíduos e associações tenham lugar. A não ser que essa estrutura seja apropriadamente constituída e ajustada, um processo social inicialmente justo acabará deixando de sê-lo, não importando o quão justas e livres transações individuais possam parecer quando vistas em si mesmas. ( RAWLS, 2005RAWLS, John. Political Liberalism. Ed. ampl. Nova York: Columbia University Press, 2005. , p. 265-266, tradução minha)8 8 No original: “suppose we begin with the initially attractive idea that social circumstances and people’s relationships to one another should develop over time in accordance with free agreements fairly arrived at and fully honored. Straightway we need and account of when agreements are free and the social circumstances under which they are reached are fair. In addition, while these conditions may be fair at an earlier time, the accumulated results of many separate and ostensibly fair agreements, together with social trends and historical contingencies, are likely in the course of time to alter citizens’ relationships and opportunities so that the conditions for free and fair agreements no longer hold. The role of the institutions that belong to the basic structure is to secure just background conditions against which the actions of individuals and associations take place. Unless this structure is appropriately regulated and adjusted, an initially just social process will eventually cease to be just, however free and fair particular transactions may look when viewed by themselves”.

O que chamarei de tese da mão invisível perversa é a tese enunciada na primeira parte da passagem acima (até o trecho “so that the free conditions for free and fair agreements no longer hold”). Trata-se da tese segundo a qual o resultado acumulado de transações particulares ( agreements ) se inclina a minar as condições sob as quais essas transações se reputam equânimes.9 9 Repare que, à medida que a tese da mão invisível perversa seja uma tese sobre a insuficiência do direito privado para a justiça distributiva, trata-se de uma tese sobre a insuficiência de regras diretamente aplicáveis às transações entre particulares, como as regras tradicionais dos direitos dos contratos e da responsabilidade civil. Essa tese não se refere a uma acepção mais ampla de direito privado, isto é, a uma acepção na qual o direito privado inclua disposições tais como a da legislação antitruste ou responsabilidade social empresarial. Agradeço a um(a) parecerista anônimo(a) por me instar a ser mais claro quanto a esse ponto. De acordo com a justiça como equidade, tais condições incluem a equitativa igualdade de oportunidades (a primeira parte do segundo princípio) e o princípio da diferença (a segunda parte). A tese da mão invisível perversa é, portanto, uma tese empiricamente verificável a partir da observação da tendência do mercado em que há concentração de riqueza e desigualdade de oportunidades. No caso de Rawls, essa tese é detalhada de duas formas.

Primeiro, a tendência à concentração da riqueza é afirmada a despeito de obrigações negociais serem rigorosamente cumpridas – em outras palavras, a tese da mão invisível perversa independe de que haja violência ou fraude. O que se depreende é que, independentemente de como atos negociais sejam regulados, essa regulação, ainda que estritamente observada, não deve ser capaz de evitar que as condições para que transações ocorram de maneira equânime sejam, com o passar do tempo, solapadas. O que se pressupõe é que um direito privado hábil a preservar indefinidamente as condições para a equanimidade das operações de mercado ou não é desenhável ou, se o fosse, apresentaria um grau de sofisticação que sobrecarregaria excessivamente os negociantes ( RAWLS, 2005RAWLS, John. Political Liberalism. Ed. ampl. Nova York: Columbia University Press, 2005. , p. 267-268).

De acordo com a tese da mão invisível perversa, também não depende de que os cidadãos atuem de maneira deliberada a fim de minar a igualdade de oportunidades e outras condições de equanimidade. Ao contrário, essa tese é compatível com o que Rawls postula quanto ao senso de justiça dos cidadãos em uma sociedade bem ordenada. O efeito da mão invisível perversa é de atribuir, inclusive, a transações feitas por cidadãos não indiferentes à injustiça, e isso porque é simplesmente impossível para as partes de um contrato antecipar o impacto que esse contrato, junto aos outros, terá sobre as condições sociais de fundo.

Uma implicação da tese da mão invisível perversa – qualificada dos dois modos recém-descritos – é que o direito privado não é suficiente para que uma estrutura básica atenda à justiça como equidade. São necessárias, portanto, instituições que corrijam os efeitos acumulados do mercado, contrapondo-se à tendência à erosão das condições de equanimidade que é própria dos atos negociais.

5. A DIVISÃO INSTITUCIONAL DO TRABALHO

No mesmo capítulo em que Rawls (2005)RAWLS, John. Political Liberalism. Ed. ampl. Nova York: Columbia University Press, 2005. enuncia a tese da mão invisível perversa, o autor refere-se, algumas páginas adiante, a uma divisão institucional do trabalho:

Assim, em quarto lugar e finalmente, chegamos à ideia de uma divisão do trabalho entre duas espécies de regras sociais e as diferentes instituições nas quais essas regras se fazem presentes. A estrutura básica compreende, em primeiro lugar, as instituições que definem as condições de fundo sociais e incluem as ações que continuamente ajustam e tratam de compensar pelas inevitáveis tendências a que nos distanciemos de condições de fundo justas, tais como, por exemplo, a taxação da renda e das heranças destinada a igualar a posse de recursos. Essa estrutura também faz valer, por meio do sistema jurídico, um outro conjunto de regras que governam as transações e acordos entre indivíduos e associações (o direito contratual, e assim por diante). Regras sobre dolo negocial e coação, e outras similares, fazem parte dessas regras e atendem a requisitos de simplicidade e conveniência. Elas são desenhadas para deixar indivíduos e associações livres para agir eficazmente em busca de seus objetivos, sem entraves excessivos.

Para concluir: começamos com a estrutura básica e tentamos verificar como essa estrutura mesma deve fazer os ajustes necessários a preservar a justiça de fundo. O que procuramos, com efeito, é uma divisão institucional do trabalho entre a estrutura básica e as regras que se aplicam diretamente a indivíduos e associações e que devem ser seguidas por eles em suas transações. Se essa divisão do trabalho puder ser estabelecida, indivíduos e associações serão deixados livres para perseguir seus fins mais eficazmente dentro da moldura da estrutura básica, seguros em saber que, em outro lugar do sistema social, as correções necessárias para preservar a justiça de fundo estão sendo feitas. ( RAWLS, 2005RAWLS, John. Political Liberalism. Ed. ampl. Nova York: Columbia University Press, 2005. , p. 268-269, tradução minha)10 10 No original: “Thus, fourth and finally, we arrive at the idea of a division of labor between two kinds of social rules, and the different institutional forms in which these rules are realized. The basic structure comprises first the institutions that define the social background and includes as well those operations that continually adjust and compensate for the inevitable tendencies away from background fairness, for example, such operations as income and inheritance taxation designed to even out the ownership of property. This structure also enforces through the legal system another set of rules that govern the transactions and agreements between individuals and associations (the law of contract, and so on). The rules relating to fraud and duress, and the like, belong to these rules, and satisfy the requirements of simplicity and practicality. They are framed to leave individuals and associations free to act effectively in pursuit of their ends and without excessive constraints. To conclude: we start with the basic structure and try to see how this structure itself should make the adjustments necessary to preserve background justice. What we look for, in effect, is an institutional division of labor between the basic structure and the rules applying directly to individuals and associations and to be followed by them in particular transactions. If this division of labor can be established, individuals and associations are then left free to advance their ends more effectively within the framework of the basic structure, secure in the knowledge that elsewhere in the social system the necessary corrections to preserve background justice are being made”. Rawls volta a mencionar a divisão institucional do trabalho (2005, p. 283-284, 288). Essa mesma ideia é encontrada em obra anterior do autor ( RAWLS, 2001 , p. 53-54).

Em certo sentido, a divisão institucional do trabalho que Rawls tem em vista nesse trecho não passa de uma implicação da tese da mão invisível perversa somada à presunção de haver um direito privado –, isto é, de que um direito privado esteja entre as instituições de uma sociedade bem ordenada. Se a tese da mão invisível perversa estiver correta e um direito privado for presumido, então há ao menos duas funções que as instituições de uma sociedade bem ordenada exercem, e essas funções não podem ser – não, ao menos, de todo – exercidas pelas mesmas instituições. Deixe-me explicar.

Uma das mencionadas funções é o regramento de atos negociais – função essa que se inclui com a presunção de que, em uma sociedade bem ordenada, transações entre particulares submetem-se a certas regras gerais. A outra função consiste em preservar o que Rawls chama de justiça de fundo ( backgroud justice ), ou seja, as condições de equanimidade sob as quais, e somente sob as quais, os resultados das operações de mercado legitimam-se. Pela tese da mão invisível perversa, sabemos que essa segunda função não pode ser desempenhada apenas pelo direito privado –, isto é, que nenhum regramento dos atos negociais é capaz de se contrapor, por si só, à tendência a que os resultados de longo prazo do mercado minem as condições necessárias a que transações sejam equânimes. Segue daí a imprescindibilidade de uma divisão de tarefas entre o direito privado e outras instituições (por exemplo, o direito fiscal): enquanto o primeiro se ocupa com atos negociais, outras instituições são necessárias à função de manter a justiça de fundo.

Para alguns autores ( KRONMAN, 1980KRONMAN, Anthony Townsend. Contract Law and Distributive Justice. Yale Law Journal, v. 89, n. 3, p. 472-511, 1980. , p. 500; MURPHY, 1998MURPHY, Liam B. Institutions and the Demands of Justice. Philosophy & Public Affairs, v. 27, n. 4, p. 251-291, 1998. , p. 258), porém, a divisão institucional do trabalho à qual Rawls se refere na passagem anterior envolve mais do que uma pluralidade de instituições para desempenhar as duas funções recém-descritas. Segundo tal interpretação (que chamarei de interpretação forte), a divisão institucional do trabalho envolve destituir completamente o direito privado da função de preservar a justiça de fundo. Essa ideia mais radical de uma divisão de tarefas implica, pois, que o regramento dos atos negociais fique completamente imune às demandas distributivas da justiça como equidade, já que a função de atender a essas demandas – e de conservar, assim, as condições sob as quais os atos negociais podem ocorrer equanimemente – seria entregue exclusivamente a outras instituições que não as do direito privado. A interpretação forte da divisão institucional do trabalho trata o direito privado, em suma, como área de regulação alheia aos princípios da justiça como equidade, ou, ao menos, do segundo princípio e das suas demandas distributivas.

A interpretação forte da divisão institucional do trabalho é sugerida pela frase “[o] que procuramos, com efeito, é uma divisão institucional do trabalho entre a estrutura básica e as regras que se aplicam diretamente a indivíduos e associações e que devem ser seguidas por eles em suas transações” ( RAWLS, 2005RAWLS, John. Political Liberalism. Ed. ampl. Nova York: Columbia University Press, 2005. , p. 268-269, tradução minha).11 11 No original: “[w]hat we look for, in effect, is an institutional division of labor between the basic structure and the rules applying directly to individuals and associations and to be followed by them in particular transactions”. Sabemos que a justiça como equidade se aplica à (e somente à) estrutura básica da sociedade. Logo, ao contrapor estrutura básica e direito privado, Rawls dá a entender que o segundo não pertence à primeira, o que leva à conclusão de que o direito privado (ou, ao menos, a parte do direito privado que se ocupa com atos negociais) não se sujeita aos princípios da justiça como equidade.12 12 Por outro lado, no início da passagem transcrita, Rawls trata as regras aplicáveis às transações como parte da estrutura básica: “A estrutura básica compreende, em primeiro lugar, as instituições que definem as condições de fundo sociais e incluem as ações que continuamente ajustam e tratam de compensar pelas inevitáveis tendências a que nos distanciemos de condições de fundo justas [...]. Essa estrutura também faz valer , por meio do sistema jurídico, um outro conjunto de regras que governam as transações e acordos entre indivíduos e associações (o direito contratual, e assim por diante)” (grifo meu). No original: “[t]he basic structure comprises first the institutions that define the social background and includes as well those operations that continually adjust and compensate for the inevitable tendencies away from background fairness [...]. This structure also enforces through the legal system another set of rules that govern the transactions and agreements between individuals and associations (the law of contract, and so on)”.

Essa conclusão, contudo, é precipitada. A interpretação forte da divisão institucional do trabalho é difícil de aceitar, a começar porque põe em xeque (sob qual argumento?) o critério do impacto. Como observamos, fazem parte da estrutura básica, segundo esse critério, as instituições cujo impacto sobre as expectativas dos cidadãos seja considerável. A interpretação forte põe-nos diante do dilema de ou abandonar o critério do impacto ou aceitar como premissa que instituições do direito privado não são impactantes. Tal premissa é, porém, insustentável, não só por ser empiricamente desmentida – por exemplo, pela importância dos direitos da propriedade e dos contratos nas sociedades capitalistas ( SCHEFFLER, 2015SCHEFFLER, Samuel. Distributive Justice, the Basic Structure and the Place of Private Law. Oxford Journal of Legal Studies, v. 35, n. 2, p. 213-235, 2015. , p. 219-220) – como porque postula algo (a importância secundária de certas instituições) que somente poderia ser afirmado à vista das particulares circunstâncias de cada época e lugar.

Outra consideração é que a divisão institucional do trabalho é mencionada em Rawls (2005)RAWLS, John. Political Liberalism. Ed. ampl. Nova York: Columbia University Press, 2005. logo após a tese da mão invisível perversa e é tratada pelo autor como uma implicação dessa tese. A tese da mão invisível perversa, no entanto, não implica o sentido forte da divisão institucional do trabalho, porque se limita a postular que o direito privado não baste, por si só, para preservar a justiça de fundo. Afirmar que outras instituições (como o direito fiscal) que se conformem aos princípios da justiça como equidade são necessárias para que as condições para a equanimidade das transações entre particulares se mantenham não é o mesmo que afirmar que somente essas outras instituições devem se conformar aos ditos princípios.

Por fim, tampouco é um argumento em favor de uma divisão institucional do trabalho em sentido forte o de que o direito privado não pode ser excessivamente complicado ( RAWLS, 2005RAWLS, John. Political Liberalism. Ed. ampl. Nova York: Columbia University Press, 2005. , p. 267-268). Afirmar que a aplicação da justiça como equidade traz consigo complicação excessiva é tão correto no que se refere ao direito privado como quanto às outras instituições, por exemplo, a legislação do imposto de renda. Em qualquer dos casos, há boas razões para que esse receio não se confirme. Se como complicação excessiva se entender alto grau de detalhamento das regras, deve-se ter em mente, em primeiro lugar, a ideia de estrutura básica e o modo como, segundo o critério do impacto, essa estrutura é delimitada. Se instituições se sujeitam à concepção de justiça escolhida na posição original apenas sob a condição de que seu impacto sobre as expectativas dos cidadãos seja considerável, então as questões tratadas como questões de justiça são as que dizem respeito aos principais contornos dessas instituições, e não ao seu detalhamento. Ademais, no que diz respeito, em particular, à justiça como equidade, um regramento excessivamente detalhado na área dos atos negociais ou em outra qualquer, à medida que se mostrasse contraproducente, seria de rejeitar à luz dessa mesma concepção, ao menos se entendermos o princípio da diferença como um princípio sensível a questões de eficiência.

Em contrapartida, pode ser que a complicação excessiva que se tem em vista seja a de uma regulação vaga, em vez de altamente detalhada – como na ideia fantasmagórica de um direito contratual que condicionasse a validade de contratos à utilidade geral ou à vantagem dos cidadãos em pior situação. Sobre isso, é duvidoso que uma legislação de direito privado que se valha profusamente de “cláusulas gerais” (isto é, dispositivos de conteúdo vago) a fim de atender a princípios de justiça revele-se, de fato, a melhor estratégia para a realização desses princípios (considerações de eficiência têm novamente lugar aqui). No caso da justiça como equidade, essa estratégia também estaria, no mínimo, em tensão – quando não na franca contramão – das liberdades políticas abrangidas pelo primeiro dos dois princípios.

6. A “COLONIZAÇÃO” DISTRIBUTIVA DO DIREITO PRIVADO

Que uma divisão institucional do trabalho em sentido forte seja rejeitada – e que, portanto, uma concepção de justiça que se ocupa da distribuição de bens primários, como a justiça como equidade, seja aplicável ao direito privado – dá margem à certa contrariedade quanto a uma “colonização” dessa área do direito por princípios de justiça distributiva. Samuel Scheffler (2015SCHEFFLER, Samuel. Distributive Justice, the Basic Structure and the Place of Private Law. Oxford Journal of Legal Studies, v. 35, n. 2, p. 213-235, 2015. , p. 223-224) descreve o problema da seguinte maneira:

Primeiro, quando pessoas fazem contratos, elas exercem uma atividade que se sobrepõe e está em uma complexa (e controversa) relação com outras formas de compromisso e acordo, como a promessa, que, por sua vez, envolvem importantes valores e normas. Insistir, em um espírito fortemente distributivista, que o conteúdo do direito contratual seja inteiramente determinado pelo princípio da diferença, ou por algum princípio similar, pode pôr esses valores e normas em perigo. Correríamos o risco de substituí-los em favor do requisito amplo de que acordos contratuais sirvam a objetivos distributivos. Em segundo lugar, muitos dos valores que se aplicam a interações específicas entre indivíduos têm um caráter patentemente relacional. Seu foco é sobre o nexo entre os indivíduos em questão. Esses valores estão envolvidos quando, por exemplo, falamos do que uma pessoa deve a outra, ou de uma pessoa tendo feito mal a uma segunda, ou da segunda tendo alguma queixa a fazer contra a primeira. Muito do direito privado tal como tradicionalmente concebido possui um caráter similarmente relacional ou “bipolar” [nota de rodapé omitida].13 13 No original: “[f]irst, when people enter into contractual arrangements, they engage in an activity that overlaps with and stands in a complex (and contested) relation to other forms of commitment and agreement-making, such as promising, which themselves implicate important values and norms. To insist, in a strong distributivist spirit, that the content of contract law was fully determined by the difference principle, or by any similar principle, might place these values and norms in jeopardy. It might risk displacing them in favour of the one overarching requirement that contractual agreements must serve distributive ends. Second, many of the values that apply to specific interactions between individuals have a distinctively relational character. They focus on the nexus linking the individuals in question. Such values are implicated when, for example, we speak of what one person owes to another, or of the first person as having wronged the second, or of the second as having a complaint against the first. Much of the private law as traditionally conceived has a similarly relational or ‘bipolar’ character”. (Tradução minha)

Entretanto, se considerarmos a justiça como equidade como uma concepção de justiça para a estrutura básica da sociedade apenas (e definirmos essa estrutura de acordo com o critério do impacto), então não é correto afirmar que o direito contratual (ou qualquer outra parte do direito privado) seria completamente determinado pelo princípio da diferença. O que o princípio da diferença, em conjunto com os demais princípios da justiça como equidade, determina são, quando muito, as grandes linhas do direito privado, isto é, as características dessa área de regulação cujo impacto sobre as expectativas dos cidadãos seja mais pronunciado.14 14 O receio de Scheffler mostra-se fundamentado, no entanto, se considerarmos o que afirmam Kordana e Tabachnick (2005) sobre as implicações da justiça como equidade para o direito privado.

O limite da estrutura básica também implica que a aplicação de um direito privado orientado pela justiça como equidade não se funcionalize de maneira incompatível com o caráter tradicionalmente retrospectivo e correlativo do raciocínio judicial nesse âmbito do direito. Um receio é que, a fim de satisfazer princípios de justiça distributiva, decisões judiciais na área do direito privado tenham de ser consequencialistas. Em vez da interação pretérita das partes, essas decisões passariam a depender, pois, da conveniência, tendo em vista as consequências, de mandar ou não cumprir um contrato ou de condenar a parte ré a indenizar a autora. Dado, porém, que a justiça como equidade só se ocupa com as partes do regime de direito privado que pertençam à estrutura básica da sociedade – e, portanto, só com as linhas fundamentais dessa área de regulação – o que se sujeita às suas demandas distributivas são apenas as regras do direito privado, e não o seu modo de aplicação. Tampouco é provável, como ponderado anteriormente, que essas regras apelem elas mesmas para as consequências (do cumprimento de um contrato, etc.), o que sujeitaria as relações de direito privado à enorme imprevisibilidade.

A crítica da colonização pode ser restabelecida, no entanto, nos seguintes termos. Ainda que a justiça como equidade se limite à estrutura básica da sociedade, e que, portanto, os seus princípios não determinem as regras de direito privado em detalhe nem deem lugar a um consequencialismo judicial, o fato é que a sujeição à justiça como equidade subordina quaisquer outras normas e valores do direito privado a demandas distributivas. Essas outras normas – entre as quais provavelmente estariam aquelas às quais Scheffler se refere como relacionais ou bilaterais – só teriam guarida na regulação de direito privado à medida que não contrariasse princípios de justiça distributiva que, embora com âmbito de aplicação restrito aos grandes contornos do regime, gozariam de primazia. A crítica da colonização pode, pois, ser refeita com o sentido de se opor não ao alcance com que princípios distributivos são aplicados no direito privado, mas à prioridade conferida a esses princípios perante normas e valores que são próprios ou inerentes às relações entre particulares.

Nos últimos anos, teorias do direito privado refratárias à justiça distributiva alcançaram notável grau de sofisticação.15 15 Entre os autores a consultar estão Ernest Weinrib (1995) , Arthur Ripstein (1999) e Jules Coleman (2001) . Como não é possível tratar aqui dessas críticas em todas as suas nuanças, limito-me a fazer algumas breves considerações. Primeiro, e como já adiantado, à medida que a resistência à aplicação de princípios de justiça distributiva tenha relação ao zelo pela “integridade” do direito privado, isto é, pelas características estruturais de certa prática interpretativa – como a correlação entre autor e réu e o não consequencialismo –, essa resistência, ao menos no que toca a uma concepção de justiça como a justiça como equidade, é infundada. É verdade que não se pode descartar que, a depender das circunstâncias, os princípios da justiça como equidade requeiram renunciar, ao todo ou em parte, ao direito privado em favor de instituições alternativas. Em geral, no entanto, críticos opõem-se menos à abolição das práticas de direito privado do que à “contaminação” dessas práticas por princípios que não condizem ao seu caráter.16 16 É o caso, por exemplo, de Weinrib (1995) . Quanto a isso, deve-se insistir para o fato de que um direito privado conformado, em linhas gerais, pelos princípios de uma concepção de justiça procedimental pura, como é a justiça como equidade, seria, por razões próprias a esses mesmos princípios, um direito privado constituído por regras de aplicação previsível – regras, pois, cuja aplicação se orientaria pelas características da interação entre autor e réu, e não pelas consequências da decisão para a sociedade em geral.

Em compensação, deve-se atentar aos limites – e ao caráter ideológico, até – de teorias do direito privado que, com o apelo a princípios de justiça transacional que privilegiam a relação entre autor e réu (partes de um contrato, agente e vítima do dano, etc.), releguem a um plano secundário o fato de as regras de direito privado serem parte de uma estrutura institucional mais ampla com base na qual a cooperação social (e a distribuição de seus benefícios e ônus) se dá. Contratos e atividades danosas (para ficarmos com esses dois exemplos) não ocorrem isoladamente, mas em um contexto institucional que vai muito além das regras diretamente aplicáveis a essas operações, um contexto que inclui regras sobre a propriedade em geral, o investimento, a produção e a tributação. A pretensão de que regras de direito privado sejam adequadamente justificadas nos impede de ficar indiferentes ao fato de essas regras fazerem parte de um sistema mais amplo de cooperação.

7. FORST E O DIREITO DE JUSTIFICAÇÃO

Encerro este artigo com breves considerações sobre a teoria da justiça que Rainer Forst tem desenvolvido nos últimos anos a partir da ideia de um direito de justificação. Para além de certa afinidade, há discrepâncias notáveis entre a justiça como equidade de Rawls e o direito de justificação de Forst para as quais darei ênfase a seguir.

A teoria da justiça de Forst é, como a de Rawls, uma teoria construída a partir da ideia de razão prática. Em Forst, no entanto, essa construção, feita nos moldes de uma pragmática formal ( FORST, 2012FORST, Rainer. The Right to Justification. Tradução Jeffrey Flynn. Nova York: Columbia University Press, 2012. ), não dá lugar a determinados princípios de justiça (como os princípios escolhidos na posição original de Rawls), mas a um direito de justificação. Esse é um direito de sujeitos capazes de razão a submeterem-se apenas a normas que não sejam (razoavelmente) de rejeitar, isto é, normas amparadas por razões que não satisfazem a critérios de reciprocidade e generalidade. De acordo com o primeiro desses critérios, não podemos recusar a outros algo que reclamamos para nós (reciprocidade de conteúdo), nem lhes atribuir interesses ou valores ou fazer apelo a verdades que não são compartilhadas (reciprocidade de razões). O critério da generalidade, por sua vez, requer que as razões para a justificação de normas sejam compartilháveis por todos os afetados.

Uma implicação importante do direito de justificação é a sua dependência em relação a discursos reais. A validade de uma norma somente pode ser aferida em procedimentos discursivos nos quais razões sejam aduzidas e a rejeitabilidade dessas razões pelos participantes seja testada. Esses discursos precisam, contudo, ocorrer sob certas condições, o que leva Forst a desdobrar sua concepção de justiça em dois níveis, nos seguintes termos: primeiro, uma estrutura básica de justificação é uma na qual se fazem presentes as condições para que normas sejam testadas discursivamente (nível de justiça fundamental ou mínima). Forst inclui nessa estrutura não somente liberdades, mas também certas condições materiais.17 17 Forst (2012 , p. 196-197): “[...] um ‘pôr em marcha’ da justificação mediante procedimentos democráticos construtivo-discursivos, nos quais o ‘poder justificatório’ é distribuído tão igualmente quanto possível entre os cidadãos. O que é preciso para isso são direitos e instituições específicos e uma diversidade de meios, que vão desde particulares capabilidades e informação até reais possibilidades de intervenção e controle no interior da estrutura básica; não se trata, portanto, de uma estrutura ‘minimalista’, ainda que seja uma estrutura materialmente justificada tão-somente pelo princípio da justificação [nota de rodapé omitida]”. No original: “a ‘setting in motion’ of justification through discursive-constructive democratic procedures, in which ‘justificatory power’ is distributed as equally as possible among citizens. What is needed for that is specific rights and institutions and a variety of means, from particular capabilities and information up to real possibilities for intervention and control within the basic structure: thus, not a ‘minimalist’ structure, though materially justified by the principle of justification alone [nota de rodapé omitida]”. Segundo, uma estrutura básica completamente justificada (nível de justiça máxima) é uma na qual as normas vigentes atendem ao direito de justificação, isto é, são normas justificadas por razões recíprocas e gerais ( FORST, 2012FORST, Rainer. The Right to Justification. Tradução Jeffrey Flynn. Nova York: Columbia University Press, 2012. , p. 196). “Justiça máxima significa, portanto, o estabelecimento de uma estrutura básica plenamente justificada, isto é, uma estrutura básica que confere os direitos, oportunidades na vida e bens que os cidadãos de uma sociedade justa não podem reciprocamente negar uns aos outros” ( FORST, 2014FORST, Rainer. Justification and Critique: Towards a Critical Theory of Politics. Tradução Ciaran Cronin. Cambridge: Polity Press, 2014. , p. 115-116, tradução minha).18 18 No original: “Maximal justice then means the establishment of a fully justified basic structure, that is, a basic structure that grants those rights, life chances, and goods that citizens of a just society could not reciprocally deny each other”. Uma concepção de justiça como essa embasa uma crítica a relações de justificação que também ocorre em dois níveis: o nível da crítica às razões atualmente aduzidas para a justificação de normas e o nível, mais fundamental, da crítica às condições sob as quais essas razões são apresentadas, isto é, das condições sob as quais procedimentos discursivos têm lugar. ( FORST, 2014FORST, Rainer. Justification and Critique: Towards a Critical Theory of Politics. Tradução Ciaran Cronin. Cambridge: Polity Press, 2014. , p. 8).

Uma diferença entre as concepções de justiça de Forst e Rawls reside no fato de que a primeira não se constitui de princípios já justificados e apenas à espera de aplicação. Uma estrutura básica completamente justificada, nos termos de Forst, depende de procedimentos discursivos reais.19 19 Esses procedimentos incluem tanto os que precedem imediatamente decisões políticas vinculantes (por exemplo, em parlamentos e tribunais) quanto os que se dão no âmbito de associações particulares e nos meios de comunicação social. Em Rawls, em contrapartida, embora a deliberação democrática não seja posta de lado ( RAWLS, 1997RAWLS, John. The Idea of Public Reason Revisited. University of Chicago Law Review, v. 64, n. 3, p. 765-807, 1997. e 2005RAWLS, John. Political Liberalism. Ed. ampl. Nova York: Columbia University Press, 2005. ), os princípios para a estrutura básica da sociedade, no sentido restrito que Rawls dá a essa expressão, encontram-se já justificados mediante o artifício teórico da posição original.

Outra diferença reside no alcance das duas concepções. Se, por um lado, a concepção de justiça de Forst é mais modesta do que a de Rawls, limitando-se a estipular condições para a justificação de normas, por outro lado, ela é mais ambiciosa quanto ao seu objeto, pois não se restringe às instituições de maior impacto para a distribuição dos benefícios e ônus da cooperação (isto é, à estrutura básica da sociedade, no sentido de Rawls). O que interessa para Forst são relações de justificação em geral – portanto, não apenas a justificação das principais instituições sociais, mas de quaisquer normas (inclusive normas não jurídicas).

Uma última diferença a ressaltar diz respeito à ênfase na distribuição. A questão central com a qual a justiça como equidade se ocupa é a questão da distribuição dos benefícios e ônus da cooperação social ou, mais precisamente, das instituições sob as quais essa distribuição se dá. Para alguns intérpretes (por exemplo, YOUNG, 1990YOUNG, Iris Marion. Justice and the Politics of Difference. Princeton: Princeton University Press, 1990. ), essa ênfase no problema distributivo relegaria a um segundo plano questões cruciais, como a da propriedade dos meios de produção, da opressão contra as mulheres e do racismo – questões que não seriam tratáveis como de mera distribuição. No caso de Forst, em contrapartida, o que se sujeita ao requerimento de justificação não são apenas padrões distributivos, mas relações sociais em geral ( FORST, 2014FORST, Rainer. Justification and Critique: Towards a Critical Theory of Politics. Tradução Ciaran Cronin. Cambridge: Polity Press, 2014. , p. 18-19; FORST, 2017FORST, Rainer. Normativity and Power. Tradução Ciaran Cronin. Oxford: Oxford University Press, 2017. , Cap. 7). Assim, mesmo uma estrutura básica ideal do ponto de vista distributivo – por exemplo, uma que maximiza as expectativas dos cidadãos em pior situação – pode ser criticada por envolver relações de dominação ou opressão injustificáveis.

8. JUSTIÇA COMO EQUIDADE E DIREITO DE JUSTIFICAÇÃO: DOIS DESENHOS DA JUSTIÇA NO DIREITO PRIVADO

Nesta última seção, faço um esforço para resumir as considerações anteriores com dois desenhos da justiça no direito privado, o primeiro, baseado nas considerações feitas anteriormente sobre as implicações da teoria da justiça de Rawls para o direito privado e o segundo, com mais nítido caráter de esboço, a partir da sintética apresentação da concepção de justiça como direito de justificação de Forst feita na seção precedente.

O direito privado da justiça como equidade é um direito cujas características principais – entendidas como tais aquelas com mais impacto sobre as expectativas dos cidadãos quanto à distribuição de bens primários – fazem parte de uma estrutura institucional mais ampla, ou estrutura básica, que deve se conformar aos princípios que, segundo Rawls, seriam escolhidos na posição original. De acordo com essa concepção, não há estados de coisas distributivos que o direito privado (ou quaisquer outras instituições) devam perseguir – muito menos estados de coisas a serem levados em consideração, à moda consequencialista, na aplicação das regras de direito privado. Como concepção de justiça procedimental pura, a justiça como equidade trata o direito privado como parte de um processo social sujeito a certos princípios (em vez de atrelado à realização de certos objetivos). A depender das circunstâncias, a justiça como equidade é compatível com a ideia de que partes inteiras do direito privado sejam abolidas ou substituídas por outras instituições.

Tendo como ponto de partida um direito à justificação nos moldes defendidos por Forst, a justiça do direito privado fulcrar-se-ia na reciprocidade e generalidade das razões aduzidas em favor de suas normas, bem como em uma estrutura básica de justificação. O imperativo de justificação aplica-se à totalidade do direito privado, e não apenas às suas partes com maior impacto sobre as expectativas dos cidadãos. Em contraposição à justiça como equidade, a demanda que o direito de justificação impõe ao direito privado é uma demanda por razões recíprocas e gerais, e não por razões vinculadas a uma particular forma de justiça – como a justiça distributiva. É plausível que demandas distributivas tenham de ser atendidas a fim de lograr uma estrutura básica de justificação, mas não necessariamente por meio do direito privado. Em contrapartida, embora agnóstica quanto à forma de justiça – distributiva, corretiva ou outra – pela qual o direito privado deve se orientar, a concepção de justiça de Forst não é compatível a estratégias de justificação que arbitrariamente tratem o direito privado como objeto à parte, isto é, independente da estrutura institucional mais ampla à qual pertence. É uma questão aberta a de saber se o direito privado pode ser adequadamente justificado20 20 Tal como pretende Ernest Weinrib (1995) . de maneira independente de outras instituições, mas uma questão – eis o ponto – a ser respondida discursivamente. Em contraposição à ideologia de um direito privado como corpo de normas ancoradas em um saber especializado e alheio a decisões políticas fundamentais – como corpo de normas, portanto, pouco afeito à deliberação pública – uma estrutura básica de justificação deve propiciar condições para que as questões do direito privado – questões sobre a propriedade, sobre os requisitos de validade de contratos, sobre a responsabilidade por danos, etc. – possam ser discursivamente enfrentadas com a participação de todos os afetados.

AGRADECIMENTOS

O autor agradece a dois pareceristas anônimos pelos generosos (conquanto críticos) comentários feitos a uma versão anterior deste artigo, bem como ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) pelo apoio financeiro à pesquisa.

REFERÊNCIAS

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  • COLEMAN, Jules. The Practice of Principle: In Defence of a Pragmatist Approach to Legal Theory. Oxford: Oxford University Press, 2001.
  • FORST, Rainer. Normativity and Power. Tradução Ciaran Cronin. Oxford: Oxford University Press, 2017.
  • FORST, Rainer. Justification and Critique: Towards a Critical Theory of Politics. Tradução Ciaran Cronin. Cambridge: Polity Press, 2014.
  • FORST, Rainer. The Right to Justification. Tradução Jeffrey Flynn. Nova York: Columbia University Press, 2012.
  • FREEMAN, Samuel. Liberalism and Distributive Justice. Oxford: Oxford University Press, 2018.
  • KORDANA, Kevin A.; TABACKNICK, David H. Rawls and Contract Law. George Washington Law Review, v. 73, n. 3, p. 598-632, 2005.
  • KRONMAN, Anthony Townsend. Contract Law and Distributive Justice. Yale Law Journal, v. 89, n. 3, p. 472-511, 1980.
  • MURPHY, Liam B. Institutions and the Demands of Justice. Philosophy & Public Affairs, v. 27, n. 4, p. 251-291, 1998.
  • RAWLS, John. Political Liberalism. Ed. ampl. Nova York: Columbia University Press, 2005.
  • RAWLS, John. Justice as Fairness: A Restatement. Cambridge: Belknap Press, 2001.
  • RAWLS, John. The Idea of Public Reason Revisited. University of Chicago Law Review, v. 64, n. 3, p. 765-807, 1997.
  • RAWLS, John. A Theory of Justice. Cambridge: Belknap Press, 1971.
  • RIPSTEIN, Arthur. Equality, Responsibility, and the Law. Cambridge: Cambridge University Press, 1999.
  • SCHEFFLER, Samuel. Distributive Justice, the Basic Structure and the Place of Private Law. Oxford Journal of Legal Studies, v. 35, n. 2, p. 213-235, 2015.
  • WEINRIB, Ernest. The Idea of Private Law. Cambridge: Harvard University Press, 1995.
  • YOUNG, Iris Marion. Justice and the Politics of Difference. Princeton: Princeton University Press, 1990.
  • 1
    No original: “[t]aken together as one scheme, the major institutions define men’s rights and duties and influence their life prospects, what they can expect to be and how well they can hope to do. The basic structure is the primary subject of justice because its effects are so profound and present from the start”.
  • 2
    No original: “(a) Each person has the same indefeasible claim to a fully adequate scheme of equal basic liberties, which scheme is compatible with the same scheme of liberties for all; and (b) Social and economic inequalities are to satisfy two conditions: first, they are to be attached to offices and positions open to all under conditions of fair equality of opportunity; and second, they are to be to the greatest benefit of the least-advantaged members of society (the difference principle)”.
  • 3
    Rawls manifesta dúvida sobre a relação de prioridade léxica entre o princípio da equitativa igualdade de oportunidades e o princípio da diferença (2001, p. 163).
  • 4
    Rawls chama essas concepções de justiça de alocativas. Para a diferença entre a justiça como equidade, como exemplo de concepção de justiça procedimental pura, e concepções alocativas de justiça, ver Rawls (2001RAWLS, John. Justice as Fairness: A Restatement. Cambridge: Belknap Press, 2001. , p. 50-51).
  • 5
    No original: “Other things equal, the persons in the original position will adopt the more stable scheme of principles”.
  • 6
    Nesse sentido, ver Kordana e Tabachnick (2005)KORDANA, Kevin A.; TABACKNICK, David H. Rawls and Contract Law. George Washington Law Review, v. 73, n. 3, p. 598-632, 2005. , Scheffler (2015)SCHEFFLER, Samuel. Distributive Justice, the Basic Structure and the Place of Private Law. Oxford Journal of Legal Studies, v. 35, n. 2, p. 213-235, 2015. e Freeman (2018FREEMAN, Samuel. Liberalism and Distributive Justice. Oxford: Oxford University Press, 2018. , cap. 5).
  • 7
    Como visto, Rawls (1971RAWLS, John. A Theory of Justice. Cambridge: Belknap Press, 1971. , p. 7) alude ao critério do impacto, ao afirmar que “a estrutura básica é o objeto primário da justiça porque seus efeitos são tão profundos e se fazem presentes desde muito cedo” (no original: “[t]he basic structure is the primary subject of justice because its effects are so profound and present from the start”). É uma questão duvidosa a de saber se, além do impacto, é uma condição necessária para que uma instituição pertença à estrutura básica da sociedade a de que ela seja coerciva (sobre a ambiguidade de Rawls a esse respeito, ver Cohen (2008COHEN, Gerard Allan. Rescuing Justice and Equality. Cambridge: Harvard University Press, 2008. , p. 132-134). Como, no entanto, as instituições de direito privado são instituições coercivas, o eventual acréscimo dessa condição não prejudica a tese defendida acima, a saber, a de que o direito privado, a depender do seu impacto, inclui-se entre as instituições sujeitas à justiça como equidade.
  • 8
    No original: “suppose we begin with the initially attractive idea that social circumstances and people’s relationships to one another should develop over time in accordance with free agreements fairly arrived at and fully honored. Straightway we need and account of when agreements are free and the social circumstances under which they are reached are fair. In addition, while these conditions may be fair at an earlier time, the accumulated results of many separate and ostensibly fair agreements, together with social trends and historical contingencies, are likely in the course of time to alter citizens’ relationships and opportunities so that the conditions for free and fair agreements no longer hold. The role of the institutions that belong to the basic structure is to secure just background conditions against which the actions of individuals and associations take place. Unless this structure is appropriately regulated and adjusted, an initially just social process will eventually cease to be just, however free and fair particular transactions may look when viewed by themselves”.
  • 9
    Repare que, à medida que a tese da mão invisível perversa seja uma tese sobre a insuficiência do direito privado para a justiça distributiva, trata-se de uma tese sobre a insuficiência de regras diretamente aplicáveis às transações entre particulares, como as regras tradicionais dos direitos dos contratos e da responsabilidade civil. Essa tese não se refere a uma acepção mais ampla de direito privado, isto é, a uma acepção na qual o direito privado inclua disposições tais como a da legislação antitruste ou responsabilidade social empresarial. Agradeço a um(a) parecerista anônimo(a) por me instar a ser mais claro quanto a esse ponto.
  • 10
    No original: “Thus, fourth and finally, we arrive at the idea of a division of labor between two kinds of social rules, and the different institutional forms in which these rules are realized. The basic structure comprises first the institutions that define the social background and includes as well those operations that continually adjust and compensate for the inevitable tendencies away from background fairness, for example, such operations as income and inheritance taxation designed to even out the ownership of property. This structure also enforces through the legal system another set of rules that govern the transactions and agreements between individuals and associations (the law of contract, and so on). The rules relating to fraud and duress, and the like, belong to these rules, and satisfy the requirements of simplicity and practicality. They are framed to leave individuals and associations free to act effectively in pursuit of their ends and without excessive constraints. To conclude: we start with the basic structure and try to see how this structure itself should make the adjustments necessary to preserve background justice. What we look for, in effect, is an institutional division of labor between the basic structure and the rules applying directly to individuals and associations and to be followed by them in particular transactions. If this division of labor can be established, individuals and associations are then left free to advance their ends more effectively within the framework of the basic structure, secure in the knowledge that elsewhere in the social system the necessary corrections to preserve background justice are being made”. Rawls volta a mencionar a divisão institucional do trabalho (2005, p. 283-284, 288). Essa mesma ideia é encontrada em obra anterior do autor ( RAWLS, 2001RAWLS, John. Justice as Fairness: A Restatement. Cambridge: Belknap Press, 2001. , p. 53-54).
  • 11
    No original: “[w]hat we look for, in effect, is an institutional division of labor between the basic structure and the rules applying directly to individuals and associations and to be followed by them in particular transactions”.
  • 12
    Por outro lado, no início da passagem transcrita, Rawls trata as regras aplicáveis às transações como parte da estrutura básica: “A estrutura básica compreende, em primeiro lugar, as instituições que definem as condições de fundo sociais e incluem as ações que continuamente ajustam e tratam de compensar pelas inevitáveis tendências a que nos distanciemos de condições de fundo justas [...]. Essa estrutura também faz valer , por meio do sistema jurídico, um outro conjunto de regras que governam as transações e acordos entre indivíduos e associações (o direito contratual, e assim por diante)” (grifo meu). No original: “[t]he basic structure comprises first the institutions that define the social background and includes as well those operations that continually adjust and compensate for the inevitable tendencies away from background fairness [...]. This structure also enforces through the legal system another set of rules that govern the transactions and agreements between individuals and associations (the law of contract, and so on)”.
  • 13
    No original: “[f]irst, when people enter into contractual arrangements, they engage in an activity that overlaps with and stands in a complex (and contested) relation to other forms of commitment and agreement-making, such as promising, which themselves implicate important values and norms. To insist, in a strong distributivist spirit, that the content of contract law was fully determined by the difference principle, or by any similar principle, might place these values and norms in jeopardy. It might risk displacing them in favour of the one overarching requirement that contractual agreements must serve distributive ends. Second, many of the values that apply to specific interactions between individuals have a distinctively relational character. They focus on the nexus linking the individuals in question. Such values are implicated when, for example, we speak of what one person owes to another, or of the first person as having wronged the second, or of the second as having a complaint against the first. Much of the private law as traditionally conceived has a similarly relational or ‘bipolar’ character”.
  • 14
    O receio de Scheffler mostra-se fundamentado, no entanto, se considerarmos o que afirmam Kordana e Tabachnick (2005)KORDANA, Kevin A.; TABACKNICK, David H. Rawls and Contract Law. George Washington Law Review, v. 73, n. 3, p. 598-632, 2005. sobre as implicações da justiça como equidade para o direito privado.
  • 15
    Entre os autores a consultar estão Ernest Weinrib (1995)WEINRIB, Ernest. The Idea of Private Law. Cambridge: Harvard University Press, 1995. , Arthur Ripstein (1999)RIPSTEIN, Arthur. Equality, Responsibility, and the Law. Cambridge: Cambridge University Press, 1999. e Jules Coleman (2001)COLEMAN, Jules. The Practice of Principle: In Defence of a Pragmatist Approach to Legal Theory. Oxford: Oxford University Press, 2001. .
  • 16
    É o caso, por exemplo, de Weinrib (1995)WEINRIB, Ernest. The Idea of Private Law. Cambridge: Harvard University Press, 1995. .
  • 17
    Forst (2012FORST, Rainer. The Right to Justification. Tradução Jeffrey Flynn. Nova York: Columbia University Press, 2012. , p. 196-197): “[...] um ‘pôr em marcha’ da justificação mediante procedimentos democráticos construtivo-discursivos, nos quais o ‘poder justificatório’ é distribuído tão igualmente quanto possível entre os cidadãos. O que é preciso para isso são direitos e instituições específicos e uma diversidade de meios, que vão desde particulares capabilidades e informação até reais possibilidades de intervenção e controle no interior da estrutura básica; não se trata, portanto, de uma estrutura ‘minimalista’, ainda que seja uma estrutura materialmente justificada tão-somente pelo princípio da justificação [nota de rodapé omitida]”. No original: “a ‘setting in motion’ of justification through discursive-constructive democratic procedures, in which ‘justificatory power’ is distributed as equally as possible among citizens. What is needed for that is specific rights and institutions and a variety of means, from particular capabilities and information up to real possibilities for intervention and control within the basic structure: thus, not a ‘minimalist’ structure, though materially justified by the principle of justification alone [nota de rodapé omitida]”.
  • 18
    No original: “Maximal justice then means the establishment of a fully justified basic structure, that is, a basic structure that grants those rights, life chances, and goods that citizens of a just society could not reciprocally deny each other”.
  • 19
    Esses procedimentos incluem tanto os que precedem imediatamente decisões políticas vinculantes (por exemplo, em parlamentos e tribunais) quanto os que se dão no âmbito de associações particulares e nos meios de comunicação social.
  • 20
    Tal como pretende Ernest Weinrib (1995)WEINRIB, Ernest. The Idea of Private Law. Cambridge: Harvard University Press, 1995. .

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Jun 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    27 Jul 2020
  • Aceito
    20 Jan 2022
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