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EDITORIAL

Esta edição da Revista Direito GV está dividida em duas partes. A primeira parte apresenta o dossiê especial Gênero, Raça e Pobreza: a abordagem de múltiplas identidades pelo Direito, idealizado e coeditado em parceria com a professora da FGV Direito SP Marta Rodriguez de Assis Machado. A segunda parte traz artigos inéditos sobre temas variados recebidos pelo processo de submissão contínuo da revista.

Desde os anos de 1950, o tema do desenvolvimento social ganhou centralidade nos campos da política e da administração pública, assim como no pensamento social latino-americano. Os processos de industrialização e urbanização, a migração do campo para as cidades e a explosão demográfica foram analisados, principalmente, sob a lente da sociedade de classes. Classe social, pobreza, trabalho assalariado, desigualdades campo-cidade, centro-periferia e o papel regulador ou interventor do Estado na mobilização da economia e na promoção de políticas sociais focalizadas são exemplos dos temas que compuseram o debate sobre desenvolvimento.

Nessa agenda, tiveram pouco ou quase nenhum espaço, questões relativas ao impacto de tais processos na (re)produção de desigualdades que atingiam de forma específica certos grupos despossuídos como negros, mulheres e indígenas: a ocupação de terras Brasil afora e a expulsão indígena; a incorporação subalterna do negro no mercado de trabalho, a segregação racial dos espaços urbanos e a violência institucional contra a população negra; a segmentação do mercado de trabalho para absorver a participação feminina limitada a determinadas posições – em especial o trabalho doméstico informal – e a discriminação salarial.

A transição para a democracia no fim da década de 1970 abriu espaço para (e catalisou) a organização de movimentos sociais que denunciavam os efeitos específicos da desigualdade nas relações raciais/étnicas e de gênero e que demandavam o reconhecimento de direitos também específicos. No Brasil, os movimentos negro, indígena e de mulheres participaram de forma significativa durante a Assembleia Constituinte, tendo obtido conquistas importantes no campo dos direitos.

Desde então, esses atores vêm impulsionando a incorporação das pautas de gênero e raça/etnicidade no debate público e acadêmico sobre desenvolvimento e igualdade. No âmbito acadêmico, vale mencionar as contribuições iniciais de Florestan Fernandes (1970) e Heleieth Saffioti (1969) na década de 1970 ao abordar o imbricamento, respectivamente, das relações raciais e de gênero no debate sobre trabalho, inclusão e exclusão. Embora o tema das relações raciais já tivesse despontado no pensamento social brasileiro – ainda que sob um enfoque bastante distinto, menos preocupado com distribuição, como, por exemplo, na obra de Gilberto Freyre –, o tema do gênero ainda era uma novidade.

É, portanto, relativamente recente, a tematização das desigualdades e, em especial, do lugar subordinado das mulheres em uma sociedade patriarcal. Saffioti coloca de modo contundente a ideia de que a posição da mulher na família e na sociedade é resultado de um sistema de dominação mais amplo. Para entender os efeitos do desenvolvimento capitalista na posição das mulheres, era preciso entender o papel da estrutura patriarcal na reprodução de preconceitos que justificam uma certa distribuição de posições fixas entre os gêneros – a exclusão da mulher de determinadas tarefas e posições no mercado de trabalho, sua vinculação “natural” ao espaço doméstico e do cuidado e as ocupações socialmente reconhecidas como “femininas” (professoras, enfermeiras, secretárias, trabalhadoras domésticas).

Aos poucos foi ficando claro que questionar o patriarcado era também questionar as construções simbólicas ligadas à família tradicional, (heterossexual, monogâmica e com mandato reprodutivo) e à falta de autonomia sobre o corpo e sobre a sexualidade. Nesse percurso, outras identidades de gênero entraram em disputa e novos atores sociais, tal como o movimento LGBT, também passaram a brigar contra esse sistema de discriminação e exclusão de direitos. O Brasil assinou compromissos internacionais; a esfera pública se abriu a debates mais plurais sobre padrões não binários de sexualidade, transgênero, identidades múltiplas; e a disputa simbólica e moral com visões mais conservadoras se acirrou.

No contramovimento, para além da igreja católica, há o crescimento do papel das igrejas evangélicas. Os setores conservadores, que defendem a família tradicional, o papel subordinado da mulher e a intolerância frente a homossexuais, ganharam espaço político no parlamento e na esfera pública. Hoje, o Brasil vive cenários conflitivos nesse campo: no cenário parlamentar, vemos, por exemplo, um projeto que prevê a “cura gay” disputando espaço com um projeto que criminaliza a homofobia; temos, de um lado, o estatuto do nascituro e as tentativas de retrocesso nos direitos reprodutivos e, de outro lado, o STF decidindo pela criação de mais uma causa de aborto legal (para o feto anencefálico). Enquanto isso, mulheres se organizam nas ruas, reivindicando autonomia para fazerem escolhas sobre seus corpos e pedindo a cassação do líder conservador do Congresso Nacional. Além disso, as tentativas de inclusão de programas oficiais de educação pela liberdade e igualdade de gênero nas escolas também enfrentam reações conservadoras contra a “ideologia de gênero”. Isso demonstra, mais uma vez, a “alta voltagem” política do tema.

Os problemas são persistentes e graves. As taxas de violência doméstica e sexual contra mulheres são muito altas. Crimes de intolerância de gênero, especialmente contra homossexuais e transexuais, são frequentes. O assédio marca o dia a dia das relações de gênero. Mulheres ainda enfrentam desigualdade salarial e índices vergonhosos de sub-representação na política. O trabalho doméstico informal e mal remunerado é feminino e negro. São também mulheres negras que morrem cotidianamente em clínicas de aborto clandestino. A licença paternidade de 5 dias é risível, e os cuidados domésticos e dos filhos é ainda assunto de mulher em nosso imaginário simbólico.

Ou seja, a desigualdade econômica e política tem gênero e cor. Hoje em dia, não é mais possível discutir hierarquias sociais sem discutir hierarquias raciais e de gênero. Por exemplo, não se pode falar em acesso ao mercado de trabalho sem questionar a institucionalização, no seio da sociedade capitalista, da separação de duas esferas supostamente distintas de atividades: produção e reprodução. O trabalho produtivo é historicamente associado ao homem e remunerado, enquanto as atividades de cuidado, não remuneradas e desvalorizadas, são exercidas pelas mulheres. Sem questionar essa divisão estrutural da nossa sociedade, mulheres (brancas) apenas conseguirão ir ao mercado de trabalho às custas do trabalho doméstico mal remunerado e muitas vezes informal de outras mulheres (negras). Sem discutir o patriarcado, políticas públicas bem-intencionadas (tal como o Bolsa Família), ao dar à mulher a reponsabilidade de cuidar do dinheiro da família, acabam sedimentando a obrigação de a mulher fazer a administração doméstica e cuidar dos filhos, aumentando o grau de responsabilização e reforçando o papel de cuidadora da mulher.

As taxas excessivamente altas de violência de gênero são parte da agenda de segurança pública. A população prisional feminina cresceu mais de 500% nos últimos 15 anos, enquanto a masculina teve um aumento de 119%).1 1 Fonte: Levantamento nacional de informações penitenciárias – Infopen mulheres (2014). Departamento Penitenciário Nacional do Ministério da Justiça (Depen). Disponível em: <http://www.justica.gov.br/seus-direitos/politica-penal/relatorio-infopen-mulheres.pdf>. Acesso em: 24 nov. 2015. Estabelecimentos prisionais não têm estrutura para o exercício da maternidade. Nas Fundações Casa, os cursos profissionalizantes – oferecidos para meninas adolescentes – são de culinária, manicure, cabeleireiro, recepcionista, maquiagem, corte e costura, pintura em tecido e artesanato. Presas transexuais não podem permanecer em presídios masculinos pois, nesses locais, colocam em risco sua integridade física e sua vida. Não é possível olhar para o sistema de saúde sem considerar a taxa de mortalidade materna, a violência obstétrica, a cirurgia de mudança de sexo e a necessidade de atendimento especializado a mulheres, homossexuais e transexuais vítimas de violência. Esses poucos exemplos nos mostram que não apenas as questões de gênero ganharam importância na agenda política da sociedade brasileira (ainda que de modo conflitivo e disputado), mas também que não é possível pensar políticas públicas sem considerá-las.

Políticas públicas “neutras” reforçam a invisibilização e a marginalização dos problemas que atingem grupos específicos e os mantêm como minorias despossuídas e sem direitos. Discutir pobreza, distribuição de renda, desenvolvimento, acesso a direitos e à Justiça (como se todos e todas sofressem seus efeitos de maneira equiparável, e como se as soluções pudessem beneficiar a todos e todas de maneira igual), é uma premissa equivocada no desenho de políticas públicas, que resulta na manutenção de violações de direitos humanos desses grupos. O falso dilema do igualitarismo neutro é nocivo para se pensar no desenvolvimento de uma sociedade democrática.

É justamente a partir dessa perspectiva que nos lançamos a pensar sobre as questões de gênero, desigualdades e direitos no âmbito da agenda sobre Direito e Desenvolvimento, foco do mestrado acadêmico da FGV Direito SP. Este dossiê especial – Gênero Raça e Pobreza: a abordagem de múltiplas identidades pelo Direito – faz parte desse esforço.

Em 2014, em parceria com o Oxford Human Rights Hub, a FGV Direito SP realizou o Seminário Internacional Gênero, Raça e Pobreza: a abordagem de múltiplas identidades pelo Direito.2 2 O workshop foi organizado por Marta Machado, Sandra Fredman e Cathi Albertyn. Além das próprias instituições envolvidas, Fapesp, Capes e CNPQ apoiaram financeiramente o evento. O objetivo era reunir pesquisadoras e pesquisadores do Sul global para discutir problemas comuns ligados às intersecções de gênero, raça e pobreza. Em debates internacionais, a pobreza é frequentemente abordada de um ponto de vista neutro no que concerne ao gênero. Da mesma maneira, a discriminação racial é acessada por uma perspectiva neutra no que concerne tanto ao gênero quanto à pobreza. Essas abordagens não são adequadas para retratar as várias e intrincadas violações de direitos humanos vividas por mulheres pobres com identidades múltiplas; assim, nosso objetivo não era só traçar diagnósticos sobre problemas comuns, mas também pensar nos desafios dessa perspectiva para as políticas públicas. A reunião de pesquisadores do Sul inevitavelmente nos colocou diante do tema do desenvolvimento. Em que medida as questões de gênero se colocam no debate sobre desenvolvimento? Quais assimetrias são reforçadas por políticas de desenvolvimento econômico ou políticas de distribuição que não levam em consideração as desigualdades de gênero? Como nossas sociedades essencialmente patriarcais resistem à discussão sobre gênero?

A maior parte dos textos que compõem este dossiê vieram de discussões que começaram nesse Seminário.

Helena Alviar Garcia aborda as políticas de distribuição de renda colombianas das últimas décadas e seu papel na reprodução da lógica patriarcal em que as mulheres ocupam essencialmente o papel da reprodução no âmbito da família e enfrentam dificuldades no acesso a recursos.

Dois artigos, o de Carmen Hein de Campos e o de Wânia Pasinato, abordam o cenário de disputas e desafios institucionais na implementação da Lei Maria da Penha, quase dez anos após sua promulgação. A partir de uma pesquisa empírica sobre a efetividade da lei em Porto Alegre, Recife, Salvador, Rio de Janeiro e São Paulo, Wânia detecta a reprodução de estereótipos de gênero entre os operadores do direito, o que tem impacto significativo no acesso a direitos pelas mulheres. Carmen foca sua análise nos problemas de implementação da rede de atendimento à mulher, descobertas na CPI da violência contra a mulher.

Ainda sobre os desafios de implementação de políticas públicas, Cathi Albertyn discute o cenário que se estabeleceu na África do Sul após 20 anos de aprovação de uma lei progressista sobre o aborto. Em meio às dificuldades de implementação e aos riscos de retrocesso, mostra que os desafios das políticas de gênero não se esgotam na promulgação da lei, e que o ativismo da sociedade civil é crucial na garantia do acesso efetivo ao aborto seguro e legal para as mulheres.

Esses textos mostram como a disputa e o monitoramento da implementação das políticas públicas – o que envolve não apenas a dimensão do judiciário e seus atores, mas também a da organização das instituições e do treinamento de todos os servidores envolvidos na política – é crucial para a garantia de direitos, desafiando visões formalistas que tendem a achar que a promulgação da lei é o momento final da disputa. Avaliando a importância do funcionamento das instituições na questão da defesa de minorias, Vanessa Vieira e Clio Radomysler escrevem sobre o papel da Defensoria Pública na promoção do reconhecimento às diferenças; os desafios e possibilidades na adoção, por essa instituição, de abordagens transversais que lidem com as necessidades de grupos estigmatizados.

Não é possível, hoje em dia, tratar da inclusão de minorias em políticas públicas sem falar a respeito de abordagens interseccionais, ou seja, falar sobre o ponto de cruzamento entre múltiplas discriminações, que faz com que a discriminação sofrida por determinada pessoa tenha uma natureza distinta e não seja apenas a soma de suas condições. Mulheres negras e presidiárias têm uma experiência de sofrimento e violação de direitos distinta de mulheres brancas, ou de mulheres negras em liberdade. Incorporar a abordagem interseccional é um desafio hoje colocado não só ao debate acadêmico, mas também às políticas públicas e às instituições. A respeito desse debate, Meghan Campbell analisa como o Comitê CEDAW aborda a interseccionalidade em suas decisões e mostra, no detalhe, como a interseccionalidade pode ou não estar presente nas decisões, e que diferença isso faz.

O ensaio de Debora Diniz, os textos de Ana Gabriela Mendes Braga e dos coautores Luciana Simas, Miriam Ventura, Michelly Ribeiro Baptista e Bernard Larouzé tratam do gênero na prisão. Em um ensaio provocativo, tanto na forma como nas questões que aborda, Debora mostra que o campo da pesquisa sobre prisão é masculino e que enfrenta o desafio de incorporar o gênero. Ana Gabriela entra no debate a partir de micronarrativas de mães no cárcere e mostra coisas que só o olhar próximo deixaria ver sobre a experiência das mulheres na prisão. O terceiro texto dessa série analisa criticamente decisões judiciais do STF, STJ e dos Tribunais de Justiça do Rio Grande do Sul, Paraná, São Paulo e Mato Grosso, de 2002 a 2012, que envolvem mulheres presas e seus filhos nascidos na prisão. A análise dos resultados sugere uma invisibilidade do tema da maternidade na prisão e os limites impostos aos direitos das crianças à amamentação, à saúde e à convivência com a mãe em prol de um discurso de garantia da ordem e segurança pública.

Por fim, o desafio de lidar com as experiências pessoais se coloca novamente em nosso conjunto de textos, a partir do relato de Maria Amélia Telles. Em um registro que parte de sua experiência como militante contra a ditadura, Amelinha, que hoje é ativista feminista, trata da violência institucional de gênero da ditadura. O aspecto de gênero, frequentemente obscurecido nos debates sobre as violações de direitos humanos daquele período, nos mostra uma realidade muito particular das mulheres que viveram e militaram nos “anos de chumbo”. Elas não só enfrentaram um tipo de violência agravada por sua condição de mulher, mas também enfrentaram discriminações de gênero entre os próprios militantes da esquerda.

Amelinha nos mostra, junto com todas as autoras que reunimos neste conjunto, que não há luta política, nem desenvolvimento, nem democracia, se não houver exercício pleno da liberdade e igualdade entre os gêneros. E em uma Escola de Direito que se importa com Justiça, Igualdade e Desenvolvimento, esse tema deve ser tratado com centralidade.

Além do dossiê especial Gênero, Raça e Pobreza: a abordagem de múltiplas identidades pelo Direito, publicamos outros três artigos nesta edição daRevista Direito GV. O primeiro, de Júlio Roberto de Souza Pinto, traz uma análise do comportamento dos deputados federais da 53ª Legislatura (2007-2011) em dois temas de grande repercussão durante aquela legislatura: as tentativas de reforma dos sistemas eleitoral e partidário e de limitação dos poderes de agenda do presidente. Ele apresenta uma avaliação das determinantes do comportamento parlamentar à luz da estrutura do presidencialismo de coalisão e representação proporcional com lista aberta, de um lado, e à luz da combinação de poder de agenda da presidência da República e centralização dos trabalhos da Câmara dos Deputados nas mãos dos líderes partidários, de outro lado.

O segundo artigo, de Bruno Meneses Lorenzetto e Katya Kozicki, procura identificar os paradoxos nos momentos constituintes e como eles podem ajudar a compreender os problemas na jurisdição constitucional e nos processos de produção da Constituição, bem como analisar a continuidade da tensão entre constitucionalismo e democracia.

Por fim, o artigo de Lincoln Frias e Nairo Lopes traz um aporte novo ao tema do princípio da dignidade humana, debatendo criticamente alguns usos já consagrados do princípio. Eles defendem que a dignidade humana deve ser definida a partir de uma combinação entre a autonomia pessoal e as condições para desenvolver e exercer essa autonomia.

Desejamos a todos uma boa leitura.

Marta Rodriguez de Assis Machado
Coeditora do dossiê especial “Gênero, Raça e Pobreza: a abordagem de múltiplas identidades pelo Direito”
Catarina Helena Cortada Barbieri
Editora-Chefe

NOTAS

  • 1
    Fonte: Levantamento nacional de informações penitenciárias – Infopen mulheres (2014). Departamento Penitenciário Nacional do Ministério da Justiça (Depen). Disponível em: <http://www.justica.gov.br/seus-direitos/politica-penal/relatorio-infopen-mulheres.pdf>. Acesso em: 24 nov. 2015.
  • 2
    O workshop foi organizado por Marta Machado, Sandra Fredman e Cathi Albertyn. Além das próprias instituições envolvidas, Fapesp, Capes e CNPQ apoiaram financeiramente o evento.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Dec 2015
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