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Cefaleias primárias: dores disfuncionais

RESUMO

JUSTIFICATIVA E OBJETIVOS:

Cefaleia é um sintoma muito prevalente, sendo considerado o segunto tipo mais frequente de dor em estudos epidemiológicos mundiais. Também é um sintoma que tem um custo elevado para os pacientes, familiares, sociedade e para os seviços de saúde em geral, comprometendo a qualidade de vida dos que sofrem com esse problema. As cefaleias primárias, entre elas a enxaqueca e a cefaleia do tipo tensional são classificadas como sendo cefaleias disfuncionais. É importante entender porque esses dois distúrbios não podem ser vistos como dores somáticas, neuropáticas ou viscerais. Neste artigo serão utilizados os termos enxaqueca e migrânea como sinônimos. O objetivo deste estudo foi conceituar dor disfuncional justificar o porquê as cefaleias primárias são consideradas dores disfuncionais.

CONTEÚDO:

a) Fisiopatologia da migrânea, a cefaleia primária mais prevalente em consultórios médicos, é explicada como sendo uma doença constituída por crises que podem ter até 5 fases e não ser apenas uma dor de cabeça. As fases da crise da migranea são: sintomas premonitórios, aura, cefaleia, sintomas autonômicos/hipotalamincos e pósdromo. b) Classificar a migrânea como dor disfuncional, pois não preenche critérios para classifica-la como dor neuropática ou somática. c) Discutir que tipo de dor são as cefaleias secundárias.

CONCLUSÃO:

Pode-se aceitar a ideia de que as cefaleias primárias sejam dores desmodulatórias, mas que as secundárias sejam nociceptivas ou viscerais.

Descritores:
Cefaleia; Cefaleias secundárias; Dor disfuncional; Migrânea ou enxaqueca

ABSTRACT

BACKGROUND AND OBJECTIVES:

Headache is a very prevalent symptom, being considered the second more frequent type of pain by international epidemiological studies. It is also an expensive symptom for patients, relatives, society and general health systems, impairing quality of life of those suffering from this problem. Primary headaches, among them migraine and tension headache are classified as dysfunctional headaches. It is important to understand why these two disorders cannot be seen as somatic, neuropathic or visceral pain. This article shall use the terms migraine and megrim as synonyms. This study aimed at defining dysfunctional pain and at justifying why primary headaches are considered dysfunctional pain.

CONTENTS:

a) Migraine pathophysiology, most prevalent primary headache in medical offices, it is explained as a disease made up of crises which may have up to five phases and not simply as a headache. Migraine crisis phases are: premonitory symptoms, aura, headache, autonomic/hypothalamic symptoms and posdrome. b) Classify migraine as dysfunctional pain because it does not meet criteria to be classified as neuropathic or somatic pain. c) Discuss which type of pain secondary headaches are.

CONCLUSION:

It is possible to accept the idea that primary headaches are demodulatory pains, but that secondary headaches are nociceptive or visceral.

Keywords:
Dysfunctional pain; Headache; Megrim or migraine; Secondary headaches

INTRODUÇÃO

Ao longo das últimas décadas, o entendimento dos mecanismos de produção das cefaleias primárias tem evoluído; particularmente o entendimento da fisiopatologia da migrânea. Inicialmente encarada principalmente como um transtorno vascular, a migrânea passou depois a ser entendida como um distúrbio neurovascular11 Goadsby PJ. Pathophysiology of migraine. Neurol Clin. 2009;27:335-60.. Entretanto, o modelo neurovascular não fornece explicações abrangentes de todos os seus aspectos, os quais envolvem vários níveis do sistema nervoso, pois além da cefaleia ocorrem sintomas neurovegetativos, afetivos, cognitivos e sensoriais. Atualmente, a migrânea é entendida como uma disfunção cerebral e, portanto, primariamente um distúrbio neuronal e não vascular.

A migrânea é uma cefaleia primária incapacitante e comum, recorrente ou crônica, podendo durar de 24 a 72h. A dor é geralmente unilateral, pulsátil, de intensidade moderada a intensa, agravada por atividades da rotina diária, associada com náusea e/ou vômito e/ou fotofobia e fonofobia. Pode ou não vir acompanhada de sintomas totalmente reversíveis e durando minutos, como alterações visuais, sensitivas ou outro sintoma do sistema nervoso central (SNC) (aura). Alguns pacientes também apresentam uma fase premonitória, antecedendo em horas ou dias o aparecimento da cefaleia incluindo: hiperatividade, hipoatividade, depressão, apetite específico para determinados alimentos, bocejos repetidos e outros sintomas inespecíficos (ICHD 3)22 The International Classification of Headache Disorders, 3rd ed. (beta version). Cephalalgia. 2013;33(9):629-808..

REVISÃO DA FISIPATOLOGIA

Sintomas premonitórios das crises podem ocorrer até 24h antes do início da dor e sua natureza (sonolência, fadiga, alterações do apetite, bocejamento etc.) aponta para o hipotálamo como sua origem provável. Como o cérebro migranoso é extremamente sensível a desvios da homeostase, é possível que neurônios hipotalâmicos que regulam a homeostase e os ciclos circadianos deem origem a esses sintomas premonitórios. Outros sintomas prodrômicos, como sensibilidade anormal à luz, ruídos e odores, apontam para o córtex cerebral como fonte e a depressão e anedonia para o sistema límbico33 Maniyar FH, Sprenger T, Monteith T, Schankin C, Goadsby PJ. Brain activations in the premonitory phase of nitroglycerintriggered migraine attacks. Brain. 2014;137(Pt 1):232-41..

Neurônios hipotalâmicos e do tronco cerebral (TC) poderiam iniciar uma crise por dois mecanismos: 1- alterando o equilíbrio entre o tônus parassimpático e simpático nos vasos meníngeos, com predominância do tônus parassimpático através do núcleo salivatório superior (NSS), como proposto por Burstein e Jakubowski44 Burstein R, Jakubowski M. Unitary hypothesis for multiple triggers of the pain and strain of migraine. J Comp Neurol. 2005;493(1):9-14.; 2-diminuindo o limiar para a transmissão nociceptiva de sinais trigeminovasculares do tálamo para o córtex55 Noseda R, Kainz V, Borsook D, Burstein R. Neurochemical pathways that converge on thalamic trigeminovascular neurons: potential substrate for modulation of migraine by sleep, food intake, stress and anxiety. PLoS One. 2014;9(8):e103929..

Os neurônios trigeminotalâmicos recebem influências diretas de neurônios hipotalâmicos que contêm dopamina, histamina, orexina e fator melanotrófico (MSH), e de neurônios noradrenérgicos e serotoninérgicos do TC. Cada um destes neurotransmissores pode mudar a atividade fásica de neurônios talâmicos para atividade tônica se a influência é excitatória (dopamina e serotonina em altas concentrações, noradrenalina, histamina, orexina), ou mudar a atividade tônica para fásica se forem inibitórios (MSH e baixa concentração de serotonina). Estas influências opostas sobre os neurônios talâmicos trigeminovasculares proporcionam uma base anatômica para explicar como alguns fatores desencadeadores podem dar origem a algumas crises de migrânea, mas não a outras, e porque estímulos externos (perfumes) ou internos (sensação de fome, dormir pouco ou estresse) desencadeiam crises de enxaqueca de modo inconsistente, somente quando interferem e coincidem com a fase circadiana correta da ritmicidade cíclica do TC, hipotálamo e neurônios talâmicos que mantêm a homeostase66 Pietrobon D, Striessnig J. Neurobiology of migraine. Nat Rev Neurosci. 2003;4(5):386-98.. Acredita-se que a depressão alastrante cortical (DAC) seja o evento subjacente à aura de enxaqueca11 Goadsby PJ. Pathophysiology of migraine. Neurol Clin. 2009;27:335-60.,77 Ayata C. Cortical spreading depression triggers migraine attack: pro. Headache. 2010;50(4):725-30.

8 Burnstein R, Noseda R, Borsook D. Migraine: multiple processes, complex pathophysiology. J Neurosci. 2015;35(17):6619-29.
-99 Vecchia D, Pietrobon D. Migraine: a disorder of brain excitatory-inhibitory balance? Trends Neurosci. 2012;35(8):507-20.. A DAC é um fenômeno complexo de despolarização do córtex cerebral que tem diferentes fases e consiste numa onda de forte despolarização neuronal e glial que se propaga lentamente (2-6mm/min). A despolarização é desencadeada pela ativação de canais de cálcio localizados em dendritos apicais de neurônios piramidais. Uma vez iniciada, a DAC se autopropaga no córtex como uma onda que percorre camadas de dendritos apicais e se caracteriza por colapso da homeostase iônica, profunda alteração de gradientes iônicos transmembrana e liberação de neurotransmissores e outras moléculas do compartimento intracelular1010 Pietrobon D, Moskowitz MA. Chaos and commotion in the wake of cortical spreading depression and spreading depolarizations. Nat Rev Neurosci. 2014;15(6):379-93.. Dados experimentais apoiam a ideia de que um aumento da concentração de potassio (K+) acima de um valor crítico seja evento chave na iniciação da DAC e que a ativação de receptores glutamatérgicos NMDA (NMDAR) também seja necessária para sua iniciação ou propagação.

Postula-se que a regulação deficiente do equilíbrio excitatório-inibitório cortical pode, em determinadas condições (por exemplo, em resposta a fatores desencadeadores de migrânea) levar à hiperatividade dos circuitos corticais, o que, por sua vez, pode aumentar a concentração de K+ criando assim as condições para o desencadeamento da DAC99 Vecchia D, Pietrobon D. Migraine: a disorder of brain excitatory-inhibitory balance? Trends Neurosci. 2012;35(8):507-20.,1010 Pietrobon D, Moskowitz MA. Chaos and commotion in the wake of cortical spreading depression and spreading depolarizations. Nat Rev Neurosci. 2014;15(6):379-93..

Estudos neurofisiológicos demonstram que mesmo no período interictal os migranosos têm hipersensibilidade a estímulos sensoriais e processam anormalmente as informações sensoriais, o que é caracterizado pelo aumento da amplitude e reduzida habituação dos potenciais evocados evento-relacionados1111 Aurora SK, Wilkinson F. The brain is hyperexcitable in migraine. Cephalalgia. 2007;27(12):1442-53.,1212 Coppola G, Pierelli F, Schoenen J. Is the cerebral cortex hyperexcitable or hyperresponsive in migraine? Cephalalgia. 2007;27(12):1427-39. Em pacientes com migrânea crônica o aumento da excitabilidade visual cortical acompanha a ativação do TC e a inibição da substância periaquedutal mesencefálica (SPA) e de áreas somatossensoriais, o que sugere disfunção de vias inibitórias descendentes99 Vecchia D, Pietrobon D. Migraine: a disorder of brain excitatory-inhibitory balance? Trends Neurosci. 2012;35(8):507-20..

Muitas evidências dão base à visão de que a migrânea se caracteriza por um controle central de dor disfuncional. Além da sensibilização de nociceptores periféricos e da sensibilização de neurônios do núcleo caudal do trigêmeo (NTC)1313 Burstein R, Jakubowski M, Rauch SD. The science of migraine. J Vestib Res. 2011;21(6):305-14., ocorre modulação central de sinais nociceptivos que pode facilitar ou inibir as respostas no NTC. Por exemplo, fibras corticofugais de o córtex insular que se projetam contralateralmente podem facilitar as respostas dos neurônios das lâminas I-II do NTC, enquanto que as áreas corticais somatossensoriais primárias geram estímulos inibitórios para lâminas III-IV1414 Maizels M, Aurora S, Heinricher M. Beyond neurovascular: migraine as a dysfunctional neurolimbic pain network. Headache. 2012;52(10):1553-65..

Muitos estudos documentam as vias límbicas e prosencefálicas que influenciam os circuitos moduladores de dor do TC e estudos de conectividade funcional sugerem que o complexo córtex cingulado anterior (CCA)-SPA-medula rostromedial constituam uma rede de modulação da dor na migrânea1515 Kong J, Tu PC, Zyloney C, Su TP. Intrinsic functional connectivity of the periaqueductal gray, a resting fMRI study. Behav Brain Res. 2010;211(2):215-9.. Foi documentada conectividade alterada do sistema límbico ao TC nos migranosos, assim como também entre córtex prefrontal (CPF) / límbico e núcleos do TC, o que apoia a visão da migrânea como um transtorno de redes neurolímbicas de dor e expande o conceito de sensibilização central, evento que ocorre no TC, de forma a incluir uma disfunção límbica. Estudos de ressonância nuclear magnética (RNM) funcional no período interictal demonstram uma dinâmica disfuncional interictal nas redes de dor de migranosos, com conectividade anormal entre a SPA e o sistema límbico que parece ser progressiva, conforme a maior duração e gravidade da doença1616 Mainero C, Boshyan J, Hadjikhani N. Altered functional magnetic resonance imaging resting-state connectivity in periaqueductal gray networks in migraine. Ann Neurol. 2011;70(5):838-45..

As influências neurolímbicas são bidirecionais; vias límbicas podem modular ou desencadear um processo no TC que inicia um ataque de migrânea, ou a disfunção de estruturas do TC pode alterar a função límbica, influenciando humor e estratégias de enfrentamento1414 Maizels M, Aurora S, Heinricher M. Beyond neurovascular: migraine as a dysfunctional neurolimbic pain network. Headache. 2012;52(10):1553-65..

Concluindo: a fisiopatologia da migrânea é complexa e seria uma disfunção recorrente do processamento de informação central, a qual envolve as principais estruturas do processamento de dor: o sistema trigeminovascular, o tronco cerebral e o córtex. Esta suscetibilidade parece ser parcialmente hereditária e o início da crise pode se dever a uma combinação de fatores heterogêneos ambientais e internos1717 Gantenbein A, Sándor P, Sándor P, Riederer F, Schoenen J. A comprehensive view of migraine pathophysiology. In: Fernández-de-las-Peñas C, Chaitow L, Schoenen J, (editors). Multidisciplinary management of migraine: pharmacological, manual, and others therapies, USA: Jones&Bartlett Learning; 2013. 67-79p..

Migrânea não é dor neuropática

Tanto a migrânea quanto a dor neuropática (NeuP) e a dor nociceptiva (NocP) estão entre as dores mais comuns na humanidade. Nos dias de hoje está-se em pleno uso da definição de NeuP proposta por Treede et al.1818 Treede RD, Jensen TS, Campbell JN, Cruccu G, Dostrovsky JO, Griffin JW, et al. Neuropathic pain: redefinition and a grading system for clinical and research purposes. Neurology. 2008;70(18):1630-5.. Segundo os autores, uma vez que a sensibilidade do sistema nociceptivo é modulada por sua adequada ativação (p.ex. pela sensibilização central), tem sido difícil distinguir "disfunção neuropática da neuroplasticidade fisiológica" que ocorre neste sistema como resultante de um estímulo nociceptivo suficientemente forte. Então, os autores propuseram uma substituição da definição de NeuP retirando-se a palavra disfunção da antiga definição, ficando esta como "Dor Neuropática é a proveniente de lesão ou doença afetando o Sistema Somatossensitivo".

Já na NocP a dor seria gerada por um estímulo nocivo externo, localizado fora do SNC em uma situação onde os SNC e sistema nervoso periférico (SNP) estariam intactos estruturalmente e funcionalmente.

Os estágios dos mecanismos da NocP são então similares àqueles da NeuP e consistem em: sensibilização periférica nas terminações nervosas e no gânglio da raiz dorsal (DRG) e daí a sensibilização central no corno dorsal da medula, influenciada pelas vias descendentes do tronco cerebral que antecipariam a percepção final da dor no córtex sensitivo1919 Chakravarty A, Sen A. Migraine, neuropathic pain and nociceptive pain: towards a unifying concept. Med Hypotheses. 2010;74(2):225-31..

Pode-se observar a migrânea como uma dor visceral ou NocP. Como a maioria das vísceras sólidas, o cérebro é insensível à dor. As estruturas intracranianas que doem incluem: paredes das artérias cerebrais e meninges, paredes venosas e dos seios venosos e meninges - dura-máter e leptomeninges, as quais têm sido concebidas como a "cápsula" cerebral. Em qualquer lugar do corpo, as dores provêm dos nociceptores localizados na cápsula das vísceras sólidas devido à inflamação ou estiramento (descrita como dor nociceptiva); da mesma forma, a dor intracraniana (onde se inclui a migrânea) pode vir da cápsula - das meninges - devido a inflamação ou estiramento. Esta é a similaridade essencial entre migrânea e a NocP. Dor visceral é frequentemente referida para o dermátomo sensitivo correspondente como resultado da coexcitação ao nível do corno dorsal; similarmente a migrânea é frequentemente referida para os músculos pericranianos e cervicais devido a coexcitação no complexo trigeminocervical - a contrapartida no tronco do corno dorsal medular. Esta seria a segunda similaridade da migrânea com a NocP1919 Chakravarty A, Sen A. Migraine, neuropathic pain and nociceptive pain: towards a unifying concept. Med Hypotheses. 2010;74(2):225-31..

Na migrânea, a DAC de Leão resulta, provavelmente, da alteração na permeabilidade das membranas e na disfunção de canais iônicos, permitindo trocas iônicas intra e extraneurais dos íons Na+, K+, Ca++ e Mg++2020 Lauritzen M, Kraig RP. Spreading depression. In: Olesen J, Goadsby PJ, Ramadan NM, Tfelt-Hansen P, Welch KMA, (editors). The headaches. Philadelphia: Lippincott, Williams & Wilkins; 2006. 269-74p., como já citado, o que a aproximaria da NeuP, além das alterações de sensibilização periférica e central. Com isto se poderia pensar que as síndromes dolorosas migrânea, NeuP e NocP compartilhariam uma organização estrutural e funcional comum consistindo de: 1- sensibilização periférica (no DRG ou no Gânglio de Gasser); 2- sensibilização central; 3- e modulação ao nível medular, tronco cerebral e tálamo, antes da percepção final da dor na matriz cortical da dor (consistindo de córtex sensitiva primaria e secundaria, córtex pré-frontal, região do cíngulo anterior, insula e amídala).

Então poderia entender que a migrânea não seria classificada como NeuP ou NocP. Dor disfuncional talvez seja a definição de escolha, preenchendo a antiga e excluída causa de dor neuropática - "disfunção do SN".

Migrânea: uma dor disfuncional

O conceito de dor disfuncional é relativamente novo e ganhou força quando o grupo de estudos de NeuP da International Association for the Study of Pain (IASP) sugeriu uma nova definição de dor neuropática em 20081818 Treede RD, Jensen TS, Campbell JN, Cruccu G, Dostrovsky JO, Griffin JW, et al. Neuropathic pain: redefinition and a grading system for clinical and research purposes. Neurology. 2008;70(18):1630-5. em substituição a que era utilizada desde 19942121 Merskey H, Bogduk N, (editors). Taskforce on taxonomy of the International Association for the Study of Pain (IASP): classification of chronic pain. Description of pain syndromes and definitions of pain terms. 2nd ed. Seattle: IASP Press; 1994. 209-14p.. Nessa época dor neuropática era definida como a dor iniciada ou causada por uma lesão primária ou uma disfunção do SNC ou periférico.

Bowsher2222 Bowsher D. Neurogenic pain syndromes and their management. Br Med Bull. 1991;47(3):644-66. publicou em 1991 um artigo sobre dor neurogênica definindo-a como dor devida a disfunção do SNP ou SNC e ausência de estimulação dos nociceptores por trauma ou doença. Estabeleceu a necessidade de o processo doloroso passar pelos nociceptores periféricos quando era nociceptiva, caso contrário a dor seria neurogênica.

Dores neuropática e neurogênica diferiam entre si pela aceitação da transitoriedade da perturbação do SNC na dor neurogênica, mas as diferenças entre esses dois tipos de dor foram esquecidas e não foram utilizadas na rotina das clínicas de dor e nem em publicações. Os dois termos eram usados indistintamente como sinônimos.

Um novo conceito de dor neuropática foi proposto por um grupo de neurologistas e neurofisiologistas1818 Treede RD, Jensen TS, Campbell JN, Cruccu G, Dostrovsky JO, Griffin JW, et al. Neuropathic pain: redefinition and a grading system for clinical and research purposes. Neurology. 2008;70(18):1630-5.,2323 Jensen TS, Baron R, Haanpää M, Kalso E, Loeser JD, Rice ASC, et al. A new definition of neuropathic pain. Pain. 2011;14(1):1-2.. Nestas publicações propuseram: "dor causada diretamente por lesão ou doença do sistema somatossensitivo". Esta definição traz alguns avanços em relação a definição precedente. Primeiro, restringe o evento causador à "lesão" ou "doença", o que pode ser documentado de forma mais objetiva e foge do termo vago "disfunção". Em segundo lugar, restringe a lesão ao sistema somatossensitivo, ao invés de "sistema nervoso" como na versão precedente. Esta proposta é mais próxima do que vemos na prática clínica e traz avanços no sentido de individualizar a NeuP de outras síndromes, tendo um impacto importante nas pesquisas sobre o tema.

Recentemente, a IASP acatou esta proposta de definição de dor neuropática com mínima alteração no texto: "Dor causada por lesão ou doença do sistema somatossensitivo".

Considerando essa nova definição de NeuP, um grande grupo de síndromes dolorosas não se encaixaria como dor nociceptiva nem neuropática2424 Andrade DC, Speciali JG. Conceito de dor neuropática. In: Dor neuropática avaliação e tratamento, 1ª ed. São Paulo: Leitura Médica; 2012. 11-6p.. A guisa de exemplo cita-se a síndrome fibromiálgica, a síndrome da ardência bucal, a síndrome do intestino irritável, a migrânea e outras cefaleias primárias, síndrome da dor regional complexa e outras doenças que têm em comum ausência de lesão tecidual clara que explique a presença de dor2525 Eisenberg E, Chistyakov AV, Yudashkin M, Kaplan B, Hafner H, Feinsod M. Evidence for cortical hyperexcitability of the affected limb representation area in CRPS: a psychophysical and transcranial magnetic stimulation study. Pain. 2004;113(1-2):99-105.. Essas dores são consideradas desmodulatórias ou disfuncionais. As síndromes dolorosas disfuncionais englobam uma grande quantidade de doenças que têm em comum ausência de lesão tecidual clara que explique a síndrome dolorosa. O termo "Disfuncional" remete justamente ao fato de que estas síndromes são causadas por um funcionamento alterado do sistema nervoso, seja ele central ou periférico. Com o avançar do conhecimento, a compreensão acerca de muitas das doenças classificadas dentro das síndromes disfuncionais poderá aumentar2424 Andrade DC, Speciali JG. Conceito de dor neuropática. In: Dor neuropática avaliação e tratamento, 1ª ed. São Paulo: Leitura Médica; 2012. 11-6p.,2626 Wood PB, Glabus MF, Simpson R, Patterson JC 2nd. Changes in gray matter density in fibromyalgia: correlation with dopamine metabolism. J Pain. 2009;10(6):609-18. ..

Sob a denominação de dor disfuncional abrigam-se doenças muito diferentes entre si, quanto aos sintomas, fisiopatologias e tratamento, o que indica a necessidade avanços nos conhecimentos atuais que poderiam dar a esses transtornos tão diferentes uma base neurológica/neuroquímica comum a todas. Acredita-se que as bases neurofisiológicas das dores desmodulatórias estejam em regiões encefálicas específicas como vem sendo demonstrado por exames sofisticados de neuroimagem2424 Andrade DC, Speciali JG. Conceito de dor neuropática. In: Dor neuropática avaliação e tratamento, 1ª ed. São Paulo: Leitura Médica; 2012. 11-6p..

Tipos de dor das cefaleias primárias

Existem mais de uma centena de causas de cefaleia citadas na The International Classification of Headache Disorders, 3rd ed. (beta version)22 The International Classification of Headache Disorders, 3rd ed. (beta version). Cephalalgia. 2013;33(9):629-808.. Classificar essas dores específicas do segmento cefálico de acordo com os tipos de dor, ainda não foi realizado. As cefaleias secundárias possivelmente são nociceptivas. Nas meningites e doenças correlatas a dor seria gerada pela estimulação dos nociceptores periféricos dos grandes vasos da base e das meninges pelo processo inflamatório gerando dor nociceptiva. O mesmo pode-se dizer das cefaleias das lesões expansivas, nas quais a compressão, tração, dilatação das estruturas poderia estimular nociceptores locais e gerar também NocP. O mesmo ocorre nas arterites e vasculites em geral, quando os nociceptores vasculares seriam os estimulados22 The International Classification of Headache Disorders, 3rd ed. (beta version). Cephalalgia. 2013;33(9):629-808..

O tipo de dor das cefaleias primárias não poderia ser classificado como NocP e nem NeuP. A cefaleia da enxaqueca é provocada por estimulação de nociceptores periféricos das terminações trigeminais das meninges inervadas pelo primeiro ramo do trigêmeo a esse nível. Seria então uma dor nociceptiva? A grande diferença entre essa cefaleia e as nociceptivas clássicas é que nessas últimas o estímulo dos nociceptores é feito por agressão direta dos mesmos por lesão tecidual e liberação de neurotransmissores locais. Na enxaqueca o estímulo dos nociceptores é realizado por uma inflamação neurogênica provocada por disfunção central - córtex ou núcleos específicos do tronco cerebral. A inflamação neurogênica é provocada por fatores endovasculares liberados por vasodilatação local, com ativação dos nociceptores. A vasodilatação nas meninges é provocada principalmente por CGRG, neurocininas e substancia P liberadas retrogradamente pelas terminações trigeminais. A grande diferença entre as dores nociceptivas clássicas e a dor da enxaqueca é que nessa última a estimulação de nociceptores periféricos é feita por processos iniciados no SN e não na periferia2222 Bowsher D. Neurogenic pain syndromes and their management. Br Med Bull. 1991;47(3):644-66.. Assim sendo, a dor da enxaqueca tem sido considerada dor dismodulatória, pois os processos que originam a inflamação neurogênica nas meninges se iniciam no SNC. Também não poderiam ser classificadas como neuropáticas pela ausência de lesão ou doença específica no SNC ou SNP.

As demais cefaleias primárias podem ser interpretadas dessa mesma maneira e constituem outros exemplos de dor dismodulatória.

O processo da dismodulação central nas cefaleias primárias não é estático, sendo influenciado por muitos fatores endógenos (hormonais, sono, emoções, fases da vida) e exógenos (clima, estação do ano, alimentos, bebidas alcoólicas, odores etc.) fazendo com que os pacientes passem por dias/meses/anos bem, intercalados com fases de exacerbação dos sintomas2727 Speciali JG. Entendendo a Enxaqueca. Ribeirão Preto: Funpec Editora; 2003..

Concluindo, pode-se aceitar a ideia de que as cefaleias primárias sejam dores desmodulatórias, mas que as secundárias sejam nociceptivas ou viscerais.

  • Fontes de fomento: não há.
  • 1
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  • 2
    The International Classification of Headache Disorders, 3rd ed. (beta version). Cephalalgia. 2013;33(9):629-808.
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  • 13
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2016
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