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Henri Lefebvre: o espaço, a cidade e o “direto à cidade”

Henri Lefebvre: the “direct to the city” as a utopian horizon

Resumo

Na obra de Henri Lefebvre a construção do conceito de “direito a cidade” localiza-se na prática como parte do movimento do real, ao mesmo tempo em que ganha sentido como possibilidade e projeto utópico. Traz como exigência teórica, a compreensão do papel da produção do espaço como determinante da problemática urbana que se anuncia na segunda metade do século XX.

Palavras-chaves:
Espaço; Urbano; Direito à cidade

Abstract

In the work of Henri Lefebvre, the construction of the concept of “the right to the city” is located in practice as part of the movement of the real, at the same time that it gains meaning as a possibility and utopian project. It brings as a theoretical requirement the understanding of the role of production of space as a determinant of the urban problem that is announced in the second half of the 20th century.

Keywords:
Space; Urban; Right to the city

Em seu livro A sociabilidade do homem simples1 1 José de Souza Martins, São Paulo: Ed Hucitec, 2000, página 94. , Martins escreve que um novo problema não sai do bolso do colete do pesquisador, mas surge à investigação porque antes se torna um tema para a consciência social.

Vida privada, vida cotidiana, como objetos de conhecimento científico, são temas da atualidade, são temas da consciência social contemporânea e o são porque, de algum modo, são problemas para a sociedade Em relação a sociedade não há como não tomar consciência de (novos) problemas e, em consequência, propor socialmente um novo delineamento do que pode vir a ser objeto de conhecimento sem que eles se proponham também, de certo modo, à consciência do homem comum.

O debate sobre o “direto à cidade” se coloca nesta perspectiva: ele aparece como horizonte de luta no seio dos movimentos sociais a partir do questionamento sobre o modo como se realiza a vida urbana.

A sociedade constrói um mundo objetivo. Na prática socioespacial, esse mundo se revela em suas contradições, num movimento que aponta um processo em curso subsumido à reprodução das relações sociais no atual estágio do capitalismo (enquanto relação espaço-temporal. Isto é a práxis tem por conteúdo um espaço e um tempo realizando como sócio-espaço-temporal). O ponto de partida de nossa análise se baseia no fato de que é no espaço que se pode ler a realidade e as possibilidades concretas de realização da sociedade. Esse é também o plano da vida cotidiana e do lugar. Aqui explodem os conflitos que sinalizam as contradições vividas. Esses conflitos ganham visibilidade nos espaços públicos, hoje, lugar de manifestações dos movimentos sociais como consciência reveladora do processo de alienação atual. Podemos afirmar que a reprodução da cidade hoje sob um novo momento da acumulação - financeira- atualiza a alienação do mundo através do afastamento do sujeito produtor de sua obra - a cidade - vivida como estranhamento.

A hipótese, aqui desenvolvida é que o debate sobre o “direto à cidade” é um momento necessário de explicitação desse processo. Portanto o que está em questão aqui é: qual é a realidade que coloca para todos - movimentos sociais e investigadores - o tema do “direto à cidade” e mais, como entender a contribuição de Henri Lefebvre para este debate?

O urbano, o cotidiano e o espaço (como terceiro termo da tríade) aparecem no movimento do pensamento de Lefebvre, como conteúdo da problemática urbana na qual se debruça para pensar a realidade (da segunda metade do século XX) em sua tendência inexorável ao mundial num mundo tornado urbano construído como o negativo daquele dominado pela lógica da acumulação orientada pela hegemonia do industrial.

A compreensão desta realidade se realiza nas obras do autor, pela crítica que se efetiva por meio de atos teóricos, alguns dos quais pretendemos explicar neste artigo. Em primeiro lugar se trata de uma crítica do existente. Em segundo lugar, o processo do pensamento crítico indica o caminho /necessidade de passagem da fenomenologia à análise; da lógica à dialética iluminado as contradições capazes de orientar o mundo em outra direção - isto é, a crítica consiste na possibilidade de transformação do existente movendo-se em direção ao futuro.

Aqui a dialética da teoria e prática permite pensar no movimento e no momento da ação que transforma a realidade nos coloca diante do novo (a constituição da sociedade urbana como realidade/virtualidade (LEFEBVRE,1970___________,Le manifeste différentialiste, Galimard, Paris: 1970 (b).) e da necessidade de sua compreensão. O ponto de partida é a pratica urbana e o caminho é a superação dos conceitos parciais objetivando a construção de uma problemática reveladora do mundo moderno. Para Lefebvre a problemática do mundo moderno é urbana revelando uma determinação espacial. Para o filosofo vivemos um momento do processo civilizatório aonde se assiste à passagem da historicidade à espacialidade inaugurando o que chama de um período trans-histórico, aonde o espaço ganha centralidade sobre o tempo (LEFEBVRE, 2001).

Esse raciocínio tem como fundamento a explosão dos referenciais vindos da histórico anunciando a modernidade momento no qual as relações capitalistas passam a se determinadas pelo processo de produção do espaço. Neste momento desloca-se o foco central do processo de acumulação capitalista: da produção de mercadorias clássicas para a produção do espaço.

Essa proposta do autor ganha atualidade explicativa no século XXI aonde a cidade se transforma em mercadoria escancarando o processo contraditório da produção do espaço tornado valor de troca como momento importante do processo de valorização do capital. É aqui que o espaço aparece como segundo setor da economia.

O imobiliário, como se diz desempenha o papel de segundo setor, de um circuito paralelo ao da produção industrial voltada para o mercado de bens não duráveis ou menos duráveis que os imóveis. Esse segundo setor absorve os choques. Em caso de depressão para ele afluem os capitais (...). Enquanto uma parte da mais valia global formada e realizada na indústria decresce, aumenta a parte de mais valia formada e realizada na especulação e pela construção imobiliária. O segundo setor suplanta o principal. (LEFEBVRE:1970___________,Le manifeste différentialiste, Galimard, Paris: 1970 (b).,211/212)

Significa dizer que as crises de acumulação do capital se resolvem através da reprodução o espaço.

Essa ideia vem de encontro ao debate geográfico sobre a produção do espaço - refiro-me aqui a sua vertente crítica- segundo o qual a cidade hoje se transforma em mercadoria como desdobramento do processo de produção do espaço tornado mercadoria no seio do processo da produção capitalista. Neste movimento o valor de troca suplanta o valor de uso estrangulando-o, trazendo como consequência a degradação das relações sociais na cidade através do aprofundamento da segregação espacial. Este movimento da história fundamenta e justifica as lutas pelo espaço. É aqui que se localiza e ganha atualidade o debate sobre o “direto à cidade” como aposta e mediação entre realidade presente e o futuro da sociedade.

O caminho da crítica aparece como momento indispensável da compreensão da realidade bem como da possibilidade de sua própria transformação, uma vez que o ato de conhecer traz em si a utopia. O materialismo aponta a necessidade portanto, da junção de dois princípios opostos : não existe pensamento sem utopia (sem exploração do possível) e não existe pensamento sem referência a uma prática que, do ponto de vista do debate urbano se associaria à produção do habitar e do uso dando sentido à apropriação como ato essencialmente humano (criativo).

1. A geografia crítica e a análise espacial

A hipótese, aqui formulada, é que o debate sobre o “direto à cidade” desenvolvido por Lefebvre ilumina a importância do espaço na compreensão do mundo moderno como movimento constitutivo da prática (e, portanto, da elaboração do projeto utópico).

Se parece não haver dúvidas de que entramos num período urbano sua compreensão todavia, tem criado o que Lefebvre chama de um “campo cego” promovido pela extrema especialização das disciplinas trazendo como consequência a ignorância e a degeneração da utopia limitada pela análise presa ao presente, a ideia de espaço como quadro físico, ao mesmo tempo que encobre “o urbanismo como estratégia de classe”. (LEFEBVRE, 1970___________,Le manifeste différentialiste, Galimard, Paris: 1970 (b).:208).

Faz parte do campo cego a vulgarização da obra de Lefebvre e ideologização do debate sobre o direto à cidade por ele apresentado em 1968LEFEBVRE, Henri, Le droit à la ville, Antropos, Paris: 1968., derivado em política pública.

A chamada geografia urbana critica tem colocado em xeque a compreensão da cidade enquanto quadro físico, ambiente construído, bem como sua interpretação enquanto sujeito de ação que domina a investigação urbana. Iluminar este “campo cego” tem como primeira condição uma inversão teórica: a cidade não é o sujeito que define a ação urbana, ao contrário, a cidade é uma obra civilizatório, produto social e humano. Esta inversão ganha importância impar ao permitir iluminar os sujeitos produtores da cidade segregada numa sociedade de classes.

Nessa perspectiva crítica, a análise geográfica do mundo é aquela que caminha no desvendamento dos processos constitutivos do espaço enquanto produção social e histórica. A questão espacial2 2 Ver sobre esse tema ver: CARLOS, Ana Fani, Uma Geografia do espaço, in A necessidade da Geografia, São Paulo: Editora Contexto, 2019 pp15/28 se elabora no plano da construção do humano na medida em que o ato/atividade de produzir espaço é em si um ato e atividade de produção da vida. Isto é, a sociedade se constitui como realidade prática através de um conjunto de produções: uma delas é o espaço.

Nesta condição o espaço é produto, condição e obra da realização da vida humana (CARLOS,1994CARLOS, A. F. A. A (re)produção do espaço urbano, São Paulo, EDUSP: 1994). Nesse contexto a cidade aparece como trabalho materializado ao longo de todo o processo histórico - objetivação do sujeito. É processo de produção continuada revelando o conteúdo da vida. Deste modo, sua produção enquanto movimento e (momento) revela a prática espacial. A natureza da cidade é, portanto, social. Nesse pressuposto as determinações do espaço - sua lei geral - liga-se, submete-se e explica-se como aquelas da sociedade. Assim a produção do espaço se articula à reprodução das relações socias de produção. A existência das coisas não existe fora da prática e a consciência é um produto social. A criação do homem por ele mesmo em condições práticas ilumina o cotidiano enquanto a produção do espaço é a objetivação de um processo histórico em um mundo de coisas ao mesmo tempo em que a tomada de consciência da alienação que sustenta o processo (além de ser seu produto).

Ao longo do processo histórico, a reprodução produz o espaço enquanto mercadoria e nesta interpretação, a Geografia (critica) permite deslocar o enfoque do espaço enquanto localização e palco da atividade dos grupos humanos para compreendelo enquanto produção do trabalho social iluminado uma sociedade de classes como sujeito deste processo de produção. Todavia, no capitalismo a cidade como seu produto torna-se mercadoria e o espaço se usa e vive em fragmentos. O espaço-mercadoria como desdobramento necessário da produção, sob a égide do capitalismo, aponta a fragmentação do espaço pelo mercado imobiliário. Esse movimento vai da venda das parcelas da cidade até a venda da cidade como um todo, revelada pelo marketing urbano do planejamento estratégico. Aqui anuncia-se a ideia da separação / passagem (na história, da cidade-obra para a cidade-produto) redefinindo a práxis e transformando-a radicalmente pela subordinação do uso (dos espaços-tempos da cidade) ao valor de troca.

Nesta dimensão o espaço traria como fundamento a desigualdade sustentada pela contradição entre a sua produção social do espaço e sua apropriação privada3 3 Esta contradição está no fundamento do processo de produção social do espaço. Ver in CARLOS, Ana Fani, Espaço e tempo na metrópole, São Paulo:2017, www.gesp.fflch.usp. . Neste percurso a propriedade do solo urbano se torna abstrata sob a sua forma privada delimitando, através da norma e da lei, as possibilidades do uso dos lugares revelando a justaposição espacial entre morfologia espacial e morfologia social. Aqui a propriedade confronta-se com o uso (pois este revela a apropriação) enquanto necessidade, mas, fundamentalmente também, enquanto desejo revelando o conjunto da vida social em sua contradição entre necessidade - imposta pela reprodução econômica - e desejo imposto pela reprodução da vida social. Esta contradição revela embates em torno da construção -reconstrução da cidade.

Como consequência, a prática espacial urbana vai manifestando a extrema separação/dissociação dos elementos de sustentação da vida que se fragmenta na separação dos espaços-tempos da vida cotidiana deteriorando as relações sociais, numa cidade vivida como fonte de privação pelas restrições ao uso e normatização/programação do cotidiano numa sociedade desigual. Separação importante é aquela entre os locais de moradia dos locais de trabalho. Esta prática também concretiza a separação casa-lazer e com esta, a centralização dos lazeres na cidade. A vida cotidiana revela-se, assim pela fragmentação dos elementos da prática socioespacial urbana em espaços-tempos separados enquanto elementos autônomos da vida. Estas são as características da segregação a cidade contemporânea, vivida na dimensão do cotidiano (aonde se manifesta concretamente a concentração da riqueza, do poder e da propriedade) como expressão da mercantilização do espaço.

Na cidade a reprodução promove a extensão do tecido urbano revelando a tendência da realização do valor de troca sobre o valor de uso no espaço como momento em que a troca suplanta o uso transformando-o em signo mudando profundamente o espaço e o tempo das atividades humanas. Essa situação ilumina o papel do Estado (numa colagem entre o político e o econômico como decorrência de alianças e lobbys poderosos) na transformação da cidade através das ações de planejamento apoiadas em políticas públicas de renovação urbana e de incentivos de todos os tipos ao setor imobiliário criando espaços de acumulação. Trata-se de ações que se localizam na esfera do planejamento a partir de uma visão especifica do que é a cidade e o urbano (urbanismo).

Lefebvre, em muitas de suas obras, chama atenção para o papel exercido pelo urbanismo que entra em cena reduzindo a problemática urbana àquela da gestão do espaço da cidade com o objetivo de restituir a coerência do processo de crescimento. Nessa direção o Autor sinaliza a direção da necessidade da crítica da produção do conhecimento e do discurso político, que para manter a ordem do mundo sob a racionalidade do mercado, precisa produzir o conhecimento técnico, onde “a tecnicidade serve de álibi para a tecnocracia e a racionalidade aos funcionamentos que giram em torno de si mesmo” 4 4 Henri Lefebvre, A vida cotidiana no mundo moderno, Editora Ática São Paulo: 1991, p. 80

Nessa conjuntura, a cidade, aonde se desenrola a vida real, tem se transformado em fonte de lucro e disputa de poder pela coação do uso. De forma mais clara o uso coloca como questão central o acesso à moradia para em seguida desdobra-se no problema da mobilidade na cidade (tanto em relação ao tempo do deslocamento quanto ao seu custo). Isto porque a cidade - sob a lógica da acumulação capitalista- se produz separando lugar de moradia àquele do trabalho e dos serviços e lazeres obrigando grandes deslocamentos.

Esses são os sintomas concretos da tendência da “vitória do valor de troca sobre o valor de uso”, na produção do espaço assinalada por Lefebvre iluminando o momento aonde a troca suplanta o uso transformando-o em signo trazendo consigo a explosão do fenômeno urbano a extensão das periferias revelando por outro lado a extensão/concentração da propriedade privada do solo urbano - uma das formas da riqueza. Esboça-se desta forma de crescimento, a constituição da sociedade urbana e um espaço que se realiza como mundial. Isto porque o capitalismo em seu movimento de reprodução cria constantemente as condições de sua própria realização continuada. Nesta condição ele próprio se mundializa e toma a sociedade inteira - essa é a virtualidade do capitalismo e esse movimento se faz com profundas contradições. Aí se situaria a revolução urbana como momento de superação da sociedade industrial compondo um novo modo de vida associada às novas formas sociais.

O papel da Geografia na produção de uma teoria crítica sobre o urbano repousa no fato de que, a disciplina, ao focar o espaço, permite localiza-lo na relação homemnatureza produtora do mundo. Nesta direção o

espaço contempla uma dupla dimensão, de um lado é localização; de outro, encerra em sua natureza, um conteúdo social dado pelas relações sociais que se realizam num espaço - tempo determinado, aquele da sua reprodução. Assim se desloca o enfoque da localização das atividades, no espaço, para a análise do conteúdo da prática socioespacial, enquanto processo de produção/apropriação/reprodução (...) A noção de produção esta articulada, inexoravelmente, àquela de reprodução das relações sociais lato senso - num determinado tempo e lugar. Termo amplo envolve a produção e suas relações mais abrangentes, significa, neste contexto, o que se passa fora da esfera específica da produção de mercadorias, e do mundo do trabalho (sem, todavia, deixar de incorporá-lo) para estender-se ao plano do habitar, ao lazer à vida privada, guardando o sentido do dinamismo das necessidades e dos desejos que marcam a reprodução da vida. Nessa direção a noção de reprodução abre como perspectiva analítica o desvendamento da realidade urbana, a análise da vida cotidiana enquanto lugar da reprodução no seu sentido amplo. É nesse plano que pode ser detectado uma tendência; aquela da instauração do cotidiano como elemento constitutivo da reprodução no mundo moderno. (CARLOS,2017___________, Espaço e tempo na metrópole, http://gesp.fflch.usp.br/sites/gesp.fflch.usp.br/files/Espa%C3%A7o-Tempo%20da%20Vida%20Cotidiana%20na%20Metr%C3%B3pole_.pdf, 2ª edição revisada: 2017.
http://gesp.fflch.usp.br/sites/gesp.fflc...
:6 e 10)

Esse pressuposto, como apontamos acima, questiona a cidade como sujeito na teoria urbana, hoje, bem como sua existência enquanto palco das atividades humanas passível de ser manipulado na prancheta, o que inverte o sentido da análise e projeta o “direto à cidade” como momento do processo de produção social (desigual) do espaço urbano em suas contradições iluminando seu papel na acumulação do capital. A partir deste questionamento a prática socioespacial revelaria a dimensão da produção do espaço em sua contradição fundamental - produção social /apropriação privada como negação da apropriação. Esta invadida pelo valor de troca - como condição da existência e extensão da propriedade privada - esvazia o uso e define as estratégias das políticas urbanas na direção da realização da reprodução social. Em conflito a reprodução da vida entra em choque com as políticas que produzem a cidade na direção da realização da reprodução política e econômica (não sem conflitos entre esses dois planos) produzindo a cidade enquanto fragmentação de lugares e momentos da vida urbana. Assim, prática sócio espacial na cidade vai realizar/revelar as fragmentações: da vida (do indivíduo) e da cidade. O cotidiano é a instância que liga espaço-tempo e que revela o esvaziamento e enfraquecimento das relações sociais na cidade - perda de referências, isolamento e estranhamento. Portanto à medida em que o espaço se mundializa e a sociedade urbana se gesta e as contradições se aprofundam.

2. O espaço, a cidade e a revolução urbana

Lefebvre constrói seu raciocínio sobre o espaço na direção da concepção materialista da história segundo a qual a condição de existência dos homens determina sua consciência e que a uma certa etapa da história, o desenvolvimento das forças produtivas materiais entra em conflito com as relações de produção existente. Neste movimento se situa a reflexão de Lefebvre sobre o espaço. Todavia, o sentido do espaço na obra de Lefebvre é aquele de sua produção. O conceito de produção do espaço indica para Lefebvre “um passo à frente na reflexão arquitetural e urbanística, ultrapassando seus setores e se debruçando sobre o conjunto da sociedade” (LEFEBVRE, 1972___________, Espace et politique, Antropos, Paris: 1972:181).

Em sua compreensão o processo de acumulação se expande, na segunda metade do século XX e se estende da indústria e do ciclo do capital produtor de mercadorias para tomar a sociedade e a cidade inaugurando um período urbano como momento crítico desse processo. Assim “se o agrário e o industrial perdem sua capacidade revolucionária a transformação do mundo encontrará um novo alento na problemática e prática urbanas.”(LEFEBVRE, 2001__________, La fin de l’histoire. Paris. Antropos/ Económica, 2001.:85) esse movimento sinalizaria para Lefebvre uma inversão na história. Essa ideia se construiu na obra de Lefebvre a partir da constatação de que o final da década de 60 e a década de 70 sinalizam uma mudança no processo histórico: neste momento a industrialização que produziu a urbanização como fenômeno incontestável perdeu sua centralidade dando lugar a outra realidade que ele chama de urbana. O que torna essa ideia importante é o fato de que o urbano em constituição se revela além da extensão e expansão do tecido urbano e do crescimento da população superando análise ligeiras sobre o fenômeno urbano como as que temos hoje.

“Este conceito, o urbano entra há pouco no vocabulário (ciência e prática), não designa a cidade e a vida na cidade. Ao contrário: ele nasce da explosão da cidade, com os problemas da deterioração da vida urbana. (...) O urbano? É a forma da reunião e da simultaneidade, aquela do espaço-temporal nas sociedades, forma que se afirma por todo lado no curso da história quaisquer que sejam as peripécias desta história. Desde as origens e os nascimentos das sociedades, esta forma se afirma, com os conteúdos os mais diversos. Ela se confirma, enquanto forma até na explosão que assistimos”. LEFEBVRE, 1986__________, Le retour de la dialectique - 12 mots clés pour le monde moderne. Paris: Messidor/Editions Sociales, 1986.:160)

Refere-se ao momento aonde cessaria a reprodução das relações de produção existentes, apesar de prevalecerem a degradação e a dissolução ao lado de novas relações ocasionando o deslocando das antigas. A centralidade do conceito de “reprodução das relações socias” desenvolvida por Lefebvre se abre para a compreensão do fenômeno urbano ultrapassando os limites territoriais da cidade e iluminando o urbano produzido através de aspirações e necessidades de uma sociedade de classes. Nesta perspectiva o urbano se constitui como um momento da reprodução saído da história da industrialização na construção do caminho que aponta a sociedade urbana num espaço mundial.

O debate sobre o urbano na obra lefevriana revela a papel do espaço. Todavia, como escreve Lefebvre,

o espaço urbano não exclui a produção, as empresas, as relações industriais: mas a compreensão do termo e do conceito, com temática e como problemática correspondentes, é mais amplo. É, portanto, o território onde se desenvolvem a modernidade - e a cotidianidade no mundo moderno. O conceito foi elaborado para substituir por análises dialéticas (levando em conta a complexidade dos fatos assim como contradições e conflitos) as representações simplificadas, as constatações, o estudo de questões reais mas parciais; a repartição e as transferências de propriedade, as especulações, a demografia, etc. O conceito sublinha aquilo que se passa e tem lugar fora das empresas e do trabalho, se bem que ligado por múltiplos liames à produção. Ele põe a ênfase no cotidiano na vida das “cidades”. " LEFEBVRE,1986__________, Le retour de la dialectique - 12 mots clés pour le monde moderne. Paris: Messidor/Editions Sociales, 1986.:161/162)

A vida cotidiana revela que a ordem capitalista ao se desenvolver reproduz continuamente os elementos indispensáveis à sua manutenção no seio do espaço fragmentado pela propriedade privada do solo urbano que, na cidade, produz favelas, condomínios fechados, guetos de todos os tipos, acentuando a segregação, a atomização das pessoas pela desagregação da vida de relações fundadas na sociabilidade, com a implosão dos referenciais urbanos que pontuam e dão sustentação a vida, no eclipse dos espaços públicos da reunião e do encontro (em espaços visto como improdutivos), na degradação do trabalho enquanto atividade humana, bem como dos lugares de trabalho, cooptação do tempo do lazer ao mundo da mercadoria, etc.. Revela-se neste processo o desenvolvimento do mundo da mercadoria que torna o próprio espaço uma mercadoria essencial à realização da acumulação sob a égide do Estado - através das políticas públicas, das intervenções no espaço da vida.

A ênfase no cotidiano ilumina, portanto, o sentido social dos processos urbanos que tem no plano do vivido o ponto de partida da análise. Nesta perspectiva, o espaço concreto é aquele do habitar; dos gestos e percursos, do corpo e da memória, dos símbolos e sentidos e das contradições e conflitos entre necessidade e desejo; “poiesis inconsciente” (LEFEBVRE, 1968LEFEBVRE, Henri, Le droit à la ville, Antropos, Paris: 1968.:145).

Para Lefebvre as questões urbanas, na segunda metade do século XX, se encontravam subordinadas àquelas da habitação e do habitat, e nestas condições, submetidas às questões da planificação global, encobrindo o surgimento de um novo momento da história em que a relação industrialização-urbanização se supera e sociedade urbana começa inaugurando um outro momento; o período trans-histórco.

A cidade cessa de ser o contingente, o receptáculo passivo dos produtos e da produção. O que subsiste e se reafirma da realidade urbana, o centro de decisão, entra desde agora na produção dos meios de produção e dos dispositivos de exploração do trabalho social por aqueles que detêm a informação, a cultura, os poderes de decisão. Só uma teoria permitia utilizar os dados práticos e realizar efetivamente a sociedade urbana” (LEFEBVRE, 1968LEFEBVRE, Henri, Le droit à la ville, Antropos, Paris: 1968.:145).

O século XXI aprofunda as tendências na direção da construção de uma nova relação espaço-temporal com a hegemonia de novos setores econômicos de realização do capital iluminado o papel do capital financeiro na reprodução da cidade, inserindo-a de forma mais objetiva, no processo de valorização do capital através do imobiliário o que permitiu a extensão da propriedade privada do solo urbano revelando estratégias imobiliárias, profundamente vinculadas à reprodução do capital - através da indústria da construção civil, e mais recentemente, com o desenvolvimento dos fundos imobiliários - como estratégia da reprodução do capital financeiro.

2.1 Sobre o habitar/habitat

Em Lefebvre, os atos, decisões e determinações fundam a práxis, portanto o conhecimento é orientado por ela. Aí se situa o projeto do possível-impossível, no movimento em que pensa o futuro a partir da superação das contradições que impedem o humano de se realizar concretamente. O debate entre o habitat e o habitar - apontado em várias obras de Lefebvre (1968,1970,1973ª)- ganha sentido neste processo. O mundo moderno assinala para o autor, o movimento da história em que o” habitar” (que contempla o sentido criativo do ato de apropriação inerente à vida humana) dá lugar ao “habitat” como momento constitutivo do espaço abstrato. O processo de abstração é o movimento da perda dos seus conteúdos sob a lógica e racionalidade da acumulação assentada nas políticas de crescimento. O caminho é a constituição da homogeneidade. A homogeneidade do espaço corresponde as vontades e estratégias unitárias, lógicas sistematizadas, representações redutoras, impostas de cima para baixo. Ao mesmo tempo em que tende a um código único, para um sistema absoluto que se refere aquele do valor de troca, se acentuam as diferenças do povoamento causando mal estar. A esta situação se levantam as forças diferenciadoras. Nessa direção a pesquisa não recai sobre o realizado nem sobre o possível, mas sobre a complexidade e os conflitos de uma práxis aberta sobre o possível, base e fundamento da abertura das consciências individuais. Portanto a abertura se localiza na práxis.

Sob o capitalismo a cidade se transforma e rompe a relação dentro e fora, o dentro é invadido e submetido pelo discurso e ideologia do crescimento. O de fora é a norma imposta às relações sociais criando novos referencias para a vida.

"No final do século XIX e sobretudo no século XX toma forma a racionalidade organizadora e operacional em diversos níveis da realidade social (..).. uma estratégia associada a uma ideologia aquela da coerência que vai sistematizar a lógica do habitat" (LEFEBVRE,1968LEFEBVRE, Henri, Le droit à la ville, Antropos, Paris: 1968.:31).

No plano do habitat se vive a cidade aos pedaços. O espaço urbano, tornado mercadoria, faz com que seu acesso seja determinado pelo mercado imobiliário, deste primeiro acesso redefinem-se outros, por exemplo o acesso a bens e serviços urbanos, à centralidade. Um mundo de cisões se constitui e aponta o fato de que a produção da cidade é uma atividade que envolve diferencialmente a sociedade. Esta diferença revelase numa apropriação privada como função da distribuição da riqueza e da posse da riqueza gerada por ela sob sua forma privada.

No processo de urbanização induzido pela industrialização, produziu o habitat contra o habitar ao construir os grandes conjuntos habitacionais como depósito de trabalhadores e moradias precárias para o exército industrial de reserva. O habitat constitui-se, nesse processo, como o outro do habitar, como seu negativo. A construção do habitat em suas formas desprovidas de arte e do sentido do uso, com suas áreas exíguas e descaracterizadas, impõe um outro modo de acesso ao espaço urbano.

Normatizando a vida cotidiana e submetendo-a a lógica da mercadoria, o habitat se revela como o outro do humano. Sua estruturação rechaça a consciência sobre o habitar.

Para Lefebvre, antes da produção do habitat, o habitar era uma prática milenar, mas no reino do habitar é aquele da apropriação. O homem habita o planeta é um ato poético, faz parte da cultura, produziu a cultura. Este habitar é o modo criativo através do qual o indivíduo, o cidadão, o ser humano se apropria do espaço para realizar sua vida e, neste ato, constitui-se ele próprio como humano. O ato de apropriação do mundo é um ato absolutamente humano. Este habitar envolve um espaço e um tempo das atividades reprodutoras do sujeito produtor da história; envolve um espaço como emprego do tempo, um tempo como uso do espaço. Um espaço usado no movimento da produção de uma vida criativa, de uma vida não alienada.

Para o indivíduo ou para o grupo, apropriar-se refere-se a algo. Apropriar-se não é ter a propriedade, mas fazer sua obra, modela-la, forma-la, por o selo próprio (..) Habitar é apropriar-se de um espaço, é também fazer frente aos constrangimentos, quer dizer, é o lugar do conflito agudo entre os constrangimentos e as forças de apropriação.(LEFEBVRE: 1973____________, La survie du capitalisme. Paris: Anthropos, 1973.ª, p. 210).

No plano teórico Lefebvre aponta que o sentido do que é o habitar desapareceu do pensamento deteriorando-se fortemente. O habitar, foi expresso insuficientemente, Lefebvre afirma que o pensamento urbanístico “ignora o habitarLEFEBVRE, 1973____________, La survie du capitalisme. Paris: Anthropos, 1973.ª, p.209). Levado à linguagem, ao concreto, mais ou menos degradado torna-se signo.

O habitat, ideologia e prática, foi instaurado pelo alto, pelo Estado, pelo planejamento, aplicação de espaço homogêneo e quantitativo obrigando o vivido a encerrar-se em caixas e gaiolas, chagando a reprimir as características elementares das maneiras de viver. Foi preciso uma reflexão metafilosófica para resgatar o habitar. Portanto, para reencontrar o vivido e os seus sentidos, é preciso ir além do vivido, do habitante, em direção à teoria geral (à metafilosofia), em relação com o possível e com o imaginário, no sentido de desvendar o fato de que a sociedade moderna produziu o habitat como a negação do habitar.(LEFEBVRE, 1970___________,Le manifeste différentialiste, Galimard, Paris: 1970 (b)., 154) .

2.2 a segregação

No plano do habitat se vive o espaço e o tempo em fragmentos. Estas revelam a segregação. Seu fundamento é a existência da propriedade privada do solo urbano, que diferencia o acesso do cidadão à moradia, produzindo a fragmentação dos elementos da prática socioespacial urbana e separando os lugares da vida enquanto elementos autônomos. Neste sentido, a existência da propriedade privada da riqueza vai revelando uma função econômica como realização continuada do valor e uma função jurídica que a realiza enquanto direito inquestionável. Neste nível a existência da propriedade privada realiza a desigualdade que está na base do desenvolvimento da sociedade capitalista.

Mas, se a existência da propriedade esfacela a cidade limitando seu acesso promovendo separações de usos e funções, restringindo a prática socioespacial a pergunta seria o que uniria e daria sentido a estes fragmentos. A resposta seria a existência do Estado normatizando o cotidiano, legitimando a propriedade privada do solo como direito (no plano do jurídico), direcionando o processo de valorização/desvalorização dos lugares através de políticas públicas e da manipulação dos orçamentos, da cooptação do conhecimento que produz o saber técnico, (revelando o caráter utilitário da ciência produtora de informação), produzindo o discurso que funda a lógica do crescimento e justificando a distribuição dos recursos aplicados nos espaços produtivos visando a reprodução do lucro, enquanto a aplicação da verba pública nos espaços improdutivos da periferia ocorre, sob a forma de “assistência,” mediante uma catástrofe, para diminuir a pressão na sociedade.

Deste modo a produção da segregação revela em seu fundamento a negação da vida na cidade, uma estratégia de classe e do poder em seu sentido estratégico. A fragmentação do espaços para compra e venda dominada pelo valor de troca, bem como e separação referente aos usos e acesso à cidade e a vida urbana criada pela segregação revelam os conteúdos da reprodução das relações sociais de produção (o modo de produção capitalista), o que significa dizer que esta reprodução cria uma prática socioespacial em seu conjunto.

Outra consequência deste raciocínio é que se esconde também o fato de que a produção do espaço, pela sociedade e sob a égide do Estado, ganha um caráter estratégico. Isto é, o Estado regulador impõe as relações de produção sob a forma de dominação do espaço, imbricando espaços dominados/dominantes para assegurar a reprodução da sociedade enquanto reprodução continuada do capital e d e seu poder. No plano teórico, a busca de coesão, coerência e equilíbrio baseada na eficácia do que se chama “desenvolvimento sustentável”, ao eliminar os conflitos e contradições, vê-se envolta pela ideologia. E assim a crítica ao Estado se reduz ao problema da gestão administrativa da cidade e de sua capacidade produtiva.

Assim, a radical separação das atividades no espaço e a normatização do uso exigem uma crítica radical da separação. Assim, contra o habitat, o Estado puro como soma de equações, Lefebvre coloca o habitar. Contra a cotidianidade repetitiva ele coloca a cotidianidade lúdica, criativa. Contra o urbanismo que se instaura na prática através da construção do habitat, provavelmente, construindo uma ideologia urbanística redutora da prática real, pode-se pensar um urbanismo gerador de uma outra sociedade capaz de produzir, materialmente, essa outra sociedade. Esse seria o momento possível para a caracterização de um projeto capaz de permitir uma vida onde a autocriação do ser humano se colocaria praticamente no cotidiano e no urbano. O que significa considerar o cotidiano como um produto da história, o produto do desenvolvimento do mundo da mercadoria e da sociedade de consumo, presente como repetitivo, mas contraditoriamente, como insurgência a ordem e a lógica instaurado pelo capital. O cotidiano, ao mesmo tempo em que é um produto da história, é resíduo, e nesta condição é no cotidiano que está tudo aquilo que pode construir um projeto de uma nova sociedade pela reunião dos resíduos (LEFEBVRE, 1970___________,Le manifeste différentialiste, Galimard, Paris: 1970 (b).).

Do ponto de vista teórico, o cotidiano é o lugar aonde a totalidade fragmentada na ciência e na prática social poderia se realizar. Neste plano as cisões que sustentam a vida urbana (e como elas se realizam) iluminam as contradições. Daí a necessidade da crítica que reverte o mundo. Essa revolução teórica supõe uma crítica radical às superestruturas, o Estado e as suas instituições, a ideologia do crescimento que sustenta as ações institucionais que se passa como obstáculo à prática.

3. A cidade como privação e o “direito à cidade”

A segregação é a negação do urbano e da vida urbana. Os limites da propriedade marcam os limites dos usos ( e de seus modos) na cidade fazendo com que a vida cotidiana desenvolva-se nos estritos limites dos espaços privados (e vigiados como é o caso condomínios fechados, ruas muradas, praias privatizadas) dos espaços públicos normatizados e pelo poder crescente das milícias organizando a vida (não só na periferia) com a subjugação e imposição no ato de ir e vir definidos segundo uma lógica que esvazia a democracia.

Portanto, a prática espacial aponta o empobrecimento e a deterioração da vida social que é fonte de privação diante da extensão da mercantilização/normatização que vai junto com a privatização do mundo. Deste modo, a situação do cidadão e as condições do exercício da cidadania se reduzem às condições da sobrevivência com a destituição do sentido da vida e da dignidade humana. O aprofundamento da segregação é a característica da cidade que se constitui como negócio5 5 Tema tratado em “A tragédia urbana“ in A cidade como negócio, São Paulo, Editora Contexto, 2018 pp 4364 produto da valorização advinda da construção de infraestrutura em determinados lugares da cidade voltados para novos os negócios privados em detrimento da construção de infra e serviços nas áreas periféricas. Por outro lado, o processo de valorização faz-se com a transferência dos moradores dos lugares atingidos, posto que expulsam a "população não compatível" (para utilizar um termo corrente no planejamento) nas das áreas renovadas, etc. .

A segregação que aparece sob o signo da fragmentação é o limite último, é o modo como se percebe o processo, é o modo como se vive, por isso que é neste plano que se leem as insurgências. Nesse sentido, as ações dos movimentos sociais passam a ser absolutamente centrais e importantes para revelar à análise os conteúdos da prática. Apontam exigências diferenciadas, tanto a urgência da moradia, do emprego e dos serviços, quanto do questionamento das políticas públicas (questionando o planejamento estatal que aprofunda, as desigualdades) e do esvaziamento da democracia. Esses movimentos no seio da sociedade corroboram a instabilidade, a fragmentação, a produção de um espaço segregado, que tem na sua origem a existência da propriedade privada (do poder da concentração de renda) na prática socioespacial vivida.

O cidadão desprovido dos conteúdos da vida e daquilo que funda a cidadania continua se reproduzindo numa luta constante. Ela advém da consciência da privação. Questiona a redução de parcela significativa da sociedade reduzida à luta pela sobrevivência - reduzido às suas necessidades básicas (comer, beber, dormir). Nas lutas revelam-se, também, as disputas pelo espaço da vida na cidade.

Nestas condições difíceis se abre o caminho dos diretos que definem a civilização (mais frequentemente contra a sociedade) Esses diretos mal conhecidos tornam-se pouco a pouco habituais antes de se inscrever em códigos formalizados. Eles mudariam a realidades se entrassem na pratica social: direto ao trabalho, à instrução, a educação, à saúde, a habitação, à vida. Entre esses diretos em formação figura o direto à cidade( não à vida antiga, mas à vida urbana, à centralidade renovada, aos lugares de encontro e de trocas, aos ritimos da vida, e empregos do tempo permitindo o uso pleno e inteiro destes momento e lugares) A proclamação da realização da vida urbana como reino do uso (da troca e do encontro livre do valor de troca) reclamando o domínio sobre a economia (do valor de troca, do mercado e da mercadoria) e se inscrevendo consequentemente, na perspectiva da revolução sobre hegemonia da classe operária.(LEFEBVRE, 1968LEFEBVRE, Henri, Le droit à la ville, Antropos, Paris: 1968.: 146).

Lefebvre descreve esta classe de despossuídos como aquela expulsa da centralidade da cidade, logo alienada de sua obra. No entanto, para Lefebvre, o que se abre com a ideia de direto à cidade não diz respeito só a esta classe, mas à civilização e interesses de todas as classes e camadas sociais para as quais a participação se torna obsessão.

Na obra de Lefebvre a construção do conceito de direito à cidade se localiza no pressuposto de que a utopia faz parte do processo de conhecimento porque ela se encontra, em germe, na práxis. A realidade como afirma (LEFEBVRE,1970___________,Le manifeste différentialiste, Galimard, Paris: 1970 (b).) é em parte real, em parte virtual. Ela contempla uma tendência: a realização da sociedade urbana como momento constitutivo do projeto de um outro humanismo. A construção de uma humanidade para além do capital e da sociedade capitalista. Um outro mundo possível depende do conteúdo de subversão-negação da ordem vigente, dos valores desta sociedade, rechaçando a lógica de uma integração ao capitalismo, em sua razão desumanizadora.

Nesse contexto o direito a cidade manifesta-se

como forma superior dos direitos, enquanto direito à liberdade, à individualização na socialização, ao habitat e a habitação. O direito à obra (atividade participante) e o direito à apropriação (bem distinto da propriedade) que se imbricam dentro do direito a cidade, revelando plenamente o uso. Nesse sentido, segundo o Autor, acabar-se ia com a separação cotidianeidade-lazer, vida cotidiana-festa e, justapondo-se na cidade dos espaços trabalho produtivo, da obra e do lazer. A cidade seria, nesta direção, a obra perpétua dos seus habitantes, contrária a ideia de receptáculo passivo da produção e das políticas de planejamento. Com essas ideias aventa a necessidade de um nova cidade: “aquela do homem urbano para quem a cidade e a própria vida cotidiana na cidade torna-se obra, apropriação, valor de uso ( e não de troca) servindo-se de todos os meios da ciência, da arte, da técnica, da dominação sobre a natureza material. (LEFEBVRE, 1968LEFEBVRE, Henri, Le droit à la ville, Antropos, Paris: 1968.:140).

Portanto,

Se é verdade que a palavra e conceito: cidade, urbano, espaço correspondem a uma realidade global e não designam um aspecto menor da realidade social , o direto à cidade se refere à totalidade ainda visada. Não e´ um direto natural nem contratual.(..) ele significa o direto dos cidadãos/citadinos e de grupos que eles constituem (sobre a base de relações sociais) a figurar sobre todas as redes e circuitos de comunicação de informação, de trocas. O que não depende nem de uma ideologia urbanística, nem de uma intervenção arquitetônica, mas de uma qualidade ou propriedade essencial do espaço urbano: a centralidade.(LEFEBVRE, 1972___________, Espace et politique, Antropos, Paris: 1972:162).

4. Uma conclusão possível, ou uma abertura?

É do processo de alienação que se trata e que se expande tomando toda a sociedade. Os conflitos se deslocam da fábrica para a cidade e as lutas cada vez mais deixam de priorizar salários e jornada de trabalho para se estenderem as condições de privação da vida urbana atualizando a alienação no mundo moderno aonde a cidade como produção social se eleva como seu outro: um mundo de privação. Com esse raciocínio queremos apontar que a cidade vivida como estranha ao cidadão, atualiza os termos em que se realiza no mundo moderno, a alienação. E os movimentos sociais a partir de lutas especificas iluminam a totalidade da produção do urbano.

Aqui proponho a hipótese segundo a qual o “direito à cidade” ganha força de mediação entre o presente e o futuro como movimento constitutivo do projeto utópica de mudar a vida, o que certamente supera a esfera dos bens necessários a realização da vida. O projeto utópico ilumina a escala da realização dos desejos, de criação de uma outra sociedade a partir da produção de um novo espaço. Na obra de Lefebvre o urbano se define como centralidade (reunião e simultaneidade), ponto de reunião de tudo aquilo que influência e permita a realização da vida urbana como apropriação.

A centralidade é, portanto, a negação da segregação e constituidora de um espaço diferencial como negação do espaço homogêneo imposto pela lógica capitalista. Do ponto de vista lefebvriano mudar a prática significa, portanto, inverter o sentido do urbano e seu braço pragmático o planejamento produtor do espaço abstrato. O espaço abstrato, para Lefebvre é o espaço do capitalismo, ele é geométrico, ele é medido, ele é quantificado, é reafirmado por coações através da produção do habitat, da cidade programada que se faz contra o habitar que se reafirma como poiético.

O destino desta sociedade é a sociedade urbana; uma realidade “em formação”, uma tendência que já se manifesta mas está destinada a se desenvolver como horizonte utópico. Portanto o urbano não é, nem uma morfologia material, nem um modo de vida, o urbano não é, também, exatamente conflito, seu sentido é muito mais amplo, ele sinaliza a construção de uma outra sociedade. Esta realização não se fará nem pela empresa, nem pelo Estado, mas no movimento da pratica social. Assim a cidade está indissociavelmente ligada a vida do homem, bem como o seu futuro - aqui talvez, como sua própria negação, isto é, o urbano como o fim da cidade.

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    » https://www.revistas.usp.br/geousp/article/view/162821
  • 1
    José de Souza Martins, São Paulo: Ed Hucitec, 2000, página 94.
  • 2
    Ver sobre esse tema ver: CARLOS, Ana Fani, Uma Geografia do espaço, in A necessidade da Geografia, São Paulo: Editora Contexto, 2019 pp15/28
  • 3
    Esta contradição está no fundamento do processo de produção social do espaço. Ver in CARLOS, Ana Fani, Espaço e tempo na metrópole, São Paulo:2017, www.gesp.fflch.usp.
  • 4
    Henri Lefebvre, A vida cotidiana no mundo moderno, Editora Ática São Paulo: 1991, p. 80
  • 5
    Tema tratado em “A tragédia urbana“ in A cidade como negócio, São Paulo, Editora Contexto, 2018 pp 4364

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Mar 2020
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2020

Histórico

  • Recebido
    03 Fev 2020
  • Aceito
    10 Fev 2020
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