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A função político-militar do constitucionalismo: guerras híbridas e disseminação constitucional a partir do século XVIII

COLLEY, Linda. The Gun, the Ship and the Pen: Warfare, Constitutions and the Making of the Modern World. Liveright: 2021

Introdução e metodologia do livro

O livro The Gun, the Ship and the Pen: Warfare, Constitutions and the Making of the Modern World (Liveright, 2021), de Linda Colley, apresenta uma visão realista e disruptiva dos entendimentos predominantes sobre o movimento constitucionalista que se disseminou pelo mundo a partir do século XVIII. Por isso, o livro foi classificado como uma “mudança de paradigma” no estudo da história constitucional e um “indicado ao prêmio Nobel de história, se tal prêmio existisse” (Lepore, 2021LEPORE, Jill (2021). When Constitutions Took Over the World. The New Yorker, March 29 2021.). Rejeitando os discursos normativos que associam a emergência de Constituições a processos de luta por direitos ou de construção de regimes democráticos, a autora argumenta que o constitucionalismo do século XVIII se desenvolveu em resposta às rupturas políticas que ocorreram em todas as partes do mundo como consequência das guerras híbridas - guerras que, pela primeira vez na história, envolveram conflitos de grande escala e intensidade no mar e na terra, aumentando enormemente os custos bélicos e obrigando os Estados a reconfigurarem seus pactos políticos com as suas respectivas sociedades. Essa reconfiguração radical de ordens políticas até então existentes se deu primordialmente a partir de Constituições ou instrumentos semelhantes. Ou seja, Constituições surgiram como inovações institucionais frente ao surgimento de uma nova ordem mundial marcada por guerras de grande escala - a consagração de direitos e as limitações ao exercício do poder foram, apenas, efeitos colaterais de um processo histórico conectado a outras causas estruturais. A obra dialoga assim fortemente com a tradição da ciência política de analisar as guerras e as preparações às guerras como uma das grandes forças que moldam a história e o desenvolvimento das sociedades organizadas (MacMillan, 2020).

Outra perspectiva disruptiva do argumento da autora está no deslocamento da centralidade do processo constituinte norte-americano. Na análise histórica de Colley, a experiência norte-americana é reposicionada como apenas um dentre muitos experimentos constitucionais que ocorreram desde a segunda metade do século XVIII. A Constituição norte-americana é, como outras, “um produto de mais do que um conjunto de fatores e características puramente domésticos” (p. 110) e muitas vezes foi um “espelho de desenvolvimentos políticos ocorridos na Europa” (p. 112):

O ponto crucial é que em termos constitucionais (...) o Atlântico nunca foi muito largo. Em ambos os lados do oceano, experimentos políticos e escritos aceleraram em número e criatividade a partir de meados do século XVIII, porque em cada lado havia estímulos e desafios fortemente semelhantes. Nos Estados Unidos, como em grande parte da Europa, intelectuais e ativistas foram atraídos pelas noções do Iluminismo da Inglaterra de sistematizar e reformar governos, leis e direitos; e nos EUA, como em grande parte da Europa, agir de acordo com esses ideais tornou-se mais urgente pela impressão e exigências crescentes da guerra (p. 113).

O foco em fatores ou causas estruturais do movimento constitucionalista não implica, contudo, a retirada por completo de elementos particulares ou conjunturais para explicar a emergência de Constituições. Metodologicamente, portanto, a autora constrói sua narrativa a partir da microhistória (Ginzburg, Tedeschi e Tedeschi, 1993GINZBURG, Carlo; TEDESCHI, John; TEDESCHI, Anne. Microhistory: Two or Three Things That I Know about It. Critical Inquiry. Vol. 20, No. 1 (Autumn, 1993), pp. 10-35), ou seja, a autora busca a complementação entre as explicações gerais e particulares, partindo do pressuposto de que macro e micro se influenciam mutuamente e são ambos componentes necessários para explicar o surgimento e disseminação de Constituições.

A ênfase dada pela autora à história da ilha de Pitcairn serve como exemplo emblemático do uso da microhistória. Em 1838, o capitão escocês Russell Elliott chegou a Pitcairn, onde encontrou uma pequena comunidade de 100 habitantes na pequena ilha do Pacífico sul. Com o desenvolvimento do progresso da navegação, a ilha passava por uma redução do seu isolamento geográfico. Os residentes da ilha, sem bandeira ou leis formais, receberam do Capitão Elliot uma bandeira Union Jack e um texto contendo regras a serem seguidas pelos moradores de Pitcairn. As circunstâncias específicas da ilha permitiram inovações radicais no emprego da tecnologia política constitucional. Por exemplo, conforme explica a autora, a constituição de Pitcairn foi uma das primeiras a focar na questão ambiental, “um passo indispensável dada a escassez de recursos naturais em Pitcairn e dado que a ilha abrigava mais animais que pessoas” (p. 254). Outra característica inovadora deste documento foi a extensão do sufrágio universal para todos os residentes maiores de 18 anos, inclusive mulheres.

Assim como a própria ilha, as inovações constitucionais do documento de Elliott não ficam isoladas na análise da autora. Colley conecta os acontecimentos desta pequena ilha com exemplos de inovações constitucionais semelhantes e demonstra que a conquista do sufrágio feminino em textos constitucionais tendeu a se concretizar em locais afastados dos grandes centros de guerra em grande escala. Isso porque essas regiões periféricas tinham menores demandas em termos de conscrição militar e arrecadação tributária para diretamente financiar esforços bélicos, e por isso puderam dar passos mais incisivos em direção a uma modernidade inclusiva. Ou seja, o afastamento dos centros bélicos reduziu a interdependência entre a participação política e a conscrição, assim permitindo maior inclusão cívica. Nessa linha de raciocínio, a autora demonstra que, antes de 1914, um número desproporcional das pequenas partes do mundo que permitiam o voto feminino eram, como Pitcairn, ilhas no Pacífico distantes geograficamente de Londres ou qualquer outro centro imperial, como as Ilhas Cook, Nova Zelândia e Austrália; ou eram territórios no amplo centro-oeste dos Estados Unidos (Wyoming, Utah, Colorado e Idaho), remotos e distantes da grandiosidade e fácil alcance de Washington D.C.; ou, como a modesta Ilha de Man no norte do Mar Irlandês, que oferecia às mulheres a possibilidade de votar e ser votada para o parlamento localdesde 1881.

O argumento: o papel das guerras híbridas na emergência e disseminação das Constituições

Desde a metade do século XVIII, houve um movimento de espalhamento de novas Constituições escritas pelo mundo. Esse movimento refundou e remodelou muitos aspectos da ordem legal, política, cultural dos países que a ele aderiram. Houve ao menos dois fatores responsáveis pela simetria histórica das reformas constitucionais. O primeiro deles é o efeito cascata: países emulam práticas uns dos outros porque as Constituições “raramente eram lidas e disseminadas apenas em seu local de origem” (p. 81). Em muitos casos, houve um esforço consciente e organizado de promover essa disseminação de documentos constitucionais, como no caso dos EUA, que elaboraram uma Constituição enxuta e direta justamente porque esse tipo de linguagem tinha mais chances de ser lido e absorvido em outros lugares. Afinal, “uma constituição escrita e impressa poderia ser um meio ideal por meio do qual um Estado recentemente estabelecido ou um novo regime político poderia promover-se e definir-se ao redor do globo” (p. 132)

O segundo motivo que explica a coincidência histórica de muitos desses países terem adotado Constituições escritas no mesmo período é o argumento teórico mais denso do livro. A partir de meados do século XVII, países destruídos por guerras precisaram reconstruir novos pactos políticos, o que por um lado lhes permitiria adquirir novas prerrogativas e fontes de financiamento, mas que, por outro, teriam de incluir limitações às ações governamentais e novos direitos para sua população como formas de concessão imprescindíveis para a aceitação dos novos ônus impostos pela remodelagem política. O movimento do constitucionalismo escrito, que foi uma das principais bases da construção do Estado moderno, foi motivado sobretudo pela necessidade dos Estados em sustentar a escalada dos conflitos bélicos em que estavam envolvidos.

A partir de meados do século XVIII, guerras se tornam mais frequentes e letais, e, também, novas Constituições são escritas. Isso não é uma mera coincidência temporal: a decisão política de engajar-se em guerras de larga escala envolvia um grande dispêndio de recursos e a imposição de severos sacrifícios à população, o que resultou na desestabilização dos regimes políticos até então existentes e na consequente necessidade de construção de novos regimes políticos e novos pactos sociais que firmassem as prerrogativas e limites do poder estatal. Assim,

A elaboração e publicação de uma nova Constituição deu aos governos os instrumentos para relegitimar os seus sistemas de governo. A elaboração de novas Constituições disponibilizou aos governos um texto ao redor do qual governos poderiam angariar amplo suporte e assim justificar a sua expansão fiscal e suas demandas por força de trabalho militar (p. 7).

Seguindo a linha de Tilly (1996TILLY, Charles (1996). Coerção, capital e estados europeus. São Paulo, EDUSP.; 2009), Colley argumenta que o movimento por elaborações de novas Constituições envolveu um quid pro quo: cidadãos não aceitariam maior tributação e recrutamento militar mais abrangente sem que se lhes fossem oferecidos novos direitos, inclusive o direito ao voto e o direito à representação. Assim, “em troca da disposição de disparar uma arma ou servir em um navio (...) um homem pode garantir o voto e muito mais; e este negócio pode ser delineado, colocado em lei e divulgado por meio de uma Constituição escrita e impressa” (p. 8). Isso explica por que, principalmente a partir da segunda metade do século XIX, as Constituições ao mesmo tempo tornaram o serviço militar obrigatório e expandiram o sufrágio - mas apenas para homens. O sufrágio masculino foi uma troca implícita ou explícita pelo recrutamento militar compulsório masculino.

Se por um lado as Constituições podem ser assim compreendidas como experimentos institucionais destinados a permitir que Estados mantivessem e aprofundassem seus conflitos bélicos, elas precisam também ser compreendidas como elementos do exercício do poder imperial. Poderes imperiais frequentemente se utilizavam de Constituições escritas para legitimar o seu poder e impor a sua forma de governo preferida aos territórios conquistados. Era uma forma de concretizar o domínio imperial, assegurar benefícios financeiros e, ao mesmo tempo, propagandear a conquista territorial para a comunidade internacional.

A verdade é que o uso desta tecnologia política serviu diversos propósitos estratégicos. Muitas vezes as Constituições impostas em territórios coloniais funcionavam como experimentos, testes da eficácia e viabilidade de inovações políticas, tributárias e sociais que poderiam depois ser reexportadas ao centro imperial. Como os territórios sob domínio imperial eram rodeados de constantes ameaças bélicas, as Constituições também serviam para dissuadir potenciais invasores.

A Constituição do Havaí de 1840 é emblemática nesse sentido de possuir múltiplas funções. O texto constitucional funcionava não apenas na relação império-colônia-povo, mas também desempenhava um papel importante entre os atores imperiais, no âmbito internacional. Textos constitucionais eram exportados para grandes centros comerciais e intelectuais, como Londres, como forma de fazer uma espécie de “branding” do novo Estado. A Constituição havaiana possuía esse objetivo de dissuadir potenciais invasores por meio da publicidade de sua modernidade constitucional. Colley explica que um importante público-alvo deste documento era o público estrangeiro: “apesar de manter costumes jurídicos e linguísticos locais, os documentos constitucionais de 1839 e 1840 também incorporaram provisões e práticas que seriam consideradas reconhecíveis e agradáveis por um Ocidente predatório: uma legislatura bicameral; uma monarquia constitucional; uma declaração de direitos; e a adoção da palavra impressa” (:299). Anunciava-se ao mundo que este novo Estado era organizado e era moderno, pois tinha Constituição, com a esperança de que os grandes poderes ocidentais “permitiriam que o Havaí permanecesse independente” (:299). Outros exemplos deste uso vão desde a Venezuela de 1811, após se tornar o primeiro estado independente da América do Sul até o Japão Meiji de 1889.

Colley afirma, assim, que as Constituições tiveram um papel de “marcar território”, ou seja, de publicizar/mostrar para outros países a sua consolidação como um Estado-nação forte, com um território delineado e com sistemas de defesa suficientes para promover a defesa desse território. É nesse ponto que a autora dialoga e expande o argumento de Tilly (1985TILLY, Charles (1985). War Making and State Making as Organized Crime. In EVANS, P.; RUESCHEMEYER, D.; SKOCPOL, T. (Eds.) Bringing the State Back In. Cambridge: Cambridge University Press, 1985, pp. 169-191; 1996), segundo o qual guerras constroem e fortalecem os Estados. Colley afirma que, no século XVIII, especialmente a partir da Guerra dos 7 anos, as guerras se tornam globais, mega conflitos que se travam não mais apenas em terras, mas também em múltiplos mares. As guerras passam a ser híbridas e foram os “custos, desafios e imperativos envolvidos nessa forma mais híbrida de guerrear - lutas em grande escala, atravessando grandes distâncias, e travadas não mais apenas por terra mas também pela água - que, de diversas formas, contribuiram para precipitar, moldar e reforçar novas empreitadas e novas invenções políticas e constitucionais” (pp. 30-31). Isso porque esse novo sistema de guerras envolvia custos muito mais elevados do que os custos das tradicionais guerras travadas exclusivamente por terra, e esses maiores custos requeriam mais inovações políticas e maior necessidade de inventividade em novos sistemas políticos. Ou seja, o argumento é que a nova escala e dimensão das guerras requereu transformações políticas e econômicas que demandavam a instituição de Constituições escritas como forma de dar sustentação aos novos pactos políticos que surgiam. Nas palavras da autora,

Os sacrifícios provocados pela ‘guerra híbrida’ contribuíram para provocar episódios de violência extrema, ou nos próprios territórios dos países, ou em suas colônias ou em ambos; nesse processo, a legitimidade das ordens políticas vigentes foi colocada em xeque, e novas configurações políticas emergiram, e novas constituições escritas foram possibilitadas (p. 41).

A guerra dos 7 anos foi um marco histórico relevante nesse sentido. França e Inglaterra terminaram a guerra em estado de insolvência e com necessidade urgente de captar novos recursos. Na França, os investimentos militares (incluindo o auxílio prestado aos EUA para sua independência) tornaram a situação financeira insustentável no final do século 18, o que obrigou a coroa a convocar os Estados Gerais para instituir novas formas de taxação. A Assembleia dos Estados Gerais não era convocada há quase 200 anos, e sua convocação abriu caminho para que outras discussões para além da taxação fossem também levantadas, como mudanças sociais e políticas. Ou seja, na França no final do século XVIII, suscitar formalmente o tema da imposição de novas taxações abriu caminho para mudanças mais profundas e que perpassassem a mera questão fiscal. Esse foi um percurso comum de diversos Estados nesse momento histórico: a imposição de novos e importantes ônus à sociedade somente se legitimariam mediante o oferecimento de contrapartidas - e é nesse sentido que devem ser compreendidas inovações institucionais como a expansão do sufrágio, a criação de assembleias legislativas e o estabelecimento de direitos, bem como a emergência de Constituições escritas, que serviram como pacto formal para fazer valer esses novos acordos. Exemplos de percursos históricos em que imposição de ônus como maior taxação são acompanhados de protestos por contrapartidas extrapolam o caso francês. Na América Latina, revoltas como a de Quito em 1765 e a de Nova Granada em 1781 foram causadas pela tentativa da Espanha de imposição de novas taxações; e as revoltas obrigaram a coroa a levar a cabo algumas reformas políticas.

As ilustrações do argumento: Catarina II e o Nakaz na Rússia e a Dinastia Meiji no Japão

A Rússia do século XVIII é uma das principais ilustrações do argumento do livro. A ascensão de Catarina II ao trono e seu esforço pessoal em elaborar e divulgar a Nakaz, que atuou como uma espécie de Constituição, representam uma tentativa de reconfigurar e legitimar uma ordem política instável. Como uma mulher estrangeira que ascendeu ao cargo de imperatriz sem legitimidade hereditária e de forma violenta após a morte de seu marido, Pedro III, ela se encontrava em constante estado de perigo e vulnerabilidade de sofrer um novo golpe, ou de ver o seu império invadido por uma potência militar vizinha. Devido a esses fatores, ela investiu fortemente no processo de elaboração da Nakaz como uma forma de se estabelecer como governante legítima e também como forma de proteger o seu império dos constantes perigos que o ameaçavam de todos os lados.

É nesse contexto que precisa ser compreendida a elaboração do Nakaz, que tinha por objetivo tentar angariar suporte para a legitimidade de Catarina internamente e, ao mesmo tempo, fomentar uma imagem positiva da Rússia no exterior. O preâmbulo do Nakaz marca essa dupla função ao afirmar que a Rússia era uma “potência europeia” governada por um soberano absoluto - pois apenas um sistema de governo marcado pela investidura de “poderes absolutos em uma pessoa pode ser adequado para [governar] um império tão vasto territorialmente” -, e, ao mesmo tempo, estabelecer que esse soberano absoluto precisa respeitar a “liberdade natural” das pessoas, promover a “felicidade de seus cidadãos” e a “glória dos cidadãos, do Estado e do soberano” (p. 73). O Nakaz russo também buscou conceder uma série de “atrativos” aos cidadãos, como a liberdade religiosa, a equidade perante a lei e o esboço de um Estado de bem-estar encarregado de prover condições mínimas de alimentação e manutenção. É nesse contexto que Colley afirma que

A mistura de agressão e insegurança” (...) levou os governantes a explorarem “diferentes iniciativas que poderiam incrementar a unidade e o senso de comunidade política” (:83) no interior de seus respectivos territórios, especialmente dentre soldados e potenciais pagadores de impostos. Arriscar novas formas de organização política - especialmente a concessão de maiores direitos políticos em troca de maior aceitação à taxação e recrutamento à guerra - pareceu a diversos governantes um risco que valia a aposta (p. 82).

No Japão, vemos outra ilustração importante dos pontos principais do livro. A Constituição japonesa de 1889 se consolidaria como a primeira constituição do leste asiático, cimentando o caráter verdadeiramente global desta tecnologia política. A construção do documento ocorreu utilizando ideias emprestadas de outros esforços constitucionais já relatados e as traduziu para assegurar uma compatibilidade com as necessidades políticas do império japonês. Após a guerra Boshin (1868 - 1869), o Japão adentrou um período de transformações importantes, do qual o movimento constitucional faz parte. Mas as mudanças não foram apenas políticas. Inaugurou-se um período de grandes investimentos econômicos em infraestrutura, financiados via tributação centralizada. O sistema dos antigos soldados samurai foi convertido por um processo de recrutamento militar ocidental, possibilitando projetos educacionais massivos potencializados pela crescente disponibilidade de material impresso. Textos clássicos da literatura política e filosófica ocidental passaram a ser discutidos e aplicados à história, cultura e tradições do Japão. Nesse contexto, um grupo de cinco jovens, os Choshu Five, viajou a Londres “em busca de conhecimento, avanço e novas experiências, mas não eram movidos por um generoso espírito do cosmopolitismo” (:371). Esta busca por conhecimento evoluiu e se tornou a Embaixada Iwakura, uma missão diplomática “desenhada para colher informações sobre o Oeste, suas tecnologias, indústrias, medicina e ciência, além da organização política e legal” (p. 372). Entre 1871 e 1873 a missão visitou os Estados Unidos, Grã-Bretanha, Rússia e a Europa Continental, examinando documentos, conversando com líderes locais e colhendo a matéria bruta que se tornaria a constituição de 1889. Munidos de informações desta e outras expedições, Ito Hirobumi e Inoue Kowashi trabalharam o material colhido durante a década de 1880, ambos convencidos da necessidade de implementar o texto constitucional antes que grupos dissidentes, gestados em um ambiente de crescente modernização, tornassem o projeto inviável. Assim como outras Constituições, esta, a primeira do leste asiático, foi sancionada sob a sombra de potencial conflito.

Aplicação da teoria às guerras da segunda metade do século XIX e à Primeira Guerra Mundial

Linda Colley traz dezenas de exemplos históricos para fundamentar o argumento central sobre o papel exercido por períodos de prolongadas guerras híbridas no desenvolvimento da constituição como tecnologia política maleável e moderna. Assim, a autora leva o leitor a explorar o tema em duas dimensões: temporal e espacial. Em alguns momentos foca em regiões, tais como os Estados Unidos, Península Ibérica, França, América do Sul, Escandinávia, etc. Em outros, foca em períodos temporais. Ao relatar exemplos específicos na América do Sul, China, África e Estados Unidos, a autora ilustra que a década de 1860, repleta de guerras interconectadas em todos os continentes, resultou na desestabilização de diversos regimes políticos, criação de novos estados e novas demarcações territoriais para os estados que sobreviveram.

Evidente que um período prolongado de conflitos bélicos não foi nenhuma novidade na história global narrada pela autora, mas os conflitos da década de 1860 diferem de períodos anteriores no seguinte sentido: as guerras anteriores, como a Guerra dos 7 anos, a Revolução Francesa e as guerras Napoleônicas, tiveram como protagonistas os grandes poderes Ocidentais. Ainda que a Grã-Bretanha e França tenham exercido papel central nos conflitos de 1850-1870, a maioria das guerras envolveram pelo menos um protagonista não-Europeu e, muitas vezes, o envolvimento dos grandes poderes Europeus era periférico. Como exemplo, temos a guerra da Tríplice Aliança em 1864-1870, envolvendo o Brasil, a Argentina, o Uruguai e o Paraguai. A devastação gerada pelo confronto, que levou à morte grande parte da população masculina do Paraguai, foi seguida pela construção de uma nova constituição para o que restou do estado paraguaio. Outro exemplo de conflitos fora do eixo europeu foi a Rebelião de Taiping, na China. A guerra civil entre o exército do Império Qing e os rebeldes do sul do império durou 10 anos e levou à morte de 20 milhões de pessoas (algumas estimativas apontam a possibilidade de mortes de até 60 milhões). Colley ressalta que o que mais chama atenção neste período foi o fato de que “todos os grandes impérios do mundo, sem exceção, sentiram pressões militares e contestações ideológicas” (:318).

De fato, os extensos impérios marítimos da Grã-Bretanha, França e Espanha sofreram grandes reveses neste período: os ingleses, com as rebeliões na Índia, os franceses, na guerra contra os austríacos na Itália e também no Camboja e México; e os espanhóis. com a revolução e conflitos internos de 1854. Os impérios terrestres não ficaram de fora. A Rússia foi derrotada na Guerra da Criméia e teve que lidar com uma expressiva revolta na Polônia em 1863 e conflitos em grande escala contra o Império Otomano. O Império Austríaco, naquele ponto uma espécie de conglomerado de diversos territórios, culturas, etnias e religiões, saiu perdendo em conflitos contra a França em 1859 e Prússia em 1866. O ponto principal por trás deste amplo detalhamento dos conflitos imperiais, dentro e fora da Europa, reside no impacto do engajamento bélico na produção de novas constituições: “como tinha acontecido repetidamente desde meados do século XVIII, a guerra contagiosa trabalhou para elevar a taxa e o alcance dos escritos e ideias constitucionais. ‘A caneta’, nas palavras do nacionalista italiano Giuseppe Mazzini, continuou sendo ‘em forma de espada’” (p. 319)

Apesar da similaridade com os conceitos já apresentados pela autora em relação aos conflitos do século XVIII, os conflitos de 1850-1870 apresentam um mundo em fluxo, em que as relações de poder começaram a se modificar. Os grandes impérios estavam sob pressão, o que possibilitava visões, admitidamente otimistas, sobre a possibilidade de um mundo mais aberto, visão reforçada pelo progresso tecnológico em duas áreas cruciais: transporte e comunicação.

A transmissão de informação foi revolucionada com a invenção e disseminação de linhas telegráficas. Notícias passaram a se espalhar pelo mundo com uma velocidade nunca vista - informações passaram a ser transmitidas em minutos, em vez de meses. Ferrovias e navios movidos à vapor reduziram o mundo e permitiram que intelectuais, escritores, professores e políticos conhecessem outras culturas e seus conceitos políticos e constitucionais. E é fundamental observar que estes ganhos tecnológicos foram utilizados amplamente fora do eixo Estados Unidos-Europa.

Colley detalha o contexto das viagens do general Tunisiano Husayn Ibn Abdallah e de Khayr al-Din, consolidadas em 1867 na publicação The Surest Path to Knowledge Concerning the Condition of Countries, considerado o tratado muçulmano mais importante sobre constitucionalismo do século XIX. O avanço científico-tecnológico facilitou o avanço do constitucionalismo comparado, amplamente utilizado por povos de culturas e religiões não-europeias. Desta mesma forma, James Africanus Beale Horton, nascido no que hoje seria a Nigéria, médico-cirurgião educado em Londres, beneficiou-se do progresso informacional e, convencido do poder libertador da modernização, argumentou em seu livro publicado em 1868 que o oeste africano precisava passar por uma reestruturação política para facilitar os investimentos estruturais para o desenvolvimento da região. A autora coloca a seguinte pergunta: “como um médico negro, sem patrimônio herdado ou autoridade social/política, empregado pelo exército inglês, se sentiu capaz, entre 1860 e 1870, de formular e avançar projetos detalhados” (p. 348) neste sentido? O contexto, para Colley, é fundamental, pois Horton operava justamente neste período de conflitos prolongados da década de 1860, onde o mundo vivia uma sensação de fluxo político e, principalmente, de possibilidades. E, assim como seus precursores, Pasquale Paoli, Napoleão Bonaparte, Simón Bolivar, Russell Elliott e outros, seu ímpeto de construção constitucional foi edificado no contexto de guerra.

O período pós-primeira guerra mundial é analisado pela autora sob as mesmas lentes teóricas. Após a queda do império Russo, por exemplo, as antigas províncias, começando com a Georgia em 1921, aprovaram textos constitucionais. Reformas modernizadoras - como a criação de sistema parlamentar, liberdade de religião, proteções trabalhistas e direitos políticos para mulheres - foram implementadas. A revolução soviética trouxe, naturalmente, as preocupações sociais/socialistas. A Declaração dos Direitos do Povo Trabalhador e Explorado, de 1918, serviu como base para ativistas do mundo ocidental. Porém, muitas das constituições do período pós-guerra não duraram - a constituição Weimar na Alemanha é um bom exemplo, além da constituição georgiana, que assim como a república, não durou.

As guerras coloniais e a guerra civil americana levaram ao recrutamento de povos marginalizados, mas o período pós-1914 levou a uma crescente participação feminina nos esforços bélicos. Colley demonstra como esta participação mudou definitivamente, em grande parte do mundo, a concepção de direitos políticos das mulheres, pois mesmo após o colapso de inúmeras constituições neste período, o conceito da participação das mulheres não apenas nas guerras, mas na sociedade e no funcionamento político, perdurou. Mesmo que os movimentos a favor da ampliação de direitos para mulheres já existissem antes da grande guerra, em total alinhamento com a tese central do livro de Colley, foram as demandas dos conflitos em grande escala que aceleraram as reformas dos modelos políticos existentes.

Conclusões e possíveis limitações do texto

O poder, a maleabilidade e a conveniência da Constituição como tecnologia política fica clara em dezenas de exemplos empregados pela autora. Mas a história de textos constitucionais não é necessariamente uma história de sucesso. Em 1991 apenas 20 das 167 constituições válidas no mundo inteiro foram implementadas antes de 1951. A pergunta que deve ser respondida é: “à luz da limitada longevidade de tantas constituições escritas ao longo dos séculos, e da eficácia limitada em muitos casos destes textos como garantidores de governo responsável e direitos duradouros, por que múltiplas sociedades e povos continuaram investindo tempo, imaginação, pensamento e esperança com tanta insistência neste tipo de instrumento político e jurídico?” (p. 412).

Primeiro, a maleabilidade e o caráter multiuso do instrumento é fundamental. A construção e manutenção de impérios foi possibilitada pelo instrumento constitucional, que permitiu explicitar acordos com a população (tributários, militares, sociais, etc.), que por sua vez permitiram a busca de ambiciosas agendas de expansão e conquista. Segundo, a própria proliferação de constituições, amplamente compartilhadas com o mundo, normalizou a prática. De certa forma, ser um Estado moderno e organizado significava ter uma constituição, e vice-versa. Ademais, líderes podiam estudar e coletar ideias de centenas de textos constitucionais e tentar achar a mistura dos ingredientes mais propícia e compatível. As infinitas combinações de ingredientes, e a própria capacidade de criar novos ingredientes, representa a esperança e otimismo que resulta de ter infinitas possibilidades à disposição.

Sabemos que um texto constitucional não garante direitos, mesmo explicitados. Mas o histórico apresentado por Colley demonstra que a história do mundo está intimamente entrelaçada com a redação e divulgação de textos constitucionais, com papéis definidores desempenhados pelas demandas das guerras-híbridas em grande escala e pelos avanços tecnológicos que reduziram o mundo e facilitaram o compartilhamento de ingredientes constitucionais.

O livro de Colley representa um grande marco não apenas para a história constitucional, mas também para a teoria constitucional. A grande contribuição do livro consiste em expandir o nosso enquadramento cognitivo sobre Constituições, perceber que elas não foram uma invenção estadunidense e compreender suas diferentes funções de acordo com o seu contexto histórico e regional. Claro que, como é típico de estudos que inauguram novas perspectivas teóricas e empíricas em seus respectivos subcampos de investigação, o estudo apresenta limitações que podem e devem ser exploradas em pesquisas subsequentes. Em especial, nos parece que, embora o livro tente explicitamente explicar a emergência de Constituições a partir da conjunção de elementos estruturais (relacionadas ao contexto geopolítico mundial) e elementos particulares (relacionados aos traços históricos específicos de cada país), nos parece que a ênfase nos primeiros marginaliza componentes importantes da história específica de cada país. No caso dos Estados Unidos, por exemplo, ainda que as guerras, seu custo e a necessidade de seu financiamento sejam, sem dúvidas, fatores importantes para explicar a elaboração da Constituição de 1787, outros elementos, particulares ao contexto estadunidense, foram igualmente importantes, em especial a necessidade de tornar o país um local mais seguro para investidores (Holton, 2007HOLTON, Woody. Unruly Americans and the Origins of the Constitution. New York: Hill and Wang, 2007.). O caso do Brasil também aparece apenas marginalmente no texto - talvez porque historicamente nossas Constituições não tenham sido elaboradas à sombra de grandes conflitos militares, como em outros países. Uma análise aprofundada do caso brasileiro, na verdade, deixaria em evidência as dificuldades de se criar uma única estrutura explicativa para a emergência e decadência de Constituições. Nesse sentido, é possível criticar o texto de Colley afirmando que ela traz à tona preponderantemente exemplos históricos que se encaixam em sua teoria, deixando de fora a análise dos que talvez não se encaixem, sem necessariamente explicar metodologicamente as suas escolhas. Isso não diminui, contudo, a importância do livro, que deveria passar a constar nas referências bibliográficas dos principais cursos de Direito Constitucional do país.

Referências Bibliográficas

  • GINZBURG, Carlo; TEDESCHI, John; TEDESCHI, Anne. Microhistory: Two or Three Things That I Know about It. Critical Inquiry. Vol. 20, No. 1 (Autumn, 1993), pp. 10-35
  • LEPORE, Jill (2021). When Constitutions Took Over the World. The New Yorker, March 29 2021.
  • HOLTON, Woody. Unruly Americans and the Origins of the Constitution. New York: Hill and Wang, 2007.
  • MACMILLAN, Margareth (2020). War: How Conflict Shaped Us. New York, Random House.
  • TILLY, Charles (1996). Coerção, capital e estados europeus. São Paulo, EDUSP.
  • TILLY, Charles (1985). War Making and State Making as Organized Crime. In EVANS, P.; RUESCHEMEYER, D.; SKOCPOL, T. (Eds.) Bringing the State Back In. Cambridge: Cambridge University Press, 1985, pp. 169-191

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    01 Nov 2021
  • Aceito
    18 Dez 2021
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