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Ainda sobre formação e forma: ensaio bibliográfico e crítico

Still on formation and form: bibliographical and critical essay

COCCO, Giuseppe; CAVA, Bruno. 2018. Enigma do disforme: neoliberalismo e biopoder no Brasil global. Rio de Janeiro: Mauad X, 152 p

O livro de Giuseppe Cocco e Bruno Cava procura, baseando-se nas considerações de Michel Foucault (2008) sobre neoliberalismo e subjetividade neoliberal, oferecer uma análise sobre a sociedade e a política brasileiras, em geral, e do olhar da esquerda e seus partidos sobre tais searas, em particular. Para tal, contudo, não ficam presos apenas ao conjuntural e sua análise, tentando oferecer também uma reinterpretação e crítica de algumas formulações clássicas e contemporâneas presentes no chamado campo do pensamento político e social brasileiro - a respeito tanto de nossas raízes históricas e sociológicas, quanto do que Cocco e Cava chamam de ciclo progressista brasileiro, o qual compreenderia os anos dos governos petistas.

A estrutura da obra conta com três partes. Na primeira, vê-se uma exposição e endosso dos argumentos e teses de Foucault sobre o neoliberalismo encontrados em alguns de seus cursos no Collège de France, recolhidos posteriormente como livro - intitulado Nascimento da biopolítica. No miolo da obra, lê-se algumas reflexões acerca da temática da formação, central em boa parte das reflexões do pensamento político e social brasileiro. Por último, e concluindo, os autores escrevem a respeito da conjuntura nacional, fazendo suas contribuições e criticando formulações de outros autores sobre o mesmo período. Enfatizaremos, nesta resenha, os dois últimos momentos, dado que a visão dos autores sobre o Brasil e seus ensaístas merece atenção e crítica. O assunto da primeira seção, por sua vez, já é um tanto mais conhecido pelos leitores brasileiros.

Na primeira parte, Cocco e Cava procuram enfrentar as conferências proferidas por Foucault no final da década de 1970 em relação ao neoliberalismo e à biopolítica de fazer viver e deixar morrer a ele ligada. Como pano de fundo desta reconstituição, os dois autores relembram o momento político no qual essas palestras foram pronunciadas - ascensão ao poder de figuras como Reagan e Thatcher - e criticam a ideia de que nestas palestras o filósofo francês adere à neoliberalização. À vista disto, Cava e Cocco relembram uma novidade no pensamento de Foucault: para ele o neoliberalismo não seria a mera mudança econômica no sentido de diminuição do estado de bem-estar ou algo do gênero, mas sim a constituição de uma nova subjetividade, uma nova arte de governar, na qual os sujeitos passam a ser conformados como empresas, de modo que os mecanismos de oferta e demanda e concorrência passam a ser a medida das subjetividades e das relações sociais.

No segundo capítulo, por seu turno, vê-se o desenvolvimento das críticas ao que chamam de paradigma da formação. As críticas que fazem possuem um forte ar de família com uma constelação de intelectuais que intentaram superar essa temática central ao pensamento brasileiro. Mais especificamente, podemos aproximar a avaliação de Cocco e Cava de análises feitas sob influência do pós-colonialismo e formalizadas, por exemplo, por Santiago (2014SANTIAGO, Silviano. “Anatomia da formação”, Folha de São Paulo, no. 31.203, p. 4-5, 2014.) e Alcides (2011ALCIDES, Sérgio. “O momentâneo da ‘Formação’”. O eixo e a roda, v. 20, n.1, p. 141-154, 2011.), para os quais a formação deveria ser abandonada ou superada em prol do melhor entendimento de um Brasil contemporâneo integrado ao global. De todo modo, para os autores aqui resenhados, o paradigma deveria ser esquecido por pretensamente cometer dois erros. Em primeiro lugar, ele deixaria de lado o potencial subversivo das classes populares e dos subalternos - crítica possível de ser encontrada também em Souza (2015SOUZA, Jessé. A tolice da inteligência brasileira. São Paulo, Casa da Palavra, 2015.) e Nobre (2012NOBRE, Marcos. “Da formação às redes”, Cadernos de filosofia alemã, v.1, n.19, p. 13-36, 2012.). Em segundo lugar, tal paradigma tomaria os países europeus do centro capitalista, principalmente a França, como modelos civilizacionais, a partir dos quais deveríamos pensar e comparar o Brasil, pensando este último como deficitário e em falta em relação aos modelos nacionais de ultramar.

Outro ponto de contato importante entre o livro aqui comentado e as críticas à formação gira em torno da seleção das obras que consideram relevantes para a análise desta temática, posto que a seleção de textos efetuada por esses críticos é marcada pela parcialidade e falta de maior aprofundamento da revisão bibliográfica sobre o tema. Visto que, nas obras destes críticos, fazem-se presentes, via de regra, livros de Antonio Candido e Celso Furtado; os quais são, evidentemente, centrais para a tradição formativa, todavia essa operação deixa de lado uma série de outros autores e ensaios - Caio Prado Júnior (2012), Paula Beiguelman (1967BEIGUELMAN, Paula. Formação Política do Brasil. São Paulo, Livraria Pioneira Editora, 1967.), Roberto Schwarz (2014SCHWARZ, Roberto. Sequências brasileiras. São Paulo: Companhia das Letras, 2014), para ficar com alguns - inseridos com mais ou menos mediações nesta temática, cerceando uma série de desenvolvimentos e potencialidades críticas desta tradição intelectual. No caso de Cocco e Cava, o autor escolhido é Celso Furtado, mais especificamente a sua Formação econômica do Brasil (1995), o que implica uma visão limitada da problemática. Desta feita, de modo dito ou implícito, a formação é vista pelos dois autores como uma tradição contrária aos de baixo, colonizada e caudatária de um desenvolvimentismo estalatocrata. Contra isto, Cava e Cocco propõe que as atenções políticas e intelectuais deveriam ser voltadas para os devires minoritários e as resistências biopolíticas presentes nas ruas em Junho de 2013. À vista do que fora exposto, alguns outros reparos e críticas podem ser feitos aos autores em, ao menos, três direções.

Em primeiro lugar, a ênfase dos autores na ideia de que os agenciamentos subalternos seriam ignorados ou menosprezados pela tradição da formação é equivocada. Nas obras de Caio Prado Jr. (2012) e Antonio Candido (2002CANDIDO, Antonio. Textos de intervenção. São Paulo, Ed. 34, 2002.), para ficarmos com alguns, são essenciais as reflexões que fazem a respeito das dificuldades que setores populares enfrentam para atingirem a autonomia e alcançarem melhores condições de vida. Cujas lutas e organizações enfrentam forte resistência das estruturas de dominação sociais e econômicas provenientes da colônia, da dependência internacional e das conformações internas de classe que, por outro lado, permitem uma mobilidade e uma concentração de poderes sui generis entre as classes dominantes nacionais. Análises de processos de exploração e submissão que faltam aos autores do livro aqui resenhado, fazendo com que o argumento da obra perca força e ganhe um forte caráter abstrato, pois deixam de lado a conformação violenta da sociedade brasileira e os seus impactos mais variados nos setores subalternizados. Ou seja, apesar dos autores supracitados da formação apostarem nestes setores - que não consideram congenitamente fracos e impotentes, como querem Cava e Cocco -, não deixam de olhar a totalidade das forças e estruturas que os oprimem e cerceiam.

Em segundo lugar, conforme nos lembra Roberto Schwarz (2012SCHWARZ, Roberto. Que horas são?. São Paulo, Companhia das Letras, 2012.), em uma de suas críticas a Silviano Santiago, as divisões entre centro e periferia do capitalismo são histórica e materialmente postas e pressupostas por meio da colonização e da dependência econômica e política, das quais o Brasil é parte constitutiva e produto. Desta feita, não podem ser discursivamente superadas ou entendidas como mero ponto de vista a ser mudado de lugar, a depender do enquadramento teórico do analista. Tal posição brasileira no mundo leva, materialmente, os intelectuais a tentarem forjar grandes esquemas interpretativos inovadores o suficiente para que, de forma simultânea, apreendam o país em suas peculiaridades frente a outros países, sem, todavia, deixar de entendê-lo como fração de uma totalidade histórica mundial. Algo que acarreta, do ponto de vista mental, uma postura baseada numa verdadeira dialética entre o localismo e o cosmopolitismo (CANDIDO, 2011), em que os esquemas teóricos de países centrais são, a um só tempo, indispensáveis e inadequados à nossa realidade. Ou seja, tradições intelectuais que não deixem de lado essas marcações não são meramente colonizadas, mas, pelo contrário, tentam ver de maneira histórica as relações entre centro e periferia capitalista. Não cedendo nem para um posição localista, a qual poderia trazer uma visão benemérita da relações locais, tornadas singelas vantagens do atraso, numa postura caudatária de um orientalismo às avessas - como é o caso, por vezes, como argumenta Chibber (2013CHIBBER, Vivek. Postcolonial Theory and the Specter of Capital. New York, Verso, 2013.), do pensamento pós-colonial, do qual Cocco e Cava são entusiastas - ou para uma posição cosmopolita abstrata, cuja procedimentação é a aplicação indevida de esquemas intelectuais importados, os quais já funcionam de maneira ideológica e distorcida no centro capitalista - caso de boa parte dos liberais pátrios.

Em terceiro lugar, entre estes intelectuais interessados em pensar dialeticamente os termos expostos anteriormente, estariam os chamados pensadores da formação, cuja constituição é mais rica do que a explicação de Cava e Cocco deixam entrever. De modo sumário, pode-se dizer, seguindo Paulo Arantes (1996ARANTES, Paulo. O fio da meada. São Paulo, Editora Paz e Terra, 1996.), que a desobstrução da passagem de uma situação de heteronomia colonial para a de autonomia nacional galvanizou os esforços de uma miríade de autores. Dentre os quais poderíamos destacar, à primeira vista, Caio Prado Jr., Celso Furtado e Antonio Candido. Entre os dois primeiros, o pensamento sobre a formação nacional era carregado de crítica e negatividade, contudo também assentada nas esperanças de formação de uma nação e de um mercado interno integrados e voltados para as necessidades internadas. Isto é, utopia virtuais voltadas ao futuro. Em Candido (2013), não obstante, um sistema literário integrado composto por escritores, obras e público se formou, prova disso seria a consolidação de um escritor da profundidade de Machado de Assis e de uma crítica literária autoconsciente e influente. Salta aos olhos, no entanto, que a formação escrita por Candido se dá num período onde ainda havia escravidão, o que, por um lado, faria ver o ensaio do crítico literário como dotado de maior sobriedade e, por outro, que as esperanças formativas deveriam ser relativizadas - fazendo com que Schwarz (2014SCHWARZ, Roberto. Sequências brasileiras. São Paulo: Companhia das Letras, 2014) questione se formações futuras não trariam os mesmo resultados estruturais de baixa intensidade.

Porém, essa tensão tem um saldo crítico importante, uma vez que ao constituir-se como literatura integrada em Machado de Assis, ocorreu ali a formação de uma forma desde a qual os dados estruturais do país teriam sido transfigurados, justamente, em forma, forjando um ponto de vista a partir da qual seria possível tanto criticar e relativizar as produções do espírito que vinham do centro capitalista, quanto os pressupostos materiais deste. Algo que poderia também ser visto na forma difícil e na figuração das artes plásticas, de acordo com Naves (2012), ou na constituição estética do Cinema Novo, conforme já expôs Xavier (2007XAVIER, Ismail. Sertão Mar. São Paulo, Cosac Naify, 2007.). Isso se dá porque, mesmo as dinâmicas sociais e políticas no Brasil sendo diversas das do restante do mundo, elas não são alheias a ele e aos movimentos do capital em sua dinâmica de desenvolvimento desigual e combinado. Por conseguinte, nessas obras, seriam figurados processos sociais aparentemente locais, mas que possuem uma ressonância crítica global, como é o caso da volubilidade brascubiana, princípio ordenador do romance de Machado. A qual submete todas as ditas conquistas da modernidade ao arbítrio de classe dominante, colocando em xeque os seus potenciais emancipatórios e mostrando uma dialética do esclarecimento que, no centro, ainda estava recoberta pelas aparências socialmente necessárias do capitalismo concorrencial - mas que se pareciam em sua essência.

Nesse mesmo diapasão, as obras da formação, de um modo geral, ao descreverem e exporem as determinações essenciais de um país constituído desde o princípio sob a égide da lógica da mercadoria, mostravam de maneira muito mais direta a lógica de funcionamento nuclear dos países europeus e serviam de laboratório e ponto de arrimo crítico de dinâmicas atuais nesses países. Evidência disso é que boa parte das dinâmicas que teóricos críticos europeus e estadunidenses criticam como barbáries da desintegração atual já eram conhecidas em nossa tradição crítica, ao modo dos fenômenos de precarização, insegurança social e física sistemática e o colapso de instituições centrais da modernidade (Cf. ARANTES, 2004ARANTES, Paulo. Zero à esquerda. São Paulo, Conrad, 2004.). Destarte, sem tal ponto de vista, talvez, a crítica perca a sua concretude e o pensamento passe a ser galvanizado por soluções ilusórias de modernidades alternativas baseadas em sociabilidades e modos de vida “locais”, deixando de lado o andamento efetivo do mundo.

No último capítulo, os autores tratam do chamado progressismo. Nele, o personagem principal é o lulismo, analisado a partir de dois prismas: o partido dos trabalhadores (PT), sua constituição e governos, e as jornadas de junho de 2013. Segundo Cocco e Cava, desde a sua constituição o PT teria em si duas partes conflitantes. Um é o PT ideológico e o outro é PT biopolítico. O primeiro seria marcado pelo pensamento nacionalista e marxista, pela institucionalidade e pelo sindicalismo operário; o segundo, por sua vez, é mais flexível e se assenta na resistência biopolítica de mulheres, migrantes, movimentos de base e LGBT’s. Com os anos neoliberais, em função da diminuição da base operária, o primeiro PT entraria em declínio e o PT biopolítico teria se fortalecido, tornando-se mais apto ao enfrentamento das questões do período.

De todo modo, é sugestivo observar entre os autores uma positivação dos mandatos de Lula frente aos anos de Dilma Rousseff na presidência. Isso se daria pelos seguintes motivos. De acordo com Cava e Cocco, Lula seria, em certo sentido, a representação em movimento do PT biopolítico, caracterizado por uma maleabilidade pós-ideológica da qual decorreria, em suas contradições, um lulismo selvagem muito mais rizomático, horizontal e criativo do que o desenvolvimentismo de Dilma. Para os dois ensaístas, esta última seria exatamente a figuração mais acabada do PT ideológico, cujo ponto de fuga é um desenvolvimentismo autoritário, burocrático, centralizador e estalatocrata, no qual não haveria espaço para as resistências múltiplas do período.

Dando continuidade ao argumento, Cocco e Cava passam a analisar junho sob o signo de uma espécie de amálgama entre lulismo selvagem e manifestações políticas globais. Para ambos, os que estavam na rua, na esteira de um lulismo sem amarras, eram talhados por um polimorfismo pós-ideológico que os tornavam avessos às chamadas direitas e esquerdas tradicionais e partícipes de uma cadeia global de multidões subversivas que varreram o mundo naquele período. Isto é, aqueles que foram para as ruas rechaçariam acordos, dispositivos e hierarquias formalizados pelos mais variados partidos e organizações do cenário político nacional e isso é apresentado pelos pesquisadores como necessariamente positivo e até mesmo revolucionário. Nesse bojo, Cava e Cocco partem também para uma análise crítica dos governos latino-americanos progressistas, os quais teriam perdido a chance de apostarem nas resistências polimórficas, aderindo ao modo tradicional de se fazer política e de resolução de contradições.

A respeito deste último capítulo, temos quatro considerações críticas. A primeira gira em torno da análise de junho de 2013. Nessa seara, poucas são as análises e as determinações mais robustas apresentadas sobre a composição efetiva dos protestos, ponto que seria essencial para uma compreensão mais qualificada dos setores componentes e de suas projeções para o país. Além disso, Cocco e Cava dão a ideia para o leitor de que os protestos aqui ocorridos são mero epifenômeno de algo maior ocorrendo pelo globo, explorando pouco as camadas de especificidade que conformam as manifestações brasileiras em relação ao que ocorreu no resto do mundo, em conjunturas particulares. De posse destes cuidados, os autores poderiam oferecer um diagnóstico mais burilado das jornadas de junho, substituindo, desta feita, uma retórica abstrata de elogio ao que pretensamente não tem forma e que é resultado de uma modernização anti-civilizatória.

A segunda consideração continua, em outra chave, a crítica ao polimorfismo pós-ideológico proveniente do lulismo selvagem. Como vimos, Cava e Cocco apontam como positivas as possibilidades abertas pelos governos de Lula, nos quais assistir-se-ia o surgimento e empoderamento de uma série de agentes que se contrapunham às definições ideológicas estritas tradicionais. Bem, talvez fosse o caso também de lembrar, a partir mesmo do arcabouço foucaultiano exposto no primeiro capítulo, que o lulismo também fora providencial no que tange à construção - por vezes contraditória - das subjetividades conforme à forma empresa nos mais variados setores, desde a bancarização da população até a imputação máxima de uma lógica de concorrência na educação, por exemplo (LAVINAS; GENTIL, 2018LAVINAS, Lena; GENTIL, Denise. “Brasil anos 2000: a política social sob a regência da financeirização”, Novos estudos, v.37, n. 2, p. 191 - 211, 2018.). Nesse sentido, a falta de um olhar mais pormenorizado a respeito das estruturas históricas de dominação transforma-se numa celebração acrítica de quaisquer movimentações sociais à vista. Desde o enquadramento proposto pelos autores poderíamos nos perguntar: não seriam as novas manifestações de rua, que saem à cata de qualquer autoritarismo e exaltação provinciana para apoiar, um dado positivável da realidade atual?

A terceira consideração casa-se com outras feitas anteriormente sobre o pensamento brasileiro e a formação, todavia os casos específicos são outros, a saber: os diagnósticos de André Singer e a categoria de subproletariado. Sumariamente, para o cientista político paulista, duas coalizões contrapostas, nos mandatos de Lula, teriam atuação central: a rentista e a produtivista. A primeira seria formada pela associação entre capital financeiro e classe média tradicional, tendo como interesse a manutenção do alinhamento brasileiro ao receituário neoliberal e à geopolítica norte-americana. Já a segunda seria resultado da associação entre empresários industriais e a fração organizada da classe trabalhadora e teria como objetivo a aceleração do crescimento por meio da intervenção do Estado. O governo lulista, por seu turno, arbitraria o conflito entre as coalizões de acordo com a correlação de forças e sua sustentação para isto seria o subproletariado. Esta fração de classe teria selado a sua relação com Lula quando este colocou em prática um programa fundamentado no combate à pobreza, via ativação do mercado interno, sem confrontação com os interesses do capital. Ou seja, fala-se aqui de um pacto conservador entre forças políticas de esquerda e de direita e de um reformismo fraco, na medida em que não se enfrenta o capital em nenhuma de suas vertentes. Com Dilma Rousseff, o quadro seria outro, já que colocou em prática uma política intervencionista, economicamente antiliberal, politicamente republicana e de enfrentamento ao capital financeiro. Porém, faltou à presidenta ver se o apoio da coalizão produtivista estava em dia. Conforme se viu, os trabalhadores organizados toparam a empreitada, contudo a burguesia industrial decidiu, por medo do intervencionismo dilmista, unir forças com capital rentista, fazendo com que o governo desidratasse (SINGER, 2018SINGER, André. O lulismo em crise. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.). À vista do que foi dito, duas são as conclusões - contrárias às de Cava e Cocco: a) o lulismo, radicalizado, dissolveu-se e seu sucesso, enquanto programa de governo, deveu-se à maior moderação dos primeiros mandatos; b) paradoxalmente, a radicalização possível e imanente ao jogo de forças internas ao lulismo seria esta e não um devir-menor biopolítico.

Em relação à categoria de subproletariado e seu tratamento podemos ver certa aproximação da compreensão sobre formação. De acordo com Cava e Cocco, o enquadramento de Singer quanto ao subproletariado seria negativo, eurocêntrico e elitista, pois veria este ator social apenas como entusiasta do neoliberalismo e do conservadorismo, e insuficiente perto do modelo proletário europeu. Ato contínuo, o cientista político paulista não poderia ver o potencial de subversão biopolítica deste setor. O que ocorre, porém, é que a categoria não é de Singer e sua compreensão tem em vista justamente as estruturas nas quais esta fração de classe está envolta. Sinteticamente, subproletrários, conforme Paul Singer (SINGER,1981SINGER, Paul. Dominação e desigualdade. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1981., p. 22), são aqueles que “oferecem a sua força de trabalho no mercado sem encontrar quem esteja disposto a adquiri-la por um preço que assegure sua reprodução em condições normais”. Partindo desta definição, André Singer constata que as dificuldades de organização e atuação do subproletariado enquanto classe devem-se às condições bárbaras as quais é submetido e não a alguma espécie de defeito essencial e mais: ao utilizar o prefixo “sub” não se pratica um menosprezo, mas sim uma crítica ao processo global de reprodução do capital que oprime de modo mais acentuado estas camadas da população.

À vista do que foi por nós exposto, o livro de Cocco e Cava possui problemas de desenvolvimento e sustentação. A competente e rica análise do pensamento de Foucault não é levada às últimas consequências e suas possibilidades abertas não são desdobradas de modo adequado ao longo da obra. A segunda parte, a respeito da categoria de formação, sofre pela falta de revisão bibliográfica sobre o tema e de uma parcialidade politicamente orientada que prejudica seu melhor entendimento e a visão de linhas de fuga críticas internas à temática. O terceiro e último capítulo padece de certa confusão entre polêmica intra-esquerda e diagnóstico de época, os quais podem andar juntos, mas que aqui limitam um ao outro. Ademais, ao escolherem não lançarem mão de uma análise mais aprofundada sobre as longevas estruturas de dominação existentes no Brasil, Cava e Cocco acabam, de um lado, inflacionando capacidades de resistência que, muitas vezes, não são suficientes para fazerem frente às dominações aqui existentes e, por outro, produzem um elogio das especificidades nacionais, as quais podem configurar um verdadeiro orientalismo às avessas (Cf. CHIBBER, 2013CHIBBER, Vivek. Postcolonial Theory and the Specter of Capital. New York, Verso, 2013.). Deste modo, pode-se concluir que nem toda tradição de pensamento é opressiva e nem toda inovação argumentativa e de diagnóstico é produtiva e crítica.

Referências Bibliográficas

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  • SCHWARZ, Roberto. Que horas são?. São Paulo, Companhia das Letras, 2012.
  • SCHWARZ, Roberto. Sequências brasileiras. São Paulo: Companhia das Letras, 2014
  • XAVIER, Ismail. Sertão Mar. São Paulo, Cosac Naify, 2007.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Out 2021
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2021

Histórico

  • Recebido
    03 Set 2020
  • Aceito
    21 Nov 2020
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