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Elementos para a crítica do direito à luz da Dialética Negativa de Theodor W. Adorno

Elements for the criticism of the law in the light of Theodor W. Adorno’s Negative Dialectic

Resumo

O artigo procura extrair elementos para a crítica do direito à luz da Dialética negativa de Theodor W. Adorno. O aporte teórico realizado pelo autor permitiu que o pensamento dialético se ajustasse às questões filosóficas postas pelo Século XX, como a denúncia dos grandes sistemas e das metanarrativas. A crítica do paradigma de identidade, cuja origem remonta aos circuitos econômicos de trocas de equivalentes, permite uma aproximação relativamente original no que concerne à figura do sujeito de direito. Assim, a partir dos modelos apresentados pelo autor na terceira parte de sua obra, busca-se desenvolver certas reflexões epistemológicas no contexto de algumas categorias próprias à sua dialética, com vistas a uma compreensão mais adequada do momento normativo do fenômeno jurídico. Os resultados apontam para uma ampliação dos espaços críticos do fenômeno jurídico no interior da tradição dialética.

Palavras-chave:
Crítica do direito; Dialética negativa; Theodor W; Adorno

Abstract

The article seeks to extract elements for the critique of the law in the light of Theodor W. Adorno's Negative Dialectic. The theoretical contribution made by the author allowed dialectical thinking to adjust to the philosophical questions posed by the 20th century, such as the denunciation of the great systems and metanarratives. The criticism of the identity paradigm, whose origin goes back to the economic circuits of exchange of equivalents, allows a relatively original approach with regard to the figure of the subject of right. Thus, based on the models presented by the author in the third part of his work, we seek to develop certain epistemological reflections in the context of some categories specific to his dialectic, with a view to a more adequate understanding of the normative moment of the legal phenomenon. The results point to an expansion of the critical spaces of the legal phenomenon within the dialectical tradition.

Keywords:
Criticism of law; Negative dialectic; Theodor W; Adorno

“Já segundo a mera forma, antes de todo o conteúdo de classes e de toda justiça de classes, o direito positivo exprime a dominação, a diferença aberta dos interesses particulares e o todo no qual eles se reúnem abertamente”.

Theodor W. Adorno

Introdução

Em 1966 Theodor W. Adorno publicou Dialética negativa. Tratava-se, então, de um esforço teórico com vistas à atualização da tradição do pensamento dialético, de algum modo abalada pelos eventos históricos que marcaram a primeira metade do século XX (GATTI, 2009GATTI, Luciano. Exercícios do pensamento. In: Novos Estudos/CEBRAP, São Paulo, nº 85, 2009, p. 261-270. Disponível em: < https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0101-33002009000300012&script=sci_arttext > Acesso em: 16/09/2020.
https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S01...
, pp. 261-270). O fim da Europa esclarecida, marcado pelas duas guerras mundiais e pela emergência de forças de regressão personificadas nas figuras do “Führer” e do “Duce”, impuseram à tradição dialética uma necessária reflexão sobre suas bases filosóficas e seus pressupostos epistemológicos. Não se podia mais tolerar a ideia de uma autoconsciência racional, algo como a “razão em movimento”, que se desdobrava materialmente por meio de eventos históricos concretos, quando estes eventos redundaram na eliminação contumaz de milhões de vidas humanas. Não se aceitava mais a filosofia segundo a qual tudo “o que é racional é real e o que é real é racional” (HEGEL, 1997HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Princípios da filosofia do direito. Trad. Orlando Vitorino. São Paulo: Martins Fontes, 1997., p. XXXVI).

Do ponto de vista da filosofia tradicional, ainda persistiam as profundas influências legadas pelo pensamento de Martin Heidegger e suas poderosas reflexões sobre o sentido do ser. Influências que não chegaram a ser destruídas no imediato pós-guerra, não obstante sua vinculação explícita ao regime nacional-socialista. Simultaneamente, avançavam a passos largos os autores pós-modernos e suas reivindicações de narrativas antissistemáticas, fragmentadas e voltadas para particularidades, com rejeição das metanarrativas que, a pretexto de ensejarem sistemas filosóficos totalizantes, não faziam senão dar guarida a estruturas de dominação política (LYOTARD, 2009LYOTARD, Jean-François. A condição pós-moderna. Trad. Ricardo Corrêa Barbosa. 12ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2009.). Os dialéticos Hegel e Marx eram alvos prediletos.

No interior da tradição crítica, por sua vez, emergia algo como uma captura da dialética pelo aparato teórico do Estado soviético, vencedor da Segunda Guerra Mundial e superpotência estabelecida. Este aprisionamento deu ensejo à dogmatização do pensamento dialético; logo, à sua negação. A obra marxiana foi alçada à ideologia oficial, com todas as deturpações que se exigem para o cumprimento da tarefa. A reação deu-se no contexto do que ficou conhecido como marxismo ocidental, movimento plural de autores que buscavam, cada um a seu modo, restabelecer os termos da tradição teórica ligada a Marx, inadequada à justificação de regimes autoritários (ANDERSON, 2004ANDERSON, Perry. Considerações sobre o marxismo ocidental; Nas trilhas do materialismo histórico. Trad. Isa Tavares. São Paulo: Boitempo, 2004.). O problema é que parte desta reação optou pela negação da dialética ou sua rejeição explícita, o que despertou um certo paradoxo, pois o próprio Marx sempre reivindicou o caráter dialético e materialista de seu método.

O reerguimento do pensamento dialético por Adorno teve como pano de fundo os horrores legados pela experiência fascista e nazista e seus terríveis campos de concentração. Esse trauma histórico parece acompanhar o autor a todo momento, pulsando ao longo da obra, que buscar uma reformulação das categorias dialéticas constantemente à luz do enfrentamento de questões e problemas que no passado desembocaram nos regimes totalitários. Assim, sem abandonar as linhas gerais estabelecidas por Hegel - reformulando-as, no entanto, sob o influxo da consideração pelo singular - e partindo do pressuposto da dialética de índole econômica desenvolvida por Marx, sobretudo em O capital (NOBRE, 1998NOBRE, Marcos. A dialética negativa de Theodor W. Adorno: a ontologia do estado falso. São Paulo: Editora Iluminuras, 1998., p. 39; SAFLATLE, 2019, pp. 115-142), Adorno se lança à rearticulação do modo dialético de pensar com a restruturação de conceitos e categorias, inclusive do ponto de vista metodológico.

A arquitetura teórica da Dialética negativa desdobra-se, pois, em três movimentos. Em primeiro lugar, Adorno busca relacionar a dialética, sobretudo na perspectiva de Hegel, à questão ontológica, com apontamentos que visam principalmente à crítica dos elementos teóricos estabelecidos por Martin Heidegger em Ser e tempo. Em segundo lugar, há a apresentação de conceitos e categorias que conformam a própria dialética negativa, em parte herdadas de Hegel e reformuladas, em parte inspiradas na crítica da economia política marxiana, em parte originadas do próprio ineditismo da abordagem de Adorno. Finalmente, mas não menos importante, três modelos são desenvolvidos através dos quais as categorias da dialética negativa ganham corpo e consistência. Não devem ser considerados exemplos, mas modos de implicação dos conceitos no interior do domínio real (ADORNO, 2009ADORNO, Theodor W. Dialética negativa. Trad. Marcos Antonio Casanova. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009., p. 08).

Pois bem, a Dialética negativa de Theodor W. Adorno tem alguma contribuição a oferecer no que concerne à abordagem crítica do direito? Parece evidente que sim.

Antes de tudo, porque responde adequadamente a uma acusação que geralmente se faz à crítica marxista no sentido da utilização de um método que implica tão somente uma análise economicista do direito, sem consideração por características superestruturais, como sua expressão normativa, por exemplo (KELSEN, 1994KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Trad. João Baptista Machado. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1994., p. 113, nota nº 27; ALTHUSSER, 1979ALTHUSSER, Louis. A favor de Marx. Trad. Dirceu Lindoso. 2ª ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979., pp. 75-113). A obra de Adorno apresenta categorias mediatamente fundadas no movimento econômico e político, concebidas, portanto, à luz de questões postas de modo imediato pelas superestruturas. Viabiliza, assim, uma análise mais precisa das mediações pelas quais a relação jurídica funciona como articulação entre a base econômica e política e os nexos de dominação normativa e ideológica pelas quais comumente se expressa o direito. Além do mais, Dialética negativa dá conta de uma problemática que se coloca de modo contundente inclusive no interior da teoria crítica. Na medida em que o direito expressa relações fundadas na liberdade e igualdade ligadas à propriedade privada, viabiliza posições sociais que são concebidas como formas positivas de emancipação atribuíveis inclusive à classe trabalhadora. Não são raros os pontos de vista progressistas segundo os quais é possível e se deve lutar por conquistas e avanços no interior de espaços engendrados pela forma jurídica. No entanto, a obra magna de Adorno, por sua natureza intrinsecamente negativa, permite a apreensão dos modos de expressão positivos do direito no fluxo do movimento dialético, imprimindo uma negatividade que é constitutiva de sentidos. Este movimento viabiliza uma apreensão mais plena das características do fenômeno jurídico e de suas determinações conceituais. Paradoxalmente, esta negação radical faz emergir a compreensão de possíveis espaços de lutas positivas no interior do campo do direito que não precisam aderir ou recair nas tramas da ideologia jurídica, como geralmente se faz (SAFATLE, 2019SAFATLE, Vladimir. Dar corpo ao impossível: o sentido da dialética a partir de Theodor Adorno. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2019., p. 98, nota 98).

Assim, este artigo sustenta a hipótese de que a análise do direito à luz da Dialética negativa de Theodor W. Adorno permite uma expansão valiosa do campo de pesquisas críticas da forma jurídica, ampliando os modos de compreensão dialética do fenômeno. A natureza específica de suas categorias, por implicarem uma negatividade que rejeita qualquer resultado positivo quanto à delimitação conceitual das relações - sem, no entanto, renunciar às determinações constitutivas de significados - abre espaços importantes para o combate da ideologia jurídica e para a construção de flancos de lutas concretas. Nesse sentido, o objeto do trabalho gira em torno da segunda e terceira partes da obra, isto é, os conceitos da dialética negativa e os modelos que implicam corporificações de suas categorias. O objetivo é imergir a tradicional aproximação entre forma jurídica e forma mercantil (PACHUKANIS, 2017PACHUKANIS, E. B. Teoria geral do direito e marxismo. Trad. Paula Vaz de Almeida. São Paulo: Boitempo, 2017.) no interior da estrutura de análise da dialética negativa buscando reconstituir certas mediações que são carentes de conteúdo na obra de Pachukanis. Trata-se de articular de modo mais preciso os nexos pelos quais a forma jurídica funciona como elemento de conexão do movimento econômico de produção do capital e as formas normativas pelas quais se expressa a dominação política. Ainda falta à crítica marxista do direito uma apresentação mais adequada da natureza específica destas mediações.

Finalmente, o método utilizado não pode ser outro que não a própria dialética negativa. Desse modo, a integração da forma jurídica à estrutura categorial da Dialética negativa deve respeitar os princípios metodológicos apresentados na obra. No entanto, é preciso observar que a natureza específica do objeto de análise (o direito) demanda uma ampliação dos limites epistemológicos estabelecidos por Adorno, pois se exige uma aproximação mais acentuada com relação à análise dos processos econômicos pelos quais se constitui o capitalismo e, consequentemente, a própria forma jurídica. Deve-se ressaltar, pois, que o método adotado reúne os cânones da dialética negativa, interpretados, no entanto, à luz da dialética materialista de Karl Marx, sobretudo como exposta em O capital.

I. O direito na Dialética Negativa

Não há na Dialética negativa uma apresentação do direito. Não se pode sequer afirmar que há a exposição circunstancial ou acessória de questões relacionadas ao fenômeno jurídico, pois não é o caso. De fato, o tema não faz parte das preocupações que moveram Adorno por ocasião da elaboração da obra.

Tampouco isso é relevante para os fins deste artigo, pois não se trata de indagar pelo conceito de direito para Adorno ou sugerir a existência de uma filosofia do direito que lhe seja própria. Trata-se, sim, de imergir a análise do direito no contexto da estrutura categorial da Dialética negativa para fazer emergir uma compreensão mais adequada da forma jurídica, sobretudo à luz das questões levantadas de modo mais contundente pelo autor.

Nada obstante, em certas ocasiões Adorno menciona explicitamente e en passant o problema jurídico (PEREIRA, 2018PEREIRA, Luiz Ismael. Adorno e o direito: para uma crítica do capitalismo e do sujeito de direito. São Paulo: Editora Ideias e Letras, 2018.). O levantamento inicial destas passagens e sua articulação recíproca é importante para que se tenha uma noção aproximada do sentido da forma jurídica na Dialética negativa. É claro que esse sentido apenas vem à luz no contexto preciso da trama desenvolvida ao longo da obra, cuja reconstrução não pode ser feita neste momento. Ainda assim, é importante compreender a noção geral desenvolvida pelo autor.

O primeiro momento em que a apresentação do direito vem à tona ocorre na terceira parte da obra, no desenvolvimento do modelo Liberdade (CHAVES, 2010CHAVES, Juliana de Castro. O conceito de liberdade na Dialética Negativa de Theodor Adorno. In: Psicologia & Sociedade, Recife (PE), 22 (3), 2010, p. 438-444. Disponível em: < https://www.scielo.br/pdf/psoc/v22n3/v22n3a04.pdf > Acesso em: 16/09/2020.
https://www.scielo.br/pdf/psoc/v22n3/v22...
, pp. 438-444). Trata-se, segundo Adorno, de uma contribuição à metacrítica da razão prática. De fato, neste modelo o autor elabora uma crítica contundente da noção de liberdade, sobretudo como desenvolvida por Immanuel Kant. No item denominado Discurso em defesa da ordem, Adorno observa:

O fato de precisar haver liberdade é a iniuria mais extrema do sujeito autônomo fundador do direito. O conteúdo de sua própria liberdade - da identidade que anexou tudo aquilo que não é mais idêntico - equivale à necessidade, à lei, ao domínio absoluto (ADORNO, 2009ADORNO, Theodor W. Dialética negativa. Trad. Marcos Antonio Casanova. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009., p. 210).

O trecho é curto, mas revela um paradoxo importante: a necessidade de existência da liberdade é uma injustiça praticada pelo sujeito fundador do direito. E isso porque o conteúdo da liberdade equivale à lei, ao domínio absoluto, portanto, a seu oposto. Esta relação contraditória entre liberdade e domínio absoluto funda-se no princípio da identidade, que anexa sob sua lógica tudo o que não é idêntico. É preciso investigar o que é este princípio e que papel cumpre no contexto, o que será feito no segundo item deste artigo.

A segunda apresentação do direito também ocorre na terceira parte, no modelo Espírito do mundo e história natural. Trata-se de uma digressão sobre a dialética em Hegel (REPA, 2011REPA, Luiz. Totalidade e negatividade: a crítica de Adorno à dialética hegeliana. In: Caderno CRH, Salvador (BA), vol. 24, nº 62, maio/ago. 2011, p. 273/284. Disponível em: < https://www.redalyc.org/pdf/3476/347632184004.pdf > Acesso em: 20/09/2020.
https://www.redalyc.org/pdf/3476/3476321...
, pp. 273-284). Há dois tópicos importantes, denominados A esfera jurídica e Direito e equidade. No primeiro, Adorno observa:

O direito é o fenômeno primordial de uma racionalidade irracional. Nele, o princípio formal da equivalência transforma-se em norma e insere todos os homens sob o mesmo molde. Uma tal igualdade, na qual perecem as diferenças, favorece sub-repticiamente a desigualdade; um mito que sobrevive em meio a uma humanidade que só aparentemente é desmitologizada. As normas jurídicas excluem o que não é coberto por elas, toda a experiência não pré-formada do específico em virtude da sistemática sem quebras, e elevam então a racionalidade instrumental a uma segunda realidade sui generis. O conjunto do campo jurídico é um campo de definições. Sua sistemática ordena que não se insira nesse campo nada que se subtraia à sua esfera fechada, quod non est in actis. Esse enclave, ideológico em si mesmo, exerce por meio das sanções do direito enquanto instância social de controle uma violência real que atinge sua plenitude no mundo administrado. Nas ditaduras, ele passa imediatamente para o uso dessa violência; de maneira mediatizada, ela sempre esteve presente (ADORNO, 2009ADORNO, Theodor W. Dialética negativa. Trad. Marcos Antonio Casanova. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009., p. 257).

A passagem é fundamental sob inúmeros pontos de vista. Antes de tudo, revela que o direito ostenta alguma centralidade no que concerne à irracionalidade aparentemente racional através da qual se expressa a lógica da sociedade capitalista. Esta irracionalidade está profundamente ligada ao princípio formal de equivalência, o que permite estabelecer uma relação bastante profícua com a noção de direito em Pachukanis (2017PACHUKANIS, E. B. Teoria geral do direito e marxismo. Trad. Paula Vaz de Almeida. São Paulo: Boitempo, 2017., pp. 79-80).

O ponto mais saliente, entretanto, consiste no modo como Adorno pontua a transformação do princípio de equivalência em norma que abrange todos os indivíduos sob o mesmo molde. Essa equivalência se transmuta em igualdade formal, movimento que impõe a desconsideração das diferenças específicas de cada indivíduo. Paradoxalmente, o movimento impõe a manutenção das estruturas de desigualdade, na medida mesma em que as oculta sob o manto da isonomia de forma. A norma jurídica aparece, assim, como propulsora e perpetuadora do mito fundante da sociedade mercantil, um relato fantástico pelo qual todos são iguais por natureza. O caráter peculiar da norma jurídica consiste em estabelecer um espaço significativo pelo qual tudo o que não se enquadra em seus esquemas abstratos deve ser excluído, já que desprovido de sentido. As experiências específicas, isto é, ligadas mais proximamente aos valores de uso e não aos valores de troca, devem ser repelidas pela própria norma, e, portanto, excluídas do mundo do direito como algo simplesmente não jurídico.

Com isso, a racionalidade instrumental, quer dizer, os modos lógicos de articulação da linguagem no sentido da perpetuação do sistema de dominação da natureza para fins de troca mercantil, constitui-se como segunda realidade sui generis, isto é, com características absolutamente particulares. Uma vez que a norma jurídica se manifesta como linguagem, sobretudo textual (KELSEN, 1994KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Trad. João Baptista Machado. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1994., p. 81), o campo do direito se estabelece como campo de definições, de modo que deve ser excluído tudo aquilo que não compartilhe de sua forma originária, cuja gênese remonta ao princípio de equivalência. Esse mecanismo autorreferencial se movimenta em moto perpétuo e se solidifica de modo autossustentado, promovendo a aparência objetiva, porém socialmente eficaz, de desconexão com quaisquer outras esferas da sociabilidade humana, sobretudo econômica e política. Daí hipóteses extravagantes, mas que fazem todo o sentido à luz da lógica irracional da sociedade mercantil, de que o sistema jurídico é autopoiético, isto é, gira em torno de si mesmo, como quer, por exemplo, Luhmann (VILLAS BÔAS FILHO, 2009VILLAS BÔAS FILHO, Orlando. Teoria dos sistemas e o direito brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2009., p. 112-176).

A conformação linguística do sistema normativo jurídico apresenta-se como enclave ideológico por natureza, que, para Adorno, não significa senão a absolutização do princípio de identidade (ADORNO, 2009ADORNO, Theodor W. Dialética negativa. Trad. Marcos Antonio Casanova. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009., p. 129). Por intermédio das instâncias sociais de controle o direito opera a passagem desta ideologia em seu oposto, isto é, no exercício de uma violência não ideológica, absolutamente real. No mundo administrado, quer dizer, no auge dos trinta anos gloriosos, o mecanismo pelo qual a equivalência jurídica e ideológica encobre a violência real que por meio dela opera alcança a plenitude de funcionamento. As ditaduras, contudo, dispensam esta espécie de hipocrisia e podem passar diretamente à violência, como ocorreu no Brasil por ocasião da adoção do Ato Institucional nº 05, em que uma série de garantias jurídicas foram simplesmente suspensas. Normalmente, contudo, ela é mediatizada e sempre está presente.

No segundo tópico (Direito e equidade), Adorno anota:

Se toda teoria positiva do direito natural desenvolvida materialmente leva a antinomias, a ideia do direito natural contém apesar de tudo criticamente a não verdade do direito positivo. Isso se mostra hoje como consciência reificada que foi retraduzida para a realidade e aí ampliou seu domínio. Já segundo a mera forma, antes de todo o conteúdo de classes e de toda a justiça de classes, o direito positivo exprime a dominação, a diferença aberta dos interesses particulares e o todo no qual eles se reúnem abstratamente. O sistema dos conceitos autoproduzidos que impele a jurisprudência amadurecida para diante do processo vital da sociedade decide-se antecipadamente, por meio da subsunção de todos os indivíduos às categorias, em favor da ordem a partir da qual se constrói por imitação o sistema classificatório (ADORNO, 2009ADORNO, Theodor W. Dialética negativa. Trad. Marcos Antonio Casanova. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009., p. 258-259).

Note-se, em primeiro lugar, um paralelo com a perspectiva de Pachukanis, segundo a qual a teoria do direito natural representou uma certa posição científica, na medida em que, do ponto de vista histórico, exprimiu ideologicamente os interesses materiais da ascendente classe burguesa em sua luta infatigável contra as forças do antigo regime (PACHUKANIS, 2017PACHUKANIS, E. B. Teoria geral do direito e marxismo. Trad. Paula Vaz de Almeida. São Paulo: Boitempo, 2017., p. 83). Não por outra razão ela conduz a antinomias, isto é, à colisão entre direitos, uma vez que o direito é inerente a cada indivíduo e os interesses individuais são normalmente contraditórios. O direito positivo e a teoria que o propugna, por sua vez, afirmam como sendo real aquilo que é apenas ideal, isto é, a ausência de antinomias e um sistema jurídico dotado de completude e sem contradições (KELSEN, 1994KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Trad. João Baptista Machado. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1994., p. 228). Por isso, o direito natural contém a não verdade do direito positivo, quer dizer, o fato de que este sistema tenha de se apresentar como aquilo que não é.

Eis então que Adorno formula um apontamento extremamente importante: já como mera forma, independentemente de qualquer conteúdo, o direito positivo exprime a dominação. O sistema normativo, ainda antes de veicular qualquer conteúdo específico que exprima o domínio de uma classe por outra ou valores de justiça relacionados a um segmento social e que se impõem a outro, já opera um sistema de dominação concreto e real pela simples forma de seu modo de ser. Esta forma exprime a diferença aberta de interesses particulares que se confrontam e são inconciliáveis no âmbito da realidade material, mas que são reunidos abstratamente num todo aparentemente desprovido de conflito. Novamente, o fato de o sistema jurídico exprimir-se numa linguagem aparentemente autoprodutora de si, que se fundamenta em si mesma (KELSEN, 1994KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Trad. João Baptista Machado. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1994., p. 03), funciona como ponto de apoio para a atividade concreta de juízes e tribunais que, a pretexto de aplicarem a norma ao caso concreto, isto é, subsumirem indivíduos distintos às mesmas idênticas categorias interpretativas, não fazem senão reproduzir e perpetuar um sistema de dominação que já está decidido de antemão pelo modo específico do metabolismo social. O acento na importância da forma jurídica em detrimento de qualquer conteúdo ou justiça de classe recoloca o paralelo na abordagem do direito feita por Adorno e o ponto de vista de Pachukanis.

Esta primeira aproximação, não obstante precária, permite que se proceda a um esboço inicial do modo como Adorno compreende o direito na Dialética negativa. Algumas linhas elementares podem ser traçadas. Antes de tudo, o modo como o direito articula contraditoriamente liberdade e dominação; como, sob o manto da identidade o fenômeno jurídico não faz senão ocultar aquilo que não é e não pode ser idêntico; em segundo lugar, a passagem do princípio de equivalência à norma jurídica e a constituição de uma linguagem que é por natureza excludente de tudo quanto não esteja premeditado significativamente àquele esquadro, uma estrutura ideológica que opera a passagem em seu oposto sempre que necessário, isto é, à violência concreta e real; finalmente, mas não menos importante, a compreensão de que a forma jurídica já basta à dominação independentemente do conteúdo de classe, o que remete, de alguma maneira, ao caráter ontologicamente conservador do direito, quer se qualifique como liberal, socialdemocrata, socialista etc.

II. Identidade, equivalência e direito

A crítica do princípio de identidade é um dos elementos centrais em torno dos quais se movimenta a Dialética negativa. A lógica totalizante de tal princípio implica uma equalização geral de todos os particulares que são alcançados pelo vetor. Esta equalização aponta para uma isonomia formal que engendra um padrão social objetivo a partir do qual tudo é medido e ponderado. Uma vez que iguala formalmente aquilo que é materialmente distinto o princípio impõe uma totalidade abstrata e abrangente, que se constitui de modo autorreferencial. Seu movimento, portanto, é expansivo e não se detém perante nada (SAFATLE, 2019SAFATLE, Vladimir. Dar corpo ao impossível: o sentido da dialética a partir de Theodor Adorno. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2019., p. 29).

O pensamento dialético, sobretudo hegeliano, de alguma maneira aderiu a este princípio, corporificando-o do ponto de vista teórico. Não por outra razão, o sistema de Hegel erigiu como elemento propulsor de todo movimento o chamado “espírito absoluto”, concebido como uma espécie de abstração material atribuidora de sentidos não apenas a eventos humanos, como também a quaisquer entes que se apresentem perante a humanidade. Este espírito de identidade não desconhecia e tampouco rejeitava as diferenças particulares e concretas que se antepunham a ele, mas logo as dissolvia no interior de seu próprio movimento, concebendo as diferenças como contradições que logo eram superadas numa síntese em que a identidade era reposta. Justamente por isso a dialética hegeliana era acusada de fazer vistas grossas ao singular, às diferenças concretas, enfim, ao ser humano real (KUGNHARSKI, 2020KUGNHARSKI, Gabriel Petrechen. O não-idêntico como excesso e transformação: dialética negativa e a crítica do idealismo hegeliano em Theodor W. Adorno. In: SOFIA, Vitória (ES), v.9, n.1, jan./jul.2020, p. 174-190. Disponível em: < https://periodicos.ufes.br/sofia/article/view/27414/21321 > Acesso em: 18/09/2020.
https://periodicos.ufes.br/sofia/article...
, p. 174-190).

Nesse sentido, o projeto de uma dialética negativa deve passar inexoravelmente pelo enfrentamento deste princípio. Ora, se um dos objetivos é eliminar do modo de pensar dialético a necessidade de uma síntese positiva; se a consideração pelo singular e suas peculiaridades deve necessariamente ingressar como elemento constitutivo de significados, então é evidente que o princípio de identidade precisa ser confrontado. Adorno observa:

A contradição não se confunde com aquilo que o idealismo absoluto de Hegel precisou inevitavelmente transfigurá-la: ela não é nenhuma essência heraclítica. Ela é o indício da não-verdade da identidade, da dissolução sem resíduos daquilo que é concebido no conceito. Todavia, a aparência de identidade é intrínseca ao próprio pensamento em sua forma pura. Pensar significa identificar (...) À consciência do caráter de aparência inerente à totalidade conceitual não resta outra coisa senão romper de maneira imanente, isto é, segundo o seu próprio critério, a ilusão de uma identidade total. Todavia, como aquela totalidade se constrói de acordo com a lógica, cujo núcleo é formado pelo princípio do terceiro excluído, tudo o que não se encaixa nesse princípio, tudo o que é qualitativamente diverso, recebe a marca da contradição. A contradição é o não-idêntico sob o aspecto da identidade; o primado do princípio de não-contradição na dialética mensura o heterogêneo a partir do pensamento da unidade. Chocando-se contra seus próprios limites, esse pensamento ultrapassa a si mesmo. A dialética é a consciência consequente da não-identidade (ADORNO, 2009ADORNO, Theodor W. Dialética negativa. Trad. Marcos Antonio Casanova. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009., p. 12-13, passim).

O princípio de identidade está tão incrustado no modo de pensar tradicional que a própria forma do pensamento é identidade. Não se trata, portanto, de lutar contra esta forma a partir de conteúdos que lhe são apresentados externamente. É preciso combatê-la nos seus próprios termos, de maneira imanente, opondo à forma reificada uma força capaz de lhe desestruturar o sentido. A dialética, num primeiro momento, a pretexto de combater o pensamento tradicional, adere a ele, concebendo a contradição a partir do primado do princípio de não contradição, o que faz com que mesmo ela tenha de avaliar o heterogêneo a partir da unidade. A dialética negativa, por sua vez, eleva esta tensão ao grau máximo, no interior da própria tradição dialética, ultrapassando esta tradição e caracterizando-se como “consciência consequente da não identidade” (ADORNO, 2009ADORNO, Theodor W. Dialética negativa. Trad. Marcos Antonio Casanova. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009., p. 13; em sentido contrário: SAFATLE, 2019SAFATLE, Vladimir. Dar corpo ao impossível: o sentido da dialética a partir de Theodor Adorno. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2019., p. 51). Eis aí um ponto de não retorno, pois a partir desse momento a dialética está fadada a reconhecer toda a identidade como um momento falseado, uma ontologia falsa que precisa ser continuamente desconstruída sem que, no entanto, reponha-se uma síntese positiva. Como consequência, libera-se ao singular a uma significação plena de conteúdo, o que lhe havia sido negado inclusive pela tradição dialética idealista (NOBRE, 1998NOBRE, Marcos. A dialética negativa de Theodor W. Adorno: a ontologia do estado falso. São Paulo: Editora Iluminuras, 1998., p. 171).

O princípio de identidade, que submete à sua lógica a própria forma do pensamento, possui ele próprio um fundamento material. Uma vez que a Dialética negativa se pretende uma dialética materialista, ela precisa averiguar o fundamento oculto deste modo de articulação da realidade e trazê-lo à tona. Somente assim pode qualificar-se como uma ontologia do estado falso. Nesse sentido, Adorno observa:

O princípio de troca, a redução do trabalho humano ao conceito universal abstrato do tempo médio de trabalho, é originalmente aparentado com o princípio de identificação. Esse princípio tem na troca o seu modelo social, e a troca não existiria sem esse princípio; por meio da troca, os seres singulares não-idênticos se tornam comensuráveis com o desempenho, idênticos a ele. A difusão do princípio transforma o mundo todo em algo idêntico, em totalidade. Não obstante, se o princípio fosse abstratamente negado; se ele fosse proclamado como o ideal de não precisar mais proceder, por reverência ao irredutivelmente qualitativo, segundo equivalentes, então isso constituiria uma desculpa para retornar à antiga injustiça. Pois a troca de equivalentes constitui desde sempre em trocar em seu nome desiguais, em se apropriar da mais valia do trabalho. Se simplesmente se anulasse a categoria de medida da comparabilidade, no lugar da racionalidade que reside em verdade ideologicamente, mas também enquanto promessa, no princípio de troca, apareceriam a apropriação imediata, a violência, e, hoje em dia, o privilégio nu e cru dos monopólios e dos cliques. A crítica ao princípio de troca enquanto princípio identificador do pensamento quer a realização do ideal de uma troca livre e justa que até nossos dias não foi senão mero pretexto. Somente isso seria capaz de transcender a troca (ADORNO, 2009ADORNO, Theodor W. Dialética negativa. Trad. Marcos Antonio Casanova. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009., p. 128).

A passagem é fundamental. A partir dela verifica-se claramente a ligação intrínseca da Dialética negativa a O capital de Karl Marx. Pois é nesta obra que se apresenta em primeiro lugar a centralidade da troca de mercadorias como princípio organizador de todo o metabolismo na sociedade dominada pelo capital. É nela também que se revela como a troca de equivalentes é apenas a face externa de formas de sociabilidade que se fundam em relações ocultas de troca de não equivalentes. De fato, a dinâmica de extração do mais-trabalho opera precisamente pela forma externa da troca de valores idênticos. Nesse sentido, a extração do mais-valor dá-se por intermédio da troca de equivalentes, que, por sua vez, é negada no fluxo da produção e circulação do capital. Adorno adota claramente este pressuposto quando afirma que a “troca de equivalentes consistiu desde sempre em trocar em seu nome desiguais, em se apropriar da mais valia do trabalho” (ADORNO, 2009ADORNO, Theodor W. Dialética negativa. Trad. Marcos Antonio Casanova. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009., p. 128).

Sem dúvida, no capítulo 01, do Livro I, de O capital, Marx mostra como a troca de mercadorias reduz valores de uso qualitativamente distintos a valores de troca equivalentes, pois “sem tal igualdade de essências, essas coisas sensivelmente distintas não poderiam ser relacionadas entre si como grandezas comensuráveis” (MARX, 2013MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro I. O processo de produção do capital. Trad. Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2013., p. 135). Quer dizer, para que a troca de equivalentes ocorra é preciso que cada lado da equação de valor seja idêntico, pois é evidente que não haverá intercâmbio de valores distintos. A submissão dos valores de uso ao domínio do valor de troca significa a subsunção dos particulares à lógica totalizante da identidade. A gênese desta, portanto, é material no sentido de que não é um artifício criado externamente pelo pensamento humano, mas brota da dinâmica interna do metabolismo social que funciona como elemento constitutivo do próprio pensamento. No capítulo 24, do Livro I, a seu turno, Marx demonstra como se dá a passagem da troca de equivalentes à troca de não equivalentes por intermédio do movimento de reprodução do capital. Evidentemente a esta altura já se apresentou a troca entre capital e trabalho, nos termos do capítulo 04, do Livro I, intercâmbio por intermédio do qual se dá a apropriação do mais-trabalho alheio. Desse modo, “a relação de troca entre o capitalista e o trabalhador se converte, assim, em mera aparência pertencente ao processo de circulação, numa mera forma, estranha ao próprio conteúdo e que apenas o mistifica” (MARX, 2013MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro I. O processo de produção do capital. Trad. Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2013., p. 659). Uma vez mais, valores de uso são submetidos ao domínio do valor de troca e particulares são subsumidos à lógica da identidade. O problema, neste caso, é que um desses valores de uso já não é simplesmente uma coisa produzida pelo indivíduo, mas o próprio indivíduo, pois este transfere sua força de trabalho ao capital. Esta relação de submissão é simultaneamente uma relação de dominação.

Eis o ponto a partir do qual se pode compreender claramente por que a dialética negativa se constitui como uma ontologia do estado falso. A estrutura da realidade que se apresenta imediatamente à percepção se funda numa totalidade que é constituída pelo princípio de identidade, cujo fundamento repousa na troca de mercadorias equivalentes. O problema é que esta troca é apenas superficial, sendo o modelo externo e perceptível de equalização de valores de uso distintos que é negada no momento da produção e reprodução do capital. Esta negação implica a troca de não equivalentes, portanto, a recusa do princípio de identidade e a reposição do valor de uso, porém na forma da dominação. Ocorre que esta recusa não aparece na superfície da sociedade capitalista, permanecendo oculta e imperceptível, podendo ser, no máximo, intuída. Justamente por isso, o papel da dialética negativa é imprimir uma negatividade intransigente à forma da identidade com o objetivo de desmascarar esta falsa equalização. Apenas assim é possível pôr o singular em consideração de modo autêntico e liberar horizontes de transformação concreta a partir dos quais a troca de equivalentes pode ser realmente superada. No entanto, como observa Adorno, a dialética negativa precisa sempre se impor uma correção, sob pena de recair, ela mesma, na lógica de identidade que precisa combater:

É preciso se opor à totalidade, imputando-lhe a não-identidade consigo mesma que ela recusa segundo o seu próprio conceito. Por meio dessa oposição, a dialética negativa está ligada como a seu ponto de partida com as categorias mais elevadas da filosofia da identidade. Nessa medida, ela também permanece falsa, participando da lógica da identidade; ela mesma permanece aquilo contra o que é pensada. Ela precisa se retificar no interior de seu progresso crítico que afeta os conceitos dos quais ela trata com base na forma como se eles também continuassem sendo os primeiros para ela (ADORNO, 2009ADORNO, Theodor W. Dialética negativa. Trad. Marcos Antonio Casanova. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009., p. 128-129).

Pois bem, o vínculo entre equivalência e direito é notório na tradição de pensamento marxista, tendo sido desenvolvido originalmente na crítica da economia política de Karl Marx, sobretudo em O capital, e fixado de modo explícito na Crítica do programa de Gotha. Neste escrito Marx elabora uma crítica contundente ao modo como o programa do partido operário alemão, àquela altura unificado sob as bandeiras de Lassalle, concebia de maneira reificada o trabalho enquanto atividade humana de apropriação da natureza para a criação de bens de consumo. Além da má compreensão da relação entre ambos (trabalho e natureza), incomodava-o a palavra de ordem segundo a qual os frutos do trabalho da sociedade deveriam pertencer a todos os membros desta com igualdade de direitos. Ao analisar o modo como o trabalhador deve relacionar-se com o tempo de trabalho dedicado à sociedade e a quantidade de produtos que pode reter para si, naquilo que ele chama de primeira etapa da sociedade comunista - logo após a ultrapassagem do capitalismo, em que a figura do capital já foi afastada mas o trabalho pessoal ainda é compulsório -, Marx observa:

Aqui impera, é evidente, o mesmo princípio que regula a troca de mercadorias, na medida em que esta é troca de equivalentes. Conteúdo e forma são alterados, porque, sob novas condições, ninguém pode dar nada além de seu trabalho e, por outro lado, nada pode ser apropriado pelos indivíduos fora dos meios individuais de consumo. No entanto, no que diz respeito à distribuição desses meios entre os produtores individuais, vale o mesmo princípio que rege a troca entre mercadorias equivalentes, segundo o qual uma quantidade igual de trabalho em uma forma é trocada por uma quantidade igual de trabalho em outra forma. Por isso, aqui, o igual direito é ainda, de acordo com seu princípio, o direito burguês, embora princípio e prática deixem de se engalfinhar, enquanto na troca de mercadorias a troca de equivalentes existe apenas em média, mas não para o caso individual. Apesar desse progresso, esse igual direito continua marcado por uma limitação burguesa. O direito dos produtores é proporcional a seus fornecimentos de trabalho; a igualdade consiste, aqui, em medir de acordo com um padrão igual de medida: o trabalho. Mas um trabalhador supera o outro física ou mentalmente e fornece, portanto, mais trabalho no mesmo tempo ou pode trabalhar por mais tempo; e o trabalho, para servir de medida, ou tem de ser determinado de acordo com sua extensão ou sua intensidade, ou deixa de ser padrão de medida. Esse igual direito é direito desigual para trabalho desigual. Ele não reconhece nenhuma distinção de classe, pois cada indivíduo é apenas trabalhador tanto quanto o outro; mas reconhece tacitamente a desigualdade dos talentos individuais como privilégios naturais, e, por conseguinte, a desigual capacidade dos trabalhadores. Segundo seu conteúdo, portanto, ele é, como todo direito, um direito da desigualdade. O direito, por sua natureza, só pode consistir na aplicação de um padrão igual de medida; mas os indivíduos desiguais (e eles não seriam indivíduos diferentes se não fossem desiguais) só podem ser medidos segundo um padrão igual de medida quando observados do mesmo ponto de vista, quando tomados apenas por um aspecto determinado, por exemplo, quando, no caso em questão, são considerados apenas como trabalhadores e neles não se vê nada além disso, todos os outros aspectos são desconsiderados (MARX, 2012MARX, Karl. Crítica do programa de Gotha. Trad. Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2012., p. 30-31).

Nesta passagem Marx deixa clara a profunda relação que existe entre o princípio da equivalência e o direito. Mesmo que a troca de mercadorias seja superada no interior da comunidade, o que só é possível a partir do momento em que se desconstitui as relações capitalistas de produção, ainda assim a relação entre indivíduos deve se manter nos estreitos horizontes do direito burguês se a quantidade de produtos aos quais devem ter acesso for equivalente à quantidade de trabalho que proporcionam à sociedade. Esta relação de equivalência a partir do trabalho introduz um mesmo padrão de medida para todos e insere na relação entre indivíduos o padrão jurídico, isto é, o vetor da igualdade formal que obscurece quaisquer diferenças materiais que existam entre indivíduos entre si. Por isso, de acordo com seu conteúdo há o reconhecimento e manutenção das desigualdades concretas, tal como ocorre sob a troca de mercadorias em que se reconhece e mantém os diferentes valores de uso que se intercambiam sob a forma jurídica. Uma vez que o direito, por sua natureza, significa a aplicação de um mesmo padrão de medida, percebe-se que a forma jurídica não faz senão reproduzir a forma da identidade. E isso ocorre porque ambos, identidade e direito, fundam-se na relação de equivalência. A forma do direito é, portanto, a forma da identidade projetada no contexto de relações sociais em que o padrão normativo deve incidir como vetor para a distribuição de bens entre pessoas.

Pachukanis desenvolve esta relação entre equivalência e direito em sua Teoria geral do direito e marxismo a partir da troca de mercadorias e do vínculo que se estabelece entre seus guardiões, identificados como os sujeitos de direito apresentados pela teoria tradicional. A partir da relação entre identidade e equivalência exposta em Dialética negativa, tanto quanto do esboço geral que assume a forma jurídica nesta obra, não parece exagero afirmar que Adorno recepciona este modo de compreender o fenômeno jurídico, tal como delineado por Pachukanis a partir de Marx e de sua crítica da economia política. Do que se trata, então, neste terceiro item, é de desenvolver estas relações com vistas a uma compreensão mais adequada do sentido normativo do direito visando à ampliação dos espaços de investigação desta questão no interior da crítica marxista, que ainda carece de algum aprofundamento.

III. A gênese da norma jurídica

Uma das questões mais salientes no interior da crítica marxista consiste no modo como se compreende a passagem da relação de direito à norma jurídica. Isso ocorre porque geralmente se procura responder a esta questão à luz do debate com a teoria tradicional, que assume o pressuposto de que o caráter jurídico da norma consiste em ser posta por uma autoridade capaz de aplicar uma sanção em caso de descumprimento do comando normativo (KELSEN, 1994KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Trad. João Baptista Machado. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1994., p. 37). Como esta autoridade modernamente se constitui como Estado (BOBBIO, 2010BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de política. Volume I. Trad, Carmen C. Varriale et al. 13ª ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2010., p. 249), o caráter jurídico da norma decorre direta ou indiretamente de sua criação pela autoridade estatal, ou, em casos extremos, pela identificação de ambos (direito e Estado) como o mesmo fenômeno (KELSEN, 1994KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Trad. João Baptista Machado. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1994., p. 316-321).

O problema deste pressuposto é que ele colide com as indicações que se encontram já no “jovem Marx”. Em seus escritos de juventude, quando Marx ainda não havia integrado a crítica da economia política a suas reflexões, a precedência do direito relativamente ao Estado já era flagrante. Vejamos a seguinte passagem de A sagrada família:

Demonstrou-se como o reconhecimento dos direitos humanos por parte do Estado moderno tem o mesmo sentido que o reconhecimento da escravatura pelo Estado antigo. Com efeito, assim como o Estado antigo tinha como fundamento natural a escravidão, o Estado moderno tem como base natural a sociedade burguesa e o homem da sociedade burguesa, quer dizer, o homem independente, entrelaçado com o homem apenas pelo vínculo do interesse privado e da necessidade natural inconsciente, o escravo do trabalho lucrativo e da necessidade egoísta, tanto da própria quanto da alheia. O Estado moderno reconhece essa sua base natural, enquanto tal, nos direitos gerais do homem. Mas não os criou. Sendo como é, produto da sociedade burguesa, impulsionada por seu próprio desenvolvimento até mais além dos seus velhos vínculos políticos, ele mesmo reconhece, por sua vez, seu próprio local de nascimento e sua própria base mediante a proclamação dos direitos humanos (MARX; ENGELS, 2003MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A sagrada família ou A crítica da crítica crítica: contra Bruno Bauer e consortes. Trad. Marcelo Backes. São Paulo: Boitempo, 2003., p. 132).

Pachukanis desenvolve de modo adequado esta questão. No início do capítulo 03 de Teoria geral do direito e marxismo ele denuncia o caráter abstrato-formal das análises lógicas de Kelsen, que procuram reduzir o direito única e exclusivamente ao fenômeno normativo. Remetendo a Marx, observa:

A questão aqui examinada, se empregarmos a terminologia de Marx e sua concepção materialista da história, reduz-se ao problema das relações mútuas entre as superestruturas jurídica e política. Se a norma considerada em todas as relações é o momento primário, então, antes de investigar qualquer superestrutura jurídica, devemos assumir a existência de uma autoridade que constitui a norma ou, em outras palavras, de uma organização política. Dessa maneira, deveríamos ser levados a concluir que a superestrutura jurídica é uma consequência da superestrutura política. Entretanto, o próprio Marx salienta que a camada fundamental, mais profunda, da superestrutura jurídica - as relações de propriedade - está em tão estreito contato com a base que aparece “apenas como expressão jurídica” das relações de produção existentes. O Estado, ou seja, a organização da dominação política de classe, cresce no terreno de relações de produção ou de propriedade dadas. As relações de produção e sua expressão jurídica formam aquilo que Marx, seguindo Hegel, chamou de sociedade civil. A superestrutura política e, em particular, a organização oficial do Estado constituem um momento derivado e secundário (PACHUKANIS, 2017PACHUKANIS, E. B. Teoria geral do direito e marxismo. Trad. Paula Vaz de Almeida. São Paulo: Boitempo, 2017., p. 101-102).

Percebe-se que a crítica marxista produz um avanço significativo no que concerne à formulação do fenômeno jurídico. Ao sustentar a precedência do direito relativamente ao Estado - sem deixar de insistir na relação de constituição mútua e intrínseca que há entre ambos (MARX, 2010MARX, Karl. Sobre a questão judaica. Trad. Daniel Bensaïd; Wanda Caldeira Brant. São Paulo: Boitempo, 2010., p. 53) - abrem-se maiores espaços para a compreensão do momento jurídico das relações humanas, que muitas vezes passam ao largo da atuação estatal (basta pensar no direito internacional, por exemplo). Compreende-se, ainda, que a forma do Estado em várias situações não apenas não se coaduna com a forma jurídica, como a repele explicitamente. É o que ocorre em intervenções policiais em que a violência bruta vem à tona sem qualquer mediação jurídica. Aliás, dependendo da situação concreta, as próprias normas estatais são violadas.

Nada obstante este avanço, restam ainda uma série de problemas a serem resolvidos no interior da crítica marxista no que concerne à passagem da relação de direito à norma jurídica. Pois, ainda que se tenha clareza quanto ao papel secundário do Estado, não há uma formulação precisa sobre como se desenvolve o nexo preciso entre as relações sociais qualificadas como jurídicas e sua expressão normativa (FAUSTO, 1987FAUSTO, Ruy. Marx: lógica e política. Investigações para uma reconstituição do sentido da dialética. Tomo II. São Paulo: Editora Brasiliense: 1987., p. 297). Nesse sentido, mesmo Pachukanis, cujas observações constituem o ponto mais avançado das análises marxistas, apresenta dificuldades quanto à apresentação da questão. Isso ocorre porque o autor ainda permanece nos limites da teoria tradicional quando propõe o problema, o que fica claro quando desloca a análise para o âmbito da relação entre direito objetivo e direito subjetivo (PACHUKANIS, 2017PACHUKANIS, E. B. Teoria geral do direito e marxismo. Trad. Paula Vaz de Almeida. São Paulo: Boitempo, 2017., p. 106). Vejamos:

A organização social detentora dos meios de coerção é a totalidade concreta em direção à qual devemos caminhar após compreendida previamente a relação jurídica em sua forma mais pura e simples. Consequentemente, esse dever como resultado de um imperativo ou de um comando é, para o exame da forma jurídica, um momento que torna as coisas mais concretas e mais complicadas (PACHUKANIS, 2017PACHUKANIS, E. B. Teoria geral do direito e marxismo. Trad. Paula Vaz de Almeida. São Paulo: Boitempo, 2017., p. 109).

Note-se que Pachukanis passa da relação jurídica em sua forma mais pura e simples imediatamente à organização social detentora dos meios de coerção, sem qualquer mediação. Eis um problema fundamental, pois se salta do momento jurídico das relações humanas diretamente ao momento político; da relação social qualificada como direito ao comando político emitido pelo Estado enquanto decisão normativa. O autor russo vira o problema de ponta-cabeça, mas não o resolve, pois permanece no âmbito da dicotomia instaurada pelo modo de ver da teoria tradicional. O encaminhamento da questão implica que se encontrem elementos que viabilizem uma mediação adequada para esta passagem. Em outras palavras, é preciso saber se existe alguma estrutura normativa prévia, que não se confunde com a relação jurídica propriamente dita, a partir da qual a norma estatal pode ser formulada do ponto de vista lógico, não apenas enquanto conteúdo, mas principalmente como forma.

Nesse sentido, a Dialética negativa pode ser de grande valia para uma compreensão mais adequada da questão, que está longe de ser solucionada. Como vimos, de acordo com Adorno o conteúdo da liberdade posta pelo direito “é a identidade que anexou tudo aquilo que não é mais idêntico” (ADORNO, 2009ADORNO, Theodor W. Dialética negativa. Trad. Marcos Antonio Casanova. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009., p. 210). Percebe-se, pois, que a forma do direito está intrinsecamente relacionada ao princípio de identidade, que se constitui inclusive como parâmetro objetivo de conformação do próprio pensamento. Isso significa que o direito é um dos modos pelos quais se expressa o vetor de identidade, estruturante das sociedades de mercado. Além do mais, como se viu também, no direito “o princípio formal de equivalência transforma-se em norma e insere todos os homens sob o mesmo molde” (ADORNO, 2009ADORNO, Theodor W. Dialética negativa. Trad. Marcos Antonio Casanova. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009., p. 257). Nesta passagem Adorno observa como a relação de equivalência posta pela troca mercantil se expressa normativamente de modo natural-espontâneo. Esta normatividade jurídica emerge da generalização dos intercâmbios de mercadorias produzindo uma linguagem normativa que lhe é própria e peculiar e que reproduz no âmbito das relações humanas a igualdade formal que se encontra originariamente na relação mercantil, isto é, na troca de valores de uso. Este feixe de linguagem se apresenta como uma segunda realidade, isto é, como estrutura autônoma veiculadora de sentidos de identidade que relega a segundo plano as diferenças singulares e concretas que existem entre os indivíduos (GIANNOTTI, 2000GIANNOTTI, José Arthur. Certa herança marxista. São Paulo: Companhia das Letras, 2000., p. 102). A expressão do princípio de equivalência enquanto norma jurídica que tem como conteúdo a identidade é o momento constitutivo, do ponto de vista normativo, da forma do sujeito de direito. Pois esta forma é o elemento de padronização, de exclusão de toda e qualquer diferença singular e concreta entre indivíduos, que aparecem uns para os outros com as mesmas máscaras, isto é, como pessoas. Nada obstante, como ficou registrado, os princípios de identidade e equivalência têm fundamento em relações de troca que, por sua vez, são negadas no momento de reprodução do capital. Como vimos, a relação entre capital e trabalho, que num primeiro momento aparece como troca de equivalentes, passa em seu oposto, isto é, revela-se como troca de não equivalentes quando o movimento de acumulação completa os primeiros giros necessários à reposição do valor inicial lançado na circulação. Por isso, a identidade e a equivalência nas sociedades mercantis constituem-se como aparências objetivas, portanto, como estado falso, feixe de realidade que apenas se mantém na medida em que se nega. Assim, “o direito positivo exprime a dominação, a diferença aberta dos interesses particulares e o todo no qual eles se reúnem abstratamente” (ADORNO, 2009ADORNO, Theodor W. Dialética negativa. Trad. Marcos Antonio Casanova. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009., p. 259). Na medida em que a norma jurídica veicula a identidade absoluta, consubstanciando uma segunda realidade, ela bloqueia o acesso ao real efetivo, isto é, ao modo como se produz e reproduz o capital (FAUSTO, 1987FAUSTO, Ruy. Marx: lógica e política. Investigações para uma reconstituição do sentido da dialética. Tomo II. São Paulo: Editora Brasiliense: 1987., p. 299). Nada obstante, a relação de não equivalência, portanto, a extração do mais trabalho só pode ocorrer na forma da dominação. Uma vez que na sociedade de mercado a produção do mais-valor é velada pela troca de equivalentes que ocorre na superfície, o monopólio da violência é deslocado para o momento político das relações sociais, isto é, para o Estado. Assim, sob o pretexto de conter a violência que nos modos de produção anteriores era explicitamente constitutiva da produção, a norma jurídica a oculta, sem a eliminar, na medida em que a transfere para o Estado. Reproduz, com isso, a aparência objetiva de que as sociedades de mercado veiculam padrões de comportamento pacífico nos quais as intervenções estatais violentas apenas são autorizadas em caso de negação da paz social. Como afirma Adorno, “mesmo em sua abstração mais extrema, a lei é algo que veio a ser; o lado doloroso de sua abstração é o conteúdo sedimentado, dominação trazida até sua forma padronizada, a forma da identidade” (ADORNO, 2009ADORNO, Theodor W. Dialética negativa. Trad. Marcos Antonio Casanova. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009., p. 227).

A passagem do princípio de equivalência à norma jurídica, cujo conteúdo é a identidade totalizante que universaliza o fenômeno jurídico, é mais bem compreendida se pensada como abstração real, tal como apresentada por Alfred Sonh-Rethel em Trabalho intelectual e manual. Vejamos:

A essência da abstração mercantil, entretanto, é que ela não é induzida pelo pensamento; ela não se origina nas mentes dos homens, mas em suas ações. E, no entanto, isso não dá à "abstração" apenas um significado metafórico. É abstração no seu sentido preciso, literal. O conceito econômico de valor resultante disso é caracterizado pela ausência completa de qualidade, uma diferenciação puramente por quantidade e aplicabilidade a todo tipo de mercadoria e serviço que podem ocorrer no mercado. Estas qualidades da abstração do valor econômico realmente exibem uma semelhança impressionante com categorias fundamentais de quantificação da ciência natural sem que, reconhecidamente, a menor relação interna entre essas esferas heterogêneas seja reconhecível. Enquanto os conceitos das ciências naturais são abstrações pensadas, o conceito econômico de valor é real. Ele não existe em nenhum outro lugar além da mente humana, mas não surge a partir dela. Em vez disso, é de caráter puramente social, surgindo na esfera espaço-temporal das inter-relações humanas. Não são as pessoas que originam essas abstrações, mas suas ações. 'Eles fazem isso sem estarem cientes disso’” (SONH-RETHEL, 1978SOHN-RETHEL, Alfred. Intellectual and manual labour: a critique of epistemology. London: Macmillan, 1978., p. 20, tradução livre).

Assim como o valor é uma abstração real, isto é, uma abstração que não é produzida pela mente humana, mas pela ação social dos indivíduos, a norma jurídica também o é. A expressão normativa do direito é pensada sobretudo como forma, quer dizer, como padrão normativo geral e abstrato de conduta que equaliza as relações e identifica equanimemente os indivíduos que as engendram, atribuindo-lhes a forma de pessoa. Nesse sentido, a norma jurídica se coloca como universal-abstrato ao qual se referem as relações jurídicas concretas. Assim como o valor surge e se consolida a partir da generalização das múltiplas relações envolvendo valores de troca particulares, o que apenas ocorre quando a força de trabalho converte-se em mercadoria, a norma jurídica enquanto abstração real surge igualmente da generalização das relações jurídicas particulares. Acompanhando, no entanto, a lógica do valor, a norma também se constitui como sujeito autônomo, dando ensejo à aparência objetiva de que as relações jurídicas remetem a ela, quando, na realidade, ocorre o contrário. Esse processo é descrito por Adorno nos seguintes termos:

Para a sua glória imperecível, Aristóteles, na teoria da equidade, formulou essa crítica à norma jurídica abstrata. Quanto mais coerentemente, porém, os sistemas jurídicos são elaborados, tanto mais eles se tornam incapazes de absorver aquilo que tem sua essência na recusa à absorção. O sistema jurídico racional consegue regularmente rebaixar a pretensão de equidade que constituía o corretivo da injustiça no interior do direito ao nível do protecionismo, de um privilégio desigual. A tendência para tanto é universal, segue lado a lado com o processo econômico que reduz os interesses particulares ao denominador comum de uma totalidade que permanece negativa porque, em virtude de sua abstração constitutiva, distancia-se dos interesses particulares, a partir dos quais, porém, ao mesmo tempo se compõe. A universalidade que reproduz a conservação da vida a coloca concomitantemente em risco, em um nível cada vez mais ameaçador (ADORNO, 2009ADORNO, Theodor W. Dialética negativa. Trad. Marcos Antonio Casanova. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009., p. 259).

A norma jurídica enquanto abstração real não se confunde com a norma posta pelo Estado. O direito positivo no sentido do conjunto de normas criadas pela autoridade estatal ou quem lhe faça as vezes é um momento derivado e secundário e expressa a forma política das relações humanas. Nada obstante, sua dedução lógica apenas é possível tendo como pressuposto a norma jurídica abstrata produzida pelas relações de produção e circulação. A passagem do momento jurídico ao político depende de uma série de mediações que ainda precisam ser desenvolvidas no interior da crítica marxista. No entanto, a compreensão de que esta passagem não pode ser deduzida diretamente das relações jurídicas concretas à norma estatal, como sugere Pachukanis ao situar a questão em torno do debate entre direito subjetivo e objetivo, constitui de certa maneira um avanço. A abstração real da norma jurídica é o esteio a partir do qual a forma da dominação política de classe pode se elevar como figura autônoma e concreta de Estado. É também o pano de fundo a partir do qual a forma da norma estatal pode ser deduzida logicamente e positivada como texto legal.

Conclusão

A Dialética negativa de Theodor W. Adorno significa um esforço de atualização da dialética aos desafios impostos pelos eventos históricos e movimentos teóricos que tiveram lugar na primeira metade do Século XX. Partindo das linhas fundamentais do pensamento de Hegel, subvertendo-as no movimento de construção de suas próprias categorias e tendo como pano de fundo a dialética de origem econômica de Karl Marx, Adorno alça o pensamento dialético ao enfretamento de questões filosóficas e epistemológicas candentes em seu tempo. Simultaneamente, fornece a esta tradição um aparato categorial que permite refletir sobre problemas que Hegel e Marx não enfrentaram em sua época. Ademais, é sintomático que sua obra permaneça imensamente atual.

Procurou-se demonstrar ao longo deste trabalho que a arquitetura teórica da Dialética negativa permite elevar o debate jurídico no interior do campo marxista a novo patamar. Na medida em que as discussões travadas não se circunscrevem a questões eminentemente econômicas ou políticas, embora estejam presentes enquanto pressupostos bem identificáveis, a obra de Adorno permite refletir sobre outras dimensões da forma jurídica, sobretudo aquelas de cunho superestrutural, como sua expressão normativa. Pode-se tentar reconstituir certas mediações que estão ausentes em Pachukanis e que acabaram por prejudicar o modo como sua obra foi recepcionada, inclusive no Brasil.

A identificação da norma jurídica enquanto abstração real, que não é produzida pela mente humana, mas pelas ações concretas que têm origem no incessante jogo de trocas, é um primeiro passo no sentido da construção de mediações que permitam desembocar numa explicação mais coerente e rigorosa sobre a gênese da norma posta pelo Estado enquanto expressão do momento político das relações humanas. Estas mediações dependem da apresentação de um elemento central que está para além do direito, embora integrado constitutivamente a ele: a luta de classes. É o modo como se imbricam objetivamente os sujeitos de direitos que contratam livremente no mercado enquanto expressão simultânea de classes sociais antagônicas cujos membros são escravizados pela lógica econômica que revela o segredo oculto da passagem do direito à política. Esta apresentação, no entanto, ainda está para ser feita e constitui, evidentemente, um esforço que só pode ser empreendido coletivamente. Para tanto, como diria Adorno, “a filosofia, que um dia pareceu ultrapassada, mantém-se viva porque se perdeu o instante de sua realização” (ADORNO, 2009ADORNO, Theodor W. Dialética negativa. Trad. Marcos Antonio Casanova. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009., p. 11).

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Jun 2022
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2022

Histórico

  • Recebido
    30 Set 2020
  • Aceito
    14 Dez 2020
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