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“Nem tudo é sobre raça”: evadindo o debate sobre racismo no marco jurídico-político latino-americano

“Not all is about race”: evading the debate on racism in the Latin-American legal-political debate

Resumo

“Nem tudo é sobre raça” é a frase que sintetiza os debates sobre o projeto para a Convenção Interamericana contra o Racismo e todas as formas de discriminação. Apesar da Declaração de Durban mostrar-se como um marco jurídico-político por reconhecer a relação entre colonialismo, escravização e racismo, ao analisar os documentos produzidos para o grupo de trabalho no âmbito da Organização de Estados Americanos (OEA) em período imediatamente posterior, conclui-se que o impacto no discurso oficial dos Estados latino-americanos parece limitado. Ao recorrer à discursividade jurídica da não discriminação, silencia-se o histórico colonial e escravista, ao mesmo tempo que esvazia a dimensão estrutural do racismo na região.

Palavras-chave:
Antirracismo; Colonialismo; Múltiplas discriminações

Abstract

“Not all is about race” is the phrase that summarizes the debates on the project for the Inter-American Convention against Racism and all forms of Discrimination. Although Durban Declaration stands as a legal-political landmark for declaring the relationship between colonialism, enslavement and racism, in analyzing the documents produced for the working group within the framework of the Organization of American States (OAS), it is concluded that the impact on the official discourse of the Latin- American states seems limited. By resorting to the legal discursiveness of non-discrimination, the debates at OAS silenced the colonial and slavery history, while emptying the structural dimension of racism in the region.

Keywords:
Antiracism; Colonialism; Multiple discriminations

1. Racismo, discriminação racial e a “inocência” do Direito na América Latina1 1 Este trabalho resulta do projeto de investigação POLITICS - A política de antirracismo na Europa e na América Latina: produção de conhecimento, decisão política e lutas coletivas. Este projeto recebe financiamento do Conselho Europeu de Investigação (ERC) no âmbito do Programa-Quadro de Investigação e Inovação da União Europeia, Horizonte 2020 (acordo de subvenção nº ERC-2016-COG-725402).

O Direito é permeado de uma suposta “inocência” quando o tema é o racismo, particularmente na América Latina, enquanto mecanismo discursivo ancorado no argumento reincidente “aqui nunca institucionalizamos o racismo ou tivemos leis racistas”, como nos Estados Unidos (Hernández, 2013HERNÁNDEZ, T. K. Racial Subordination in Latin America: the role of the State, Customary Law, and New Civil Rights Response. New York: Cambridge University Press, 2013.). De formal geral, o direito moderno de matriz liberal mantêm-se neutro (Fitzpatrick, 1990FITZPATRICK, P. Racism and the Innocence of Law. In: GOLDBERG, D. T. (Ed.). Anatomy of Racism. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1990. p. 247–262.) a partir da enunciação de que “todos são iguais perante a lei” ou na fórmula mais recente da não-discriminação genérica por motivos enumerados em lista. Quem desrespeita esse comando geral é um infrator, possui um comportamento aberrante e excepcional à regra e, portanto, deve ser corrigido (Cf. Maeso, 2018___. ‘Europe’ and the narrative of the ‘True Racist’: (Un-)thinking anti-discrimination law through race. Oñati Socio-legal Series, p. 1–29, 2018.; Moreira, 2017MOREIRA, A. J. O que é discriminação? 2a reimpre ed. Belo Horizonte, MG: Letramento, 2017.). O princípio genérico da não-discriminação também contempla a proibição do tratamento arbitrário, seja para beneficiar certo grupo, seja para prejudicar pois, afinal, a lei é cega. Por fim, a partir dessa perspectiva da isonomia formal, “parte-se do pressuposto de que a noção de intencionalidade e arbitrariedade são elementos indispensáveis para a caracterização de um ato discriminatório” (Moreira, 2017MOREIRA, A. J. O que é discriminação? 2a reimpre ed. Belo Horizonte, MG: Letramento, 2017., p. 17–18, grifo nosso). É, portanto, um problema levado à esfera individual, onde um indivíduo discrimina outro intencionalmente baseado em suas ideologias “incompatíveis” com o Estado de Direito.

Essa narrativa contém convenientes silenciamentos e apagamentos. São fórmulas que perpetuam a “inocência do Direito” por lhe retirar toda a materialidade, toda a historicidade e sua espacialidade. Silencia a relação intrínseca entre liberalismo e império colonial (Cf. Hesse, 2004HESSE, B. Discourse on Institutional Racism: the genealogy of a concept. In: PHILLIPS, D.; TURNEY, L.; LAW, I. (Eds.). Institutional Racism in Higher Education. Stoke on Trent: Trenthan Books, 2004. p. 131–147.; Maeso, 2018; Maldonado-Torres, 2017MALDONADO-TORRES, N. On the Coloniality of Human Rights. Revista Crítica de Ciências Sociais, n. 114, 2017.), perpetuando o seu universalismo ao mesmo tempo em que apaga a relação colonial que construiu os Estados latino-americanos. A fórmula da isonomia formal “todos são iguais perante a lei” ecoa, ahistórica, como se a raça2 2 Junto com diversos autores (Hesse, 2007; Goldberg, 2009; Grosfoguel, 2016; Lentin, 2017; Maeso, 2018), compreendo a raça como uma categoria política que perpassou dimensões ”sociais, econômicas, ecológicas, históricas e corpóreas” (Hesse, 2007) para a desumanização de grupos sociais no processo de dominação colonial, cujas práticas e instituições permanecem estruturando o racismo contemporâneo. A dimensão biológica da raça foi enfatizada com o pensamento eugênico do século XIX e XX, mas sua compreensão (e efeitos) nunca se limitou a ela, apesar de orientar até hoje os debates sobre o uso do termo (Lentin, 2017). não tivesse funcionado como marcador da linha do humano e do não-humano na conformação das relações de poder que, por outro lado, figuravam o Europeu como o “modelo” a ser seguido (Cf. Quijano, 2014QUIJANO, A. Colonialidad del poder y Clasificación Social. Cuestiones y horizontes. Antología esencial. De la dependencia histórico-estructural a la colonialidad/descolonialidad del poder. CLACSO, p. 285–327, 2014.). Modelo esse fortemente construído a partir de uma narrativa do Direito, afinal a Europa é o berço da democracia – de origens gregas – e dos “Direitos do Homem” – desde o iluminismo anglo-francês –, criando o “Outro” como aquele que deve deixar a barbárie e se desenvolver, num processo que passa por aceitar os valores jurídicos universais da humanidade, concebidos na Europa civilizada (Goldberg, 2002GOLDBERG, D. T. Racial Rule. In: GOLDBERG, D. T.; QUAYSON, A. (Eds.). Relocating Postcolonialism. Oxford, UK; Malden, MA: Blackwell Publishers, 2002. p. 82–102.; Maeso, 2018).

Essa continuidade na narrativa jurídica, que silencia a ruptura colonial, a objetificação de pessoas e a expropriação de territórios e culturas, permanece de forma perturbadora nos discursos jurídicos, diplomáticos, oficiais de nossos Estados modernos/coloniais. A reflexão trazida aqui pretende, mesmo que de forma inicial, pensar sobre as continuidades no discurso dos Estados no momento em que a região se apresenta como comprometida com a pauta antirracista desde a Conferência Regional das Américas em Santiago do Chile no ano 2000, preparatória para a Terceira Conferência Mundial Contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e a Intolerância Correlata, realizada em Durban em 2001. Serão analisados os documentos produzidos como contribuição de países que lideraram o grupo de trabalho no âmbito da Organização dos Estados Americanos (OEA)3 3 Será dado enfoque ao contexto latino-americano, apesar de mencionar pontualmente a atuação do Canadá, pois esse país compôs o grupo de trabalho. para a elaboração do projeto de uma convenção contra o racismo, de forma a avaliar os limites do discurso jurídico oficial da “não-discriminação” que silenciam o histórico colonial e escravista.

Exemplificando, a contribuição do Estado Argentino para o debate ilustra como os princípios jurídicos aqui retratados, igualdade ou isonomia, articulam-se como uma continuação do processo evolutivo “iniciado” na Grécia antiga, passando pela modernidade e sua construção liberal de igualdade, até culminar na Declaração Universal dos Direitos Humanos:

Longe de ser uma noção moderna, a igualdade é um conceito já amplamente trabalhado por filósofos da Grécia antiga, que contribuíram para desenvolver as bases teóricas para sustentar regimes políticos democráticos. (...) Agora, se por um lado é verdade que a noção de igualdade é consubstancial à definição de democracia, a verdade é que, com o advento da modernidade, essa noção mudou na medida em que foi redefinida em termos de se tornar um conceito associado à noção de direitos humanos, sendo compatível com a pluralidade da sociedade civil. Assim, a igualdade deixou de ser exclusiva para se tornar uma categoria inclusiva. (Argentina, CAJP/GT/RDI-4/05 add.2_____CAJP/GT/RDI-4/05 add.2. Contribuciones preliminares de los Estados Miembros para el futuro trabajo de la elaboración de un Proyecto de Convención Interamericana Contra el Racismo y Toda Forma de Discriminación e Intolerancia: Argentina. 28/11/2005., p. 1, tradução nossa)

Essa compreensão de que devemos nossa “democracia” e nosso “Estado de Direito” a esse arcabouço conceitual acumulado desde a Grécia à modernidade Europeia é perversa e mais atual do que gostaríamos de admitir. Além de garantir a neutralidade do discurso jurídico, também o impermeabiliza, tornando-o um escudo (Flauzina, 2006FLAUZINA, A. L. P. Corpo negro caído no chão: o sistema penal e o projeto genocida do Estado brasileiro. Dissertação submetida à Universidade de Brasilia para obetenção do Título de Mestre em Direito. Brasília: Universidade de Brasília, 2006., p. 124) contra um debate aprofundado sobre a relação entre o Direito liberal e racismo, ou sobre as continuidades coloniais que sustentam as relações de poder, racialmente delimitadas, em nossa região.

Assim, inicio com uma reflexão sobre a tradição de negação do racismo na América Latina, com a apresentação do trabalho de Ariel Dulitzky que sistematiza as diferentes estratégias discursivas empregadas por estes países para negar o racismo até 2001. Na sequência, reflito sobre a tensão entre o debate do racismo e as múltiplas discriminações no discurso oficial dos países na construção da convenção interamericana contra discriminação, e sobre as contradições presentes nas propostas de inclusão de “novas vítimas”, que fazem o debate sobre racismo parecer ultrapassado. Por fim, se coloca como a análise do discurso oficial questiona o efeito “Durban” na tradição de negação do racismo na região.

2. Discursos sobre raça pré-Durban: uma região em negação

O discurso sobre racismo nos países da América Latina no período anterior à Declaração de Durban em 2001 era de negação, ainda sobre o forte argumento da “democracia racial”, a ser motivo de orgulho em relação a outras regiões da comunidade internacional. Como teoriza Lélia Gonzalez, “o racismo por denegação tem, na América Latina, um lugar privilegiado de expressão” (1988___, L. A categoria político-cultural de amefricanidade. Tempo Brasileiro, v. 92/93, n. jan/jun, p. 69–82, 1988.), por justamente atuar como ideologia e introjetar crenças e valores do Ocidente como universais, mas sobretudo por se legitimar em “teorias” de miscigenação que, para a autora, são de assimilação ou democracia racial.

“Uma região em negação” foi a conclusão de Ariel Dulitzky (2001)DULITZKY, A. E. A region in Denial: racial discrimination and racism in Latin America. Beyond Law, v. 8, n. December, p. 85–107, 2001. ao analisar uma série de relatórios de países para o Comité das Nações Unidas para a Eliminação da Discriminação Racial (CERD), onde ele aponta três tipos de negação do racismo, a partir do trabalho de Stanley Cohen, presentes na região: a “negação literal (nada aconteceu), a negação interpretativa (o que está acontecendo é realmente outra coisa) e a negação justificativa (o que está acontecendo é justificado)” (ibid., p. 87, tradução nossa). Considerando a relevância do estudo ao identificar os diversos mecanismos discursivos de negação do racismo na região até 2001, para uma análise sobre possíveis continuidades é pertinente apresentá-los em sua extensão.

Primeiramente, Dulitzky apresenta a negação literal que se encontra em respostas de países como Peru, México e Venezuela que negam diretamente a existência de discriminação racial ou que isso não é mais um problema. Ou ainda, recorrendo a um discurso legalista, defendem que a discriminação racial já é proibida por lei, ou que a raça foi rejeitada pelas normativas nacionais por não ser mais reconhecida como categoria jurídica válida. Em relação à negação interpretativa, o autor aponta como o empoderamento do ativismo e a construção de evidências de exclusão racial na região dificultaram a negação direta, por isso os discursos têm-se sofisticado. O autor classifica-os como eufemismo, legalismo, negação de responsabilidade ou incidentes isolados. O argumento eufemístico mais comum é o de que que as pessoas não discriminam populações negras ou indígenas por causa da raça, mas porque são pobres. Afirmando que o subdesenvolvimento de certos setores da população é um problema, e não o racismo, o argumento sustenta-se na reiteração de que “nossas sociedades aceitam prontamente explicações baseadas em disparidades econômicas” (2001, p. 92, tradução nossa). Como Dulitzky problematiza, essa justificativa falha em sua lógica, já que não explica a razão de a maioria das pessoas racializadas na região ser pobre em contraste com a população branca. Para ele, esse argumento reforça a ideologia da “democracia racial”, onde estaríamos todos “misturados”, sendo sociedades monolíticas mestiças e, portanto, livres de discriminação, uma vez que não poderíamos explicar disparidades entre grupos baseados em raça, mas sim baseados na desigualdade econômica.

Outro argumento da negação interpretativa é o legalismo, em que o uso de “linguagem legalista ou diplomática nega a existência de práticas discriminatórias” (Dulitzky, 2001DULITZKY, A. E. A region in Denial: racial discrimination and racism in Latin America. Beyond Law, v. 8, n. December, p. 85–107, 2001., p. 93, tradução nossa). O argumento aqui é afirmar que o país nunca teve leis discriminatórias que impusessem a segregação ou o apartheid. É um argumento muito recorrente, reafirmando uma certa inocência dos estados latino-americanos e o papel do Direito (Cf. Fitzpatrick, 1990FITZPATRICK, P. Racism and the Innocence of Law. In: GOLDBERG, D. T. (Ed.). Anatomy of Racism. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1990. p. 247–262.; Hernández, 2013HERNÁNDEZ, T. K. Racial Subordination in Latin America: the role of the State, Customary Law, and New Civil Rights Response. New York: Cambridge University Press, 2013.), na conformação de estados raciais, tendo como comparação eterna as situações dos Estados Unidos e da África do Sul como exemplos de racismo institucionalizado. O direito internacional exige mais do que suprimir leis discriminatórias. Para o combate ao racismo também se faz necessária a implementação de medidas especificamente dirigidas à satisfação das obrigações de respeito e garantia a fim de prevenir, punir e eliminar o racismo. Até 2001, poucos países da região tinham leis anti-discriminatórias além da cláusula constitucional geral, o que dificultava até mesmo queixas de vítimas de racismo. Ainda assim, o baixo número de denúncias também foi utilizado como argumento para justificar a negação (Dulitzky, 2001DULITZKY, A. E. A region in Denial: racial discrimination and racism in Latin America. Beyond Law, v. 8, n. December, p. 85–107, 2001.; Rodríguez Garavito; Días, 2015RODRÍGUEZ GARAVITO, C. A.; DÍAS, C. A. B. Reconocimiento con redistribuición: El derecho y la justicia étnico-racial en América Latina. Bogotá: Centro de Estudios de Derecho, Justicia y Sociedad, Dejusticia, 2015.). A negação da responsabilidade do Estado pela discriminação advém também fortemente do discurso de que o racismo está profundamente enraizado nas práticas sociais ou no comportamento individual e, portanto, o Estado não pode ser responsabilizado.

Por fim, justificar as práticas racistas como eventos isolados, negando “que tais atos sejam sistemáticos”, é outra narrativa decorrente na negação do racismo (Dulitzky, 2001DULITZKY, A. E. A region in Denial: racial discrimination and racism in Latin America. Beyond Law, v. 8, n. December, p. 85–107, 2001., p. 96). A negação justificativa, por sua vez, engloba a ideia de que “as vítimas não são vítimas de racismo”, seja pelo recurso à culpabilização da vítima pelo fato ou evento indicado ou negando sua própria existência. Este último argumento é devido à falta de dados estatísticos em toda a região que permite a simplificação, como sucede quando a Argentina argumenta que “não temos nenhum negro” por isso não somos racistas (Ibid., p. 97). O autor reconhece que as categorias raciais na América Latina não são de natureza dual, negra ou branca, mas que a cor da pele é um marcador social determinante, pois quanto mais escura for, menor a oportunidade econômica e social de que dispõe o seu portador. Dulitzky defende a perversidade do argumento da mestiçagem4 4 O debate sobre a relação entre mestiçagem, democracia racial e racismo foi amplamente tratado por diversos autores latinoamericanos (Cf. Gonzalez, 1984; Munanga, 1999; Nascimento, 1978; Schwarcz, 2007; Figueroa, 2010; De la Cadena, 2001). para uma luta política antirracista: “se somos todos mestiços, então não há distinções raciais e a mera discussão de questões raciais é vista por muitos como uma questão estrangeira ou não regional” (Ibid., p. 98, tradução nossa). Ele ainda remonta ao fato de que praticamente todos os países da região implementaram políticas oficiais de branqueamento da população com o objetivo de fazer diminuir o número de negros e indígenas, incentivando a miscigenação através da imigração de pessoas brancas para tal intento. Assim, o autor conclui que o argumento da mestiçagem não somente invisibiliza negros e indígenas, mas também se apresenta como um forte argumento de negação, como uma “prova” concreta de que o racismo não existe.

O estudo de Dulitzky é publicado quando a negação do racismo era o discurso oficial da maior parte dos países da região. Após Durban e, particularmente, após a conferência preparatória de Santiago do Chile, onde a mobilização social foi de tal ordem que dificultou tentativas de apagamento ou silenciamento5 5 Diversos estudos já abordaram o que significou a Conferência de Durban e o papel da região em seus resultados, indicando-a como um ponto de virada de paradigma na luta antirracista (Carneiro, 2002; Hernández, 2013; Lao-Montes, 2010; Noles Cotito, 2016; Pereira, 2008; Thomaz e Nascimento, 2003; Trapp, 2014). O próprio Dulitzky, em um posfácio ao seu texto, vê com otimismo a enorme mobilização social em torno dos debates pré-Durban, mencionando o encontro da sociedade civil com mais de 1700 pessoas em Santiago. O autor aponta como um sucesso da Conferência em Durban o fato de os Estados latino-americanos não terem recuado do acordo de Santiago, e de a região ter, a partir daí, iniciado uma negociação para uma convenção regional. , o combate ao racismo entra na agenda regional, levando ao processo de elaboração de uma convenção própria no âmbito da Organização dos Estados Americanos (OEA). Durban introduz elementos paradigmáticos para o direito internacional sobre o tema que devem (ou deveriam) impactar sobre como se articulam os discursos sobre o racismo na região, pois proclama a escravidão e o tráfico de escravizados como crime contra a humanidade e, ainda, reconhece o papel histórico do colonialismo como causa da persistência do racismo na atualidade.6 6 Sobre as causas do racismo contemporâneo a Declaração de Durban afirma: “13. Reconhecemos que a escravidão e o tráfico escravo, incluindo o tráfico de escravos transatlântico, foram tragédias terríveis na história da humanidade, não apenas por sua barbárie abominável, mas também em termos de sua magnitude, natureza de organização e, especialmente, pela negação da essência das vítimas; ainda reconhecemos que a escravidão e o tráfico escravo são crimes contra a humanidade e assim devem sempre ser considerados, especialmente o tráfico de escravos transatlântico, estando entre as maiores manifestações e fontes de racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância correlata; e que os Africanos e afrodescendentes, Asiáticos e povos de origem asiática, bem como os povos indígenas foram e continuam a ser vítimas destes atos e de suas consequências. 14. Reconhecemos que o colonialismo levou ao racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância correlata, e que os Africanos e afrodescendentes, os povos de origem asiática e os povos indígenas foram vítimas do colonialismo e continuam a ser vítimas de suas consequências. Reconhecemos o sofrimento causado pelo colonialismo e afirmamos que, onde e quando quer que tenham ocorrido, devem ser condenados e sua recorrência prevenida. Ainda lamentamos que os efeitos e a persistência dessas estruturas e práticas estejam entre os fatores que contribuem para a continuidade das desigualdades sociais e econômicas em muitas partes do mundo ainda hoje;” (A/CONF.189/12, grifo nosso).

Apesar da relevância dos debates realizados em Santiago, com reflexo na posição dos países latino-americanos em Durban7 7 Sobre o papel dos países latino-americanos, em especial o protagonismo do Brasil, ver mais em (Carneiro, 2001; Silva, 2008; Thomaz e Nascimento, 2003; Trapp, 2014). , importa saber qual foi o impacto no discurso oficial dos Estados sobre o racismo na região a partir de seu posicionamento nos debates que se seguiram, para a elaboração da convenção regional. É relevante mencionar que, apesar da ‘Convenção Interamericana Contra o Racismo, a Discriminação Racial e as Formas Correlatas de Intolerância’ ter sido adotada em 2013 (vigência em 2017), somente três países a ratificaram até esta data8 8 As assinaturas da convenção somam doze, contudo somente três países já ratificaram, conforme informação do sítio eletrônico da OEA, disponível em http://www.oas.org/en/sla/dil/inter_american_treaties_A-68_racism_signatories.asp, acesso em 07.01.2019. . Assim, analisarei as contribuições dos países para o Grupo de Trabalho para a elaboração do projeto da convenção, formado por México, Argentina, Brasil, Peru, Chile, Colômbia e Canadá. Pelo escopo do trabalho, o enfoque é somente para os documentos produzidos e disponíveis, de forma a acessar o discurso oficial. Com essa escolha, estou ciente de que seu conteúdo não permite transmitir a riqueza dos debates ao longo de todos esses anos, em especial no tocante à incidência da sociedade civil, que permitiu que os resultados fossem a criação de uma convenção com foco restrito sobre o racismo. O objetivo é o de avaliar se as formas de negação identificadas por Dulitzky permanecem no discurso dos países que conduzem a negociação e, ainda, identificar outras formas de evasão do enfretamento direto ao racismo que surgiram em um momento em que, supostamente, a negação direta já não seria possível.

3. Entre ‘as velhas’ e ‘as novas’ formas de discriminação ao perigo das hierarquias

Os debates durante a elaboração da convenção interamericana mostraram dificuldades várias a partir do momento em que diversos países iniciaram uma defesa de um escopo alargado para o instrumento, que pudesse incluir todas as formas de discriminação existentes e que um dia venham a existir. Quando saiu o rascunho consolidado do texto em 20089 9 Referência ao rascunho elaborado pelo Instituto Interamericano de Direitos Humanos, conforme informação disponível no sítio eletrônico da Organização dos Estados Americanos <http://www.oas.org/consejo/CAJP/RACISM.asp#Docs%20INF>, acesso em 09.01.2019. , a proposta já contemplava 28 diferentes formas de discriminação, cuja causa e, necessariamente, as medidas e políticas para seu enfretamento, seriam dificilmente relacionadas. Conforme documentos elaborados pela Clínica de Direitos Humanos da Universidade do Texas e pelo Observatório de Discriminação Racial da Universidade dos Andes para incidirem no processo, a decisão de expandir o escopo da convenção para além da discriminação racial levaria a diluição do tema, uma vez que identificar elementos comuns às diferentes 28 formas de discriminação levariam o texto a ter que se ater ao “mínimo denominador comum” (Kamienska-hodge e Lajzer, 2009KAMIENSKA-HODGE, K.; LAJZER, J. Inter-American convention against racism and all forms of discrimination and intolerance position paper no. 1 the need for a narrow-focused inter- American convention against racial discrimination. Austin and Carrera: [s.n.]., p. 6). Argumentam, ainda, que a opção pelas múltiplas discriminações provocaria uma dificuldade concreta na elaboração de medidas e ações para a aplicação da convenção pelos países, além de que a metodologia do próprio sistema regional tem sido a de elaborar convenções com foco restrito, dando o exemplo das convenções sobre mulheres e pessoas com deficiência.10 10 A Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará) elaborada em 1994 já traz a interseccionalidade entre múltiplas formas de discriminação para visibilizar a situação das mulheres negras, por exemplo. Similarmente a Convenção Interamericana para Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra Pessoas com Deficiência, de 1999, permite uma atuação adequada aos causas e estruturas geradoras das diversas formas de violência vivenciadas por esse grupo. Por fim, seria desprovido de sentido ou coerência que uma convenção para a região retrocedesse ao que foi pactuado em Santiago durante a Conferência Regional em 2000, que reconheceu que o racismo nas Américas é fruto de um processo histórico de colonização e escravização de milhões de pessoas. Pois esse é, certamente, o ponto central que parece difícil encontrar ressonância no discurso diplomático.

A partir desse debate, que foi a causa primordial do impasse dos quase dez anos de negociação sobre o texto da convenção,11 11 Em 2010, ao confirmar o mandato do grupo de trabalho para as negociações para a convenção, Antígua e Barbuda se posiciona em contrário, com o argumento de que o rumo das negociações mostrava-se inócuo e que necessitava criar dois instrumentos distintos: “Desde que fue instalado este Grupo de Trabajo, los Estados Miembros no han podido llegar a un consenso sobre el alcance de este instrumento, y en consecuencia las negociaciones se encuentran en un punto muerto. Aunque sigue estando comprometida con la erradicación del racismo y toda forma de discriminación e intolerancia en las Américas, Antigua y Barbuda ya no considera que un solo instrumento sea práctico. Por lo tanto, Antigua y Barbuda estima ahora que los Estados Miembros deberían completar una Convención Interamericana contra el Racismo y uno o más Protocolos Facultativos sobre Todas las Formas de Discriminación e Intolerancia”. (AG/RES. 2606 (XL-O/10)). percebe-se que as formas de evasão do racismo deram-se nos seguintes argumentos centrais: a) múltiplas discriminações, a nova convenção deveria ser capaz de acompanhar essa “evolução da sociedade”; b) as “novas” vítimas, pois nem tudo é sobre raça; c) a persistência de pessoas racistas, precisamos educá-las; d) a “novidade”, trazida pelas novas tecnologias e o discurso de ódio. Apesar dos documentos analisados serem todos de 2005 ou 2006 e do resultado final não refletir exatamente os debates aqui enfocados – o processo levou à criação de duas convenções distintas –, o objetivo da análise é perceber o impacto da Declaração de Durban na narrativa oficial sobre racismo dos países latino-americanos num período imediatamente posterior à conferência mundial, ou seja: discutir as continuidades do “regime de negação”, como explicitado no tópico anterior.

As múltiplas discriminações

Para aqueles que defendem a necessidade de um instrumento vinculante para a região, um dos argumentos centrais se sustenta na progressividade dos direitos humanos e, assim, na necessidade de adaptação normativa às mudanças próprias das sociedades. Neste sentido, uma nova convenção somente se justificaria se viesse a incluir formas contemporâneas de discriminação não previstas na convenção de 1965. Neste argumento, dá-se ênfase a uma longa lista de discriminações, fazendo com que o debate sobre raça pareça desatualizado ou descontextualizado. O Estado Colombiano indica diretamente que “a luta contra a discriminação é integral e não se limita a questões de raça” (Colômbia, CAJP/GT/RDI-4/05 add.6_____CAJP/GT/RDI-4/05 add.6. Contribuciones preliminares de los Estados Miembros para el futuro trabajo de la elaboración de un Proyecto de Convención Interamericana Contra el Racismo y Toda Forma de Discriminación e Intolerancia: Colombia. 13/02/2006.. p. 4, tradução nossa). O Canadá alerta, inclusive, sobre o perigo de criar hierarquias sobre o que se entende ser o caráter múltiplo ou interseccional da discriminação “ao abordar a discriminação interseccional e múltipla, o que deve ser evitado é a tendência para criar hierarquias de formas de discriminação” (Canadá, CAJP/GT/RDI-4/05 add. 7, p. 4, tradução nossa). O Brasil, por sua vez, argumenta que as formas de discriminação evoluem, pois “respondem ao desenvolvimento e expansão da vontade política das sociedades” (Brasil, CAJP/GT/RDI-4/05 add.3_____CAJP/GT/RDI-4/05 add.3. Contribuciones preliminares de los Estados Miembros para el futuro trabajo de la elaboración de un Proyecto de Convención Interamericana Contra el Racismo y Toda Forma de Discriminación e Intolerancia: Brasil. 14/12/2005., p. 3), essencializando como próprio dos processos sociais a “evolução natural” das múltiplas discriminações perante às quais o Estado deve estar atento e “atualizar” seus comandos anti-discriminação. No caso do México, por exemplo, a lista de discriminações apresentada em seu documento nem sequer contempla a raça como uma de suas causas, mantendo somente a referência à etnia (México, CAJP/GT/RDI-4/05 add.1) e, ainda, o caso do Peru que, à época12 12 O Censo nacional de 2017 no Peru introduz, após 70 anos, uma questão sobre autoidentificação “étnica”, superando a limitação imposta pela impossibilidade de “diferenciação da população”. Fato que só acontece após grande pressão dos movimentos sociais e algumas recomendações do CERD ao relatório do país. (Cotito, 2017) , considerava que incluir informações étnico-raciais nas pesquisas censitárias que pudessem diferenciar as populações implicava um atentado contra a não-discriminação (Peru, CAJP/GT/RDI-4/05 add. 4).

O debate das múltiplas discriminações é, certamente, perigoso, mas não exatamente pelos motivos apontados pelo Estado do Canadá. O “racismo sem raça”, uma tendência nos debates a partir da Europa e que tem levado à retirada da palavra “raça” dos textos jurídicos ou que proíbem a recolha de dados raciais 13 13 Uma tendência no debate sobre o racismo em países europeus é a retirada da palavra raça dos textos jurídicos, ver mais em Cf. Lentin, 2017. Por outro lado, a cláusula geral de isonomia formal é interpretada como proibitiva de categorização da população por raça, o que gera a não produção de dados estatísticos desagregados (Timo Makkonen, 2016) fomentando invisibilizações sobre a situação de europeus negros ou ciganos, por exemplo. , ao mesmo tempo em que reforça uma ideia biológica associada ao termo, nega seu conteúdo político. Como provoca Maeso, refletindo sobre o contexto europeu, a negação da raça não irá acabar com o racismo, “pois raça não é um conceito para descrever identidades, mas uma técnica de governamentalidade que desqualifica a projeção política de pessoas não brancas, ou seja, racialização como deshumanização” (2018, p. 18, tradução nossa). Esse debate também coloca o racismo como um fenômeno a-histórico que, mais uma vez, reforça o silenciamento e o apagamento daquilo que em Durban foi reconhecido como crime contra a humanidade. Se olharmos por uma ótica meramente jurídica, o reconhecimento de um fato como uma grave violação de direitos humanos leva ao debate sobre reparações, o que é uma disputa muito diferente daquela travada no âmbito da obrigação negativa contida em “não discriminar”. Reivindicar reparações obriga a olhar para o fato/processo a fim de descrever e nomear a violência, reconhecer a expropriação e a espoliação, suas consequências e danos, fazer cessar as causas e adotar medidas para compensar.14 14 Para o direito internacional, a Resolução A/ RES/ 60/147, de 2005, delineia as diretrizes e os princípios para o “Direito de Reparação e Reparação de Vítimas de Violações Graves do Direito Internacional dos Direitos Humanos”. Como medida eficaz de reparação deve atender a cinco princípios: “restituição, compensação, reabilitação, satisfação e garantias de não repetição” (§ 18).

A posição do Brasil tem uma particularidade, ela nem sequer menciona os acordos e avanços da III Conferência Mundial em Durban ou da Conferência Regional das Américas, em contraste com os demais membros do grupo de trabalho. Ao contrário, sustenta o caráter inovador da Convenção Internacional de 1965 e, dessa forma, que o instrumento regional deveria reafirmar a “arquitetura legal consagrada a nível internacional” (Brasil, CAJP/GT/RDI-4/05 add.3, p. 1). E é somente sob esse argumento, da perversidade com que os atos de racismo, discriminação e intolerância mostram uma “extraordinária capacidade de renovação”, que justifica uma futura convenção para abarcar um universo amplo de manifestações de discriminação e intolerância. Uma argumentação próxima àquela feita pelo Canadá15 15 Os Estados Unidos também eram fortes opositores a convenção regional, como deixaram registrado em Assembleia Geral AG/RES. 2126 (XXXV-O/05) que aprovou a criação do grupo de trabalho. O Canadá retira-se formalmente das negociações em 2011 (AG/RES. 2677 (XLI-O/11)). que, diferentemente do Brasil, manifestou-se pela desnecessidade da criação de um novo instrumento, uma vez que os Estados deveriam implementar as obrigações existentes e, no máximo, poderia haver um instrumento de cooperação não vinculante para troca de experiências sobre “melhores práticas” em matéria de anti-discriminação.

As “novas vítimas” de “outras discriminações”

Por outro lado, a ênfase em “outras formas de discriminação” com a necessidade de nomear “novas vítimas” tais como o documento do Estado Colombiano (CAJP/GT/RDI-4/05 add.6), cuja lista inclui as pessoas vítimas de deslocamentos forçados e migrantes, acabam por esvaziar a relação entre o racismo estrutural e a forma com que certos fenômenos afetam diferentemente os vários grupos sociais. Ou seja, no caso dos deslocamentos forçados ou mesmo da imigração, a discriminação sofrida por estes grupos não pode ser analisada de forma isolada. Como o próprio documento da Colômbia deixa revelar, a condição dos grupos é agravada por “preconceitos culturais que dificultam a integração dos deslocados” (p. 4, tradução nossa), e o mesmo é mencionado no caso de migrantes. Ora, devemos problematizar o que se entende por “preconceitos culturais” ou mesmo o argumento subentendido na necessidade de “integração” dessas pessoas proposta no documento.

Apesar de todos serem tratados como desplazados, como um fenômeno nacional que atinge a população indiscriminadamente, os dados indicam que as comunidades negras do Pacífico, por exemplo, foram desproporcionalmente afetados (Espinosa Bonilla, 2014ESPINOSA BONILLA, A. Frames y Prácticas Discursivas entre Estado y poblaciones negras en Colombia: Racismo Estructural y Derechos Humanos. Universitas Humanística, v. 78, n. 78, p. 307–330, 2014.), com o esvaziamentos de regiões inteiras.16 16 Como explica Bonilla, o fenômeno frente aos afrocolombianos, particularmente, é visto por alguns autores como “uma geopolitica da guerra que está afetando de maneira significativa às comunidades afrocolombianas que, no marco da estratégia de desterritorialização, se tem visto obrigadas a abandonar seu projeto político alternativo de autonomia.” (2014, p. 313, tradução nossa) Santiago Quiñonez ainda denuncia o que chama de “fabricação categorial” ou o uso de termos como desplazado ou refugiado como etiquetas que “descrevem o itinerário dos despossuídos, reeditando o ocultamento racista e escamoteando as causas que o subjazem” (Quiñonez, 2016QUIÑONEZ, S. A. Plan Colombia : descivilización, genocidio, etnocidio y destierro afrocolombiano. Nómadas 45, n. octubre, p. 75–90, 2016., tradução nossa), quando ao abordar os conflitos negligenciam a exclusão histórica de indígenas e negros na Colômbia. Assim, afirma o autor, que a “racialização territorial do conflito armado, a base material do mesmo, é apresentada sem sua sedimentação sócio-histórica” (ibid., p. 80). Podemos, ainda, citar o caso do Peru, onde o relatório da Comissão da Verdade publicado em 2004, que contemplou o período de grave violência interna no país, apontou o racismo como uma das causas para o elevado número de comunidades afetadas, por mortes ou deslocamentos forçados, concentrarem-se nos povos indígenas.17 17 O relatório da Comissão Nacional Verdade e Reconciliação reconhece a relação entre o elevado número de assassinatos de indígenas com o racismo, com um capítulo inteiro sobre “Violência e Desigualdade Racial y Étnica” (Cf. Comissão da Verdade e Reconciliação – CVR, 2004).

Ainda no documento do Estado Colombiano, a “integração”18 18 Já nos anos 80 Anibal Quijano problematiza a ideia de integração que perpassou o debate Latino-americano. Como pontua: “Algunas décadas atrás, en los países andinos de América Latina llegó a ser un tópico el reclamo de ‘integración de los indios en la cultura nacional’ sin que nadie se preguntara si esa ‘cultura nacional’ era apta para ello, o si la cultura de los indios debía también ser integrada en aquélla. Hoy, de modo equivalente, aunque para una esfera distinta de problemas, muchos postulan la ‘integración de los marginados en la sociedad’ sin detenerse mucho a inquirir si el carácter de la sociedad lo permite” (2014, p. 686). é compreendida como uma ação para “assegurar o desenvolvimento econômico e social de tais sujeitos, preservando suas tradições e características culturais” (CAJP/GT/RDI-4/05 add.6, p. 2, tradução nossa), que deve ser o limite da responsabilidade do Estado no tocante às ações afirmativas. Ora, essa narrativa deixa evidente que a preocupação do Estado com “preconceitos culturais” contém uma tentativa de esvaziar o debate do racismo ao nomeá-las como “outras vítimas” de discriminações que são distintas e desconectadas à ideia de racismo. Por outro lado, a partir do momento em que se utiliza a narrativa da “integração”, assume-se que há uma “normalidade” ao qual o desplazado ou migrante deve se integrar que, por sua vez, corresponde a uma “cultura” não passível de gerar preconceito. Nessa narrativa, a diferenciação como negativa, elemento central ao próprio conceito de racismo, é mantida incontestada, reproduzindo a racionalidade do Estado colonial moderno (Cf. Walsh, 2012WALSH, C. El Pluralismo Jurídico: el desafío de la Interculturalidad. Revista Nueva América, n. 133, p. 32–37, 2012.). Ademais, nomeando como “novas vítimas”, o Estado afasta sua responsabilidade e de suas instituições, pois são quem (re)produz o “padrão de normalidade” (Cf. Fitzpatrick, 1990FITZPATRICK, P. Racism and the Innocence of Law. In: GOLDBERG, D. T. (Ed.). Anatomy of Racism. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1990. p. 247–262.) que estrutura o próprio racismo.

Outro foco do debate de “outras vítimas” foi referente à necessidade de incluir as discriminações decorrentes de posição social ou classe econômica. Como no argumento do Estado Argentino, que apresenta como sendo três os grandes eixos causais da discriminação “o racismo, a pobreza e a exclusão social e os modos como se estabelece e reformula a relação entre o Estado e a sociedade” (CAJP/GT/RDI-4/05 add.2, p. 5, tradução nossa). No caso da Colômbia, essa discriminação deveria ser conceituada, para abarcar “determinados motivos como […] a origem nacional ou social, a posição econômica ou qualquer outra condição social” (CAJP/GT/RDI-4/05 add.6, p. 16, tradução nossa). Sem desconsiderar que a questão da pobreza pode levar à discriminação, fato é que no contexto latino-americano nomear as “pessoas na pobreza” como “outras vítimas” – pois afinal, nem tudo é sobre raça –, é um argumento perverso e, certamente, de apagamento sobre a relação entre racismo e pobreza. O argumento, contudo, é consistente com o discurso de que a pobreza é o grande problema da região e não o racismo, como diz o Peru a “América Latina é um continente no qual prima a mestiçagem” (Peru, CAJP/GT/RDI-4/05 add.4_____CAJP/GT/RDI-4/05 add.4. Contribuciones preliminares de los Estados Miembros para el futuro trabajo de la elaboración de un Proyecto de Convención Interamericana Contra el Racismo y Toda Forma de Discriminación e Intolerancia: Peru. 21/12/2005.). Aqui vemos a presença do discurso da mestiçagem para suavizar ou amortecer a forma como olhamos para o racismo, ou seja, se somos todos mestiços - “racialmente homogêneos” -, a desigualdade que se apresenta é de cunho econômico.

Finalmente, cabe somente pontuar o esforço feito pelo Brasil para incluir o que para o país consistem em “novas formas de discriminação”. Em sua contribuição propõe que “a nova convenção deve incorporar pelo menos quatro outros fundamentos ou condições de discriminação presentes no Hemisfério: características genéticas, orientação sexual, condição infecciosa contagiosa estigmatizada, deficiência e transtorno mental incapacitante” (Brasil, CAJP/GT/RDI-4/05 add.3, p. 2). Embora a indicação de características genéticas e os riscos relacionados não parece remeter ao debate biológico sobre raça, a menção à Declaração Universal da Unesco sobre o Genoma Humano e os Direitos Humanos tornou ambígua a intenção. Ou seja, a menção refere-se aos riscos de discriminação das pessoas porque elas possuem um gene em particular ou porque a informação genética pode levar novamente a abrir o debate biológico sobre raça? Ambas as avaliações estão presentes na referida Declaração da Unesco.19 19 O art. 6º da referida Declaração diz “Nenhuma pessoa será sujeita a discriminação com base nas características genéticas que tenha como objetivo ou como efeito atentar contra os direitos humanos, as liberdades fundamentais e a dignidade humana”. Em seu preâmbulo a Declaração rejeita “qualquer dogma de desigualdade das raças e dos homens”. Um longo debate se travou sobre essas quatro indicações, que não vem ao caso detalhar aqui. Entretanto, essas indicações permaneceram no texto da convenção ampla sobre todas as formas de discriminação.

O Estado educador: vamos corrigir o sujeito racista

A manifestação do Estado Argentino é aquela que mais apela para uma relação entre os acordos feitos na Conferência de Santiago e na Conferência de Durban, em especial para o plano de ação, como acordos balizadores para o instrumento regional vinculante. Todavia, advoga também para um enfoque amplo para a convenção dando como exemplo de “boas práticas” seu próprio Plano Nacional contra a Discriminação, que teve como metodologia a atenção para “os problemas que fazem com que certos grupos sociais se inclinem a realizar práticas discriminatórias e não nos grupos que são usualmente discriminados” (Argentina, CAJP/GT/RDI-4/05 add.2, p. 5, tradução e grifo da autora). Assim, apesar de resgatar os debates de Durban, o documento invisibiliza o debate sobre racismo institucional, ao querer compreender porque certos grupos se inclinam a práticas discriminatórias, como se, mais uma vez, a prática do racismo adviesse de pessoas racistas ou de grupos que sustentam ideologias racistas e não de práticas cotidianas e de estruturas sociais das quais o Estado é um ator central (Cf. Maeso, 2018). Neste sentido, a manifestação do Estado Brasileiro sobre os mecanismos de supervisão da convenção também leva a crer que suas análises partem da mesma premissa, com o enfoque individualizado na relação entre vítima e agressor. Segundo o informe do país, a convenção regional deveria seguir o enfoque da convenção sobre tortura e “consagrar o princípio da responsabilidade individual pela prática do crime de racismo, discriminação e intolerância” e, por conseguinte, fortalecendo o sistema cível e/ou privado, que é historicamente inacessível (ou incompatível) com os povos racializados (Flauzina, 2006FLAUZINA, A. L. P. Corpo negro caído no chão: o sistema penal e o projeto genocida do Estado brasileiro. Dissertação submetida à Universidade de Brasilia para obetenção do Título de Mestre em Direito. Brasília: Universidade de Brasília, 2006.).

A limitação do racismo a um padrão de comportamento do ‘sujeito racista’ é um discurso reiterado nas propostas de “medidas de combate ao racismo” na temática da educação. A educação é vista como central para o combate ao racismo que está “ancorado nos padrões culturais das nossas sociedades” (Peru, CAJP/GT/RDI-4/05 add. 4, p. 1). É, sobretudo, solução para combater às práticas racistas existentes na administração pública, uma vez ser necessário “educar” os servidores públicos com vistas a “remover padrões de preconceitos e estereótipos” (Chile, CAJP/GT/RDI-4/05 add.5_____CAJP/GT/RDI-4/05 add.5. Contribuciones preliminares de los Estados Miembros para el futuro trabajo de la elaboración de un Proyecto de Convención Interamericana Contra el Racismo y Toda Forma de Discriminación e Intolerancia: Chile. 24/01/2006., p. 2), ou sensibilizá-los com “a finalidade de eliminar preconceitos e estereótipos raciais negativos” (Peru, CAJP/GT/RDI-4/05 add. 4, p. 1). O foco em “preconceitos” reforça, uma vez mais, a ideia de que há discriminação porque as pessoas não conhecem devidamente o “outro” e, assim, reproduzem falsos estereótipos. Neste discurso o Estado não é racista, mas as pessoas que trabalham para o Estado podem reproduzir padrões racistas, próprios das sociedades. É uma narrativa que individualiza a responsabilidade do racismo para o “sujeito racista” (Maeso, 2015MAESO, S. R. ‘Civilising’ the Roma? The depoliticisation of (anti-)racism within the politics of integration. Identities: Global Studies in Culture and Power, v. 22, n. 1, p. 53–70, 2015.) que precisa ser educado, sendo que a resposta encontra-se em conhecer os direitos humanos.20 20 O Peru propõe que o foco na educação seja para promover uma “educação em direitos humanos” (Peru, CAJP/GT/RDI-4/05 add. 4, p. 1). Afinal, como já mencionado, o percurso evolutivo rumo à civilização perpassa por incorporar os valores universais dos direitos humanos.

O documento do Estado Brasileiro propõe nomear as medidas consideradas discriminatórias incluindo a “elaboração e implementação de conteúdos, métodos ou instrumentos pedagógicos que reproduzam estereótipos ou preconceitos” (Brasil, CAJP/GT/RDI-4/05 add.3, p. 5). Mesmo considerando que a proposta tem relevância, pois pontua que os próprios materiais didáticos utilizados nas escolas podem reproduzir situações de diferenciação negativa entre grupos, essa reflexão pautada em “preconceitos” dificulta uma reflexão sobre a construção do conhecimento colonizado e o apagamento e/ou silenciamento de outras formas de saber/ser existentes no continente que, por basearem-se num universalismo do “ser humano” (cultura ‘normal’ = ocidental), fomentam as hierarquias do conhecimento que ditam o que está ausente ou o que não é reconhecido como válido pelo Estado.

A propósito das ausências quanto ao tema da educação, é pertinente mencionar a questão do “plurilinguismo” como causa de exclusão social e discriminação, como evocado pelo Peru, “nos países nos quais existe uma variedade de línguas, apresenta-se com frequência uma situação de grave exclusão para aqueles que não falam o idioma dominante” (Peru, CAJP/GT/RDI-4/05 add. 4, p. 2). A exclusão aqui apontada tem uma causa histórica já conhecida e, neste sentido, apresentá-lo como um problema a-histórico demonstra que o Estado se distancia em combater tais práticas racistas; afinal, enquanto o Estado reconhece um “idioma oficial”, ele nega os demais, que estão colocados em posição hierarquicamente inferior, como “não-oficiais” em âmbito político nacional.21 21 Como a manifestação dos Estados analisada aqui data de 2005 e 2006, algumas condições de políticas e práticas sofreram alterações nos últimos anos. No caso do Peru há um esforço em mapear as línguas reconhecidas como originárias para promoção de uma educação bilíngue, além do reconhecimento como idiomas oficiais de forma localizada. A Ley n. 29.735 de 2011 regula “el uso, preservación, desarrollo, recuperación, fomento y difusión de lenguas originarias del Perú” e reconhece, em seu art. 9º, como idiomas oficiais as línguas orginárias que são predominantes nos distritos, províncias e regiões. Assim, através do chamado mapa “etnolinguístico”, a oficialidade de idiomas originais é reconhecida regionalmente, tendo ali as pessoas o direito de usar sua língua em âmbito público e privado. O que não signifca que o Estado, representado por seus poderes e instituições nacionais, tenha a obrigação de reconhecer os demais idiomas falados no país como oficiais. Ademais, o reconhecimento se faz no âmbito do “patrimônio cultural imaterial”, tendo a etnicização dos povos e suas culturas o condão de esvaziar o debate político (Walsh, 2012) sobre o uso de tais línguas em qualquer âmbito da vida pública, seja em Lima ou em Cuzco. A manutenção acrítica da ficção colonial do Estado nacional que contém uma língua dominante, demonstra que não se pretende reconhecer o racismo contido nessa “exclusão” do plurilinguismo, que estrutura a manutenção das hierarquias de poder.

O próprio conceito de racismo que ficou no texto final da convenção como sendo uma “teoria, doutrina, ideologia ou conjunto de ideias” (art. 1, 4), mostra-se problemático para compreender as diversas formas com que o Estado (moderno-colonial-racista) racializa através de suas práticas cotidianas. O conceito de racismo debatido no documento consolidado em 2009 incluía sua dimensão estrutural e não tinha referência a ideologias de supremacia racial. Parte do conceito ali proposto incluía o racismo estrutural, como “um sistema no qual políticas públicas, práticas institucionais, representações culturais e outras normas em geral reforçam a desigualdade entre grupos raciais distintos” (CAJP/GT/RDI-57/07 rev. 11, p. 9, tradução nossa). O conceito finalmente aprovado vem a partir da sugestão de alteração do Estado Brasileiro – uma posição mediadora diante de outras que queriam retirar o conceito –, mas que foca na ideia de racismo enquanto doutrina e não traz sua dimensão estrutural. Opta-se pelo uso do conceito de “discriminação racial indireta” (art. 1, 2) para contemplar práticas a partir do Estado (ou da esfera da vida pública) que podem “acarretar desvantagem particular”.

As formas contemporâneas de discriminação e as silentes continuidades

“Além das tradicionais manifestações de discriminação já contempladas em instrumentos internacionais, considera-se que a Convenção regional deve incluir manifestações contemporâneas de discriminação” (México, CAJP/GT/RDI-4/05 add.1_____CAJP/GT/RDI-4/05 add.1. Contribuciones preliminares de los Estados Miembros para el futuro trabajo de la elaboración de un Proyecto de Convención Interamericana Contra el Racismo y Toda Forma de Discriminación e Intolerancia: México. 16/11/2005., tradução nossa). Essa manifestação do Estado Mexicano resume um pouco o que permeou o debate, ou seja, temos formas “tradicionais” de discriminação que, ao que parece, não merecem muita atenção pois já se encontram contempladas em instrumentos internacionais, e as formas contemporâneas, cuja “novidade” foi muito reforçada pela forma como se apresentam. Afinal são condutas praticadas mediante sistemas informáticos ou de comunicação pela internet, incluindo o delito de ódio (hate crime). Como propõe o Estado Colombiano, “é necessário reconhecer que as telecomunicações e o amplo acesso à tecnologia informática têm contribuído para a disseminação de doutrinas de superioridade, de apologia ao ódio, atividades de limpeza social e/ou étnica e para manter os estereótipos tradicionais de marginalização” (Colômbia, CAJP/GT/RDI-4/05 add.6, p. 11). Por mais que o mundo virtual ainda se apresente como um desafio à regulamentação e, sem dúvida, tem servido como meio catalisador de ódio, continua a ser somente um “meio” para uma prática que, em si, não contém novidade alguma.

Segundo o argumento do Estado Brasileiro, é necessário diferenciar o crime de ódio de outros tipos de crime que se acometam contra certos grupos. Assim, em propondo tal distinção, afirma que

o que distingue o crime de ódio não é o crime em si, senão o animus racial, étnico, religioso, de gênero ou orientação sexual, entre outros, que catalisam suas práticas. Ainda que em geral se dirija contra um indivíduo específico, escolhido frequentemente de forma aleatória, os crimes de ódio estão motivados pelo ódio contra um grupo de pessoas que compartem determinadas características. (Brasil, CAJP/GT/RDI-4/05 add.3, p. 8, tradução e grifo nosso).

O próprio uso do conceito de “ódio” para qualificar a prática reforça a individualização do ato como praticado por “indivíduos patologizados”, como problematiza Barbara Perry (2003)PERRY, B. Where do we go from here? Researching hate crime. Internet Journal of Criminology, p. 1–59, 2003.. Ainda segundo a autora, o ódio apresenta-se como um nexo explicativo da prática delitiva associada a um comportamento codificado por um modelo psicológico. Modelo este que é coerente com a narrativa que relaciona racismo com doutrinas de superioridade racial, reforçando o foco nos “grupos violentos”, em vez de compreender que práticas institucionalizadas podem ser tanto ou mais violentas para os grupos em questão.

A própria definição proposta pelo Estado Brasileiro, quando destaca o elemento do animus, nos remonta à prova de intencionalidade tão arraigada nos debates jurídicos sobre a prática do racismo. Por mais que esse “ódio” seja também direcionado a mulheres e à comunidade LGBTI, aqui temos, mais uma vez, condições estruturais que inferiorizam pessoas e não comportamentos patológicos de “certas pessoas” que são os racistas, os homofóbicos, os misóginos22 22 Como assinala Perry, a argumentação em torno da especificidade do delito de ódio por sua “motivação” acaba por colocar o comportamento como anormal às sociedades ocidentais, e não em relações de poder específicas, que “nos permite reconhecer que a violência motivada por preconceitos não é ‘anormal’ ou ‘anômala’ em muitas culturas ocidentais, mas sim uma extensão natural do racismo, o sexismo e a homofobia que normalmente distribui o privilégio ao longo das linhas raciais e de gênero.” (2003, p.8). . Ture e Hamilton (1992TURE, K.; HAMILTON, C. V. Black power: the politics of liberation in America. New York: Vintage Books, 1992., p. 5), quando cunharam o termo “racismo institucional” ainda em 1967, estavam preocupados exatamente com o tipo de comportamento que levava a muitos “cidadãos de bem” a condenarem o racismo quando se manifestava abertamente em violência individual, mas que continuavam a apoiar instituições e políticas que perpetuavam práticas racistas.

Não pretendo aqui minimizar o debate em torno dos delitos de ódio, que é certamente um debate de vários contornos23 23 O debate no âmbito jurídico resvala sobretudo sobre a tensão entre liberdade de expressão e a tipificação do discurso de ódio, com grande ênfase no mundo virtual, mas não somente. Mais sobre o tema ver também Ely Aaronson (2014), Jon Garland and Neil Chakraborti (2014), Carlo José Napolitano e Tatiana Stroppa (2017). . Entretanto o que se problematiza é que quando o liame escolhido para ênfase delitiva é o “ódio” e não necessariamente os processos históricos e as práticas institucionalizadas que o fomentam, os efeitos podem conter uma dimensão paliativa ou até mesmo distorcida. Como Perry coloca “crime - hate crime incluído - é relativo. É histórica e culturalmente contingente” (2003, p. 7, tradução nossa). Assim, a pergunta que se coloca é o que há de novidade nos chamados hate crimes no tocante a seu fundamento, ou mesmo nas práticas que ocorrem fora do mundo virtual. Por mais que haja uma atualização sobre os diferentes mecanismos empregados, sua pretensa atualidade auxilia em esvaziar o enfrentamento de suas causas. Ademais, é a narrativa das múltiplas discriminações que leva o debate para o âmbito interpessoal, individualizando vítima e agressor, evadindo do enfrentamento às raízes sistêmicas que estruturam tais práticas.

4. Considerações finais

Os acordos alcançados em Durban se mantêm como um momento paradigmático, onde o discurso sobre o racismo permite um olhar para o processo histórico que conformou a realidade latino-americana. Contudo, a potência do debate em 2001 parece evadir-se em estratégias várias para simplesmente não falar sobre racismo, afinal “novas” formas de discriminação existem e precisam ser enfrentadas. Das diversas formas de negação apresentadas pelo trabalho de Dulitzky, o que podemos concluir é que o discurso se sofistica, porém, certas continuidades mantêm-se. A negação interpretativa, por exemplo, encontra-se presente quando se enumera “novas vítimas”, como se fenômenos como pobreza, migrações e deslocamentos forçados não tivessem um forte marcador racial na região. A negação justificativa encontra-se fortemente ecoando nas narrativas que individualizam o ato racista e o sujeito racista, no argumento da excepcionalidade desses sujeitos e dessas práticas, que se sustentam baseados em ideologias dissonantes com nossa democracia (racial), ou que são naturalizadas em nossas culturas, apesar de sermos “todos mestiços”.

O Estado Racial, compreendido como o próprio Estado Moderno (Goldberg, 2002GOLDBERG, D. T. Racial Rule. In: GOLDBERG, D. T.; QUAYSON, A. (Eds.). Relocating Postcolonialism. Oxford, UK; Malden, MA: Blackwell Publishers, 2002. p. 82–102.), cuja estrutura, normatividade, prática e institucionalidade herdamos do processo colonial, permanece inquestionado. Aqui a teorização jurídica das múltiplas discriminações acomoda dentro do Estado Racial a busca pela igualdade, reafirmando o caráter evolutivo das conquistas jurídicas através das lutas sociais. Deixa, contudo, inamovível a linha divisória do humano e do não humano ao reconhecer o sujeito universal de direitos construído à imagem do homem europeu, cujo modelo ainda sustenta a narrativa que constrói o “outro”, como o nosso “étnico” ou culturalmente diferente, que o Estado reconhece somente enquanto diferente e nunca como igual. Como nos diz Grosfoguel, aos não humanos “a extensão de direitos, recursos materiais e o reconhecimento de suas subjetividades, identidades, espiritualidades e epistemologias são negados” (2016, p. 10).

Finalmente, talvez a forma mais perversa seja a própria evasão pura e simples do debate do racismo. Ao trazer para a discussão no grupo de trabalho outras causas de discriminação, certamente importantes, como a causa LGBTI, dos portadores de HIV e todas as 28 causas enumeradas no primeiro esboço consolidado da convenção, leva-se o debate para um âmbito moral difícil de contestar. Afinal, o resultado das negociações somente foi diferente, com a aprovação de duas convenções em separado,24 24 Em decisão em Assembleia Geral em 2011 somente, o Grupo de Trabalho começa a trabalhar na proposta de dois instrumentos distintos. [AG/RES. 2677 (XLI-O/11)]. por atuação dos próprios grupos da sociedade civil organizada e movimentos sociais,25 25 Como relata um membro de uma organização negra brasileira, a pactuação entre os grupos negros e os representantes LGBTI foi o que possibilitou manter uma convenção contra o racismo e abrir para a possibilidade de outra convenção sobre discriminação com escopo mais amplo, mantendo-se como dois instrumentos vinculantes, ao contrário da proposta inicial de protocolos adicionais. pois convinha a todos que os temas fossem tratados em foro próprio que evitasse reduzir tudo ao mínimo denominador comum.

Assim, a potência da Declaração de Durban, que condenou a escravização de milhões de pessoas trazidas do continente africano como um crime contra a humanidade e que reconheceu os efeitos do colonialismo nas formas contemporâneas de racismo, não parece ressoar nos documentos oficiais produzidos no âmbito dos debates realizados tendo em vista a criação de uma convenção regional na Organização dos Estados Americanos.

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    Este trabalho resulta do projeto de investigação POLITICS - A política de antirracismo na Europa e na América Latina: produção de conhecimento, decisão política e lutas coletivas. Este projeto recebe financiamento do Conselho Europeu de Investigação (ERC) no âmbito do Programa-Quadro de Investigação e Inovação da União Europeia, Horizonte 2020 (acordo de subvenção nº ERC-2016-COG-725402).
  • 2
    Junto com diversos autores (Hesse, 2007___. (2007). Racialized modernity: An analytics of white mythologies. Ethnic and Racial Studies, 30(4), 643–663.; Goldberg, 2009; Grosfoguel, 2016; Lentin, 2017LENTIN, A. Thinking blackly beyond bio politics and bare life. Disponível em <http://www.alanalentin.net/2017/03/22/thinking-blackly-beyond-bio-politics-and-bare-life/>, acesso em 23 de fevereiro de 2019.
    http://www.alanalentin.net/2017/03/22/th...
    ; Maeso, 2018), compreendo a raça como uma categoria política que perpassou dimensões ”sociais, econômicas, ecológicas, históricas e corpóreas” (Hesse, 2007) para a desumanização de grupos sociais no processo de dominação colonial, cujas práticas e instituições permanecem estruturando o racismo contemporâneo. A dimensão biológica da raça foi enfatizada com o pensamento eugênico do século XIX e XX, mas sua compreensão (e efeitos) nunca se limitou a ela, apesar de orientar até hoje os debates sobre o uso do termo (Lentin, 2017).
  • 3
    Será dado enfoque ao contexto latino-americano, apesar de mencionar pontualmente a atuação do Canadá, pois esse país compôs o grupo de trabalho.
  • 4
    O debate sobre a relação entre mestiçagem, democracia racial e racismo foi amplamente tratado por diversos autores latinoamericanos (Cf. Gonzalez, 1984GONZALEZ, L. Racismo e sexismo na cultura brasileira. Revista Ciências Sociais Hoje, 223–244, 1984.; Munanga, 1999MUNANGA, K. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil: identidade nacional versus identidade negra. Coleção Identidade brasileira. Petrópolis: Editora Vozes, 1999.; Nascimento, 1978NASCIMENTO, A. do. O genocídio do negro brasileiro. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.; Schwarcz, 2007SCHWARCZ, L. M. Raça Sempre Deu o que Falar. In Fernandes, Florestan. O negro no mundo dos brancos (2a. ed. re, pp. 11–24). São Paulo: Global Editora, 2007.; Figueroa, 2010MORENO FIGUEROA, M. G. Distributed intensities: Whiteness, mestizaje and the logics of Mexican racism. Ethnicities, 10(3), 387–401, 2010.; De la Cadena, 2001DE LA CADENA, M. The Racial Politics of Culture and Silent Racism in Peru. Racism and Public Policy, (September), 14, 2001.).
  • 5
    Diversos estudos já abordaram o que significou a Conferência de Durban e o papel da região em seus resultados, indicando-a como um ponto de virada de paradigma na luta antirracista (Carneiro, 2002___. a Batalha De Durban. Estudos Feministas, v. 10, n. 1, p. 209, 2002.; Hernández, 2013HERNÁNDEZ, T. K. Racial Subordination in Latin America: the role of the State, Customary Law, and New Civil Rights Response. New York: Cambridge University Press, 2013.; Lao-Montes, 2010LAO-MONTES, A. Cartografías del campo político afrodescendiente en América Latina. Universitas humanística, n. 68, p. 207–245, 2010.; Noles Cotito, 2016___. Why and How Was the World Conference Against Racism, Racial Discrimination, Xenophobia and Related Intolerance of 2001 Fundamental to the Political Recognition of the Peoples of African Descent in Peru? SSRN Electronic Journal, 2016.; Pereira, 2008PEREIRA, A. M. Trajetórias e perspectivas do movimento negro brasileiro. Belo Horizonte: Nandyla, 2008.; Thomaz e Nascimento, 2003THOMAZ, O. R.; NASCIMENTO, S. DO. Entre a intenção e o gesto: a Conferência de Durban e a elaboração de uma pauta de demandas de políticas compensatórias no Brasil: 06-03. São Paulo: [s.n.]. Disponível em: <http://nupps.usp.br/downloads/docs/dt0306.pdf>.
    http://nupps.usp.br/downloads/docs/dt030...
    ; Trapp, 2014TRAPP, R. P. A conferência de Durban e o antirracismo no Brasil (1978-2001). Cadernos do CEOM, v. 24, n. 35, p. 235–252, 2014.). O próprio Dulitzky, em um posfácio ao seu texto, vê com otimismo a enorme mobilização social em torno dos debates pré-Durban, mencionando o encontro da sociedade civil com mais de 1700 pessoas em Santiago. O autor aponta como um sucesso da Conferência em Durban o fato de os Estados latino-americanos não terem recuado do acordo de Santiago, e de a região ter, a partir daí, iniciado uma negociação para uma convenção regional.
  • 6
    Sobre as causas do racismo contemporâneo a Declaração de Durban afirma: “13. Reconhecemos que a escravidão e o tráfico escravo, incluindo o tráfico de escravos transatlântico, foram tragédias terríveis na história da humanidade, não apenas por sua barbárie abominável, mas também em termos de sua magnitude, natureza de organização e, especialmente, pela negação da essência das vítimas; ainda reconhecemos que a escravidão e o tráfico escravo são crimes contra a humanidade e assim devem sempre ser considerados, especialmente o tráfico de escravos transatlântico, estando entre as maiores manifestações e fontes de racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância correlata; e que os Africanos e afrodescendentes, Asiáticos e povos de origem asiática, bem como os povos indígenas foram e continuam a ser vítimas destes atos e de suas consequências. 14. Reconhecemos que o colonialismo levou ao racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância correlata, e que os Africanos e afrodescendentes, os povos de origem asiática e os povos indígenas foram vítimas do colonialismo e continuam a ser vítimas de suas consequências. Reconhecemos o sofrimento causado pelo colonialismo e afirmamos que, onde e quando quer que tenham ocorrido, devem ser condenados e sua recorrência prevenida. Ainda lamentamos que os efeitos e a persistência dessas estruturas e práticas estejam entre os fatores que contribuem para a continuidade das desigualdades sociais e econômicas em muitas partes do mundo ainda hoje;” (A/CONF.189/12NAÇÕES UNIDAS. A/CONF.189/12. Declaração de Durban adotada na III Conferência Mundial Contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e formas relatas de Intolerância. Durban: 2001., grifo nosso).
  • 7
    Sobre o papel dos países latino-americanos, em especial o protagonismo do Brasil, ver mais em (Carneiro, 2001CARNEIRO, S. Os retornados - Geledés. Disponível em: <https://www.geledes.org.br/os-retornados/>. Acesso em: 13 jan. 2018.
    https://www.geledes.org.br/os-retornados...
    ; Silva, 2008SILVA, S. J. DE A. E. Combate ao Racismo. Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2008.; Thomaz e Nascimento, 2003; Trapp, 2014TRAPP, R. P. A conferência de Durban e o antirracismo no Brasil (1978-2001). Cadernos do CEOM, v. 24, n. 35, p. 235–252, 2014.).
  • 8
    As assinaturas da convenção somam doze, contudo somente três países já ratificaram, conforme informação do sítio eletrônico da OEA, disponível em http://www.oas.org/en/sla/dil/inter_american_treaties_A-68_racism_signatories.asp, acesso em 07.01.2019.
  • 9
    Referência ao rascunho elaborado pelo Instituto Interamericano de Direitos Humanos, conforme informação disponível no sítio eletrônico da Organização dos Estados Americanos <http://www.oas.org/consejo/CAJP/RACISM.asp#Docs%20INF>, acesso em 09.01.2019.
  • 10
    A Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará) elaborada em 1994 já traz a interseccionalidade entre múltiplas formas de discriminação para visibilizar a situação das mulheres negras, por exemplo. Similarmente a Convenção Interamericana para Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra Pessoas com Deficiência, de 1999, permite uma atuação adequada aos causas e estruturas geradoras das diversas formas de violência vivenciadas por esse grupo.
  • 11
    Em 2010, ao confirmar o mandato do grupo de trabalho para as negociações para a convenção, Antígua e Barbuda se posiciona em contrário, com o argumento de que o rumo das negociações mostrava-se inócuo e que necessitava criar dois instrumentos distintos: “Desde que fue instalado este Grupo de Trabajo, los Estados Miembros no han podido llegar a un consenso sobre el alcance de este instrumento, y en consecuencia las negociaciones se encuentran en un punto muerto. Aunque sigue estando comprometida con la erradicación del racismo y toda forma de discriminación e intolerancia en las Américas, Antigua y Barbuda ya no considera que un solo instrumento sea práctico. Por lo tanto, Antigua y Barbuda estima ahora que los Estados Miembros deberían completar una Convención Interamericana contra el Racismo y uno o más Protocolos Facultativos sobre Todas las Formas de Discriminación e Intolerancia”. (AG/RES. 2606_____AG/RES. 2606 (XL-O/10). Proyecto de Convención Interamericana Contra el Racismo y Toda Forma de Discriminación e Intolerancia, 8/06/2010. (XL-O/10)).
  • 12
    O Censo nacional de 2017 no Peru introduz, após 70 anos, uma questão sobre autoidentificação “étnica”, superando a limitação imposta pela impossibilidade de “diferenciação da população”. Fato que só acontece após grande pressão dos movimentos sociais e algumas recomendações do CERD ao relatório do país. (Cotito, 2017COTITO, M. N. El Censo Nacional de 2017: una herramienta fundamental para la protección de las minorías étnico-raciales en el Perú. Gaceta constitucional, p. 246–248, 2017.)
  • 13
    Uma tendência no debate sobre o racismo em países europeus é a retirada da palavra raça dos textos jurídicos, ver mais em Cf. Lentin, 2017. Por outro lado, a cláusula geral de isonomia formal é interpretada como proibitiva de categorização da população por raça, o que gera a não produção de dados estatísticos desagregados (Timo Makkonen, 2016TIMO MAKKONEN. European handbook on equality data - 2016 revision. Luxembourg: 2016. Disponível em: <http://ec.europa.eu/newsroom/just/item-detail.cfm?item_id=54849>.
    http://ec.europa.eu/newsroom/just/item-d...
    ) fomentando invisibilizações sobre a situação de europeus negros ou ciganos, por exemplo.
  • 14
    Para o direito internacional, a Resolução A/ RES/ 60/147, de 2005, delineia as diretrizes e os princípios para o “Direito de Reparação e Reparação de Vítimas de Violações Graves do Direito Internacional dos Direitos Humanos”. Como medida eficaz de reparação deve atender a cinco princípios: “restituição, compensação, reabilitação, satisfação e garantias de não repetição” (§ 18).
  • 15
    Os Estados Unidos também eram fortes opositores a convenção regional, como deixaram registrado em Assembleia Geral AG/RES. 2126ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. AG/RES. 2126 (XXXV-O/05). Prevención del Racismo y de Toda Forma de Discriminación e Intolerancia y Consideración de la Elaboración de un Proyecto de Convención Interamericana, 7/06/2005. (XXXV-O/05) que aprovou a criação do grupo de trabalho. O Canadá retira-se formalmente das negociações em 2011 (AG/RES. 2677_____AG/RES. 2677 (XLI-O/11). Proyecto de Convención Interamericana Contra el Racismo y Toda Forma de Discriminación e Intolerancia, 7/06/2011. (XLI-O/11)).
  • 16
    Como explica Bonilla, o fenômeno frente aos afrocolombianos, particularmente, é visto por alguns autores como “uma geopolitica da guerra que está afetando de maneira significativa às comunidades afrocolombianas que, no marco da estratégia de desterritorialização, se tem visto obrigadas a abandonar seu projeto político alternativo de autonomia.” (2014, p. 313, tradução nossa)
  • 17
    O relatório da Comissão Nacional Verdade e Reconciliação reconhece a relação entre o elevado número de assassinatos de indígenas com o racismo, com um capítulo inteiro sobre “Violência e Desigualdade Racial y Étnica” (Cf. Comissão da Verdade e Reconciliação – CVR, 2004).
  • 18
    Já nos anos 80 Anibal Quijano problematiza a ideia de integração que perpassou o debate Latino-americano. Como pontua: “Algunas décadas atrás, en los países andinos de América Latina llegó a ser un tópico el reclamo de ‘integración de los indios en la cultura nacional’ sin que nadie se preguntara si esa ‘cultura nacional’ era apta para ello, o si la cultura de los indios debía también ser integrada en aquélla. Hoy, de modo equivalente, aunque para una esfera distinta de problemas, muchos postulan la ‘integración de los marginados en la sociedad’ sin detenerse mucho a inquirir si el carácter de la sociedad lo permite” (2014, p. 686).
  • 19
    O art. 6º da referida Declaração diz “Nenhuma pessoa será sujeita a discriminação com base nas características genéticas que tenha como objetivo ou como efeito atentar contra os direitos humanos, as liberdades fundamentais e a dignidade humana”. Em seu preâmbulo a Declaração rejeita “qualquer dogma de desigualdade das raças e dos homens”.
  • 20
    O Peru propõe que o foco na educação seja para promover uma “educação em direitos humanos” (Peru, CAJP/GT/RDI-4/05 add. 4, p. 1).
  • 21
    Como a manifestação dos Estados analisada aqui data de 2005 e 2006, algumas condições de políticas e práticas sofreram alterações nos últimos anos. No caso do Peru há um esforço em mapear as línguas reconhecidas como originárias para promoção de uma educação bilíngue, além do reconhecimento como idiomas oficiais de forma localizada. A Ley n. 29.735 de 2011 regula “el uso, preservación, desarrollo, recuperación, fomento y difusión de lenguas originarias del Perú” e reconhece, em seu art. 9º, como idiomas oficiais as línguas orginárias que são predominantes nos distritos, províncias e regiões. Assim, através do chamado mapa “etnolinguístico”, a oficialidade de idiomas originais é reconhecida regionalmente, tendo ali as pessoas o direito de usar sua língua em âmbito público e privado. O que não signifca que o Estado, representado por seus poderes e instituições nacionais, tenha a obrigação de reconhecer os demais idiomas falados no país como oficiais. Ademais, o reconhecimento se faz no âmbito do “patrimônio cultural imaterial”, tendo a etnicização dos povos e suas culturas o condão de esvaziar o debate político (Walsh, 2012WALSH, C. El Pluralismo Jurídico: el desafío de la Interculturalidad. Revista Nueva América, n. 133, p. 32–37, 2012.) sobre o uso de tais línguas em qualquer âmbito da vida pública, seja em Lima ou em Cuzco.
  • 22
    Como assinala Perry, a argumentação em torno da especificidade do delito de ódio por sua “motivação” acaba por colocar o comportamento como anormal às sociedades ocidentais, e não em relações de poder específicas, que “nos permite reconhecer que a violência motivada por preconceitos não é ‘anormal’ ou ‘anômala’ em muitas culturas ocidentais, mas sim uma extensão natural do racismo, o sexismo e a homofobia que normalmente distribui o privilégio ao longo das linhas raciais e de gênero.” (2003PERRY, B. Where do we go from here? Researching hate crime. Internet Journal of Criminology, p. 1–59, 2003., p.8).
  • 23
    O debate no âmbito jurídico resvala sobretudo sobre a tensão entre liberdade de expressão e a tipificação do discurso de ódio, com grande ênfase no mundo virtual, mas não somente. Mais sobre o tema ver também Ely Aaronson (2014)AARONSON, E. From slave abuse to hate crime: the criminalization of racial violence in American history. New York, NY: Cambridge University Press, 2014., Jon Garland and Neil Chakraborti (2014)GARLAND, J.; CHAKRABORTI, N. Divided by a common concept? Assessing the implications of different conceptualizations of hate crime in the European Union. European Journal of Criminology, v. 9, n. 1, p. 38–51, 2012., Carlo José Napolitano e Tatiana Stroppa (2017)NAPOLITANO, C. J.; STROPPA, T. O Supremo Tribunal Federal e o discurso de ódio nas redes sociais: exercício de direito versus limites à liberdade de expressão. Revista Brasileira de Políticas Públicas, Brasília, v. 7, nº 3, 2017 p. 313-332.
  • 24
    Em decisão em Assembleia Geral em 2011 somente, o Grupo de Trabalho começa a trabalhar na proposta de dois instrumentos distintos. [AG/RES. 2677 (XLI-O/11)].
  • 25
    Como relata um membro de uma organização negra brasileira, a pactuação entre os grupos negros e os representantes LGBTI foi o que possibilitou manter uma convenção contra o racismo e abrir para a possibilidade de outra convenção sobre discriminação com escopo mais amplo, mantendo-se como dois instrumentos vinculantes, ao contrário da proposta inicial de protocolos adicionais.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Set 2019
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2019

Histórico

  • Recebido
    12 Mar 2019
  • Aceito
    10 Jul 2019
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