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Para uma política dos “meios puros”: Walter Benjamin e a questão da violência

Towards a politics of “pure means”: Walter Benjamin and the question of Violence

Resumo

Discutindo os conceitos de Benjamin de meios puros e violência divina, este artigo levanta a questão de como podemos pensar em um domínio de política revolucionária fora e além do direito - uma esfera de justiça e de violência não legal. Para Benjamin, estava claro que havia algo de fundamentalmente “podre no direito” - seja este o direito da monarquia, da democracia ocidental ou de regimes autocráticos. A violência inerente ao direito contradiz-se a si mesma, uma vez que a aplicação do direito - por exemplo, pela polícia - sempre borra a linha entre a violência mantenedora e integradora do direito. Por outro lado, a maioria das tentativas de romper o direito e seus poderes de sustentação conduz ao estabelecimento de um novo direito. Contra a ciclo “mítico” da violência/poder (“Gewalt”) de instauração e preservação do direito, Benjamin busca uma violência não-violenta, pura, que possa interromper a aplicação do direito à vida. Esse artigo argumenta que a leitura de Werner Hamacher do ensaio de Benjamin como aformativo oferece uma possível estrutura para compreender a noção paradoxal de Benjamin de “meios puros”.

Palavras-chave:
Direito; Meios Puros; Walter Benjamin

Abstract

Discussing Benjamin’s concepts of pure means and divine violence, this article poses the question of how we can think of a realm of revolutionary politics outside and beyond of the law - a sphere of justice and non-legal violence. For Benjamin, it was clear that there was something fundamentally “rotten in the law” - be it the law of monarchy, western democracy or autocratic regimes. The violence inherent to the law contradicts itself since law enforcement - e.g. the police - always blurs the line between law-preserving and law-making violence. Conversely, most attempts to break the law and its supporting powers lead to the establishment of a new law. Against the “mythic” cycle of law-making and law-preserving violence/power (“Gewalt”) Benjamin searches for a nonviolent, pure violence that could interrupt the application of law to life. This article argues that Werner Hamacher’s reading of Benjamin’s essay as “afformative” provides a possible structure to understand Benjamin’s paradoxical notion of “pure means”.

Keywords:
Law; Pure Means; Walter Benjamin

1. O que é a violência? 1 1 Originalmente publicado como “Towards a Politics of ‘Pure Means’: Walter Benjamin and the Question of Violence,” em: Conflicto armado, justicia y memoria, Tomo 1: “Teoría crítica de la violencia y prácticas de memoria y resistencia,” ed. Enan Enrique Arrieta Burgos, Medellín: Editorial de la Universidad Pontificia Bolivariana, 2016, 41-65. Para esta tradução para o português, o artigo original em inglês foi modificado e atualizado. Como trata-se de um trabalho em desenvolvimento, a versão mais antiga foi apresentada na conferência “Historical Materialism”, em Londres - Reino Unido, no dia 13 de novembro de 2010. Uma versão posterior foi publicada, em 2011, no blog “Anthropological Materialism” (http://anthropologicalmaterialism.hypotheses.org/1040).

O ensaio de Walter Benjamin Zur Kritik der Gewalt ou Para a crítica da violência2 2 Nota de Tradução (N.T.): Para esta tradução optou-se por utilizar a versão do texto de Benjamin em português traduzida por Ernani Chaves, com notas de Jeanne Marie Gagnebin disponível na coletânea Escritos sobre mito e linguagem (2013). Outros textos de Benjamin citados pelo autor presentes nesta coletânea também serão citados conforme sua tradução. No texto original, o autor citou o texto de Benjamin conforme a edição Selected Writings (1996ff) e a edição alemã Gesammelte Schriften (1972ff). Para a tradução, a citação da edição alemã foi mantida conforme o uso do autor. Já a edição americana foi citada apenas para textos sem tradução para o português. A referência às edições americana e alemã foram respectivamente assim abreviadas: “SW, número do volume”; “GS, número do volume”. foi publicado pela primeira vez em 1921, na revista Archiv für Sozialwissenschaft und Sozialpolitik. Inicialmente, a intenção era que fizesse parte de um trabalho maior sobre política, que se perdeu ou não foi terminado, que seria composto de duas partes, O verdadeiro político [Der wahre Politiker] e A verdadeira política [Die wahre Politik]3 3 Conforme a nota do editor de Benjamin (1977, p. 943). Ver também (TOMBA, 2009, p. 127): “O texto de Benjamin foi concebido como parte de um trabalho intitulado Politik, subdividido em duas partes: a primeira intitulada "Der wahre Politiker", da qual a revisão de Paul Scheerbart é tudo o que restou, e a segunda, intitulada "Die wahre Politik", por sua vez dividida em dois capítulos, a) "Der Abbau der Gewalt“ e b) "Teleologie ohne Endzweck". O primeiro capítulo está incluído em 'Zur Kritik der Gewalt', enquanto o segundo pode ser percorrido ao longo do denso Theologisch-politisches Fragment” . É notável que o trabalho inicial sobre política de Benjamin, realizado por volta de 1920, tenha sido escrito logo após a fracassada revolução alemã de 1918/19 e à luz dos levantes comunistas e anarco-sindicalistas em várias regiões da Alemanha. Em relação a sua obra, Para a crítica da violência tem um lugar único já que é o primeiro ensaio explicitamente político e seu último grande trabalho sobre política antes de sua virada marxista por volta de 1924/25. Em 1921, Benjamin não havia estudado nem Marx, nem Lenin; o pensamento político com o qual ele estava habituado abrangia desde autores anarquistas e anarco-sindicalistas como Gustav Landauer e Georges Sorel, o círculo metafísico-político em torno de Erich Unger, até o Ernst Bloch de Espírito da Utopia [Geist der Utopie, 1918], além das reflexões sobre o judaísmo de seu amigo Gershom Scholem que mais tarde se tornou um dos mais importantes acadêmicos do misticismo judaico. Este artigo argumenta, no entanto, que nenhuma dessas influências pode explicar plenamente a singularidade do feito radical de Benjamin em Para a crítica da violência, no qual rompe o nexo entre vida, lei e violência, ao referir-se a outro tipo de violência - a violência divina.

Para Benjamin, estava claro que havia algo de fundamentalmente “podre no direito” (2013, p. 134) - seja este o direito da monarquia, da democracia ocidental ou de regimes autocráticos. A violência inerente ao direito contradiz-se a si mesma, uma vez que a aplicação do direito - por exemplo, pela polícia - sempre borra a linha entre a violência de preservação do direito e a violência de instauração ou constituição do direito [rechtsetzende]. Por outro lado, a maioria das tentativas de romper o direito e seus poderes de sustentação conduz ao estabelecimento de um novo direito. Mas como podemos conceber um domínio de política revolucionária fora e além do direito - uma esfera de justiça e de violência não legal?

A palavra alemã Gewalt tem origem no verbo Waltan, do alemão culto antigo, que se traduz aproximadamente por "ser forte", "dominar", ou “ser senhor" [to master]. No alemão culto moderno, Gewalt engloba uma variedade de significados, entre eles violência, força, coerção, poder e autoridade. Este último significado é mais notadamente usado hoje em dia na "Lei Fundamental" constitucional alemã [Grundgesetz]. Em seu artigo 20, lê-se: “Alle Staatsgewalt geht vom Volke aus” [Toda autoridade estatal é derivada do povo]4 4 O Parlamento Alemão, o Bundestag, escolheu traduzir a palavra alemã “Staatsgewalt”, para o inglês “authority” Cf. <https://www.btg-bestellservice.de/pdf/80201000.pdf>, (Article 20). [N.T.: Na tradução para o português, o Bundestag, escolheu traduzir “Staatsgewalt” por “poder”, o que expressa a pluralidade semântica do termo. Cf. <https://www.bundestag.de/resource/blob/638342/617306e93cc3eacda9370d2e9f146d56/flyer-data.pdf>, (Artigo 20).] . Como nota Étienne Balibar: “o termo Gewalt contém, portanto, uma ambiguidade intrínseca: refere-se, ao mesmo tempo, à negação do direito ou da justiça e à sua realização ou à assunção, por uma instituição (geralmente o Estado), da responsabilidade por eles” (BALIBAR, 2009BALIBAR, Étienne. (2009). “Reflections on Gewalt” In Historical Materialism n.17, 2009, p.99-125., p. 101). Como sugere a passagem inicial de seu ensaio, para Benjamin o problema da Gewalt só diz respeito a questões jurídicas e morais devido a esta ambiguidade: “A tarefa de uma crítica da violência pode se circunscrever à apresentação de suas relações com o direito e com a justiça. Pois, qualquer que seja o modo como atua uma causa, ela só se transforma em violência, no sentido pregnante da palavra, quando interfere em relações éticas” (2013, p. 121). Uma ação só pode adquirir status de violência, em sentido estrito, uma vez que se encontre em uma relação que ela modifica e altera. Somente dentro das relações morais, a violência, enquanto uma força ativa interveniente se torna visível. Benjamin não oferece nenhuma outra definição inerente de violência; ela se mantém como um conceito relacional, que só pode ser apresentado, definido e criticado a partir dessas relações e de suas respectivas polarizações.

2. Meios e fins

A relação mais essencial em um sistema legal é aquela entre meios [Mittel] e fins (Zwecke). Se a violência não é um objetivo ético ou legal, ela só pode ser encontrada na esfera dos meios - enquanto uma força efetiva e uma violência sancionadora seja qual for sua justificação ou legitimação. Como o dogma básico de qualquer teoria de violência sustenta: “fins justos podem ser alcançados por meios justificados, meios justificados podem ser aplicados para fins justos.” (BENJAMIN, 2013, p. 124). Benjamin menciona duas escolas jurídicas que diametralmente legitimam a violência: a do “direito natural” e a do “direito positivo”. Enquanto a primeira “vê na aplicação de meios violentos para fins justos tampouco um problema como o homem encontra um problema no “direito” de locomover seu corpo até um fim desejado” (2013, p. 123), a outra, a escola do direito positivo, está mais preocupada com meios justos. Benjamin não se associa a nenhuma das duas escolas, embora reconheça o esforço da escola do “direito positivo” em se concentrar na justificação dos meios enquanto tais, ao passo que a escola do direito natural concebe a violência como um produto quase orgânico da natureza, “semelhante a uma matéria-prima” (2013, p. 123). Entretanto, ambas as escolas, do direito natural e positivo, compartilham um mesmo erro: ao justificar a violência, assumem a reciprocidade instrumental entre fins e meios. “O direito natural almeja “justificar” os meios pela justiça dos fins, o direito positivo, “garantir” os fins pela “justificação” dos meios.” (2013, p. 124). Em contraposição, Benjamin rejeita qualquer crítica à violência baseada em uma relação recíproca entre fins e meios.

Esta rejeição não é apenas teórica, mas tem também grande importância política. Enquanto a posição do direito natural é frequentemente posta em questão quando lutas armadas anti-hegemônicas, anti-estatais ou anticoloniais devem ser legitimadas, o ponto de vista do direito positivo é normalmente invocado pelo Estado para justificar a repressão estatal e a coerção institucionalizada. Embora ambos os pontos de vista não sejam simétricos e difiram através da oposição de suas ênfases, seja em fins ou meios justificados, eles compartilham a suposição básica de que a violência tem sempre que ser percebida dentro de um encadeamento causal de meios e fins. Benjamin, entretanto, insiste em critérios independentes tanto para fins justos quanto para meios justificados.

Seguindo esta argumentação, mesmo o princípio teológico mais básico do Decálogo, "Não matarás", não pode ser visto como um meio proibido em relação a certos fins justos ou injustos. Pelo contrário, o próprio ato, o meio de matar, tem que ser examinado enquanto tal sem que se refira a um possível objetivo. Portanto, “do mandamento não pode ser deduzido nenhum julgamento do ato”; ele “não existe como medida de julgamento, e sim como diretriz de ação para a pessoa ou comunidade que age” (BENJAMIN, 2013, p. 152-153). Uma diretriz de ação, no entanto, nunca pode ser plenamente aplicada a uma situação concreta uma vez que apenas oferece uma orientação geral; é sempre necessário negociar se e como uma situação concreta pode ser guiada por um princípio ético. É precisamente este trabalho infinito e inalcançável de negociação, que decorre desta falta de julgamento absoluto, que Kant quis conter na Fundamentação da Metafísica dos Costumes. A primeira fórmula do Imperativo Categórico de Kant assim estabelece: “Age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal” (KANT, 2007, p. 59). Como este imperativo formal não é um meio para certos fins, mas um fim-em-si-mesmo autossuficiente ou puro fim, ele tem que manter uma aplicabilidade atemporal e universal a todas as situações históricas possíveis. Benjamin, contudo, opõe-se fortemente à temporalidade vazia e homogênea do Imperativo Categórico kantiano. Já que nenhuma situação histórica é idêntica à outra, nada pode ser categoricamente dito de antemão. Tanto quanto a "força de lei" depende de sua aplicabilidade universal a qualquer situação histórica concreta, seu fundamento clássico da moralidade no Imperativo Categórico de Kant é baseado em uma universalidade atemporal, que se abstrai de situações históricas concretas e nunca recorrentes. Para Benjamin, portanto, o valor universal de uma diretriz ética nunca deve ser confundido com a universalização de julgamentos, princípios ou imperativos.

3. Violência mítica

Como argumenta Werner Hamacher em sua leitura de Para a crítica da violência, toda instauração [Setzung] do direito ou de princípio ético já implica o seu revés, pois toda instauração requer sua aplicação contra outros atos de instauração, estabelecimento ou constituição5 5 Cf. (HAMACHER, 2020, pp. 2103 e ss). . Portanto, a lógica da instauração é sempre ameaçada por outros atos de instauração. Dentro do paradigma do Estado, Benjamin distingue entre duas formas de violência que se pressupõem e se desconstroem mutuamente: “Toda violência como meio é ou instauradora ou mantenedora do direito” (2013, p. 136). Enquanto a primeira diz respeito ao ato constitutivo de estabelecer o poder através da violência, ou seja, o terror, a guerra ao terror, ou a "acumulação primitiva" capitalista (Marx), a segunda está inserida nas instituições estatais. Benjamin chama essas duas formas de violência de "violência mítica" porque a dialética intrínseca a elas conduz a uma lógica auto subversiva, autossustentável e, portanto, circular: qualquer ato destruidor do direito resulta em uma nova instauração [Setzung] do direito que tenta novamente se preservar violentamente. Para Benjamin, este ciclo trágico de superação do direito através de seu restabelecimento é um claro indicador de que existe algo fundamentalmente “podre no direito” (2013, p. 134).

Na prática, entretanto, essas duas formas de violência mítica são difíceis de diferenciar. Na esfera da repressão estatal direta, através da força policial, por exemplo, a força de preservação do direito e a violência de instauração do direito sempre são espectralmente confundidas (porque a polícia "preserva" o direito precisamente aplicando novas regulamentações ou reavaliando as sanções estabelecidas), enquanto no âmbito da ordem social, a violência mítica se tornou quase invisível. Enquanto a violência excessiva de instauração do direito é hoje mais ou menos "terceirizada" do centro capitalista para a periferia pós-colonial (eufemisticamente chamada de "mercados emergentes"), no capitalismo ocidental pós-fordista contemporâneo a violência mítica tende a escamotear sua força instauradora do direito, transformando-se em uma teia jurídica aparentemente intangível de práticas biopolíticas. Essa forma de violência mantenedora do direito funciona como uma "microfísica do poder" (Foucault) autossustentável e que se autoeternaliza, produzindo e reproduzindo, disciplinando e controlando, regulando e sancionando a vida enquanto força de trabalho efetiva, potencial ou supérflua.6 6 Comentei em outro lugar sobre o paralelo e a diferença da abordagem de Benjamin da noção de biopoder em relação à de Michel Foucault. Ver: (KHATIB, 2018, pp. 617-618).

A aplicação da violência mítica à vida produz uma forma de vida muito peculiar que Benjamin chama de nua ou “mera vida” [bloßes Leben, GS II, pp. 199f.]. A mera vida não é simplesmente a vida natural ou biológica, mas um produto da violência legal: a vida enquanto mera vida é tornada o suporte natural da culpa, uma vida culpável, que é, ao mesmo tempo, a matéria da doutrina humanista moderna “da sacralidade da vida, quer aplicada por eles (os humanistas) a toda a vida animal (e vegetal), quer restrita à vida humana” (BENJAMIN, 2013, p. 153, destaque do autor). Benjamin, porém, ousa questionar o que é santificado em tal doutrina - uma doutrina que é também o fundamento da ideia moderna de direitos humanos inalienáveis. Para Benjamin, a matéria abstrata dos direitos humanos é a mera vida - uma vida desprovida de suas qualidades supra-biológicas (a qual ele nomeia por Lebendige, o vivente, GS II, p. 200). Por mais contra intuitivo que possa parecer, a sacralização - podemos até mesmo dizer fetichização - da vida enquanto tal conduz a uma vida sem liberdade, verdade e justiça. A partir desta consideração, Benjamin conclui que “dá motivo para reflexão o fato de que aquilo que aí é dito sagrado é, segundo o antigo pensamento mítico, o portador assinalado da culpa: a mera vida.” (2013, p. 154). A invenção da vida e sua culpabilidade compartilham a mesma origem, que é também o fundamento mítico da violência estatal moderna, sancionada e justificada pelo direito.

4. Meios puros: Linguagem e Política

Contra a violência mítica e seu ciclo inerente de violência de instauração e preservação do direito, Benjamin busca uma violência não-violenta, pura ou desvinculada que possa interromper a aplicação do direito à mera vida. Seu nome para essa violência é “violência divina” - uma violência paradoxalmente pura ou não-violenta que coincide com seu oposto tautológico: uma violência marcadamente violenta. Antes de nos voltarmos a ela, detenhamo-nos sobre sua dimensão profana e analisemos de perto a expressão de Benjamin "meios puros", os quais podem quebrar o ciclo da violência mítica, já que não estão vinculados a nenhum fim.

À primeira vista, a noção de meios puros ou “meios sem fim” é paradoxal já que um meio é normalmente definido em relação a um fim. O conceito comum de meio já implica uma referência teleológica a um fim, ao qual está subordinado como um instrumento secundário. Essa hierarquia se torna mais aparente quando se fala em um fim-em-si-mesmo, indiferente a seus meios complementares. Por exemplo, valores, ideais e objetivos éticos como a liberdade, a igualdade, ou a autodeterminação, etc. De uma perspectiva kantiana, o conceito de Benjamin de meios puros ou meios sem fim pode ser lido como uma inversão do fim-em-si-mesmo ético. Ao deslocar a perspectiva dos fins para os meios e ao eliminar a referência a um objetivo final (Endzweck), Benjamin emancipa a esfera medial dos meios de seu papel secundário, de apoio, sem desistir do conceito de mediação. Não é por acaso que em Para a crítica da violência Benjamin evite uma discussão explícita da Moralphilosophie kantiana7 7 Contudo, já em carta anterior a Ernst Schoen, datada de 28 de dezembro de 1917, Benjamin mencionou suas "reflexões desesperadas sobre o fundamento linguístico do imperativo categórico" (BENJAMIN, 1994, p. 108). . Em vez disso, ele segue a pista da Terceira Crítica de Kant, Crítica da faculdade de julgar, e sua formulação paradoxal de uma Zweckmäßigkeit ohne Zweck, propositividade sem propósito, que Kant introduziu ao discutir a analítica do belo:

o belo, cujo julgamento tem por fundamento uma finalidade meramente formal, isto é, uma finalidade sem um fim, é inteiramente independente da representação do bem, já que esta pressupõe uma finalidade objetiva, isto é, a relação do objeto a um fim determinado (KANT, 2016, p. 123; § 15).

Ao contrário de Kant, no entanto, a versão de Benjamin da "propositividade sem propósito" de Kant não se limita ao âmbito da estética. O conceito de Benjamin de meios puros também se refere aos domínios da linguagem (A) e da política (B), articulando a relação interior não-instrumental deles.

(A) Linguagem: Já em seu primeiro ensaio Sobre a linguagem em geral e sobre a linguagem do homem (1916), Benjamin introduziu a ideia de um meio puro a-teleológico em termos linguísticos: a “língua nominal” (2013, p. 58) é uma linguagem desprovida de todas as suas qualidades comunicativas, denotativas, instrumentais e transmissoras. Geralmente, a linguagem não serve apenas para fins comunicativos, mas designa o meio [medium]8 8 N.T.: Conforme indica nota de Jean Marie Gagnebin no texto “Sobre a linguagem em geral e sobre a linguagem do homem”: “Medium e Mittel são termo recorrentes na reflexão benjaminiana e assumem particular importância no presente ensaio. O segundo tem a significação de ‘meio para determinado fim’, caracteriza, portanto, um contexto instrumental e alude sempre à necessidade de mediação. Já o primeiro termo, Medium, designa o meio, enquanto matéria, ambiente e modo da comunicação, sem que seja possível estabelecer com ele uma relação instrumental com vista a um fim exterior; por isso mesmo, para Benjamin, indica uma relação de imediatidade [Unmittelbarkeit]” (2013, p. 53-54). Nesta tradução, sempre que o autor utilizou o termo meio com o sentido de “medium” optou-se por indicar o uso entre parênteses. puro do "ser mental" do homem. Os vários conteúdos deste último (poderíamos dizer em linguística: o "significado") não são comunicados através, mas na linguagem enquanto meio [medium] puro da linguagem em geral. “Toda linguagem comunica-se a si mesma” (BENJAMIN, 2013, p. 53). Portanto, a linguagem não é apenas suporte de significado, mas também o meio [medium] puro "não mediado”, no qual a cognição [Erkenntnis] torna-se comunicável. Poderíamos dizer que, para Benjamin, a cognoscibilidade [Erkennbarkeit] é quase transcendentalmente enraizada na linguagem. A língua nominal, ou “a linguagem em geral”, diz-se a si própria em todas as línguas e garante assim a tradutibilidade de todas as línguas para outras. Em A tarefa do tradutor, escrito pouco depois de Para a crítica da violência, Benjamin baseou-se em sua teoria da linguagem anterior em termos de "linguagem pura", proporcionando o fundamento para sua teoria da liberdade de tradução:

No interior dessa pura linguagem [...], toda comunicação, todo sentido e toda intenção atingem finalmente um mesmo estrato, no qual estão destinados a extinguir-se [...]. Mais do que isso, essa liberdade se exerce em nome da pura língua, na própria língua. A tarefa do tradutor é redimir, na própria, a pura língua, exilada na estrangeira, liberar a língua do cativeiro da obra por meio da recriação [Umdichtung] (BENJAMIN, 2013, p. 116-117).

Já os conceitos empregados nessa densa passagem - extinção, redenção [erlösen] e liberação - indicam que a “política da linguagem” de Benjamin apresenta argumentos estruturalmente semelhantes aos de sua “crítica da violência”. Assim como a pura língua extingue todo postulado de intenção e informação, a violência pura desativa, e destitui ou depõe, ou extingue o direito, o que é em si mesmo uma função auto performativa da linguagem.

Como argumentou Giorgio Agamben, a esfera do direito é o domínio paradigmático em que a linguagem humana tende a tornar-se performativa: “fazer coisas com as palavras” torna-se imediatamente algo fático - legalmente fático (AGAMBEN, 2016 p. 150 e ss.). Se nos lembrarmos do argumento clássico de Austin, o paradoxo dos pronunciamentos performativos é o seguinte: no ato linguístico performativo, o significado de uma enunciação (como “eu juro”, “eu declaro”, ou “eu prometo”) coincide com a própria realidade que é produzida através de sua enunciação (é por isso que o performativo nunca pode ser verdadeiro ou falso), conforme aponta Agamben. Essa qualidade é particularmente importante no caso do direito. A jurisdição [juris-diction] - o pronunciamento performativo de uma sentença no tribunal - elimina a função denotativa da linguagem cotidiana normal: cada dictum torna-se imediatamente factum, ou, como diz Agamben:

Isto é, o performativo substitui a relação denotativa normal entre palavra e fato por uma relação autorreferencial que, colocando a primeira fora de jogo, coloca a si mesma como o fato decisivo. Não a relação de verdade entre palavras e coisas é, aqui, essencial, mas a pura forma da relação entre linguagem e mundo que se torna ela mesmo produtora de vínculos e efeitos reais. Assim como no estado de exceção, a lei suspende a própria aplicação para fundar, desse modo, a sua vigência no caso normal, do mesmo modo, no performativo, a linguagem suspende a sua denotação exatamente e somente para fundar o seu nexo com as coisas (AGAMBEN, 2016, p. 152).

É por isso que a relação de jurisdição também formalmente soa como uma linguagem, de certo modo, sem sentido, desconectada da linguagem normal. Ela precisa suspender certos aspectos da função denotativa da linguagem. Como veremos, Agamben detecta um estranho paralelo entre a linguagem do direito, a jurisdição, e o "estado de exceção" político.

(A) Política: Na arena política, o âmbito da verdadeira liberdade e do agir ético, para além dos cálculos instrumentais de causa e efeito, pode ser encontrado na luta de classes. Benjamin se refere a Georges Sorel e sua distinção anarco-sindicalista entre a greve geral política e a greve geral proletária. Enquanto a primeira luta por certos fins político-econômicos (direitos políticos, salários mais altos, melhores condições de trabalho, etc.), a segunda questiona o Staatsgewalt, o Estado e seu poder/violência enquanto tais. A relação antitética da greve geral política e proletária deve ser localizada no nível de suas relações com a violência: pois se a greve for um meio para um fim, sua violência será instrumental; mas se a greve for um meio puro, sem outro objetivo concreto que não seja a superação do Estado, ela irá além do ciclo vicioso da violência mítica. Nas palavras de Sorel:

A greve geral política [...] demonstra como o Estado não perderá nada de sua força [Kraft], como o poder [Macht] passa de privilegiados para privilegiados, como a massa de produtores mudará de donos (BENJAMIN, 2013, p. 142)9 9 Benjamin cita (SOREL, 1919, p. 265) [N.T.: Ver as Notas da edição brasileira sobre as alterações que a tradução de Benjamin introduz no texto original de Sorel].

Em contraste a esta forma de greve, a greve geral proletária anula todas as consequências ideológicas de qualquer política social possível. Mais ainda, ela “proclama muito claramente sua indiferença quanto ao ganho material da conquista, ao declarar que quer abolir o Estado” (BENJAMIN, 2013, p. 143)10 10 Benjamin cita (SOREL, 1919, p. 249). . Dito de outro modo, a greve geral proletária não é um meio violento para um fim, porque não há concessões a serem feitas segundo as quais os trabalhadores retomarão seu trabalho sob condições diferentes ou melhores. O caráter “surpreendente” [striking] da greve [strike] decorre de seu caráter incondicional. É um meio puro e, portanto, não-violento. Enquanto a greve geral política permanece no âmbito da violência mítica, já que ela estabelece um novo direito, a greve geral proletária é anárquica, na medida em que vai além da violência instauradora do direito. Com isto, seu caráter verdadeiramente anarquista11 11 N.T.: an-archistic, isto é, sem arché. O termo grego arché designa a ideia de princípio, origem ou fundamento. , a-teleológico e não-instrumental é estritamente não-utópico. Como um meio puro que não leva em consideração suas possíveis consequências, por mais destrutivas que possam ser a greve geral proletária não vislumbra uma nova sociedade sem Estado. Contra o imaginário orientado ao futuro dos programas políticos, Benjamin acompanha o comentário de Sorel de que, com a greve geral, todo o utopismo desaparecerá: “a revolução aparece como uma revolta clara e simples, e não há lugares reservados nem para os sociólogos, nem para os elegantes amadores de reformas sociais, e nem para os intelectuais que escolheram a profissão de pensar pelo proletariado” (BENJAMIN, 2013, p. 144)12 12 Benjamin cita (SOREL, 1919, p. 200). . As famosas teses Sobre o conceito de história (1940) de Benjamin, e suas críticas ferozes à crença do socialismo no progresso, ecoaram posteriormente esta posição soreliana sobre programas e visões futuros.

5. Direito versus Justiça

Como muitos comentaristas notaram (considere, por exemplo, o ensaio de Jacques Derrida, Força de lei [Force de loi], 1990DERRIDA, Jacques. “Force of Law: The ‘Mystical Foundation of Authority’”. Cardozo Law Review, 11, 1990, 921-1045. Tradução: DERRIDA, J. Força de lei: o fundamento místico da autoridade. Tradução de Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010.), o conceito mais controverso de Benjamin continua sendo o de "violência divina" - um termo que o Benjamin marxista de mais tarde explicitamente rejeitou como “um ponto-cego vazio, um conceito limite, e uma ideia regulativa”13 13 (BENJAMIN apud KRAFT, 1992, p.47). Tradução Livre. . O Benjamin pré-marxista e mais anarquista de 1921, entretanto, ainda está argumentando a partir de uma postura radicalmente ética contra o vínculo mítico da lei e sua aplicação à vida, a qual reduz esta última à “mera vida” [bloßes Leben]. Mas como devemos entender a referência de Benjamin à linguagem da teologia e a antítese entre “divino” e “mítico”? Para o jovem Benjamin, o monoteísmo ético como o desenvolvido em A religião da Razão a partir das fontes do judaísmo [Die Religion der Vernunft aus den Quellen des Judentums, 1919] de Hermann Cohen ainda fornece um - ainda que problemático - ponto de referência. A partir de Cohen, é possível criticar a sociedade capitalista moderna enquanto estruturalmente pagã; ela pode ser contestada através do ponto de vista do monoteísmo ético (a partir das fontes do judaísmo) - um monoteísmo da razão purificado de todas as formas de relações e religiões de culto míticos. Diferentemente de Cohen, porém, a postura estruturalmente “anti-pagã” e “anti-mítica” de Benjamin não se limita à teologia e à ética. Ao contrário, para Benjamin, a antítese assimétrica e incomensurável do paganismo mítico e do monoteísmo divino funciona como uma distinção analítica para criticar o Estado capitalista moderno e sua violência jurídica14 14 No fragmento “Capitalismo como religião” (BENJAMIN, 2013a, p. 21-25), escrito em 1921, por volta da mesma época que Para a crítica da violência, Walter Benjamin caracteriza o capitalismo como uma religião de culto pagão, que se emancipou como um parasita que se livra de seu "hospedeiro" histórico, os elementos mítico-pagãos do cristianismo, para finalmente, no capitalismo, instalar seu próprio culto como um mero culto, como prática de culto sem teologia. . Já em seu ensaio Destino e Caráter (1919), Benjamin rejeita o “dogma da culpa natural inerente à vida humana, da culpa originária cuja indissolubilidade constitui a doutrina do paganismo - e cuja ocasional dissolução se dá por meio do culto […]” (2013, p. 97-98). No centro da refutação de Benjamin encontra-se o princípio da culpa e da retribuição, que é o fundamento das formas modernas do direito e do sentimento moral. Da perspectiva estruturalmente monoteísta de Benjamin, não pode haver ordem ética baseada no “nexo de culpa do vivente” (2013, p. 94). Pois o nexo de culpa e retribuição é uma crença mítica e não deve ser confundida com o ponto de vista ético-político da justiça15 15 Em “Capitalismo como Religião”, Benjamin identifica esse princípio com o capitalismo; a ambiguidade da palavra alemã Schuld, que denota tanto culpa moral como a dívida econômica, conduziu-o à tese de que o capitalismo é uma religião puramente cultual, privada de qualquer dogma teológico específico (BENJAMIN, 2013a, p. 21-22). . Nos anos que antecederam seu ensaio Para a crítica da violência, enquanto estudava na Suíça, Benjamin e seu amigo íntimo Gershom Scholem discutiram exaustivamente o conceito de justiça em sua dimensão política, teológica e ética. Em 1916, Benjamin compartilhou suas "Notas para um Estudo sobre a Categoria de Justiça" com seu amigo, que as transcreveu em seu próprio caderno. Nesta nota impressionante, Benjamin escreve:

a justiça não é uma virtude como as outras virtudes (humildade, amor ao próximo, lealdade, coragem), ela constitui, ao contrário, uma nova categoria ética, a qual provavelmente não deveria mais ser chamada de uma categoria da virtude, mas de uma categoria da virtude em relação a outras categorias. A justiça não parece estar baseada na boa vontade do sujeito, mas forma o estado do mundo. A justiça refere-se à categoria ética do existente, a virtude à categoria ética do demandado. Enquanto a virtude pode ser demandada, a justiça, no fim das contas, só pode ser o estado do mundo ou o estado de Deus. [...]

A justiça é o lado ético da luta. A justiça é o poder [Macht] da virtude e a virtude do poder [Macht]. A responsabilidade pelo mundo que compartilhamos está resguardada da instância da justiça. [...] O grande impasse de conhecimento que se estende entre o direito [Recht] e a justiça [Gerechtigkeit] é capturado por outras línguas: [direito:] jus [Latim] themis [Grego] misphat [Hebreu] [justiça:] fas [Latim] dike [Grego] zedek [Hebreu] (BENJAMIN, 1995__________. “Notizen zu einer Arbeit über die Kategorie der Gerechtigkeit”. In G. Scholem, Tagebücher (K. Gründer, H. Kopp-Oberstebrink, F. Niewöhner, eds.), 1. Halbband 1913-1917. Frankfurt a. M.: Jüdischer Verlag, 1995., p. 402)16 16 A tradução para o inglês foi retirada de (JACOBSON, 2003, p. 166f). Em suas posteriores "Teses sobre o Conceito de Justiça" (1919/25), Scholem fará eco às " Notas para um Estudo sobre a Categoria da Justiça" (1916) de Benjamin: A justiça não é uma virtude (onde a virtude define a categoria ética do demandado), mas sim (provisoriamente) a Categoria do eticamente existente. [...] A verdade não é um movedor - ela é profundamente não revolucionária. Revolucionárias são aquelas posições cujas exigências são absurdas (objetivamente) e óbvias (subjetivamente). Mas a verdade é limitada por sua aparência irônica (que é sua única força motriz). [Tese] 4) A justiça como uma demanda é a virtude da violência [Gewalt] - a mais revolucionária e catastrófica de todas as demandas. A virtude tem, em particular, um sujeito individual; os humildes têm uma relação clara e descomplicada com a humildade. O sujeito da violência [Gewalt] - que é um fenômeno mais complexo - é, no entanto, como um indivíduo apenas simbolicamente; o verdadeiro proprietário, não simbólico, da violência é anônimo: a sociedade" (SCHOLEM apud JACOBSON, 2003, p. 175). .

Conforme já indica a palavra latina fas, isto é, a lei divina ou a vontade de Deus, o conceito de Benjamin de Gerechtigkeit é radicalmente distinto do que chamamos hoje justiça, derivada do latim iustitia ou do alemão Recht. Para fins de tradução, e de acordo com sua etimologia alemã e inglesa, temos que nos apoiar na palavra "justiça". Entretanto, quando lemos justiça em Benjamin, também temos de ler fas, lei divina, que é uma categoria que excede a moralidade humanista, a “boa vontade” kantiana (KANT, 2007, p. 21), e a jurisdição imposta pelo Estado. Enquanto uma categoria existente, o conceito de justiça de Benjamin é uma categoria inacessível, que não pode ser executada, monopolizada, ou cumprida por um sujeito soberano. Para Benjamin, a justiça é antes uma categoria messiânica, a qual pode ser decretada por um sujeito humano, na medida em que pratica um ato justo - decreta uma categoria existente - cuja origem permanece inacessível aos humanos. “Divino” nada mais é que o termo teológico de Benjamin para uma esfera profana inacessível e impenetrável às demandas totalizantes de um sujeito soberano. Em outras palavras, para Benjamin a justiça não é uma ideia regulativa (como é para Kant) ou a distribuição igual e recíproca de bens, responsabilidades e deveres dentro da ordem social (como na Ética a Nicomaco de Aristóteles), mas uma categoria ética que excede as fronteiras do direito e dos conceitos legalistas e moralistas de justiça.17 17 De modo semelhante, a categoria da verdade de Benjamin tem de ser diferenciada do conhecimento objetivo; a verdade é a interrupção real do continuum do conhecimento, que não pode ser produzida objetivamente. A verdade é um encontro involuntário - um flash - inacessível do ponto de vista das intenções cognitivas do sujeito da cognição. Ver meu artigo: (KHATIB, 2015).

Se direito e justiça são categorias irreconciliáveis, pertencendo a esferas heterogêneas, a justiça é assimétrica, imensurável, incomensurável, não aritmética, não distributiva e não recíproca. Tentando dar conta daquilo de que não se pode dar conta, o conceito de justiça de Benjamin deriva da linguagem da teologia. Teologia não se limita aqui ao âmbito da religião, mas funciona como uma noção corretiva para a articulação de categorias, que de outra forma não têm lugar próprio nos campos da filosofia, religião, cultura ou direito. É nesse sentido que a justiça está relacionada com as categorias messiânicas de cumprimento e de “perdão”18 18 Ver o fragmento de Benjamin “The Meaning of Time in the Moral Universe” (1996, SW 1, pp. 286-287), em que o perdão é introduzido como uma categoria divina não-retributiva contra a concepção pagão do Juízo Final como “a data em que cessam todos os adiamentos e a toda retribuição é dada liberdade” (SW 1, p. 286). , as quais não podem ser alcançadas através de relações de equidade ou retribuição. No entanto, a compreensão de Benjamin sobre a justiça é relevante para a vida profana. Para dar-lhe todo o seu peso, temos de romper com o emblema clássico da iustitia ou dike como sendo um equilíbrio equalizador entre atos bons e maus, uma métrica moral de culpa e uma punição compensatória. O ponto anti-mítico de Benjamin, isto é, monoteísta, ou judaico é que a justiça não é “equilibrada” - ela não é derivada de relações de igualdade e reciprocidade. Nesse contexto, Slavoj Žižek está certo em nos recordar que “a Lei judaica não é uma lei social como as outras: enquanto as outras leis (pagãs) regulam as trocas sociais, a Lei judaica introduz outra dimensão, a da justiça divina, que é de uma heterogeneidade radical em relação à lei social” (ŽIŽEK, 2006, p. 147)19 19 N.E.: Tradução ligeiramente modificada. .

Em contraposição, o conceito jurídico moderno de justiça baseia-se no ideal de alcançar a igualdade ou relações de igualdade dentro da ordem social. Ao equiparar culpa e retribuição, delito e punição, o sistema jurídico estabelece uma cadeia causal de eventos, que supostamente conduzem a um ato criminoso, o qual é percebido como o desbalanceamento ou a desordem do equilíbrio da justiça. O “dizer a lei” da jurisdição [juris-diction] é percebido, portanto, como o restabelecimento de um equilíbrio pacífico que foi perturbado ou violado. Benjamin, entretanto, argumenta que o direito torna-se destino mítico uma vez que deduz seus julgamentos de tais causalidades fictícias: “O juiz pode entrever o destino onde quiser; cada vez que pune, ele deve, ao mesmo tempo, às cegas, ditar um destino - destino no qual o homem jamais é atingido, mas apenas a mera vida nele […]” (BENJAMIN, 2013, p. 94). Consequentemente, para o primeiro Benjamin, não há diferença essencial entre a crença mítica (estruturalmente pagã) na culpa e no destino e o princípio moderno (secular) do direito e do julgamento. O destino enquanto oposto da liberdade se origina no contexto do mito no qual o homem estava subordinado à vontade dos deuses. Mantendo o aspecto estrutural do argumento de Benjamin em mente, no entanto, devemos nos perguntar qual é a relevância problemática de sua linguagem teológica - uma linguagem que não pode ser simplesmente separada em terminologia teológica e conteúdo profano análogo.

Comentando o uso pouco convencional de Benjamin de conceitos e atributos teológicos como culpa, destino, sacrifício, mito e divino, Herbert Marcuse admitiu em 1964 que “Benjamin propôs formulações que achamos difícil seguir aceitando” (MARCUSE, 2014MARCUSE, Herbert. “Afterword to Walter Benjamin’s ‘Critique of Violence’”. In: Marxism, Revolution and Utopia: Collected Papers of Herbert Marcuse, Vol. 6, ed. Douglas Kellner and Clayton Pierce. London: Routledge, 2014, 123-7., p. 126). No entanto, estruturalmente Marcuse endossa o argumento de Para a crítica da violência, e o lê no contexto das referências posteriores de Benjamin ao pensamento messiânico: “Na crítica da violência de Benjamin, torna-se claro que o messianismo é uma figura que expressa à verdade histórica: a humanidade libertada só é concebível agora como a negação radical (e não apenas determinada) da circunstância atual” (MARCUSE, 2014, p. 124). A teologia não tem, aqui, qualquer sentido positivo como na Teologia Política, mas uma função “corretiva” ex negativo20 20 N.T.: a definição de um termo a partir daquilo que este termo não é. (BENJAMIN, 2009, p. 513, n7a7 também N 2a, 3; N 3, 1; N 4, 1), que poderia ser lida como a tentativa inicial de Benjamin de escapar de certo hegelianismo vulgar de seus contemporâneos. Em seu trabalho posterior e na correspondência com seu amigo e interlocutor próximo Theodor W. Adorno, esta tentativa ganhou nuances diferentes, particularmente no contexto do projeto posterior de Benjamin sobre a imagem de pensamento [Bilderdenken] dialética no contexto das Passagens (pense em sua noção de "imagem dialética", por exemplo). Em 1921, porém, a busca de Benjamin por uma linguagem incomensurável e não cooptada apontou para uma direção diferente. Nós podemos reconhecer certamente que a linguagem teológica de Para a crítica da violência é uma reflexão sobre o problema de que uma crítica radical da violência estatal não pode depender de uma dada linguagem estabelecida e convencional da crítica. Pelo contrário, ela necessita introduzir categorias e conceitos que não sejam vinculáveis e não estejam vinculados a certa sociedade há certo tempo. Em 1921, “violência divina” pode ter sido um conceito assim. Reciprocamente, não deveríamos retraduzir à linguagem teológica de Benjamin para a teologia convencional em sentido religioso, e tampouco a teologia política para um sentido reacionário. Em 1964, Marcuse tem certamente razão em concluir que:

“O messianismo de Benjamin nada tem a ver com a religiosidade habitual: culpa e restituição são para ele categorias sociológicas. A sociedade define o destino e torna-se ela mesma degradada: dentro dela uma pessoa deve tornar-se culpada" (Marcuse, 2014MARCUSE, Herbert. “Afterword to Walter Benjamin’s ‘Critique of Violence’”. In: Marxism, Revolution and Utopia: Collected Papers of Herbert Marcuse, Vol. 6, ed. Douglas Kellner and Clayton Pierce. London: Routledge, 2014, 123-7., 124). Enquanto categorias sociológicas, no entanto, elas não são redutíveis a nenhum domínio dado do social. O social, em sentido moderno, não é uma entidade consistente, mas é também “feito” de relações negativas, fantasias, ordens simbólicas e antagonismos não resolvidos. A modernidade é tão antiga quando o mito da modernidade como uma época histórica auto-iluminada e autotransparente, capaz de situar historicamente seus próprios espectros e seus antagonismos não resolvidos (ou seja, as temporalidades multifacetadas da luta de classes, do colonialismo, etc.).

Em sua escolha de linguagem, Benjamin não está sozinho em relação ao discurso entre guerras da primeira geração da Teoria da Crítica. Como Max Horkheimer, Theodor W. Adorno e outros teóricos do início da Escola de Frankfurt argumentaram, com a ascensão da modernidade e sua intrínseca "dialética do esclarecimento", o antigo mythos pré-moderno, retornou sob a forma de crenças míticas e de relações sociais míticas. A emancipação interrompida e defeituosa do homem em relação à “primeira natureza” se tornou uma subordinação à “segunda natureza”, isto é, à sociedade. Essa percepção materialista já está em jogo nos primeiros escritos de Benjamin, quando ele criticou a violência legal do Estado moderno em termo de um culto mítico da culpa que resultou em destino.21 21 Considere, por exemplo, a seguinte passagem de “World and Time”, um fragmento de cerca de 1919/20: “Em seu estado atual, o social é uma manifestação de poderes espectrais e demoníacos, sobretudo frequentemente ao se esforçarem, em sua mais alta tensão perante Deus, para transcender a si mesmos. O divino manifesta-se neles apenas na força/violência [Gewalt] revolucionária. Apenas na comunidade [Gemeinschaft], em lugar nenhum nas ‘instituições sociais’, o divino manifesta-se, seja com violência/força [Gewalt] ou sem. (Neste mundo, a violência/força [Gewalt] divina é mais elevada que a não-violência divina; no mundo que vem, a não-violência divina é mais elevada que a violência/força [Gewalt] divina)” (SW 1, p. 227; GS VI, p. 99).

6. Mítico versus Divino

Contra o pano de fundo dos primeiros esboços e ensaios de Benjamin, entre 1916 e 1921, e à luz de sua posição sobre a virada ética do monoteísmo de Cohen, não surpreende que seu ensaio Para a crítica da violência empregue como sua distinção mais crucial os pares antitéticos pagão/mítico e monoteísta/divino. Se considerarmos a seguinte tabela, essa contraposição assimétrica torna-se aparente22 22 Uma tabela similar pode ser encontrada em (REIJEN, 1998, p. 201); cf. (REIJEN & DOORN, 2001, p. 66). Ver também meu livro “Teleologie ohne Endzweck”. Walter Benjamins Ent-stellung des Messianischen (KHATIB, 2013, p. 395) (tabela 6). .

Violência mítica Violência divina Instauradora do direito rechtssetzend Aniquiladora do direito rechtsvernichtend Estabelecedora de fronteiras Grenzen setzend Aniquila sem limites as fronteiras grenzenlos Grenzen vernichtend Traz, simultaneamente, dívida/culpa e expiação verschuldend und sühnend Expiatória entsühnend Ameaça drohend Golpeia schlagend Sangrenta blutig Letal de maneira não-sangrenta auf unblutige Weise letal Violência sangrenta exercida, em favor próprio, sobre a mera vida Blutgewalt über das bloße Leben Violência pura se exerce sobre toda a vida, em favor do vivente reine Gewalt über alles Leben um des Lebendigen willen Exige sacrifícios fordert Opfer Aceita sacrifícios nimmt Opfer an Violência instauradora do direito é “violência arbitrária.” [schaltende Gewalt] Violência mantenedora do direito é “violência administrada” [verwaltete Gewalt] Violência divina é violência violenta/não violenta23 [waltende Gewalt]

A última antítese da tabela - schaltende e verwaltete versus waltende Gewalt - nos leva de volta à palavra alemã para violência, Gewalt, a qual, como mencionado anteriormente, deriva de waltan. Assim, a formulação de Benjamin waltende Gewalt é, a rigor, tautológica: uma violência violenta que coincide com seu oposto, uma violência não-violenta. A violência divina enquanto violência violenta não desempenha uma dupla negação no sentido Hegeliano convencional de se tornar novamente positiva. Ao contrário, a violência divina permanece negativa, instável, indeterminada; enquanto uma violência entsetzende, destituidora ou revogadora, não denota uma qualidade positiva, a instauração de algo, nem um evento definido ou previsível. Como escreve Benjamin, “apenas a violência mítica, não a divina, será reconhecida como tal com certeza, a não ser por efeitos incomparáveis, pois a força expiatória da violência não é clara aos olhos dos homens” (2013, p. 156). A violência divina enquanto grau zero da violência mítica só pode ser identificada como tal retroativamente; na situação presente, porém, Benjamin nos deixa com insinuações vagas: “Esta pode se manifestar na guerra verdadeira do mesmo modo como pode se manifestar o juízo de Deus proferido pela multidão acerca do criminoso” (2013, p. 156). Esse comentário indica que a violência divina não é simplesmente um poder externo, uma intrusão de fora. Ao contrário, a dificuldade da violência divina é precisamente que ela possa tomar a forma da violência profana, contanto que não seja mítica.

Dessa diferença fina, quase trivial, e, no entanto, crucial, depende a antítese das violências mítica e divina: Ao não revelar nenhum significado mais profundo ou segredo mítico, a violência divina tem uma função protocrítico-ideológica, que a torna impossível de justificar ou legitimar. Nesse contexto, é importante compreender que a crítica da violência de Benjamin não argumenta em favor do pacifismo nem se opõe à punição capital. Anos depois, em seu livro de aforismos Rua de mão única (1926-28), ele escreve: “O ato de matar o criminoso pode ser moral [sittlich] - jamais a justificação desse ato”. (1987, p. 61; GS IV, p. 138). Em um sentido kantiano, a crítica da violência não significa a refutação da violência, mas a avaliação de seu escopo e de sua área de competência.

7. Violência Divina

Com o termo violência divina, Benjamin introduz um conceito-limite problemático e testa o escopo do conceito de violência por inteiro, adentrando uma zona de indistinção em que uma posição a favor ou contra a violência perde sua importância. Entretanto, a violência divina não é uma lacuna, um significante vazio, ou um mero substituto para algo inacessível. Seguindo a lógica do ensaio todo, a violência divina não é entendida de modo substancialista, mas relacionalmente: o que é inacessível (“divino”) na violência divina “está relacionado” a uma relação inacessível. Sob esse aspecto, a violência divina também assinala um caso-limite da lógica do predicado: todas as frases que iniciam com um sujeito e uma copula ("a violência divina é...") necessariamente perdem de vista a predicação pretendida. Nesse sentido, poderíamos dizer que a violência divina apenas “corresponde” à desativação revolucionária da violência mítica, ou seja, à destruição do direito através da destituição, Entsetzung, do ciclo da violência de instauração e preservação do direito. É esta desativação revolucionária como pura violência imediata que depõe o direito:

...na destituição do direito [Entsetzung des Rechts] e de todas as violências das quais ele depende, e que dependem dele, em última instância, então, na destituição da violência do Estado, que se funda uma nova era histórica. Se, no presente, a dominação do mito já foi aqui e ali rompida, então o novo não se situa num ponto de fuga tão inconcebivelmente longínquo, de tal modo que uma palavra contra o direito não é inteiramente inócua. Mas se a existência da violência para além do direito, como pura violência imediata, está assegurada, com isso se prova que, e de que maneira, a violência revolucionária - nome que deve ser dado a mais alta manifestação da violência pura pelo homem - é possível (BENJAMIN, 2013, p. 155; GS II, p. 202).

É crucial não equivaler diretamente à violência divina com a “mais alta manifestação da violência pura pelo homem”, isto é, a violência revolucionária enquanto meio puro (por exemplo, na greve geral proletária). Antes de examinar a estrutura paradoxal da destituição do direito, examinemos mais de perto a diferença entre a violência divina e a violência revolucionária enquanto um meio não-violento (“puro”, “reines”). Como devemos conceber a natureza de sua correspondência? Qual é a divindade da violência divina em oposição à profanidade da destituição do direito?

Como uma resposta preliminar, eu sugiro compreender a violência divina como o nome para um lugar inacessível no interior da ordem profana, isto é, a violência divina não é um poder exterior, transcendental, intervindo nos assuntos humanos desde fora, mas corresponde a certo domínio no próprio centro da vida profana. Como uma paradoxal violência violenta/não-violenta, ela refere-se a um excesso da vida profana não redutível à violência mítica. Da perspectiva da violência mítica (direito e Estado), a violência divina permanece, portanto, ou transcendente (“divina”) ou invisível (violenta/não-violenta). Da perspectiva de um movimento de desfazer a violência mítica (a greve proletária), entretanto, a violência divina introduz um corte no ciclo quase orgânico de emergência e degradação da mera vida, sujeita à violência mítica. Benjamin opera aqui com duas perspectivas incomensuráveis sobre a vida profana: a violência divina e a justiça se relacionam com a vida profana apenas como “o vivente”, das Lebendige, em contraposição à violência mítica que se relaciona com a vida profana apenas como mera vida, bloßes Leben - uma vida privada de seu excesso ético sobre a vida biológica24 24 Cf. Benjamin: “Die mythische Gewalt ist Blutgewalt über das bloße Leben um ihrer selbst, die göttliche reine Gewalt über alles Leben um des Lebendigen willen” (GS II, p. 200). “A violência mítica é violência sangrenta exercida, em favor próprio, sobre a mera vida; a violência divina e pura se exerce sobre toda a vida, em favor do vivente” (2013, p. 151-152). [N.E.: A tradução de Ernani Chaves foi ligeiramente modificada com o termo “über” sendo vertido para “sobre”, levando em conta o original alemão (BENJAMIN, Walter. Gesammelte Schriften. II.1. Frankfurt: Suhrkamp, 1991, p. 200), e as traduções para o português de Willi Bolle (BENJAMIN, Walter. “Crítica da Violência - Crítica do Poder”. In: Documentos de Cultura, Documentos de Barbárie: Escritos escolhidos. São Paulo: EdUSP/Cultrix, 1986, p.173) e João Barrento (BENJAMIN, Walter. “Sobre a crítica do poder como violência”. In: O anjo da história. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2012, p.79)]. . Portanto, da perspectiva da mera vida, a violência divina, de fato, representa uma dimensão exterior ou transcendente à violência mítica cotidiana. Desse ponto de vista violentamente privado, o caráter divino da violência divina alude a uma falta que só pode ser abordada em termos de correspondências e não por meio de equivalências ou identificações. Em outras palavras, a violência revolucionária, como a encarnação profana de algo inacessível no próprio coração do profano, apenas se refere à violência divina sem ser idêntica a ela. Paradoxalmente, a violência divina, por um lado, pertence à ordem do Evento: não é uma parte integrante da vida cotidiana, mas introduz uma cesura no nexo mítico entre vida e direito; por outro lado, ela pode ser decretada, encarnada, apresentada pelos humanos sob a forma da violência revolucionária pura sem ser previsível ou predicável de antemão.

8. O real estado de exceção

Na falta de predicados definidos, a violência divina pode ser confundida com sua negação assimétrica, a violência excepcional do Estado que visa constituir a violência mítica através da suspensão do direito. No entanto, o estado de emergência, Ausnahmezustand (literalmente: “estado de exceção”), no qual o poder soberano busca fundamentar sua autoridade suspendendo o direito, deve ser estritamente distinguido da violência divina (violenta/não-violenta) e da destituição revolucionária do direito. Com relação ao fascismo, na oitava tese Sobre o Conceito de História (1940), Benjamin afirma claramente:

A tradição dos oprimidos nos ensina que o “estado de exceção” [Ausnahmezustand] no qual vivemos é a regra. Precisamos chegar a um conceito de história que dê conta disso. Então surgirá diante de nós nossa tarefa, a de instaurar o real estado de exceção; e graças a isso, nossa posição na luta contra o fascismo tornar-se-á melhor. A chance deste consiste, não por último, em que seus adversários o afrontem em nome do progresso como se este fosse uma norma histórica. (BENJAMIN, 2005, p. 83; GS I, p. 697; grifo do autor).

Ao colocar Ausnahmezustand entre aspas, Benjamin faz uma referência inequívoca ao estado de exceção fascista, que foi antecipado teoricamente, racionalizado e, em última instância, legitimado por Carl Schmitt25 25 Cf. (SCHMITT, 2004). . Assim como o real estado de exceção se relaciona com o estado de exceção fascista, também a violência divina (violenta/não-violenta) se relaciona com a suspensão violenta da violência mítica em virtude do poder soberano26 26 Benjamin já havia discutido a teoria do “estado de emergência/exceção” de Schmitt em seu livro anterior sobre o Trauerspiel alemão [Origem do drama trágico alemão, em português], publicado em 1928, cf. (GS I, 245-253). Benjamin argumenta que a posição do Fürst, princípe, está presa na antítese entre Herrschermacht, o poder do governante, e Herrschvermögen, a capacidade ou potência de governar. Como resultado, o príncipe é exposto a sua própria incapacidade de decidir sobre o estado de emergência/exceção (cf. GS I, 250). Para Schmitt, no entanto, essa decisão é precisamente o que define o poder soberano (cf. SCHMITT, 2004, p. 13). . Todo o argumento de Para a crítica da violência depende dessa distinção mínima, porém crucial, que também se reflete nas posteriores teses Sobre o Conceito de História. De fato, o ensaio precedente de Benjamin já demonstrava como a violência soberana, como a falsa suspensão da violência mítica, participa da dialética espúria dos ciclos de violência de instauração e de preservação do direito. Entretanto, a definição relacional de Benjamin da violência mítica se torna difícil, se nos focalizarmos no conteúdo prospectivo e nos atributos da violência divina. No primeiro ensaio de sua série Homo Sacer, Agamben comenta:

A violência, que Benjamin define divina, situa-se, em vez disto, em uma zona na qual não é mais possível distinguir entre exceção e regra. Ela está, para a violência soberana, na mesma razão em que, na oitava tese, o estado de exceção efetivo está para aquele virtual (AGAMBEN, 2002, p. 72-73).

Contra o pano de fundo desta leitura, devemos insistir que o conteúdo indeterminado e os atributos da violência divina enquanto o "real estado de exceção" e a "destituição do direito" não podem ser simetricamente opostos ao "estado de exceção" fascista, no qual não é mais possível distinguir entre a exceção e a regra. Mesmo na ausência de determinações atribuíveis, não há simetria ex negativo da violência divina (violenta/não violenta) e da violência soberana em relação à dialética espúria da violência mítica. Mais tarde, em seu trabalho sobre o Estado de exceção, Agamben esclarece esse ponto argumentando que a lacuna, que separa a lei de sua aplicação e execução, permanece sempre oculta da perspectiva da apologética da violência estatal e da lei. Em outras palavras, a teoria schmittiana do estado de exceção/emergência não percebe a natureza da lacuna que finge teorizar, ao introduzir um problema fictício: “Longe de responder a uma lacuna normativa, o estado de exceção apresenta-se como a abertura de uma lacuna fictícia no ordenamento, com o objetivo de salvaguardar a existência da norma e sua aplicabilidade à situação normal” (Agamben, 2011, p.48). Dito de outro modo, a teoria do estado de exceção/emergência pode ser lida como uma tentativa de incluir no direito aquilo que está fora do direito, através da invenção de uma zona de indistinção fictícia (à qual a violência soberana nitidamente "reage" ao decidi-la). Em contraposição, Benjamin viu claramente que esta zona é interna à lei e que, além disso, esta zona é o primeiro efeito da violência mítica. A violência mítica, aliás, cria suas próprias pré-condições. Esta inversão de causa e efeito permanece sempre oculta do ponto de vista da violência soberana e mítica. Ao contrário da violência soberana, a violência divina não está introduzindo uma zona de indistinção entre direito e natureza, fora e dentro, violência e direito, mas ela curto-circuita e, finalmente, destitui a dialética espúria que sempre novamente inscreve a vida na violência mítica como mera vida.27 27 Implicitamente criticando a linha de argumento mais antiga de Agamben, Slavoj Žižek, em seu ensaio sobre a Violência, corretamente enfatiza a importância de distinguir claramente a violência divina do estado de exceção imposto pelo Estado: “A violência divina não é a origem ilegal reprimida da ordem legal [...] A violência divina deve ser portanto distinguida da soberania do Estado enquanto exceção que funda a lei, e também da violência pura enquanto explosão anárquica” (ŽIŽEK, 2014, p. 156-157).

9. Entsetzung

Para concluir, retornemos à estrutura assimétrica da Entsetzung des Rechts, a destituição do direito, a qual revela a natureza incompatível e incomensurável da violência divina. Se a violência divina e a violência pura revolucionária podem adentrar uma zona de indistinção instável e não-idêntica (a qual não é a zona fictícia introduzida pela violência soberana), ainda podemos distinguir entre três características paradoxais, porém mutuamente iluminadoras, em termos de qualidade, agência e temporalidade.

(A) violência pura como um meio puro designa uma “não qualidade”, um “grau-zero” absoluto de violência mítica, que não é simplesmente não-violência, mas introduz uma “violência crítica”; é uma impressionante violência sem qualidades e "sem expressão", que interrompe como uma "cesura" o curso fatalmente oscilante da violência instauradora e mantenedora do direito.

(B) A “agência” ou “atividade” de destituição provoca uma reversão, uma retirada do direito de sua aplicação à mera vida; essa desativação indica um movimento de désœuvrement28 28 Cf. (BLANCHOT, 1988); ver também (NANCY, 1991). - uma passividade ativa, um ato de recuo que se dissolve, desfazendo (de-creating) a aplicação do direito à mera vida. Paradoxalmente, no evento político de destituição do direito, uma atividade radical (a "revolução") coincide com um Evento marcadamente destrutivo, aniquilador e desastroso (a "violência divina") que apenas pode ser suportado. Apesar dessa coincidência, no entanto, a violência divina “não é uma intervenção direta de um Deus onipotente vindo punir a humanidade pelos seus excessos, uma espécie de previsão ou antecipação do Juízo Final.”( Žižek, 2014, p. 156).

(C) A destituição designa um “non-Event”, ou melhor, um “A-Event”, cuja temporalidade, conforme comenta Hamacher:

não é sujeita à nenhuma forma temporal conhecida, ou seja, jamais a uma forma de apresentação que é sempre também uma forma de instituição: ela é “contratemporal” ou anacrônica. O poder puro é tanto pré-posicional quanto pré-temporal, logo não é apto à representação. (Hamacher, 2020HAMACHER, Werner. Aformativo, greve. Revista Direito e Práxis, v. 11, n. 3, p. 2102-2129, set. 2020., p.2105)

***

Para dar conta dessa estrutura paradoxal, estou tentado a seguir a leitura de Hamacher sobre a destituição do direito. Como mencionado anteriormente, no âmbito do direito, a linguagem se torna auto-performativa.

Ora, se podemos caracterizar a institucionalização jurídica como um ato performativo usando a nomenclatura dos teóricos da teoria dos atos de fala - mas como um ato performativo absoluto, pré-convencional que primeiramente institui as convenções e relações jurídicas - e a dialética da instituição e da decadência como uma dialética da performância, é óbvio designar a “destituição” dos atos instituintes e da sua dialética, pelo menos provisoriamente, como um acontecimento político absolutamente não-performativo ou aformativo, como depositivo e como a-tese [Athesis] política. (Hamacher, 2020HAMACHER, Werner. Aformativo, greve. Revista Direito e Práxis, v. 11, n. 3, p. 2102-2129, set. 2020., p.2109)

A estrutura assimétrica do aformativo29 29 ““Aformativo não é a-formativo, não é uma negação do formativo; a aformância “é” o acontecimento de formação, mesmo sendo sem forma, a qual todas as formas e todos os atos performativos permanecem expostos. (O prefixo latino “ad” marca a abertura de um ato, isto é, de um ato de abertura, como em, apropriadamente, palavra affor, significando “abordar alguém”, por exemplo na despedida. Em aformativo, no entanto, tem que se ler também um a-formativo pensado a partir do aformativo.)” (Hamacher, 2020, p.2110) pode desfazer o ciclo auto-performativo do direito e de sua aplicação à mera vida porque pode dar conta do que não se pode dar conta, que são os dois meios (media) dos meios puros mencionados por Benjamin: linguagem e política. Nesse sentido, a greve geral proletária é a a-tese aformativa de todo agir político baseado no Estado e na violência mítica - ela apresenta o ataque (‘formante’) desfazedor (‘des-formante’) de todas as ações (‘formações’) da violência mítica. Esse desfazer se relaciona à própria mediação da política. A greve geral proletária não acrescenta nenhum conteúdo ou programa radical, mas explora a dialética assimétrica do Staatsgewalt, o poder do Estado, de dentro de sua estrutura formal sem assumir a perspectiva do Estado (como defendido pelos apologistas da violência soberana). Desse modo, a greve geral proletária aniquila [vernichtet] a mediação legal da violência estatal e de suas instituições.

10. Referências Bibliográficas

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  • 1
    Originalmente publicado como “Towards a Politics of ‘Pure Means’: Walter Benjamin and the Question of Violence,” em: Conflicto armado, justicia y memoria, Tomo 1: “Teoría crítica de la violencia y prácticas de memoria y resistencia,” ed. Enan Enrique Arrieta Burgos, Medellín: Editorial de la Universidad Pontificia Bolivariana, 2016, 41-65. Para esta tradução para o português, o artigo original em inglês foi modificado e atualizado. Como trata-se de um trabalho em desenvolvimento, a versão mais antiga foi apresentada na conferência “Historical Materialism”, em Londres - Reino Unido, no dia 13 de novembro de 2010. Uma versão posterior foi publicada, em 2011, no blog “Anthropological Materialism” (http://anthropologicalmaterialism.hypotheses.org/1040).
  • 2
    Nota de Tradução (N.T.): Para esta tradução optou-se por utilizar a versão do texto de Benjamin em português traduzida por Ernani Chaves, com notas de Jeanne Marie Gagnebin disponível na coletânea Escritos sobre mito e linguagem (2013). Outros textos de Benjamin citados pelo autor presentes nesta coletânea também serão citados conforme sua tradução. No texto original, o autor citou o texto de Benjamin conforme a edição Selected Writings (1996ff) e a edição alemã Gesammelte Schriften (1972ff). Para a tradução, a citação da edição alemã foi mantida conforme o uso do autor. Já a edição americana foi citada apenas para textos sem tradução para o português. A referência às edições americana e alemã foram respectivamente assim abreviadas: “SW, número do volume”; “GS, número do volume”.
  • 3
    Conforme a nota do editor de Benjamin (1977, p. 943). Ver também (TOMBA, 2009, p. 127): “O texto de Benjamin foi concebido como parte de um trabalho intitulado Politik, subdividido em duas partes: a primeira intitulada "Der wahre Politiker", da qual a revisão de Paul Scheerbart é tudo o que restou, e a segunda, intitulada "Die wahre Politik", por sua vez dividida em dois capítulos, a) "Der Abbau der Gewalt“ e b) "Teleologie ohne Endzweck". O primeiro capítulo está incluído em 'Zur Kritik der Gewalt', enquanto o segundo pode ser percorrido ao longo do denso Theologisch-politisches Fragment”
  • 4
    O Parlamento Alemão, o Bundestag, escolheu traduzir a palavra alemã “Staatsgewalt”, para o inglês “authority” Cf. <https://www.btg-bestellservice.de/pdf/80201000.pdf>, (Article 20). [N.T.: Na tradução para o português, o Bundestag, escolheu traduzir “Staatsgewalt” por “poder”, o que expressa a pluralidade semântica do termo. Cf. <https://www.bundestag.de/resource/blob/638342/617306e93cc3eacda9370d2e9f146d56/flyer-data.pdf>, (Artigo 20).]
  • 5
    Cf. (HAMACHER, 2020, pp. 2103 e ss).
  • 6
    Comentei em outro lugar sobre o paralelo e a diferença da abordagem de Benjamin da noção de biopoder em relação à de Michel Foucault. Ver: (KHATIB, 2018, pp. 617-618).
  • 7
    Contudo, já em carta anterior a Ernst Schoen, datada de 28 de dezembro de 1917, Benjamin mencionou suas "reflexões desesperadas sobre o fundamento linguístico do imperativo categórico" (BENJAMIN, 1994, p. 108).
  • 8
    N.T.: Conforme indica nota de Jean Marie Gagnebin no texto “Sobre a linguagem em geral e sobre a linguagem do homem”: “Medium e Mittel são termo recorrentes na reflexão benjaminiana e assumem particular importância no presente ensaio. O segundo tem a significação de ‘meio para determinado fim’, caracteriza, portanto, um contexto instrumental e alude sempre à necessidade de mediação. Já o primeiro termo, Medium, designa o meio, enquanto matéria, ambiente e modo da comunicação, sem que seja possível estabelecer com ele uma relação instrumental com vista a um fim exterior; por isso mesmo, para Benjamin, indica uma relação de imediatidade [Unmittelbarkeit]” (2013, p. 53-54). Nesta tradução, sempre que o autor utilizou o termo meio com o sentido de “medium” optou-se por indicar o uso entre parênteses.
  • 9
    Benjamin cita (SOREL, 1919, p. 265) [N.T.: Ver as Notas da edição brasileira sobre as alterações que a tradução de Benjamin introduz no texto original de Sorel].
  • 10
    Benjamin cita (SOREL, 1919, p. 249).
  • 11
    N.T.: an-archistic, isto é, sem arché. O termo grego arché designa a ideia de princípio, origem ou fundamento.
  • 12
    Benjamin cita (SOREL, 1919, p. 200).
  • 13
    (BENJAMIN apud KRAFT, 1992, p.47). Tradução Livre.
  • 14
    No fragmento “Capitalismo como religião” (BENJAMIN, 2013a, p. 21-25), escrito em 1921, por volta da mesma época que Para a crítica da violência, Walter Benjamin caracteriza o capitalismo como uma religião de culto pagão, que se emancipou como um parasita que se livra de seu "hospedeiro" histórico, os elementos mítico-pagãos do cristianismo, para finalmente, no capitalismo, instalar seu próprio culto como um mero culto, como prática de culto sem teologia.
  • 15
    Em “Capitalismo como Religião”, Benjamin identifica esse princípio com o capitalismo; a ambiguidade da palavra alemã Schuld, que denota tanto culpa moral como a dívida econômica, conduziu-o à tese de que o capitalismo é uma religião puramente cultual, privada de qualquer dogma teológico específico (BENJAMIN, 2013a, p. 21-22).
  • 16
    A tradução para o inglês foi retirada de (JACOBSON, 2003, p. 166f). Em suas posteriores "Teses sobre o Conceito de Justiça" (1919/25), Scholem fará eco às " Notas para um Estudo sobre a Categoria da Justiça" (1916) de Benjamin: A justiça não é uma virtude (onde a virtude define a categoria ética do demandado), mas sim (provisoriamente) a Categoria do eticamente existente. [...] A verdade não é um movedor - ela é profundamente não revolucionária. Revolucionárias são aquelas posições cujas exigências são absurdas (objetivamente) e óbvias (subjetivamente). Mas a verdade é limitada por sua aparência irônica (que é sua única força motriz). [Tese] 4) A justiça como uma demanda é a virtude da violência [Gewalt] - a mais revolucionária e catastrófica de todas as demandas. A virtude tem, em particular, um sujeito individual; os humildes têm uma relação clara e descomplicada com a humildade. O sujeito da violência [Gewalt] - que é um fenômeno mais complexo - é, no entanto, como um indivíduo apenas simbolicamente; o verdadeiro proprietário, não simbólico, da violência é anônimo: a sociedade" (SCHOLEM apud JACOBSON, 2003, p. 175).
  • 17
    De modo semelhante, a categoria da verdade de Benjamin tem de ser diferenciada do conhecimento objetivo; a verdade é a interrupção real do continuum do conhecimento, que não pode ser produzida objetivamente. A verdade é um encontro involuntário - um flash - inacessível do ponto de vista das intenções cognitivas do sujeito da cognição. Ver meu artigo: (KHATIB, 2015).
  • 18
    Ver o fragmento de Benjamin “The Meaning of Time in the Moral Universe” (1996, SW 1, pp. 286-287), em que o perdão é introduzido como uma categoria divina não-retributiva contra a concepção pagão do Juízo Final como “a data em que cessam todos os adiamentos e a toda retribuição é dada liberdade” (SW 1, p. 286).
  • 19
    N.E.: Tradução ligeiramente modificada.
  • 20
    N.T.: a definição de um termo a partir daquilo que este termo não é.
  • 21
    Considere, por exemplo, a seguinte passagem de “World and Time”, um fragmento de cerca de 1919/20: “Em seu estado atual, o social é uma manifestação de poderes espectrais e demoníacos, sobretudo frequentemente ao se esforçarem, em sua mais alta tensão perante Deus, para transcender a si mesmos. O divino manifesta-se neles apenas na força/violência [Gewalt] revolucionária. Apenas na comunidade [Gemeinschaft], em lugar nenhum nas ‘instituições sociais’, o divino manifesta-se, seja com violência/força [Gewalt] ou sem. (Neste mundo, a violência/força [Gewalt] divina é mais elevada que a não-violência divina; no mundo que vem, a não-violência divina é mais elevada que a violência/força [Gewalt] divina)” (SW 1, p. 227; GS VI, p. 99).
  • 22
    Uma tabela similar pode ser encontrada em (REIJEN, 1998, p. 201); cf. (REIJEN & DOORN, 2001, p. 66). Ver também meu livro “Teleologie ohne Endzweck”. Walter Benjamins Ent-stellung des Messianischen (KHATIB, 2013, p. 395) (tabela 6).
  • 23
    N.T.: Seguiu-se, em geral, a tradução dos termos adotada pela tradução de Ernani Chaves, porém em alguns casos a tradução foi modificada de forma a manter o sentido da interpretação do autor Sami Khatib do texto de Benjamin.
  • 24
    Cf. Benjamin: “Die mythische Gewalt ist Blutgewalt über das bloße Leben um ihrer selbst, die göttliche reine Gewalt über alles Leben um des Lebendigen willen” (GS II, p. 200). “A violência mítica é violência sangrenta exercida, em favor próprio, sobre a mera vida; a violência divina e pura se exerce sobre toda a vida, em favor do vivente” (2013, p. 151-152). [N.E.: A tradução de Ernani Chaves foi ligeiramente modificada com o termo “über” sendo vertido para “sobre”, levando em conta o original alemão (BENJAMIN, Walter. Gesammelte Schriften. II.1. Frankfurt: Suhrkamp, 1991, p. 200), e as traduções para o português de Willi Bolle (BENJAMIN, Walter. “Crítica da Violência - Crítica do Poder”. In: Documentos de Cultura, Documentos de Barbárie: Escritos escolhidos. São Paulo: EdUSP/Cultrix, 1986, p.173) e João Barrento (BENJAMIN, Walter. “Sobre a crítica do poder como violência”. In: O anjo da história. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2012, p.79)].
  • 25
    Cf. (SCHMITT, 2004).
  • 26
    Benjamin já havia discutido a teoria do “estado de emergência/exceção” de Schmitt em seu livro anterior sobre o Trauerspiel alemão [Origem do drama trágico alemão, em português], publicado em 1928, cf. (GS I, 245-253). Benjamin argumenta que a posição do Fürst, princípe, está presa na antítese entre Herrschermacht, o poder do governante, e Herrschvermögen, a capacidade ou potência de governar. Como resultado, o príncipe é exposto a sua própria incapacidade de decidir sobre o estado de emergência/exceção (cf. GS I, 250). Para Schmitt, no entanto, essa decisão é precisamente o que define o poder soberano (cf. SCHMITT, 2004, p. 13).
  • 27
    Implicitamente criticando a linha de argumento mais antiga de Agamben, Slavoj Žižek, em seu ensaio sobre a Violência, corretamente enfatiza a importância de distinguir claramente a violência divina do estado de exceção imposto pelo Estado: “A violência divina não é a origem ilegal reprimida da ordem legal [...] A violência divina deve ser portanto distinguida da soberania do Estado enquanto exceção que funda a lei, e também da violência pura enquanto explosão anárquica” (ŽIŽEK, 2014, p. 156-157).
  • 28
    Cf. (BLANCHOT, 1988); ver também (NANCY, 1991).
  • 29
    ““Aformativo não é a-formativo, não é uma negação do formativo; a aformância “é” o acontecimento de formação, mesmo sendo sem forma, a qual todas as formas e todos os atos performativos permanecem expostos. (O prefixo latino “ad” marca a abertura de um ato, isto é, de um ato de abertura, como em, apropriadamente, palavra affor, significando “abordar alguém”, por exemplo na despedida. Em aformativo, no entanto, tem que se ler também um a-formativo pensado a partir do aformativo.)” (Hamacher, 2020, p.2110)

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Set 2020
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2020

Histórico

  • Recebido
    20 Jul 2020
  • Aceito
    30 Jul 2020
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