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Pretérito imperfeito da advocacia pela transformação social

Past Continuous of lawyering for social change

Resumo

Este ensaio é um balanço de mais de 200 entrevistas com diferentes atores públicos e da sociedade civil, no Brasil e América Latina, sobre diferentes formas de advocacia pela transformação social, fruto de agendas globais e práticas nativas que se entrecruzam, - litígio estratégico, estrutural, em massa, advocacia pro bono e a advocacia popular, - e sua receptividade por atores do sistema de justiça.

Palavras-chave:
Litígio estratégico; Advocacia popular; Advocacia pro bono

Abstract

This essay is a balance of more than 200 interviews with different public and civil society actors in Brazil and Latin America on different forms of lawyering for social change, as a result of global agendas and native practices that intersect, - strategic, structural and mass litigacion, pro bono and popular lawyering, - and their receptiveness to actors in the justice system.

Keywords:
Strategic litigation; Popular lawyering; Pro bono lawyering

Ensaio sobre muitas vozes

Este ensaio é um balanço de várias pesquisas das quais tive oportunidade de participar, conduzir ou criar, com reflexões que surgiram a partir de mais de 200 entrevistas 1 1 Foram 25 entrevistas com representantes de entidades de promoção da advocacia pro bono na América Latina, com Rebecca Groterhorst, em consultoria para o Instituto Pro Bono em Papel das entidades pro bono na expansão da advocacia pro bono na América Latina ( Cardoso, 2018 ), 37 entrevistas com membros da Magistratura, Ministério Público e Defensoria Pública com atuação criminal no estado de São Paulo, com Naiara Vilardi e Pedro Davoglio, em consultoria para a ONG Conectas Direitos Humanos em Independência funcional e controle interno nas carreiras da Magistratura e do Ministério Público na capital paulista ( Cardoso, 2017 ), 110 entrevistas com representantes de entidades da sociedade civil de defesa de direitos em todo país, com Fabiola Fanti e Iagê Zendron Miola, para o Ministério da Justiça em Advocacia de interesse público no Brasil: a atuação das entidades de defesa de direitos da sociedade civil e sua interação com os órgãos de litígio do Estado ( Cardoso, Fanti e Miola, 2013 ), 60 entrevistas com ONGs de direitos humanos, acadêmicos, magistrados sobre a relação entre Cortes Supremas e Sociedade Civil na América Latina: estudo comparado Brasil, Argentina e Colômbia ( Cardoso, 2012b ), em tese de doutorado, e 14 entrevistas com o mesmo perfil de atores sobre Litígio estratégico e Sistema Interamericano de Direitos Humanos (de 2009 e publicada em Cardoso, 2012a ), em dissertação de mestrado. , que, observadas em conjunto, montam um quebra-cabeças ainda inconcluso da articulação entre diferentes atores domésticos e internacionais, públicos e da sociedade civil, no Brasil e América Latina, que circulam entre diferentes formas de defesa de direitos, o litígio estratégico, estrutural, em massa, a advocacia pro bono e a advocacia popular, que, por sua vez, também se entrecruzam.

Com isso, o objetivo não é o de abordar apenas o litígio estratégico, tema deste dossiê, mas contextualizá-lo, como um entre diversos métodos, que inclusive ganha contornos novos no Brasil e na América Latina.

O texto está dividido em três partes. Na primeira abordo o ecossistema da sociedade civil, na segunda o das instituições do sistema de justiça e na última sintetizo as terminologias utilizadas ao longo do texto e aponto (im)possibilidades futuras para essas formas de advocacia pela transformação social.

Parte I

O discurso-prática global do litigio estratégico e a experiência à brasileira

Se pensarmos como o discurso prática do litígio estratégico foi disseminado pela região, suas raízes passam pela expansão do civil rights movement dos Estados Unidos, centrado no poder judiciário para a promoção da transformação social para os movimentos negro, de mulheres e LGBT, e que aqui chega por meio da atuação de organizações não-governamentais (ONGs) e fundações internacionais no financiamento e apoio de iniciativas locais, que também utilizavam o judiciário, mas no contexto de resistência às ditaduras ( Cardoso, 2012a Cardoso, Evorah (2012a). Litígio estratégico e Sistema Interamericano de Direitos Humanos. Belo Horizonte: Fórum. ).

É o caso, por exemplo, da trajetória da Fundação Ford, tendo financiado associações de familiares de mortos e desaparecidos políticos na Argentina, Chile e Brasil. O uso do judiciário não objetivava transformação social e reconhecimento de direitos, era limitado a auxiliar a confirmação do paradeiro ou a registrar o desaparecimento daqueles que resistiam aos regimes autoritários. Com a redemocratização, na Argentina, a ONG CELS segue atuante e transforma esse passivo de ações judiciais em uma grande bandeira de responsabilização dos militares pelos crimes cometidos, não sem antes ter de lutar pela queda das leis de anistia no país - que ocorreu via decisão de inconstitucionalidade pela Corte Suprema de Justicia de la Nación. Antes de chegar no Judiciário, a incidência passou pela academia para a produção de dogmática jurídica de direitos humanos e internacionalista, para disseminar no âmbito doméstico a obrigatoriedade de incorporação do direito internacional, aproveitando especialmente a reforma constitucional de 1994, que incorpora à constituição diversos tratados internacionais de direitos humanos, numa época em que internacionalização dos direitos humanos caminhava lado a lado com a globalização econômica neoliberal na região ( Cardoso, 2012a Cardoso, Evorah (2012a). Litígio estratégico e Sistema Interamericano de Direitos Humanos. Belo Horizonte: Fórum. ).

Essa linha de financiamento e apoio internacional na região fomenta o surgimento de grandes ONGs profissionalizadas e internacionalistas, que adotam o discurso de defesa dos direitos humanos e, como método, o litígio estratégico. Não é por acaso que o financiamento internacional está presente países em transição democrática, trata-se de uma aposta de que o método serve a este processo de democratização - na América Latina, África, Leste Europeu. Em contextos já democráticos, essa ferramenta passa a ser explorada para o reconhecimento de novos direitos, pressionando o judiciário a assumir seu novo papel institucional de garantidor contramajoritário de direitos, de desbloqueador da inação das instituições políticas seja do Executivo, seja do Legislativo. A relação com o sistema internacional também se transforma, deixa de ser uma instância de denúncia e apelo à pressão internacional no contexto de ditaduras (boomerang pattern -Keck, Sikkink, 1998 Keck, Margaret E.; Sikkink, Kathryn (1998). Activists Beyond Borders: Advocacy Networks in International Politics. Cornell University Press: Ithaca, NY. ), para ser um espaço ao qual se recorrer, de forma complementar, nessa engrenagem de desbloqueio das instituições domésticas, para que se engajem em um processo normativo transnacional, em diálogo, por exemplo, com a jurisprudência do Sistema Interamericano, considerada de forma ampla, tanto dos relatórios da Comissão, quanto das sentenças da Corte ( Cardoso, 2012a Cardoso, Evorah (2012a). Litígio estratégico e Sistema Interamericano de Direitos Humanos. Belo Horizonte: Fórum. ).

No Brasil, desconfiei que esta trajetória havia sido um pouco diferente. Por mais que tenhamos grandes ONGs com este perfil, elas estão imersas em contextos distintos para a região. Nosso processo de redemocratização, por um lado foi intensificado pelo surgimento de partidos políticos de base social, pelo processo constituinte com ampla participação de movimentos sociais, pela relativa porosidade do governo a formas participativas como os conselhos, o que contribuiu para canalizar parte das estratégias de ação da sociedade civil brasileira para o Legislativo e Executivo, ao invés do Judiciário ( Cardoso, 2012b Cardoso, Evorah (2012b). Cortes Supremas e Sociedade Civil na América Latina: estudo comparado Brasil, Argentina e Colômbia. São Paulo: Universidade de São Paulo (Tese de Doutorado). ).

Por outro lado, essa transição democrática foi bem menos radical, se contrastada com a da Argentina, pois nem bem começamos o nosso processo de memória, verdade e justiça, com a Comissão Nacional da Verdade, somada aos trabalhos que já vinham sendo feitos pela Comissão de Anistia, ele esbarra em um Supremo Tribunal Federal (STF) que reafirma a constitucionalidade da Lei de Anistia, com ministros ignorando o diálogo com o direito internacional em seus votos, a despeito de jurisprudência consolidada do Sistema Interamericano sobre a inconvencionalidade (contrariedade à Convenção Americana) das leis de anistia na região ( Cardoso, 2012a Cardoso, Evorah (2012a). Litígio estratégico e Sistema Interamericano de Direitos Humanos. Belo Horizonte: Fórum. ). Assim, o STF entra em conflito, àquela altura, com um relatório de mérito da Comissão Interamericana sobre o caso da Guerrilha do Araguaia e permanece, hoje, com a respectiva sentença da Corte Interamericana deste caso, somada à do recente julgamento do caso Vladimir Herzog. Ainda desponta no horizonte próximo o avanço de discursos revisionistas históricos com respaldo em novo governo presidencial. Há, portanto, um uso seletivo do direito internacional pelo judiciário doméstico, que dificulta o recurso ao sistema internacional nessa engrenagem de litígio estratégico.

Além disso, os trabalhos dessas grandes ONGs diluem-se frente a uma miríade de outros atores de defesa de direitos, com trajetórias de influência e métodos de ação distintos, sejam eles públicos, como Ministério Público e Defensorias, sejam da sociedade civil como da advocacia popular ( Cardoso, Fanti e Miola, 2013 Cardoso, Evorah; Fanti, Fabiola; Miola, Iagê (2013). Advocacia de interesse público no Brasil: a atuação das entidades de defesa de direitos da sociedade civil e sua interação com os órgãos de litígio do Estado. Brasília: Ministério da Justiça, Secretaria de Reforma do Judiciário. ).

“Advocacia AM e FM”: conflitos entre a tradição da advocacia popular e as ONGs de direitos humano2

A tradição da advocacia popular foi amplamente desenvolvida no Brasil, desde a advocacia em defesa dos presos políticos, até a força dos movimentos sociais por terra (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra - MST, quilombolas, indígenas, Movimento dos Atingidos por Barragens - MAB), moradia (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto - MTST), direitos de crianças e adolescentes (Centros de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente - CEDECAs). Está presente também nas Assessorias Jurídicas Populares universitárias, que disputam dentro das universidades a formação de advogados com um olhar para os conflitos sociais e as demandas dos movimentos.

A advocacia popular, portanto, não veio de um circuito internacional de disseminação do discurso dos direitos humanos e do processo de construção de grandes ONGs profissionalizadas, ela veio da formação de redes entre advogados em defesa desses movimentos sociais (como a RENAP ou Rede Nacional de Assessoria Jurídica Universitária - RENAJU) em pleno processo de redemocratização, veio do caldo de influências da teologia da libertação, da atuação das comunidades eclesiais de base e das Pastorais da Terra, Carcerária, Justiça, Migrantes, veio da difusão da pedagogia do oprimido de Paulo Freire, que perpassou várias táticas de formação em direitos, consideradas mais importantes do que a atuação judicial, veio das disputas teóricas de compreensão da classe trabalhadora como sujeito histórico. Tal como descrito por um advogado popular que entrevistei e que atuou desde a época da defesa de presos políticos durante a ditadura, trata-se de uma advocacia AM, que atua “atrás dos movimentos”. O papel dos advogados é o de orientar os movimentos sociais, não devem dissuadi-los de suas estratégias, mas alertá-los das implicações jurídicas e as melhores formas de se protegerem, estão a serviço dos movimentos, não devem ser seus representantes ou interlocutores, e devem fortalecer os movimentos, até porque “os advogados passam, mas os movimentos sociais ficam”.

Essa advocacia AM opõe-se, nas palavras do entrevistado, a uma advocacia FM, que se coloca “à frente dos movimentos”, como se fosse sua “porta-voz” junto às instituições do estado. Seria a advocacia das ONGs profissionalizadas, que estão com um olhar muito mais voltado às transformações institucionais, - mudanças de leis, políticas públicas, jurisprudência, - do que preocupadas com uma ação continuada junto aos movimentos sociais para o seu fortalecimento. Nesse sentido, é uma advocacia mais issue ou cause-oriented do que uma advocacia popular. O que importa é conseguir avanços em determinados temas/causas, mas por suas próprias limitações de recursos, pelo enfoque de avaliação dos financiadores internacionais, pelas trajetórias de seus integrantes, não possuem ou desenvolvem relações próximas aos movimentos sociais. São feitas associações pontuais entre ONGs e movimentos, em torno de projetos específicos, que ora dependem da identificação de vítimas para que os casos sejam levados adiante, ora de repercussão social para a atenção da mídia ou das autoridades públicas, ora de articulação para que haja fiscalização do processo de implementação de conquistas. Essa relação, portanto, pode ser bastante conflitiva. Movimentos sociais ressentem-se, muitas vezes, da invisibilização que caracteriza essa relação, pois são as ONGs profissionalizadas que conseguem maior inserção na mídia ou reconhecimento institucional, além das ONGs conseguirem recursos e empregabilidade de seus integrantes sobre as lutas que os movimentos sociais travam em condições bastante precárias.

Profissionalização e aprendizados: da advocacia popular e da advocacia “de balcão” ao litígio estratégico e às lutas por reforma institucional 2 2 Esta reflexão veio a partir das entrevistas realizadas em Cardoso, Fanti e Miola (2013) .

A década de 90 foi marcada pelo processo de profissionalização dos movimentos sociais no formato de ONGs, que é acompanhado por mudanças nas formas de organização, financiamento, nas estratégias empregadas, na prioridade de pautas e, até mesmo, no contato que passarão a ter com os movimentos sociais grass-roots. Algumas se voltaram à prestação de serviços ao poder público, dependendo de recursos lançados em editais, outras a fundações internacionais, com sua lógica de financiamento por projeto. Em ambos instala-se uma dinâmica de dependência de recursos e de adaptação das atividades ao perfil do que é financiado. Alguns movimentos mais precarizados, como ONGs provenientes do movimento LGBT, não conseguiram se profissionalizar segundo o grau de exigência burocrática de prestação de contas junto ao poder público, o que levou a sua desmobilização, dívidas e impedimentos para a obtenção de novos recursos. Outros ressentem-se de não terem liberdade para atuar como desejam, como uma ONG entrevistada que gostaria de desenvolver mais projetos de conscientização junto a agressores, no entanto, os editais públicos destinam recursos apenas ao atendimento de mulheres vítimas de violência doméstica.

Os anos 2000 já marcam o surgimento ou consolidação das grandes ONGs profissionalizadas, que atuam junto ao poder judiciário doméstico já em uma lógica issue ou cause-oriented e não mais client-oriented e junto aos sistemas internacionais de proteção de direitos humanos. Algumas ONGs que originalmente faziam o atendimento “portas abertas”, “de balcão” para qualquer casos relacionados às suas temática de atuação, com orientações jurídicas ou representação judicial, passam a migrar para um modelo de trabalho com poucos casos, selecionados, paradigmáticos, seja por falta de recursos, pessoal, seja para lutar pelo fortalecimento ou receptividade dos órgãos de litígio do Estado, como o Ministério Público e Defensorias a esses temas, seja pela compreensão das limitações da via judicial para a implementação de direitos, ou seja, reavaliaram suas estratégias, uma vez que a garantia legislativa de direitos não foi automaticamente traduzida em sua implementação pelos órgãos do sistema de justiça, criando uma nova agenda de trabalho de incidência institucional. Este foi o caso da ONG Themis - Gênero, Justiça e Direitos Humanos, criada em 1993, para enfrentar a discriminação contra mulheres no sistema de justiça. Inicialmente, a Themis atendia todos os casos relacionados à pauta de gênero, levando-os ao judiciário. O diagnóstico era o de que esses casos não chegavam ao Judiciário com uma abordagem adequada de gênero, então o objetivo era pautar o sistema de justiça. Com o fortalecimento da Defensoria Pública no Rio Grande do Sul, não fazia sentido duplicar esse trabalho de advocacia “de balcão”, passaram então a trabalhar apenas com casos paradigmáticos.

Outras já surgem diretamente sob a influência da agenda global de direitos humanos, de fomento de ONGs profissionais internacionalizadas, mobilizando litígio estratégico e incidência institucional, sem guardar relação com a tradição de advocacia popular. É o caso da ONG Conectas Direitos Humanos, ONG internacional fundada em 2001, no Brasil, com forte proximidade com a academia, justamente com a proposta de aproximar o “sul global”. Desde sua fundação, realiza com esse intuito o Colóquio Internacional de Direitos Humanos, que congrega ativistas de direitos humanos de todo o “sul global” e mantém a Revista Sur, com publicações acadêmicas e da sociedade civil sobre direitos humanos. Além disso, possui uma frente de trabalho que acompanha de forma sistemática a política externa de direitos humanos do Brasil e atua na área de justiça, nos temas de violência policial e sistema carcerário.

Algumas ONGs de defesa de direitos são emblemáticas das transformações dessas décadas, migrando de uma tradição de advocacia popular conectada a movimentos sociais para a de ONGs de defesa dos direitos humanos internacionalizadas ou por mesclarem as duas vertentes. O Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares (GAJOP), fundado em 1981, surge da tradição da advocacia popular, com o objetivo de trabalhar a educação jurídica popular sobre direito à moradia, para depois migrar para uma abordagem mais institucional, ao trabalhar com o tema de segurança pública e acesso à justiça, e foi uma ONG pioneira, também, em levar casos brasileiros de violação de direitos humanos ao Sistema Interamericano, mas não chegou a tornar-se uma grande ONG em termos de financiamento. Justiça Global, por sua vez, fundada em 1999, surge atuando fortemente com os sistemas internacionais de proteção, nos temas de violência institucional, segurança pública e, também, de direitos econômicos, sociais e culturais, mantendo nesta frente relações próximas aos movimentos sociais afetados por grandes empreendimentos. Também se aproxima dos movimentos sociais ao trabalhar com o tema de defesa de defensores de direitos humanos no país. Um de seus fundadores foi James Cavallaro, que saía de seu trabalho na ONG internacional Human Rights Watch e hoje é comissionado da Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Terra de Direitos, por fim, fundada em 2002, talvez seja a mais emblemática dessa transição e/ou mescla estratégica. Sua trajetória é forjada no seio dos movimentos sociais de luta pela terra, com influência em seus fundadores do trabalho da teologia da libertação nas comunidades eclesiais de base, porém opta pela formalização em ONG a partir do diagnóstico de que não bastava atuar no Judiciário apenas de forma reativa à criminalização dos movimentos sociais, mas sim de modo propositivo, para pautar o Judiciário de forma a promover transformação social na temática da terra. No entanto, os atores do sistema de justiça têm se mostrado sistematicamente refratários a essa abordagem, o que fez com que Terra de Direitos, somada a várias outras ONGs de defesa de direitos, criassem uma rede para buscar a reforma do sistema de justiça, a Articulação Justiça e Direitos Humanos - JusDh, construindo colaborativamente uma agenda institucional transversal para superar dificuldades comuns no Judiciário.

Advocacia pro bono, muito prazer 3 3 As reflexões deste tópico foram desenvolvidas a partir das entrevistas realizadas em Cardoso (2018) , exceto as relativas à advocacia pro bono no Brasil.

A advocacia pro bono foi bastante limitada até recentemente pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) no país, mas também pode ser um espaço para litígio estratégico. Pôde desenvolver-se mais pela América Latina do que aqui. Assim como o discurso prática do litígio estratégico, a advocacia pro bono também advém de uma agenda global, passando pelos Estados Unidos, e sendo adaptada na América Latina. Os atores que conduziram essa transmissão foram, em um primeiro momento, por volta dos anos 2000, acadêmicos e advogados que foram estudar em universidades ou trabalhar em escritórios nos Estados Unidos e que entraram em contato com essa prática e tentaram trazer para os seus países. Uma segunda leva, já é decorrente de um processo de internacionalização dos mercados jurídicos, com os grandes escritórios corporativos locais sendo cobrados por clientes ou escritórios estrangeiros com os quais se relacionam a adotar práticas pro bono em seus países. Entidades criadas especificamente para difundir a prática pro bono em países da América Latina também tiveram o seu papel, especialmente o de apoio aos escritórios que buscavam iniciar essa implementação, funcionando como clearinghouses .

Essa advocacia pro bono, em escritórios corporativos acaba sendo bastante limitada, comumente ao atendimento de ONGs que buscam sua formalização estatutária. Poucos escritórios começaram a se aventurar além desses contornos na direção de litígio estratégico, pois envolveria temas sobre os quais suas equipes de advogados não possuíam expertise diretamente (ex. direitos das mulheres, LGBTs), o que demandaria um investimento de aprendizado muito grande ou de construção de articulações com entidades da sociedade civil mais próximas desses temas; arriscaria as relações político-governamentais dos escritórios, à medida boa parte desses litígios são contrários à administração pública, cobrando políticas públicas ou reconhecimento de direitos, em conflito com o Legislativo; tomaria muitas horas pro bono de seus advogados, uma vez que qualquer litígio estratégico consome muito tempo para a produção de diagnósticos, planejamento da ação e execução, além de serem casos que trazem muita visibilidade aos envolvidos, por pressupor também um trabalho de pressão e divulgação junto à mídia. Mas alguns escritórios ou entidades de promoção de advocacia pro bono estão se aproximando de casos assim, na Colômbia, no Chile. Arriscaram-se muito menos na direção da advocacia popular, pois a advocacia AM está ainda mais distante do perfil da equipe desses advogados, que em grande parte desconhecem as dinâmicas dos movimentos sociais, o enquadramento político de suas demandas, para então poderem assessorar juridicamente, sem tentar delimitar o que deveriam ou não fazer a partir de uma posição de autoridade do direito sobre esses movimentos. Uma entidade de promoção pro bono na Venezuela foi por esse caminho. Por fim, poucos se aproximaram de uma advocacia “de balcão”, client-oriented, também por demandar muitas horas pro bono dos advogados, além de trazer perfis sociais de clientes e problemas jurídicos com os quais não estão acostumados a lidar. Entidades de promoção da advocacia pro bono no México e na Argentina seguiram por essa via.

E no Brasil? A via de entrada do discurso da advocacia pro bono no país também foi por grandes escritórios corporativos e pela entidade de difusão da prática, o Instituto Pro bono, e deu-se a princípio, até pela limitação durante muito tempo pela OAB, apenas para a formalização de ONGs. A partir da regulamentação do pro bono pela OAB, os escritórios começam a pensar em desenvolver algum tipo de atuação temática, seja sobre direito das mulheres, seja sobre LGBTs, mas ainda estão testando esse formato. A frente temática que mais se desenvolveu até o momento foi a que envolveu os escritórios criminalistas, em torno, por exemplo, da ONG Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD).

O discurso da advocacia pro bono ao chegar por aqui vai enfrentar uma crise de identidade, até conseguir se diferenciar da assessoria jurídica gratuita, originalmente praticada por extensões universitárias na lógica de balcão, client-oriented, e depois assumida institucionalmente pela Defensoria Pública, assim como a advocacia dativa, já praticada por advogados em convênio com o Estado, também para o atendimento gratuito da população, hoje em territórios ainda não cobertos pela Defensoria Pública.

Parte II

E quando o Judiciário não quer dançar ou dança fora do compasso?

Como as próprias ONGs profissionalizadas constataram não basta voltar suas ações estratégicas ao Judiciário, seja com uma advocacia temática “de balcão” ou com litígio estratégico propriamente dito, se o mesmo não se comportar como um parceiro nesses temas ou ações estratégicas. Se o Judiciário mostra-se refratário, não será o espaço privilegiado de atuação da sociedade civil para o reconhecimento de direitos. O civil rights movement nos Estados Unidos avança à medida que há uma Warren Court com a qual possa dançar. É preciso ressaltar que na América Latina, o litígio estratégico ganha novos contornos, pois é voltado não apenas a pautas de direitos civis e políticos, mas também aos direitos econômicos, sociais e culturais, o que, por sua vez, traz uma série de demandas de adaptação de compasso ao judiciário, acostumado a lidar com casos de dimensão individual, para passar a lidar com casos de dimensão coletiva, que questionam a falta ou a forma de implementação de políticas públicas, tidas tradicionalmente como competência dos poderes executivos.

Além disso, as cortes também ditam a música, pois seus desenhos institucionais modelam a forma de mobilização social jurídica ( Cardoso, 2012b Cardoso, Evorah (2012b). Cortes Supremas e Sociedade Civil na América Latina: estudo comparado Brasil, Argentina e Colômbia. São Paulo: Universidade de São Paulo (Tese de Doutorado). ). A Corte Constitucional colombiana, por exemplo, por conta de seu arranjo institucional bastante aberto à participação direta da sociedade civil, como amicus curiae, demandando casos, com competência de controle concentrado de constitucionalidade e composição por magistrados progressistas, fez com que se tornasse um locus privilegiado de incidência política, por meio de litígios estratégicos e até estruturais.

Não apenas as cortes de cúpula do Judiciário são importantes para uma cultura centrada nas cortes para a transformação social, também as instâncias inferiores desempenham um papel relevante, especialmente nos casos de litígio em massa, seja de forma difusa, seja de forma planejada.

Mas e o Judiciário brasileiro, sabe dançar?

Litígio estratégico para poucas causas

Há casos de litígio estratégico bem sucedidos na cúpula do sistema de justiça relacionados a direitos LGBTs, desde o reconhecimento da união estável pelo STF, em 2011, e, a partir dela, a confirmação do casamento civil pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em 2013, até recentemente o respeito ao nome social de pessoas trans pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), em títulos de eleitor e candidaturas, pela manhã, e à tarde do mesmo dia, julgamento do respeito à identidade de gênero das pessoas trans na retificação de seus documentos, sem exigência de cirurgia, acompanhamento psicológico ou hormonização forçados. O sistema de justiça tem atuado de forma contramajoritária no reconhecimento dos direitos LGBTs, uma vez que até hoje o Legislativo federal não aprovou qualquer lei com pauta LGBT e as políticas públicas de iniciativa do Executivo são poucas e frágeis, pois dependem do interesse dos governos em sua continuidade.

No caso dos direitos das mulheres, a ONG Anis - Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero, fundada em 1999, foi responsável por pautar o STF com o tema do aborto. Atuou, em 2007, como especialista nas audiências públicas sobre pesquisas com células-tronco embrionárias, discussão preliminar importante para abrir espaço à definição jurídica sobre o momento da concepção da vida e sua proteção, por mais que alguns ministros tenham manifestado que seus votos neste caso não poderiam ser considerados em uma futura eventual discussão sobre o aborto na corte. Antes disso, em 2004, pautou a entidade de representação nacional Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS), para que apresentasse ao STF a ação que discutiria a interrupção terapêutica de fetos anencéfalos, na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (APDF) 54. O julgamento deste caso, no entanto, só ocorreu em 2012. A aposta neste litígio estratégico pela Anis levou a um desgaste com outras organizações de defesa dos direitos das mulheres, seja por considerarem prematura a judicialização, com receio do STF julgar de forma negativa e isso atrasar ainda mais o reconhecimento do aborto em todos os casos, seja por não estarem acostumadas a recorrer ao STF como estratégia de ação, mas sim ao Legislativo e Executivo ( Guimarães, 2009 Guimarães, Lívia Gil (2009). Direito das mulheres no Supremo Tribunal Federal: possibilidades de litígio estratégico? São Paulo: Sociedade Brasileira de Direito Público - Escola de Formação (Monografia). ). Após o sucesso neste caso, Anis pauta novamente o STF, em 2016, no caso de interrupção da gestação em caso de zika vírus, via Associação Nacional dos Defensores Públicos (ANADEP), na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5581, ainda sem julgamento. Recentemente, ocorreu uma audiência pública, relacionada a um caso concreto de outra ação pautada pela Anis, via Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), na ADI 442, sobre descriminalização do aborto até a 12ª semana. Com isso, Anis procura pavimentar degraus para a legalização ampla do aborto via litígios estratégicos, a cada um produzindo pesquisas empíricas de diagnóstico, documentários de sensibilização e com forte presença na mídia. Essa visibilidade, no entanto, tem o seu preço, Debora Diniz, antropóloga, fundadora da ONG e professora da Universidade de Brasília, desde sua aparição na audiência, em agosto de 2018, tem sofrido ameaças de morte, junto a sua família, a reitora da UnB e a diretora da Faculdade de Direito, além de uma ameaça de massacre na universidade, caso continuasse dando aulas. Debora Diniz foi incluída no Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos do governo federal e aconselhada a deixar o país.

Ainda que o STF e outros órgãos de cúpula do sistema de justiça tenham se mostrado receptivos às pautas de gênero e LGBT, em quais outras pautas o STF estaria disposto a ser proativo também?

Litígio estrutural, mas nem tanto

Casos de litígio estrutural demandam ainda mais do Judiciário. Não basta responder de forma positiva ao reconhecimento de um direito, é preciso que as sentenças consigam garantir respostas estruturais a casos complexos de dimensão coletiva, que envolvem múltiplos atores do Estado e da sociedade para sua solução.

O STF teve a experiência de julgamento de um litígio estrutural na liminar da ADPF 347, em 2015, sobre a situação carcerária no país. Ao invés de declarar a inconstitucionalidade de uma lei ou ato, foi declarado um “estado de coisas inconstitucional”, dada a gravidade da crise carcerária. Como respostas preliminares, o STF decidiu a obrigatoriedade da realização das audiências de custódia, no prazo máximo de 24h contado do momento da prisão, a liberação dos recursos do Fundo Penitenciário Nacional (Funpen) para sua finalidade, sem novos contingenciamentos e o encaminhamento pela União e Estados de informações sobre a situação prisional. Embora a expressão “estado de coisas inconstitucional” tenha sido empregada e a magnitude do caso seja típica de um litígio estrutural, a forma como foi abordado pelo STF se distancia bastante desse sentido.

O argumento do “estado de coisas inconstitucional” vem da experiência da Corte Constitucional colombiana em alguns casos de litígio estrutural, entre eles destaco dois casos, um também sobre superpopulação carcerária (T-153 de 1998) e outro sobre 7,4 milhões de deslocados internos (desplazados ) no país por conta dos conflitos armados (T-025 de 2004) ( Langford, Rodríguez Garavito, Rossi, 2017 Langford, Malcom; Rodríguez Garavito, César; Rossi, Julieta (Eds.) (2017). La lucha por los derechos sociales: los fallos judiciales y la disputa política por su cumplimiento. Bogotá: Dejusticia. ). No primeiro, diante do problema estrutural, a corte ordenou várias medidas administrativas e orçamentárias que deveriam ser adotadas a curto prazo, mas sem estabelecer mecanismos de fiscalização e sem envolver os múltiplos atores do Estado e da sociedade na determinação dessas metas, a sentença da Corte Constitucional teve eficácia reduzida. A partir desta experiência, a Corte adotou outra estratégia no caso dos desplazados.

Sentenciado há 14 anos, o caso dos desplazados segue em fase de cumprimento. Em audiência pública realizada em 2018, a Corte Constitucional fez um balanço da situação dos desplazados, estimando que 7,4 milhões de pessoas foram forçadas até hoje a abandonarem suas pequenas propriedades rurais para morarem na periferia dos grandes centros urbanos, em função do conflito armado ( El Tiempo, 2018 El Tiempo (2018). “Alarmante balance de la Corte sobre desplazamiento forzado”, 29 nov. 2018. Disponível em: <https://www.eltiempo.com/justicia/cortes/audiencia-en-la-corte-constitucional-sobre-el-desplazamiento-forzado-299280> (Acesso em 17 dez. 2018).
https://www.eltiempo.com/justicia/corte...
). Nos grandes centros, os desplazados acabavam ficando camuflados entre os problemas de desigualdade social já existentes, não sendo tratados enquanto fenômeno social e político em suas peculiaridades, com necessidade de respostas estruturais próprias ao problema. A Corte Constitucional reuniu todos os 1.150 casos individuais de tutela relacionados a desplazados em um mega caso e declarou o “estado de coisas inconstitucional” ( Rodríguez Garavito, Rodríguez Franco, 2015 Rodríguez Garavito, César; Rodríguez Franco, Diana (2015). Juicio a la exclusión: el impacto de los tribunales sobre los derechos sociales en el Sur Global. Buenos Aires: Siglo Veintiuno Editores. ). Diferentemente de um caso comum de inconstitucionalidade, quando a declaração é o ponto final da ação, a declaração de “estado de coisas inconstitucional” é apenas o início do processo de solução do caso. A partir dela, a Corte demandou que os órgãos do Estado e representantes da sociedade civil (ONGs, universidades etc.) se reunissem para elaborar um índice de gozo efetivo de direitos pelos desplazados, para poder medir ao longo do tempo o cumprimento das medidas que seriam adotadas na ação e que o Estado elaborasse um plano de ação para atender à população desplazada, coordenando esforços de diferentes órgãos, prevendo qual seria o orçamento gasto para colocá-lo em prática. Foram realizadas mais de 20 audiências públicas em um único caso ( Rodríguez Garavito, Rodríguez Franco, 2015 Rodríguez Garavito, César; Rodríguez Franco, Diana (2015). Juicio a la exclusión: el impacto de los tribunales sobre los derechos sociales en el Sur Global. Buenos Aires: Siglo Veintiuno Editores. ), com ampla participação da sociedade civil e abordando especificidades das violações de direitos humanos, por exemplo, em relação às mulheres, aos indígenas, afrodescendentes. As audiências públicas serviram também para criar o público necessário para garantir o engajamento com a fiscalização das medidas que deveriam ser adotadas, envolvendo tanto órgãos do Estado, quanto entidades da sociedade civil. A sentença é de 2004, mas as medidas que deveriam ser adotadas não se encerraram nela, pelo contrário. Cerca de 300 decisões complementares, autos de seguimiento, foram adotadas pela Corte, prevendo medidas atualizadas para o cumprimento da sentença ( Rodríguez Garavito, Rodríguez Franco, 2015 Rodríguez Garavito, César; Rodríguez Franco, Diana (2015). Juicio a la exclusión: el impacto de los tribunales sobre los derechos sociales en el Sur Global. Buenos Aires: Siglo Veintiuno Editores. ). Apesar de ainda estar em aberto, este caso apresentou uma melhora no gozo efetivo de direitos da população desplazada, além de uma redução no volume de novos casos, especialmente de desplazados em massa de uma mesma localidade.

O que estes dois casos colombianos de litígio estrutural demonstram é que ao se engajar em um ativismo dialógico no caso dos desplazados , envolvendo órgãos do Estado e representantes da sociedade civil em diversas etapas do processo, não apenas como destinatários de ordens judiciais, mas também como interlocutores do processo de construção de soluções, as decisões da Corte Constitucional gozaram de maior efetividade e legitimidade ( Rodríguez Garavito, Rodríguez Franco, 2010 Rodríguez Garavito, César; Rodríguez Franco, Diana (2010). Cortes y cambio social: cómo la Corte Constitucional transformó el desplazamiento forzado en Colombia. Bogotá: Centro de Estudios de Derecho, Justicia y Sociedad, Dejusticia. ). Desta forma, mais do que aplicar o argumento do “estado de coisas inconstitucional” desenvolvido pela Corte Constitucional colombiana, o STF poderia adotar procedimentos receptivos a esse diálogo institucional e com a sociedade civil no âmbito de seus processos judiciais. Uma recente reforma legislativa abre margem para essa inovação em casos contra a administração pública 4 4 A Lei n. 13.655/2018, que altera a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, em seu artigo 21, parágrafo único, abre caminho para sentenças em casos de litígio estrutural junto a administração pública, pois permite que juízes passem a planejar o cumprimento das sentenças ao longo do tempo, mediante um cronograma de implementação, ao dizer que as decisões judiciais devem “indicar as condições para que a regularização ocorra de modo proporcional e equânime”. .

Litígio em massa, que se torna estrutural

Um caso brasileiro de litígio estrutural bem sucedido é o do Tribunal de Justiça de São Paulo, ao decidir sobre a obrigatoriedade do município de São Paulo criar vagas em creches para as crianças. Mas só se tornou um litígio estrutural a partir do momento que os atores de litígio coordenaram suas ações.

O Judiciário paulista foi alvo de um litígio em massa, não coordenado, de ações individuais, demandando a abertura de vagas em creche. A Defensoria Pública (DP), por meio de sua atuação de advocacia “de balcão”, client-oriented, foi responsável por encaminhar boa parte dessas ações. Embora tenha competência para atuar em ações coletivas, o que por muito tempo foi objeto de discussão inclusive no STF, a Defensoria Pública tende a atuar mais em casos individuais, mesmo nas suas estruturas que permitiriam um fôlego para gestar medidas coletivas, como seus núcleos especializados. Como uma instituição do sistema de justiça que ainda recebe o menor orçamento e tem o menor pessoal, comparativamente ao Judiciário e Ministério Público, ainda é difícil para as Defensorias dedicarem-se ao trabalho de dimensão coletiva, mesmo que tipicamente os milhares de casos que receberam de pedidos de vaga em creche pudessem ser tratados em ações civis públicas (ACPs), por exemplo.

Ministério Público (MP), por sua vez, tem bem desenvolvidas suas competências de atuação em casos de dimensão coletiva, seja com a propositura de ações coletivas, seja por meio dos Termos de Ajustamento de Conduta (TACs). Mas a forma como o MP tem utilizado esses instrumentos coletivos ainda é sob uma lógica client-oriented. A independência funcional de cada promotor e o fraco grau de planejamento de prioridades de atuação institucional fazem com que, no limite, cada promotor, diante da obrigatoriedade de responder a todas as demandas que lhe são distribuídas, sem muita margem para seleção ou priorização, utilize essas ferramentas de ação coletiva de forma não coordenada com os demais membros da instituição. Essa lógica de funcionamento, aplicada a um tema como esse de política pública de educação para a primeira infância de toda a cidade de São Paulo, fez com que, após um período de TACs sendo firmados entre MP e município para o aumento de vagas oferecidas, interrompido pela negativa do município em assumir compromissos de qualidade de ensino, o MP ingressasse com ações civis públicas ao judiciário. Mas essas ações, embora sobre o mesmo tema, tinham objetos distintos, geralmente com delimitações territoriais distintas na cidade de São Paulo, conforme os contornos de como as demandas foram apresentadas ao MP e da competência de atuação de cada promotor aos quais foram distribuídas.

Entidades da sociedade civil, por sua vez, promoveram uma articulação, chamada Movimento Creche para Todos, inicialmente pressionando órgãos públicos e depois também apostando na via judicial, com ações civis públicas, para a garantia de vagas em creches ( Rizzi, Ximenes, 2014 Rizzi, Ester Gammardella; Ximenes, Salomão Barros (2014). “Litígio estratégico para mudança do padrão decisório em direitos sociais: ações coletivas sobre educação infantil em São Paulo”. In: 8º Encontro da Associação Nacional de Direitos Humanos. São Paulo: ANDHEP. ). A diferença estratégica da abordagem judicial da sociedade civil em relação à Defensoria Pública e Ministério Público foi justamente a de demandar um litígio estrutural, solicitando via judiciário que o município de São Paulo apresentasse um plano de ampliação de vagas. A primeira ACP foi extinta por rejeição do judiciário em desempenhar esse papel. Outra diferença estratégica é que essa mobilização da sociedade civil também buscou articulação com os órgãos de litígio do Estado (DP e MP), para traçar linhas comuns de atuação judicial, criando um Grupo de Trabalho Interinstitucional sobre Educação Infantil (GTIEI). Em relação a outras ACPs, o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) decide convocar uma audiência de conciliação, ao que essa mobilização solicita também a realização de uma audiência pública, com o objetivo de promover um diálogo com o município. Esta audiência contou com a participação de 40 organizações e especialistas. O TJSP demandou, por fim, que o município apresentasse um plano de ampliação de vagas, instaurando um típico ativismo dialógico ( Rodríguez Garavito, Rodríguez Franco, 2010 Rodríguez Garavito, César; Rodríguez Franco, Diana (2010). Cortes y cambio social: cómo la Corte Constitucional transformó el desplazamiento forzado en Colombia. Bogotá: Centro de Estudios de Derecho, Justicia y Sociedad, Dejusticia. ).

Observa-se, portanto, que este caso começa como um litígio em massa difuso, com cada órgão de litígio do Estado (DP e MP) e sociedade civil atuando de forma isolada, e termina como uma articulação entre os mesmos, encontrando um judiciário disposto a dançar, criando condições para um litígio estrutural junto ao município. Mas este tipo de experiência ainda é uma exceção.

Ministério Público “capitão do mato” e Defensoria Pública “encastelada” 5 5 Esta reflexão veio a partir das entrevistas realizadas em Cardoso, Fanti e Miola (2013) e foi parcialmente explorada naquele trabalho.

O Judiciário nem sempre dança, mas e os órgãos de litígio do Estado? Estão dispostos a acionarem o judiciário de forma estratégica, estrutural ou em massa de modo planejado?

Como já foi dito, MP e DP tendem a trabalhar sob a lógica do caso a caso, mesmo possuindo instrumentos e desenho institucional que possibilitariam sua atuação mais estrutural, como núcleos especializados, grupos de trabalhos. A DP teria a seu favor inclusive o fato de receber tantas demandas individuais, pois constituem um verdadeiro termômetro de para identificação e diagnóstico de problemas estruturais. Mas esse pensamento estratégico, muitas vezes, depende mais do perfil individual de alguns de seus membros, valendo-se de sua independência funcional de atuação, do que de uma ação institucional planejada.

A fala de dois entrevistados advogados populares históricos sintetizam críticas profundas ao Ministério Público e à Defensoria Pública, que revelam o distanciamento dessas instituições à luta por direitos dos movimentos sociais - para uma parcela dos movimentos sociais, o MP se tornou um “capitão do mato”, promovendo a criminalização de lideranças e formas de ativismo, e a DP estaria passando hoje por um processo de “encastelamento” semelhante ao que o MP já havia passado antes.

O MP recebeu forte apoio da sociedade civil no processo constituinte, pela ampliação de suas competências, para ser um órgão do Estado com recursos, presença nacional, e instrumentos para a defesa da sociedade. A aposta das entidades de defesa de direitos da sociedade civil e movimentos sociais à época era de que o MP assumiria este papel e que, ao exercê-lo, manteria o diálogo com a sociedade. No entanto, o diagnóstico atual dessas entidades é de que o MP, em seu braço de atuação criminal, tornou-se um inimigo, especialmente dos movimentos sociais de luta pela terra (sem terra, moradia, indígenas, quilombolas), sendo visto como um “capitão do mato”, e da população jovem, negra, pobre e periférica (encarceramento em massa). Já em seu braço civil, embora tenha competência para atuação em casos de dimensão coletiva, que envolva políticas públicas, e tenha criado núcleos especializados em diversos temas, como meio ambiente, educação, saúde, moradia, infância etc., na prática, o diagnóstico dessas entidades entrevistadas é o de que seus membros estão atuando sem diálogo com movimentos sociais e ONGs, arrogando-se o papel de detentores da representatividade da sociedade civil, sem construírem estratégias conjuntas de ação e de uso do poder judiciário. Além disso, a alta rotatividade de membros do MP em determinados territórios do país mais isolados dos centros urbanos, dado o desenho de progressão da carreira, faz com que não seja possível construir vínculos de confiança entre sociedade civil e MP, que acordos estratégicos sejam facilmente descontinuados a cada troca de cadeiras, que qualquer ação planejada de longo prazo, seja de litígio estratégico, seja de litígio estrutural, não tenha fôlego para vingar. À parte da crítica da rotatividade de membros, a percepção das entidades de defesa de direitos da sociedade civil acerca da abertura para o diálogo e construção conjunta, costuma ser melhor em relação ao Ministério Público Federal, do que em relação aos MPs estaduais.

Já a Defensoria Pública, por sua vez, paradoxalmente, ao lutar por igualar suas condições de trabalho, remuneração, verbas institucionais, benefícios às dos demais órgãos do sistema de justiça já há mais tempo constituídos, como Judiciário e MP, teria se distanciado cada vez mais de sua missão popular. A melhoria das condições de trabalho atrairia nos concursos de carreira de forma indistinta pessoas interessadas em qualquer uma das carreiras do sistema de justiça, distanciando seu corpo da vocação pelas causas populares. Uma implicação prática disso seria a escolha desse corpo por lutar primeiro pela equiparação das condições de trabalho e depois pela expansão do serviço a todo território, de forma equitativa à presença de juízes e promotores. A Defensoria Pública do estado de São Paulo, por exemplo, recebeu forte apoio da sociedade civil na luta por sua fundação, concretizada em 2006. Essa intensa participação da sociedade civil encontra-se plasmada institucionalmente na criação de uma ouvidoria externa independente. Recentemente, essa independência do cargo de Ouvidor-Geral foi ameaçada, por uma proposta elaborada pelos próprios defensores, de retirar a organização da eleição para este cargo das mãos das organizações da sociedade civil ( Jota, 2017 Jota (2017). Darci Frigo e Marchos Fuchs, “Fim do controle social da Defensoria Pública de São Paulo”, 6 jun. 2017. Disponível em: <https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/fim-do-controle-social-da-defensoria-publica-de-sao-paulo-06062017> (Acesso em 17 dez. 2018).
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).

Esse “encastelamento” da DP já teria sido observado antes pelas entidades da sociedade civil, é o mesmo pelo qual o MP, sonho da constituinte, teria passado. Tanto MP, quanto DP estariam sofrendo grande influência de uma força corporativista, de defesa de interesses institucionais próprios no sistema de justiça, além de vivendo suas disputas políticas internas, que, do ponto de vista da sociedade civil, demonstraria um conjunto de privilégios da elite jurídica do país, que cada vez mais se distancia das lutas populares por direitos.

Conservadorismo punitivista do MP e Judiciário: cultura e desenho institucional importam 6 6 Esta reflexão foi desenvolvida a partir das entrevistas realizadas em Cardoso (2017) .

O que faz com que o MP ou o Judiciário sejam tão refratários às demandas de alguns movimentos sociais? Por que são vistos como inimigos por uma parcela da sociedade civil? A cultura institucional importa. Talvez o exemplo em que essa dissonância cognitiva da realidade se torne mais vívida seja o tema do encarceramento em massa. Enquanto movimentos negros, de crianças e adolescentes gritam, apoiados por dados de homicídios e de encarceramento, que estamos vivendo um genocídio da população jovem negra, juízes e promotores reafirmam seu papel na defesa dos interesses da sociedade. Poucos apresentarão uma reflexão crítica acerca da sua contribuição individual ou institucional com essa realidade. Por que MP e Judiciário prendem tanto?

Conhecer o desenho institucional das carreiras da Magistratura e do MP traz algumas pistas de como se sustenta uma cultura punitivista nestes espaços. São inúmeros os fatores apontados pelos próprios entrevistados destas carreiras e da Defensoria Pública, desde o processo de ingresso, que leva à seleção de um grupo bastante homogêneo e elitista de profissionais, sem qualquer oferta de ações afirmativas, seja por conta do que é valorizado no concurso, seja pelo perfil da banca, composta por desembargadores e procuradores, que procurariam por seus iguais, e, até, principalmente, pelas formas de controle da própria atuação nas carreiras.

Esse controle ocorre no estágio probatório, quando o acompanhamento pela Corregedoria do MP orienta quando um promotor deve arquivar um procedimento criminal (quase nunca); no medo de “tomar um 28”, artigo do Código de Processo Penal que permite que diante de um arquivamento pelo MP, o juiz do caso possa provocar o procurador geral para designar um novo promotor para o caso; no desenho de progressão das carreiras, que faz com que comecem em cidades menores, para depois chegarem às maiores, fazendo com que juízes abram mão de sua garantia de inamovibilidade em cidades menores para serem “movíveis” nas maiores, antes da progressão, não apenas para substituir postos de juízes titulares que estão em férias ou em licença, mas sim para ocupar cargos “fixos”, criados pela cúpula do TJSP apenas para esses juízes auxiliares, e que, por serem “movíveis”, permitem um controle ideológico por parte da cúpula ao designar quem decide sobre a porta de entrada (Departamento de Inquéritos Policiais - DIPO) e saída (Vara de Execuções Criminais - VEC) do sistema prisional; na dinâmica hierárquica que se estabelece entre juízes titulares e auxiliares, nas varas, ou entre desembargadores e juízes substitutos, no tribunal, cobrando desses juízes “movíveis” que julguem seus casos de forma “harmônica” com o entendimento já consolidado das varas ou das seções do tribunal.

Essas são formas de controle sutis, mas que se manifestam mais claramente frente àqueles que atuam de forma destoante à cultura institucional punitivista. É o caso da hoje desembargadora Kenarik Boujikian, que quando era substituta em uma seção criminal do TJSP, chegou a ser julgada pela Corregedoria do TJSP por ter ferido o “princípio da colegialidade”, ou seja, por não ter decidido de acordo com o entendimento dos outros dois desembargadores da mesma seção. Em quais casos? Quando decidiu liberar pessoas presas provisórias, que aguardavam julgamento há mais tempo do que poderiam ser punidas, caso fossem julgadas. A punição de não poder progredir na carreira foi revertida em decisão do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), órgão de controle externo ao Judiciário, bastante questionado pela cúpula do TJSP. Esses casos exemplares, assim como as formas de controle sutis, deixam uma mensagem clara para outros integrantes da carreira, alinhem-se à cultura punitivista da instituição.

Parte III

Atores ou métodos? Discursos-prática nativos ou da agenda global? Os sentidos de litígio estratégico, advocacia popular, advocacia pro bono

Ao longo desse texto, confundi propositalmente dois sentidos para cada expressão utilizada, - litígio estratégico, advocacia popular, advocacia pro bono, - um é o de ser um método de ação e outro o de identificar os atores que os praticam.

Como cheguei a definir em outro lugar, o litígio estratégico é um método 7 7 “‘Litígio estratégico’, ‘litígio de impacto’, ‘litígio paradigmático’, ‘litígio de caso-teste’ são expressões correlatas, que surgiram de uma prática diferenciada de litígio, não necessariamente relacionada ao histórico da advocacia em direitos humanos. O litígio estratégico busca, por meio do uso do judiciário e de casos paradigmáticos, alcançar mudanças sociais. Os casos são escolhidos como ferramentas para transformação da jurisprudência dos tribunais e formação de precedentes, para provocar mudanças legislativas ou de políticas públicas. Trata-se de um método, uma técnica que pode ser utilizada para diferentes fins/temas. O objetivo de quem litiga não se limita à solução do caso concreto (justiça individual), como a reparação da vítima. Nesse sentido, o litígio estratégico é bastante diferente da forma tradicional de advocacia. É possível contrapor uma advocacia client-oriented a um novo tipo de advocacia, issue-oriented ou policy-oriented . Basicamente a primeira vale-se do direito para atender às demandas e aos interesses do cliente. A segunda busca o impacto social que o caso pode trazer, como o avanço jurídico em um determinado tema, aplicando o método do litígio estratégico. Com esse fim, as entidades de advocacia policy-oriented costumam ter um trabalho preliminar de escolha do caso paradigmático, conforme o seu potencial impacto social no tema ou na política tidos como prioritários na agenda da entidade. Este trabalho as entidades client-oriented não costumam ter, pois atendem a um determinado público, conforme a demanda ou os limites orçamentários da entidade. Entidades de advocacia client-oriented também podem exercer litígio estratégico, mas geralmente de maneira ad hoc, quando são levadas pelo caso a planejar estratégias de impacto social” ( Cardoso, 2012a ) , mas sua disseminação está associada a determinados atores, como fundações internacionais e ONGs de direitos humanos. Isso não significa que atores que se identificam como sendo da zona de influência da advocacia popular não possam empregar este mesmo método, até mesmo usando a expressão “litígio estratégico”, mas geralmente são atores com trajetória na advocacia popular que já adotaram um formato de ONG. Os típicos atores de advocacia popular são redes ou coletivos de advogados populares e as extensões universitárias das assessorias jurídicas populares. Enquanto método, a advocacia popular está mais próxima de ser uma advocacia AM, ou seja, com forte vínculo com os movimentos sociais, enquanto o litígio estratégico estaria mais próximo de uma advocacia FM, mais voltada às instituições. Os atores típicos da advocacia pro bono são os grandes escritórios corporativos, mas o método que podem utilizar em seus programas pode variar, e a grande confusão é no que se diferenciaria em relação ao discurso da assessoria jurídica gratuita.

Já as expressões litígio estrutural, litígio em massa e case-oriented foram usadas aqui neste texto apenas em sua dimensão enquanto método, pois a trajetória dessas expressões ainda não se confunde com atores específicos, nem se tratam de discursos-prática objeto de uma agenda global de disseminação. Mas procurei identificar a partir de exemplos que atores se aproximam mais de cada método. Litígio estrutural pode ser visto como uma derivação de um litígio estratégico das ONGs de direitos humanos, mas parece demandar um envolvimento ainda maior, quase protagônico, do Judiciário. Ministério Público e Defensorias Públicas, apesar de seu potencial para terem uma atuação issue-oriented , acabam tendendo a ser mais case-oriented, mesmo em casos de dimensão coletiva. Já a Defensoria Pública tem a capacidade de prática de litígio em massa, mas ainda de forma difusa, cada defensor isoladamente em sua atuação funcional, não institucionalmente planejada.

Em outras palavras, as expressões, os discursos migram, mas seus sentidos e formas de apropriação mudam conforme o contexto e atores envolvidos, e também entram em choque ou mesclam-se com práticas “nativas”. A diferenciação conceitual dessas expressões, portanto, são tênues 8 8 “Una de las tendencias de la abogacía, principalmente a partir de la segunda mitad de los años 80, está representada por lo que se acordó denominar como abogacía popular, actividad que nos es exclusiva del Brasil o de América Latina. Diferentes expresiones tales como cause lawyering, critical lawyering, transformative lawyering, rebellious lawyering, lawyering for the good, social justice lawyering, public interest lawyering, activist lawyering, progressive lawyering, equal justice lawyering, radical interest lawyering, radical lawyering, lawyering for social change, socially conscious lawyering, lawyering for the underrepresented , lawyering for the subordinated, alternative lawyering , political lawyering, visionary lawyering son utilizadas en Estados Unidos para indicar esta abogacía popular que asume su carácter político y que está comprometida con valores ético sociales. Sin embargo, la diferencia conceptual entre estas numerosas expresiones es tenue porque la definición de cada una de ellas no es rigurosa. Por ejemplo, Sarat y Scheingold (1998) afirman que es imposible la construcción de una única definición del concepto cause lawyering - genéricamente comprendido como la abogacía por una causa en oposición a la abogacía para clientes -, ya que la propia práctica depende de las condiciones concretas en que se desenvuelve. En otros términos, dicha abogacía está directamente influida por el régimen político, por el sistema jurídico, por la tradición jurídica, por la relación con el orden profesional y por el proyecto de transformación social.” ( Junqueira, 2002 ) .

Agenda global Práticas nativas
Método Atores Método Atores
Litígio estratégico, advocacia issue ou cause-oriented ONGs de direitos humanos
Clínicas jurídicas (extensões universitárias)
Advocacia popular Redes e coletivos de advogados populares
Assessorias jurídicas populares (extensões universitárias)
Advocacia pro bono Escritórios corporativos Assessoria jurídica gratuita
Advocacia dativa
Departamentos Jurídicos (extensões universitárias)
OAB
Advocacia pública Ministério Público e Defensorias Públicas

Qual é o futuro da transformação social via Judiciário no Brasil?

Inevitável ao concluir este ensaio-balanço de tantas vozes, que cumulam tantas experiências de ativismo e resistência, da redemocratização aos dias de hoje, tentar fazer um exercício de imaginação de qual será a viabilidade dessas formas de advocacia para os próximos anos, após as eleições de 2018.

A situação de bloqueio institucional dos poderes Executivo e Legislativo a pautas de direitos humanos e dos movimentos sociais tende a ser maior. Foi eleito o Congresso Nacional mais conservador desde 1964. Na legislatura que se encerra já tinham avançado discussões sobre Estatuto da Família, restrição ao aborto legal, escola sem partido e sido aprovadas a reforma trabalhista e a emenda constitucional do teto dos gastos, que impacta os investimentos sociais. O Executivo federal, por sua vez, acena mudanças ministeriais significativas, como a extinção do Ministério do Trabalho, além da criação de um ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, com clara centralidade para a abordagem religiosa do ideal de família e papel da mulher. Formas participativas, como os conselhos, podem ser esvaziadas ou ocupadas por novos atores da sociedade civil mais conservadores. Dificilmente ONGs de direitos humanos conseguirão seguir com a sua lógica incidência institucional diante de uma situação de bloqueio. Mas o acúmulo histórico de aprendizado que carregam é o de que, diante de bloqueio institucional do Executivo e Legislativo, cabe recorrer ao poder Judiciário ou aos sistemas internacionais de proteção.

O sistema de justiça será um espaço favorável? Como vimos, há uma série de dificuldades para Judiciário, Ministério Público e Defensorias em levarem adiante casos de litígio estratégico e estrutural ou demandas dos movimentos sociais, por limitações culturais, procedimentais e institucionais. Com relação ao futuro, recentes manifestações dos ministros do STF indicam que buscarão garantir direitos e liberdades individuais. A exemplo da reversão dada de forma liminar à revista e apreensão de materiais em mais de 20 universidades e institutos federais em todo país seguindo ordens de juízes eleitorais, sob a acusação de estarem realizando propaganda eleitoral ( STF, 2018 STF (2018). “STF referenda liminar que garantiu livre manifestação de ideias em universidades”, 31 out. 2018. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=394447> (Acesso em 17 dez. 2018).
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), mas a mesma disposição talvez não seja esperada em relação a temas de direitos sociais, como reversão da reforma trabalhista ou de uma futura reforma da previdência. Além disso, o posicionamento do STF favoravelmente a determinadas demandas de direitos humanos poderia levar a um tensionamento insustentável na relação entre os poderes. Mas o posicionamento da cúpula do Judiciário não necessariamente reflete o das instâncias inferiores. No Ministério Público pode aumentar a representatividade política interna de correntes mais conservadoras e as Defensorias Públicas podem intensificar o seu processo de encastelamento. Principalmente nas carreiras do Judiciário e Ministério Público, juízes e promotores progressistas poderão sofrer mais com as formas de controle ideológico sutis aqui descritas ou poderão ser observados mais casos de julgamentos de casos exemplares.

Com relação ao âmbito internacional enquanto forma complementar de desbloqueio doméstico ou de obtenção de pressão internacional, talvez essa estratégia seja mitigada dado o retrocesso da pauta de direitos humanos também nessa esfera. O recrudescimento político em diversos governos no continente poderá levar, por exemplo, a novas indicações dos Estados para postos no Sistema Interamericano com o objetivo de reduzir seu perfil de incidência em assuntos domésticos.

Por fim, para a sociedade civil, o cenário pode ser o de retorno do país à rota de financiamento internacional, por conta da piora de indicadores socioeconômicos, assim como das ameaças aos defensores de direitos humanos e movimentos sociais. Durante as eleições, o futuro presidente manifestou “vamos botar um ponto final em todos os ativismos do Brasil” ( Folha de São Paulo, 2018 Folha de São Paulo (2018). “Organizações repudiam fala de Bolsonaro contra ativismos”, 12 out. 2018. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/10/organizacoes-repudiam-fala-de-bolsonaro-contra-ativismos.shtml> (Acesso em 17 dez. 2018).
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). Entre as formas de restrição ao ativismo, já observado recentemente em outros países, como a Índia, está dificultar o acesso a financiamento internacional e colocar maiores restrições burocráticas à existência de ONGs. Especialmente para a advocacia popular, pode-se esperar a intensificação da criminalização de lideranças de movimentos sociais e até mesmo dos próprios advogados populares. As ONGs de direitos humanos poderão aprender mais sobre táticas de resistência com a experiência de advogados populares. Para a advocacia pro bono poderá significar um atraso maior no seu desenvolvimento, por conta do cálculo de ônus político dos escritórios de advocacia de se envolverem com determinados temas.

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    Foram 25 entrevistas com representantes de entidades de promoção da advocacia pro bono na América Latina, com Rebecca Groterhorst, em consultoria para o Instituto Pro Bono em Papel das entidades pro bono na expansão da advocacia pro bono na América Latina ( Cardoso, 2018 Cardoso, Evorah (Coord.) (2018). Papel das entidades pro bono na expansão da advocacia pro bono na América Latina. São Paulo: Instituto Pro Bono. ), 37 entrevistas com membros da Magistratura, Ministério Público e Defensoria Pública com atuação criminal no estado de São Paulo, com Naiara Vilardi e Pedro Davoglio, em consultoria para a ONG Conectas Direitos Humanos em Independência funcional e controle interno nas carreiras da Magistratura e do Ministério Público na capital paulista ( Cardoso, 2017 Cardoso, Evorah (Coord.) (2017). Independência funcional e controle interno nas carreiras da Magistratura e do Ministério Público na capital paulista. São Paulo: Conectas Direitos Humanos. ), 110 entrevistas com representantes de entidades da sociedade civil de defesa de direitos em todo país, com Fabiola Fanti e Iagê Zendron Miola, para o Ministério da Justiça em Advocacia de interesse público no Brasil: a atuação das entidades de defesa de direitos da sociedade civil e sua interação com os órgãos de litígio do Estado ( Cardoso, Fanti e Miola, 2013 Cardoso, Evorah; Fanti, Fabiola; Miola, Iagê (2013). Advocacia de interesse público no Brasil: a atuação das entidades de defesa de direitos da sociedade civil e sua interação com os órgãos de litígio do Estado. Brasília: Ministério da Justiça, Secretaria de Reforma do Judiciário. ), 60 entrevistas com ONGs de direitos humanos, acadêmicos, magistrados sobre a relação entre Cortes Supremas e Sociedade Civil na América Latina: estudo comparado Brasil, Argentina e Colômbia ( Cardoso, 2012b Cardoso, Evorah (2012b). Cortes Supremas e Sociedade Civil na América Latina: estudo comparado Brasil, Argentina e Colômbia. São Paulo: Universidade de São Paulo (Tese de Doutorado). ), em tese de doutorado, e 14 entrevistas com o mesmo perfil de atores sobre Litígio estratégico e Sistema Interamericano de Direitos Humanos (de 2009 e publicada em Cardoso, 2012a Cardoso, Evorah (2012a). Litígio estratégico e Sistema Interamericano de Direitos Humanos. Belo Horizonte: Fórum. ), em dissertação de mestrado.
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    Esta reflexão veio a partir das entrevistas realizadas em Cardoso, Fanti e Miola (2013) Cardoso, Evorah; Fanti, Fabiola; Miola, Iagê (2013). Advocacia de interesse público no Brasil: a atuação das entidades de defesa de direitos da sociedade civil e sua interação com os órgãos de litígio do Estado. Brasília: Ministério da Justiça, Secretaria de Reforma do Judiciário. .
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    As reflexões deste tópico foram desenvolvidas a partir das entrevistas realizadas em Cardoso (2018) Cardoso, Evorah (Coord.) (2018). Papel das entidades pro bono na expansão da advocacia pro bono na América Latina. São Paulo: Instituto Pro Bono. , exceto as relativas à advocacia pro bono no Brasil.
  • 4
    A Lei n. 13.655/2018, que altera a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, em seu artigo 21, parágrafo único, abre caminho para sentenças em casos de litígio estrutural junto a administração pública, pois permite que juízes passem a planejar o cumprimento das sentenças ao longo do tempo, mediante um cronograma de implementação, ao dizer que as decisões judiciais devem “indicar as condições para que a regularização ocorra de modo proporcional e equânime”.
  • 5
    Esta reflexão veio a partir das entrevistas realizadas em Cardoso, Fanti e Miola (2013) Cardoso, Evorah; Fanti, Fabiola; Miola, Iagê (2013). Advocacia de interesse público no Brasil: a atuação das entidades de defesa de direitos da sociedade civil e sua interação com os órgãos de litígio do Estado. Brasília: Ministério da Justiça, Secretaria de Reforma do Judiciário. e foi parcialmente explorada naquele trabalho.
  • 6
    Esta reflexão foi desenvolvida a partir das entrevistas realizadas em Cardoso (2017) Cardoso, Evorah (Coord.) (2017). Independência funcional e controle interno nas carreiras da Magistratura e do Ministério Público na capital paulista. São Paulo: Conectas Direitos Humanos. .
  • 7
    “‘Litígio estratégico’, ‘litígio de impacto’, ‘litígio paradigmático’, ‘litígio de caso-teste’ são expressões correlatas, que surgiram de uma prática diferenciada de litígio, não necessariamente relacionada ao histórico da advocacia em direitos humanos. O litígio estratégico busca, por meio do uso do judiciário e de casos paradigmáticos, alcançar mudanças sociais. Os casos são escolhidos como ferramentas para transformação da jurisprudência dos tribunais e formação de precedentes, para provocar mudanças legislativas ou de políticas públicas. Trata-se de um método, uma técnica que pode ser utilizada para diferentes fins/temas. O objetivo de quem litiga não se limita à solução do caso concreto (justiça individual), como a reparação da vítima. Nesse sentido, o litígio estratégico é bastante diferente da forma tradicional de advocacia. É possível contrapor uma advocacia client-oriented a um novo tipo de advocacia, issue-oriented ou policy-oriented . Basicamente a primeira vale-se do direito para atender às demandas e aos interesses do cliente. A segunda busca o impacto social que o caso pode trazer, como o avanço jurídico em um determinado tema, aplicando o método do litígio estratégico. Com esse fim, as entidades de advocacia policy-oriented costumam ter um trabalho preliminar de escolha do caso paradigmático, conforme o seu potencial impacto social no tema ou na política tidos como prioritários na agenda da entidade. Este trabalho as entidades client-oriented não costumam ter, pois atendem a um determinado público, conforme a demanda ou os limites orçamentários da entidade. Entidades de advocacia client-oriented também podem exercer litígio estratégico, mas geralmente de maneira ad hoc, quando são levadas pelo caso a planejar estratégias de impacto social” ( Cardoso, 2012a Cardoso, Evorah (2012a). Litígio estratégico e Sistema Interamericano de Direitos Humanos. Belo Horizonte: Fórum. )
  • 8
    “Una de las tendencias de la abogacía, principalmente a partir de la segunda mitad de los años 80, está representada por lo que se acordó denominar como abogacía popular, actividad que nos es exclusiva del Brasil o de América Latina. Diferentes expresiones tales como cause lawyering, critical lawyering, transformative lawyering, rebellious lawyering, lawyering for the good, social justice lawyering, public interest lawyering, activist lawyering, progressive lawyering, equal justice lawyering, radical interest lawyering, radical lawyering, lawyering for social change, socially conscious lawyering, lawyering for the underrepresented , lawyering for the subordinated, alternative lawyering , political lawyering, visionary lawyering son utilizadas en Estados Unidos para indicar esta abogacía popular que asume su carácter político y que está comprometida con valores ético sociales. Sin embargo, la diferencia conceptual entre estas numerosas expresiones es tenue porque la definición de cada una de ellas no es rigurosa. Por ejemplo, Sarat y Scheingold (1998) afirman que es imposible la construcción de una única definición del concepto cause lawyering - genéricamente comprendido como la abogacía por una causa en oposición a la abogacía para clientes -, ya que la propia práctica depende de las condiciones concretas en que se desenvuelve. En otros términos, dicha abogacía está directamente influida por el régimen político, por el sistema jurídico, por la tradición jurídica, por la relación con el orden profesional y por el proyecto de transformación social.” ( Junqueira, 2002 Junqueira, Eliane Botelho (2002). Los Abogados Populares: En Busca De Una Identidad. El Otro Derecho, Bogotá, n. 26-27, pp. 193-227, abr. 2002. )

Referências bibliográficas

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  • Cardoso, Evorah; Fanti, Fabiola; Miola, Iagê (2013). Advocacia de interesse público no Brasil: a atuação das entidades de defesa de direitos da sociedade civil e sua interação com os órgãos de litígio do Estado. Brasília: Ministério da Justiça, Secretaria de Reforma do Judiciário.
  • Cardoso, Evorah (2012b). Cortes Supremas e Sociedade Civil na América Latina: estudo comparado Brasil, Argentina e Colômbia. São Paulo: Universidade de São Paulo (Tese de Doutorado).
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  • Rodríguez Garavito, César; Rodríguez Franco, Diana (2010). Cortes y cambio social: cómo la Corte Constitucional transformó el desplazamiento forzado en Colombia. Bogotá: Centro de Estudios de Derecho, Justicia y Sociedad, Dejusticia.

Outras referências

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Mar 2019
  • Data do Fascículo
    Mar 2019

Histórico

  • Recebido
    04 Jan 2019
  • Aceito
    12 Jan 2019
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