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Direitos fundamentais e a democracia agonística: considerações jurídicas sobre a teoria política de Chantal Mouffe

Basic Rights and the agonistic democracy: legal remarks on Chantal Mouffe´s political theory

Resumo

O objetivo principal deste artigo reside em articular a ideia de democracia agonística desenvolvida por Chantal Mouffe e uma noção abrangente de direitos fundamentais. Pretende-se, deste modo, ressaltar mecanismos de institucionalização que promovam limites e referenciais para o conflito de perspectivas políticas ao mesmo tempo em que se rejeita qualquer fundamentação última e transcendente para as práticas democráticas.

Palavras-chave:
Agonismo; Direitos fundamentais; Mouffe

Abstract

The main purpose of this article is to articulate the idea of an agonistic democracy developed by Chantal Mouffe and a broader conception of basic rights. One significant theoretical consequence would be exposing mechanisms that can promote further institutionalization in order to put limits and references to the conflict of perspectives without appealing to some sort of transcendental ground for the democratic practices.

Keywords:
Agonism; Basic rights; Mouffe

Introdução1 1 Gostaria de agradecer a Carolina Leal de Moraes Vieira pelo paciente de trabalho de leitura, revisão e discussão dos temas apresentados neste artigo. Sua contribuição foi inestimável para o desenvolvimento desta pesquisa.

Após o colapso da União Soviética as democracias ocidentais se viram diante do fracasso de um modelo que vinha se mostrando uma alternativa histórica ao modo de produção capitalista adotado por elas. Muito antes desse acontecimento, porém, os frutos da revolução soviética levaram a um preocupante panorama no qual os direitos fundamentais, conquistas das diversas transformações trazidas pela modernidade, passaram a ser sistematicamente violados. O prognóstico de uma sociedade igualitária, comprometida em concretizar e compatibilizar a liberdade e a igualdade, aos poucos cedeu espaço às experiências políticas totalitárias. Em certo sentido, o fracasso da revolução em muito antecedera a queda do Muro de Berlim e o já mencionado colapso soviético: pode-se dizer que ele começa com o abandono dos ideais que serviam de referência e justificativa para os atos revolucionários.

O abandono significa também, para os intelectuais de esquerda a partir da década de sessenta, uma encruzilhada que é tanto teórica quanto prática: ao mesmo tempo em que tomavam conhecimento da opressiva realidade soviética, também não concordavam com uma adesão irrestrita do capitalismo, colocado como antítese da experiência socialista e sua única alternativa real. Evitar a opção capitalista, porém, não deveria conduzir à adesão de uma concepção de coletividade estabelecida através da exclusão de prerrogativas institucionais que permitiriam aos diversos indivíduos estabelecerem projetos de vida específicos: essa opção não apenas desconsidera a singularidade de cada projeto, como visa a estabelecer um fundamento último e definitivo para o social.

Entretanto, como já observara Claude Lefort, um dos traços distintivos da sociedade moderna é a eliminação dos marcadores de certeza que outrora estavam associados ao poder monárquico. O surgimento da sociedade moderna esvazia definitivamente o centro do social, de maneira que aquele que o ocupa somente poderá fazê-lo provisoriamente: abre-se o espaço para a contingência dos arranjos de poder e a indeterminação dos projetos futuros. Deixam de existir quaisquer referências transcendentais as quais podem ser empregadas para determinar, em definitivo, os rumos das mudanças sociais. Uma configuração social como essa somente pode trazer consigo propostas e questões, jamais certezas ou projetos que se subtraem ao questionamento e ao confronto. Reconhecer a dissolução dos marcadores de certeza é também estabelecer a contingência e precariedade de qualquer posicionamento político que em dado momento venha se tornar hegemônico.

As democracias liberais, ao menos no tocante aos direitos fundamentais de liberdade, demonstraram uma proteção institucional mais sólida, com a liberdade de expressão e pensamento, a alternância do poder entre partidos com orientações contrárias, além de um repertório de direitos políticos que, ao menos em tese, permitiriam a livre participação política dos cidadãos, seja em termos de participação efetiva nas estruturas de poder, seja escolhendo os seus representantes. Embora sempre suscetível à ascensão de partidos extremistas que coloquem em risco essas garantias, as democracias ocidentais têm se mostrado um espaço no qual diferentes concepções de mundo, ainda que conflitantes, almejam formas de coexistência pautadas pela tolerância e diálogo.

A celebração irrestrita deste modelo, porém, pode levar a uma desconsideração dos severos déficits que as sociedades nos quais ele é implementado tendem a apresentar: uma desigualdade de renda que severamente limita a ascensão social e o desenvolvimento profissional das populações de baixa renda, uma precária rede de proteção social, entraves à participação social e política de grupos minoritários, dentre outras questões. Se a promoção da liberdade se mostrou consistente e duradoura, a igualdade acabou por vezes sendo restringida a um entendimento formal, circunscrito tão somente ao tratamento igualitário perante a lei e à abertura do exercício profissional a qualquer um que se prontifique ao ofício (ROSANVALLON, 2013ROSANVALLON, Pierre. The Society of Equals. Cambridge: Harvard University Press, 2013., p. 243 e ss). Justaposto à celebração política da democracia, permanecem fortes e reformulados os questionamentos de certas formas de relação social, bem como os anseios por transformação.

Uma vez que se proclame a inexistência de qualquer alternativa ao modelo capitalista vigente, o caráter utópico da política é gradualmente substituído por uma concepção tecnocrática na qual os conflitos de interesses podem ser resolvidos com neutralidade através de conhecimentos especializados. Essa absorção, ao menos em tese, permitiria afirmar a ascensão de uma prática política pós-ideológica na qual a aquisição e concretização de direitos dependeria menos da atuação dos movimentos sociais e mais de líderes bem esclarecidos com know how para proporcionar soluções às diversas carências sociais.

É a partir deste panorama que começam a surgir uma proliferação de demandas e movimentos sociais que não necessariamente encontram alinhamento às pautas dos tradicionais partidos comunistas. A fragmentação das pautas e demandas aconteceu em parte em decorrência da politização e pela problematização de diversos segmentos e objetos do social que outrora eram ignorados. Lutas por uma maior preservação do meio ambiente, pela inclusão social de grupos minoritários, pela concretização dos direitos adquiridos, porém ignorados, compõem parte desse contexto, em parte redefinindo as relações entre política e direito, assim como as estratégias dos movimentos sociais e suas pautas emancipatórias.

A proposta principal deste artigo é desdobrada em dois pontos específicos: o primeiro reside em esclarecer como a democracia agonística de Mouffe é uma resposta ao panorama que a autora identifica como pós-político; o segundo é o de delimitar um possível papel para os direitos fundamentais na teoria política da autora. Considerando que a democracia agonística está centrada em uma forma bastante específica de conflito, e que este só pode ocorrer a partir de certas condições institucionais, o artigo desenvolve a hipótese de que os direitos fundamentais podem integrar essas condições ao mesmo tempo em que seus significados são redefinidos em meio às múltiplas dinâmicas das tensões políticas. Em outras palavras, eles não precisam ser concebidos como elementos que, limitando os conflitos, sobrepõem-se a eles.

Em termos metodológicos, o artigo não pretende ser um estudo da teoria política de Chantal Mouffe, apontando seus interlocutores e críticos, bem como avaliando a consistência ou não de suas principais posições: o seu objetivo se restringe em tentar discernir uma possível função dos direitos fundamentais, uma noção que em sua obra tende a aparecer de maneira discreta, no horizonte de sua concepção de democracia agonística.

Se em muitos momentos o artigo recorre a autores como Rainer Forst, Claus Offe, Claude Lefort e Iris Marion Young, assim o faz não porque esses autores são importantes para o projeto de Mouffe ou com ela dialogaram, mas sim para aproximar teoricamente a sua posição de aspectos e questões que a sua obra veio a contemplar pouco ou ignorou, mas que são importantes para uma consideração crítica dos direitos fundamentais na teoria democrática.

A primeira seção se inicia com uma abordagem ampla de dois temas conectados e recorrentes na obra de Mouffe: a pós-política e o retorno ao político. O objetivo é desenvolver o que seria uma concepção tecnocrática da política e mostrar de que maneira às reservas de Mouffe a essa abordagem a fazem recorrer à filosofia política de Carl Schmitt. A segunda seção mostra de que maneira a resposta de Mouffe - a democracia radical como democracia agonística - traz consigo um espaço no qual os direitos fundamentais podem desempenhar relevante papel. Por fim, na última seção, será desenvolvida a conexão entre democracia agonística e direitos fundamentais levando em consideração a fragmentação política das democracias contemporâneas, e em que elas podem ser importantes para fazer avançar as demandas propostas por esses movimentos.

A pesquisa foi realizada através de uma revisão de literatura desenvolvida em torno da teoria política de Chantal Mouffe. O desenvolvimento do conceito de agonismo proporcionou o recorte central para a leitura das obras. Na primeira seção, a noção de pós-política, que abrange obras como Return of the Political e On the Political, foi determinante para fornecer o contexto teórico no qual o conceito de agonismo será desenvolvido e quais as suas funções no panorama teórico montado por Mouffe. Nas seções subsequentes o conceito de agonismo é examinado primeiramente em contraposição a ideia de antagonismo, que Mouffe confronta na interpretação que faz de Carl Schmitt, e depois em relação aos direitos fundamentais.

Da Pós-Política ao Retorno do Político: o conflito como constitutivo da democracia

Quando Chantal Mouffe ao lado de Ernesto Laclau publicaram juntos em 1985 Hegemony and Socialist Strategy, não era incomum se ouvir falar em uma crise teórica e prática das esquerdas. Pelo lado da teoria, a realidade das sociedades que viviam sob regimes socialistas apresentava um histórico sistemático de violação das garantias e conquistas jurídicas mais básicas das democracias ocidentais, além de um desenvolvimento econômico precário. A busca por um sujeito coletivo histórico, como o proletariado, responsável por impulsionar as transformações sociais e políticas rumo a uma sociedade mais igualitária na qual os diferentes indivíduos pudessem desenvolver os seus próprios potenciais e projetos particulares, mostrou-se cada vez mais difícil diante do surgimento de novas demandas e movimentos que até então ganhavam forma. As distorções internas, especialmente econômicas, passam a se intensificar nas democracias liberais, o que em parte contribui para o surgimento de outras forças que colocam em risco a sua existência. É neste panorama que encontramos as considerações presentes em The Return of the Political:

Nós temos, de fato, que reconhecer que a vitória da democracia liberal se deve mais ao colapso do seu inimigo do que ao seu próprio sucesso. Longe de estar com uma saúde excelente, existe uma crescente insatisfação com a vida política nas democracias Ocidentais e claros sinais de perigosas erosões dos valores democráticos. A ascensão da extrema direita, o renascimento do fundamentalismo e a ascendente marginalização de vastos segmentos da população nos lembram que a situação está longe de ser satisfatória em nossos próprios países (MOUFFE, 1993MOUFFE, Chantal. The Return of the Political. London: Verso, 1993., p. 117)2 2 No original: “We have, in fact, to acknowledge that the victory of liberal democracy is due more to the collapse of its enemy than to its own successes. Far from being in excellent health, there is growing disaffection with political life in the Western democracies and clear signs of a dangerous erosion of democratic values. The rise of the extreme right, the rebirth of fundamentalism, and the creeping marginalization of vast sectors of the population are there to remind us that the situation is far from satisfactory in our own countries”. .

As implicações de ordem estratégica fazem com que a esquerda reflita sobre as suas estratégias e direcionamentos, especialmente considerando a ascensão dos novos movimentos sociais e de que maneira as suas demandas podem ser assimiladas em um programa político mais abrangente. Essas são algumas das considerações que animam as primeiras páginas de Hegemony and Socialist Strategy e que vão continuar fazendo parte das preocupações que animam a obra dos dois autores (LACLAU; MOUFFE, 2001LACLAU, Ernesto; MOUFFE, Chantal. Hegemony and Socialist Strategy: Towards a Radical Democratic Politics. 2. Ed. London: Verso, 2001., p. 1 e ss; SNIR, 2016SNIR, Itay. "Not Just One Common Sense": Gramci´s Common Sense and Laclau and Mouffe´s Radical Democratic Politics. Constellations, v. 23, n. 2, pp. 269-280, 2016., p. 269 e ss).

As reflexões sobre a pós-política, ou, por assim dizer, a política compreendida como administração técnica dos interesses sociais, captam a atenção de Mouffe após o triunfalismo das democracias liberais e a posição da terceira via que, conciliando elementos da direita com os da esquerda, pretendeu transcender a tensão existente entre os dois polos. Em uma de suas obras mais importantes, On the Political, a autora tece o seguinte comentário:

O ´mundo livre´ triunfou sobre o comunismo e, com o enfraquecimento das identidades coletivas, um mundo ´sem inimigos´ agora se faz possível. Conflitos partidários é algo do passado e o consenso agora pode ser alcançado através do diálogo. Graças à globalização e à universalização da democracia liberal, nós podemos esperar um futuro cosmopolita trazendo paz, prosperidade e a implementação dos direitos humanos em todo o mundo (MOUFFE, 2005MOUFFE, Chantal. On the Political. London: Routledge, 2005., p. 1)3 3 No original: “The ´free world´ has triumphed over communism and, with the weakening of collective identities, a world ´without enemies´ is now possible. Partisan conflicts are a thing of the past and consensus can now be obtained through dialogue. Thanks to globalization and the universalization of liberal democracy, we can expect a cosmopolitan future bringing peace, prosperity and the implementation of human rights worldwide”. .

Um mundo sem antagonismos é também pós-político: uma vez que, a princípio, todos formam uma única comunidade sob uma mesma estrutura jurídico-política, segue-se que os problemas podem ser resolvidos sem que suas soluções estejam comprometidas com programas ideológicos de algum espectro político. Aliás, o próprio termo ´ideologia´ vai se enfraquecendo aos poucos: as desigualdades sociais e econômicas não se justificam através de discursos e estratégias de uma classe frente as demais, sendo muito mais distorções na distribuição de recursos que podem ser aos poucos mitigada através de reformas variadas e formas pontuais de intervenção no domínio econômico por parte do Estado.

O enfraquecimento das identidades coletivas abrange duas tendências: a primeira se refere à sua constituição; a segunda lida com a sua individualização e enfraquecimento. Em termos de constituição, nas sociedades pós-tradicionais as identidades coletivas já não se firmam através de uma relação antagônica entre nós/eles. Em termos de individualização, isso significa que os sentidos presentes nos grupos e formas de representação coletiva passam por uma exaustão considerável. Novos riscos de natureza global e pessoal expõem os indivíduos às incertezas inéditas, assim como a individualização dos conflitos políticos dificultam, para não dizer inviabilizam, a cisão partidária que caracteriza a tensão nós/eles.

As reformas graduais asseguram certas tendências significativas na conjuntura pós-política: superação dos antagonismos; neutralidade das soluções; transformações que ocorrem a partir e dentro de um panorama institucional. A superação dos antagonismos se reflete em uma aposta no surgimento de formas de solidariedade enraizadas em uma variedade de esferas públicas: as discordâncias e os choques entre perspectivas e visões de mundo opostas podem ser mediados através de uma abertura para o diálogo caracterizada também, ao menos em tese, por uma atitude conciliatória e tolerante. Mouffe descreve esse panorama da seguinte forma:

O debate democrático é concebido como diálogo entre indivíduos cuja meta é criar novas solidariedades e expandir as bases de uma confiança ativa. Os conflitos podem ser pacificados graças a ´abertura´ de uma variedade de esferas públicas em que, através do diálogo, pessoas com interesses muitos diferentes vão decidir sobre uma variedade de questões que as afetam e deste modo desenvolver uma relação de tolerância mútua que os permita viverem juntos. Divergências vão continuar a existir, certamente, mas elas não assumirão um formato antagônico (MOUFFE, 2005MOUFFE, Chantal. On the Political. London: Routledge, 2005., p. 48)4 4 No original: “The democratic debate is envisaged as a dialogue between individuals whose aim is to create new solidarities and extend the bases of active trust. Conflicts can be pacified thanks to the ´opening up´ of a variety of public spheres where, through dialogue, people with very different interests will make decisions about the variety of issues which affect them and develop a relation of mutual tolerance allowing them to live together. Disagreements will of course exist but they should not take an adversarial form”. .

Um dos problemas dessa abordagem reside em dificultar a distinção estabelecida entre as diversas propostas políticas referentes ao social. Uma vez que se torna difícil separar projetos políticos divergentes, encontra-se prejudicada a maneira pela qual os indivíduos estabelecem relações de identificação com esses projetos. É neste ponto que Mouffe chama atenção para a ascensão de partidos populistas que, pretendendo romper com as tendências prevalecentes da política usual e conciliatória, atraem um amplo eleitorado descontente e sub-representado (MOUFFE, 2005MOUFFE, Chantal. On the Political. London: Routledge, 2005., p. 66 e ss). Ao confrontarem o sistema, esses partidos trazem consigo propostas e direcionamentos que em muito contrariam as bases e os valores das democracias liberais. Para a autora, então, muito embora o panorama pós-político não seja o responsável pela criação desses partidos, ele certamente contribui para a sua ascensão e cada vez mais consolidação no cenário político (LACLAU, 2005LACLAU, Ernesto. On Populist Reason. London: Verso, 2005., p. 18 e ss; CANOVAN, , p. 27 e ss).

A ascensão dos partidos mencionados, porém, não representa apenas o surgimento de perspectivas sub-representadas, mas um questionamento frontal das regras mais básicas que compõem a dinâmica do jogo democrático, principalmente no que se refere ao pluralismo de perspectivas. A forma de composição dos conflitos levada adiante por esses partidos com frequência envolve exclusão ou mesmo combate ao que lhe é diferente: projetos políticos calcados em expressões de nacionalismo e de pátria entrelaçam-se com a xenofobia e outras manifestações que reforçam a delimitação e imposição de uma identidade sobre as demais. Ameaçam, deste modo, as próprias bases na qual repousa a forma de vida democrática. Apesar do exposto, esses partidos reforçam um ponto de grande significação: a dinâmica do político reside na mobilização de formas de coletividade, a exemplo do povo, não se limitando à adesão isolada e dispersa dos indivíduos.

Uma vez que a cisão entre os projetos políticos é transposta através da administração dos interesses conflitantes, a manifestação do político passa a ser caracterizada pela manutenção do status quo: uma parcela significativa da expressão retórica dos partidos populistas reside em atacar o establishment, propondo alternativas verdadeiras e importantes transformações. Mouffe escreve:

Eles também proporcionam ao povo alguma forma de esperança, com a crença de que as coisas podem ser diferentes. É claro que se trata de uma esperança ilusória, fundada sobre premissas falsas e mecanismos inaceitáveis de exclusão onde a xenofobia frequentemente tem um papel central. Mas quando eles são os únicos canais de expressão das paixões políticas, a sua presença representa uma alternativa bastante sedutora. É por isso que eu acredito que o sucesso dos partidos populistas de direita é consequência da falta de um debate democrático vibrante em nossas pós-democracias (MOUFFE, 2005MOUFFE, Chantal. On the Political. London: Routledge, 2005., p. 71)5 5 No original: “They also provide people with some form of hope, with the belief that things could be different. Of course, it is an illusory hope, founded on false premises and unacceptable mechanisms of exclusion where xenophobia usually plays a central role. But when they are the only channels for the expression of political passions, their presence to represent an alternative is very seductive. This is why I submit that the success of right-wing populist parties is the consequence of the lack of a vibrant democratic debate in our post-democracies”. .

Esse é o fio condutor que levará Mouffe a confrontar a maneira pela qual as teorias liberais concebem o papel do conflito no panorama democrático. Esse confrontamento faz com que a autora procure aportes teóricos nos quais o papel do irracional, na forma das paixões e inclinações que não podem ser racionalmente mediadas em sua totalidade. Afirmar o caráter incontornável do conflito no político significa pensar também a maneira como as diferentes perspectivas, uma vez que contrapostas, podem de algum modo coexistir sem se deixar diluir em projetos políticos mais abrangentes e supostamente neutros.

Agonismo x Antagonismo: as bases da democracia radical

Retornar ao político implica admitir que as divergências referentes aos valores e aos fundamentos do social não podem ser definitivamente resolvidas ou conciliadas através de uma abordagem racional, calcada em comprometimentos e barganhas. Envolve também reconhecer que nenhum arranjo institucional por si só será também suscetível de propor soluções e alternativas neutras e que, por isso mesmo, tendam a se sobrepôr aos interesses articulados em torno das partes estabelecidas. Nesse sentido, a natureza conflituosa do político se impõe como incontornável.

Se o conflito é incontornável, disso não se segue que ele necessariamente precise ser formulado em termos de aniquilação da parte contrária, e por isso Mouffe elabora a sua distinção entre antagonismo e agonismo. O antagonismo representa o conflito de forma que um dos polos tenha a sua existência ameaçada a partir de um outro, ou seja, é uma tensão que se estabelece em termos de amigo/inimigo. O conflito se estabelece quando uma determinada área do social se constitui através desses termos, nesse processo obstruindo forças contrárias à sua constituição. Uma vez que traz consigo o risco da dissolução, o inimigo é alguém a ser combatido, mas nunca completamente erradicado. É deste modo que Carl Schmitt, em sua influente obra, Der Begriff des Politischen, concebe o político (BROCKELMAN, 2003BROCKELMAN, Thomas. The Failure of the Radical Democratic Imaginary: Zizek versus Laclau and Mouffe on Vestigial Utopia. Philosophy & Social Criticism, v. 29, n.2, pp. 183-208. 2003., p. 188; SCHMITT, 2007SCHMITT, Carl. The Concept of the Political. Chicago: University of Chicago Press, 2007., p. 26 e ss). Contrapondo Schmitt às teorias liberais das quais ela mesma pretende se distanciar, Mouffe observa:

A teoria sistemática do liberalismo se preocupa quase que exclusivamente com as lutas internas contra o poder do Estado. Entretanto, a tentativa liberal de aniquilar o político, ele [Schmitt] diz, está fadada ao fracasso. O político jamais poderá ser erradicado porque ele extrai a sua energia das mais variadas atividades humanas: ´cada religião, moral, economia, ética ou outra antítese transforma a si mesma em política quando é suficientemente forte para efetivamente agrupar seres humanos em termos de amigo e inimigo´ (MOUFFE, 2005MOUFFE, Chantal. On the Political. London: Routledge, 2005., p. 12)6 6 No original: “The systematic theory of liberalism concerns almost solely the internal struggle against the power of the state. However, the liberal attempt to annihilate the political is, he says, bound to fail. The political can never be eradicated because it can derive its energy from the most varied human endeavours: ´every religious, moral, economic, ethical or other antithesis transforms itself into a political one if it is sufficiently strong to group human beings effectively according to friend and enemy”. .

Posto desta maneira, o antagonismo por si só se opõe à qualquer forma de pluralismo em um panorama democrático e o próprio Schmitt não concebia um espaço para ele na comunidade democrática. Uma das razões é que a manutenção dessa comunidade exige um povo homogêneo caracterizado por valores e ideais enraizados em suas tradições históricas. Seguindo essa linha de raciocínio, a única forma de pluralismo viável seria entre os próprios Estados-nações.

O decisivo para a teorização proposta por Mouffe é a maneira como Schmitt ressalta o caráter decisivamente relacional da relação política, algo muito bem explorado por William E. Connolly (CONNOLLY, 1991CONNOLLY, William E. Identity\Difference: Democratic Negotiations of Political Paradox. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1991., p. 64 e ss; MOUFFE, 1999MOUFFE, Chantal. Carl Schmitt and the Paradox of Liberal Democracy. In: MOUFFE, Chantal (org). The Challenge of Carl Schmitt. London: Verso, 1999, pp. 38-53., p. 18 e ss). Se o inimigo não pode ser completamente aniquilado por aquele que o ameaça, isso ocorre porque a identidade dos dois polos (amigo/inimigo) se entrelaça e se constitui em sua relação com a outra (MOUFFE, 1993, p. 118 e ss; SCHMITT, 2007SCHMITT, Carl. The Concept of the Political. Chicago: University of Chicago Press, 2007., p. 26 e ss). Não é possível a eliminação de um polo sem que o outro não desapareça. Por isso atacar o establishment é um ponto crucial na estratégia dos partidos populistas em meio ao panorama pós-político apontado por Mouffe. Tendo em vista que os partidos que integram o sistema já não mais constroem em torno de si uma demarcação que os permita apontar projetos concorrentes, deste modo os diferenciando dos demais, eles sacrificam nesse processo também a própria identidade e as suas características distintivas.

Os partidos populistas, em direção contrária, constituem a sua identidade a partir de uma oposição muito pontual perante o sistema e todos aqueles que de algum modo são taxados de inimigos do povo. Uma vez que a relação antagônica está montada, da criação de imagens e prognósticos que suscitem disposições afetivas (o medo, a raiva, o orgulho) articulados em torno do projeto político. A própria mobilização dos afetos existe em função da relação estabelecida entre os corpos, sendo a composição dessas conexões também uma tarefa do projeto político em sua dimensão, por assim dizer, micropolítica (MASSUMI, 2015MASSUMI, Brian. Politics of Affect. Cambridge: Polity Press, 2015., p. 50 e ss). Eles exploram a falta de identidade dos demais partidos para constituir a sua própria identidade e, nesse processo, diferenciam-se dos demais. Estabelecem deste modo a relação política da qual Schmitt e Mouffe destacam: a identidade se estabelece em função da diferenciação e de uma exterioridade que, no fundo, é fundamental para a sua constituição.

Pouco importa o nome que seja dado a essa exterioridade, sem ela as identidades políticas não serão formadas: os imigrantes ilegais que querem ocupar os empregos dos nacionais, os subversivos, os inimigos do povo, os partidos corruptos ou fisiológicos, todas essas denominações são relevantes para a constituição da identidade daquele que as emprega. O principal problema teórico com o qual Mouffe se depara em seu retorno ao político reside em evitar os extremos: se, por um lado, a relação amigo/inimigo expressa um conflito no qual não somente as partes carecem de um denominador comum, um espaço simbólico em que eles se comprometem em manter, como também não reconhecem a legitimidade das demandas feitas pela outra parte, por outro lado os caminhos da pós-política levam a maneiras de comprometimento e barganhas que trazem consigo os mencionados entraves para a dinâmica da própria democracia.

É preciso conceber uma forma de expressão dos conflitos que, distinguindo-se da relação amigo/inimigo, permita que as partes conflitantes reconheçam a impossibilidade de se chegar a uma solução racional para os seus impasses, reconhecendo que o outro pode elaborar demandas legítimas e que tem direito a defendê-las (MENDONÇA, 2010MENDONÇA, Daniel de. Teorizando o agonismo: crítica a um modelo incompleto. Revista Sociedade e Estado, v. 25, n. 3, Dezembro/2010, pp. 479-497., p. 494 e ss). Preserva-se o pluralismo através do conflito sem por em risco os limites que configuram a democracia (BOHMAN, 1996BOHMAN, James. Public Deliberation: Pluralism, Complexity, and Democracy. Cambridge: MIT Press, 1996., p. 73 e ss). Distanciando-se de Schmitt, Mouffe recorre ao conceito de agonismo como resposta ao desafio apresentado pelo jurista alemão (MOUFFE, 2000MOUFFE, Chantal. The Democratic Paradox. London: Verso, 2000., p. 53 e ss; RUMMENS, 2009RUMMENS, Stefan. Democracy as a Non-Hegemonic Struggle?: Disambiguating Chantal Mouffe´s Agonistic Model of Politics. Constellations, v. 6, n. 3, 2009, pp. 377-391., p. 384 e ss).

O conceito tem sua origem nos jogos da Grécia antiga onde a competição para ressaltar e trazer à tona os potenciais de excelência dos competidores, ou seja, o embate adquiria significação e valor em prol daquilo que o competidor precisa se tornar para que se torne vencedor. A ideia de agonismo traz consigo uma disposição para o enfrentamento de opiniões e projetos políticos ampliando a diversidade das perspectivas políticas e, neste processo, refinando e redefinindo as posições contrapostas (MOUFFE, 2013MOUFFE, Chantal. Agonistics: Thinking the World Politically. London: Verso, 2013., p. 1 e ss).

Uma oposição séria e confiável ao poder estabelecido pode ser, no que concerne à dinâmica do jogo democrático e da limitação dos poderes, até mais eficiente do que a própria separação de poderes (ROSANVALLON, 2008ROSANVALLON, Pierre. Counter-Democracy: Politics in an Age of Distrust. Cambridge: Cambridge University Press, 2008., p. 156 e ss). Embora inicialmente o direito ao voto feminino fosse matéria de grande controvérsia, com o passar dos anos se tornou um direito tão fundamental que qualquer questionamento que lhe seja contrário, no mínimo, será encarado hoje com profunda estranheza.

Em sua obra On the Political, Mouffe desenvolve a categoria deste modo: “Uma democracia saudável requer o embate de posições políticas legítimas. É disso que se trata o confronto entre esquerda e direita. Esse confronto deve proporcionar formas coletivas de identificação fortes o bastante para mobilizarem paixões políticas” (MOUFFE, 2005MOUFFE, Chantal. On the Political. London: Routledge, 2005., p. 30)7 7 No original: “A well functioning democracy calls for a clash of legitimate democratic political positions. This is what the confrontation between left and right needs to be about. Such a confrontation should provide collective forms of identification strong enough to mobilize political passions”. . Uma vez que o agonismo, assim como o antagonismo, estão centrados no conflito, é preciso desenvolver com mais precisão de que maneira eles expressam relações distintas de oposição. Escreve a autora:

Enquanto o antagonismo é uma relação nós/eles em que os dois lados são inimigos que não compartilham nenhum denominador comum, o agonismo é uma relação nós/eles em que as partes conflitantes, embora reconhecendo a inexistência de qualquer solução racional para o seu conflito, ainda assim reconhecem a legitimidade dos seus oponentes. Eles são ´adversários´ ao invés de inimigos. Isso significa que, enquanto estão em conflito, eles se enxergam como pertencentes a uma mesma associação política, compartilhando um espaço comum simbólico em que o conflito ocorre (MOUFFE, 2005MOUFFE, Chantal. On the Political. London: Routledge, 2005., p. 20)8 8 No original: “While antagonism is a we/they relation in which the two sides are enemies who do not share any common ground, agonism is a we/they relation where the conflicting parties, although acknowledging that there is no rational solution to their conflict, nevertheless recognize the legitimacy of their opponents. They are ´adversaries´ not enemies. This means that, while in conflict, they see themselves as belonging to the same political association, as sharing a common symbolic space within which the conflict takes place”. .

Em meio às diferentes perspectivas que se desdobram através das formas coletivas de identificação, questões referentes à expansão ou limitação de direitos, assim como referentes à extensão de políticas públicas associadas a determinados problemas do social, são trazidas para o centro de discussões que podem, ao menos potencialmente, alterar a maneira como são percebidas e os mecanismos para as suas implementações. O choque de ideias vem acompanhado por justificativas e argumentos que, ao menos em tese, permitem explorar uma mesma questão sob vários ângulos distintos (MOUFFE, 2013MOUFFE, Chantal. Agonistics: Thinking the World Politically. London: Verso, 2013., p. 19 e ss). Uma das características da democracia moderna, como já observara Claude Lefort, reside na indeterminação das suas bases e na contingência histórica dos projetos políticos que, em dado momento, tornam-se prevalecentes (LEFORT, 1988LEFORT, Claude. Democracy and Political Theory. Cambridge: Polity Press, 1988., p. 16 e ss).

Disso não se segue que considerações mais abrangentes vão permitir soluções neutras ou mais efetivas para os embates: se a identidade de cada grupo se molda através de um gesto de exclusão, também as decisões políticas expressam uma perspectiva em detrimento de outras. O consenso mencionado pela autora se refere ao espaço comum no qual o embate de posicionamentos se desenrola, inclusive preservando o pluralismo de posições que é condição necessária para que haja a continuidade desses embates. Pode também ser pensado através dos interesses generalizáveis e mais abrangentes da comunidade política (NORVAL, 2007NORVAL, Aletta J. Aversive Democracy: Inheritance and Originality in the Democratic Tradition. Cambridge: Cambridge University Press, 2007., p. 27 e ss.). Iris Marion Young observa:

A democracia implica em igualdade política, a saber, que todos os membros da comunidade política sejam igualmente incluídos no processo de decisão e que todos tenham a mesma igualdade de oportunidade em influenciar o resultado. A inclusão aumenta as chances de que aqueles que fazem propostas possam transformar as suas posições de uma autoconsideração de sua posição para um apelo mais objetivo à justiça uma vez que eles precisam ouvir outros com posições diferentes a que também devem responder. Mesmo se eles discordarem do resultado, os atores políticos precisam aceitar a legitimidade da decisão se elas foram frutos de um processo inclusivo de discussão pública (YOUNG, 2000YOUNG, Iris Marion. Inclusion and Democracy. Oxford: Oxford University Press, 2000., p. 52 e ss)9 9 No original: “Democracy entails political equality, that all members of the polity are included equally in the decision-making process and have an equal opportunity to influence the outcome. Inclusion increases the chances that those who make proposals will transform their positions from an initial self-regarding stance to a more objective appeal to justice, because they must listen to others with differing positions to whom they are also answerable. Even if they disagree with an outcome, political actors must accept the legitimacy of a decision if it was arrived at through an inclusive process of public discussion”. .

Se Mouffe não desconsidera a importância do consenso para a vivência democrática, assim o faz para insistir que o dissenso não pode ser desconsiderado como anomalia que desestabiliza a vida democrática, quando, pelo contrário, ele é crucial para ela. Consenso e dissenso encontram-se articulados na medida em que a existência do segundo depende das condições institucionais fornecidas pelo primeiro, ou seja, as “regras do jogo” - ou procedimentos - que vão permitir, limitar e proteger as diversas perspectivas conflitantes (MOUFFE, 2000MOUFFE, Chantal. The Democratic Paradox. London: Verso, 2000., p. 68 e ss; CASTORIADIS, 1997CASTORIADIS, Cornelius. Democracy as Procedure and Democracy as Regime. Constellations, v. 4, n. 1, 1997, pp. 1-18., p. 6 e ss). A autora esclarece este ponto da seguinte maneira:

O consenso é necessário para as instituições constitutivas da democracia e nos valores ´ético-políticos´ que norteiam a associação política - liberdade e igualdade para todos - mas sempre haverá discordâncias acerca dos seus sentidos e da maneira pela qual eles devem ser implementados. Em uma democracia pluralista essas discordâncias não são apenas legítimas, mas também necessárias (MOUFFE, 2005MOUFFE, Chantal. On the Political. London: Routledge, 2005., p. 31)10 10 No original: “Consensus is needed on the institutions constitutive of democracy and on the ´ethico-political´ values informing the political association - liberty and equality for all - but there will always be disagreement concerning their meaning and the way they should be implemented. In a pluralist democracy such disagreements are not only legitimate but also necessary”. .

Os valores mencionados por Mouffe não apenas compõem o referencial normativo pelo qual as instituições democráticas devem se guiar, como integram o repertório de direitos conquistados pela população. Se um determinado direito ainda não existe, os valores democráticos proporcionam o respaldo pelo qual movimentos sociais e demais formas de entidades coletivas vão poder pleitear perante o Estado o seu reconhecimento e concretização (CASTORIADIS, 1997CASTORIADIS, Cornelius. Democracy as Procedure and Democracy as Regime. Constellations, v. 4, n. 1, 1997, pp. 1-18., p. 9 e ss). Esses valores, porém, são interpretados a partir das pretensões políticas nos quais indivíduos e atores coletivos já se encontram envolvidos, ou seja, constituem uma espécie de gramática política na qual as diferentes demandas são representadas (NORVAL, 2007NORVAL, Aletta J. Aversive Democracy: Inheritance and Originality in the Democratic Tradition. Cambridge: Cambridge University Press, 2007., p. 106 e ss). Por essa razão, cada interpretação desses elementos é também essencialmente contestável.

A necessidade da discordância, apontada pela autora, para além de uma expansão nas opções de representação dos interesses da população, abre espaço para diversas interpretações concorrentes dos valores que são centrais tanto para a comunidade política quanto para os ordenamentos jurídicos que nela se encontram presentes. Ao menos em tese, isso dificultaria o fortalecimento e a adesão a posicionamentos políticos que colocam em risco o pluralismo de ideias.

Se os sentidos dos valores democráticos podem ser - e continuamente são - o objeto de disputas políticas, Mouffe não traz nenhum referencial transcendental que seria capaz de determinar quais desses sentidos se mostram adequados ao panorama democrático e quais precisam ser evitados. Talvez seja importante considerar o papel de procedimentos generalizáveis que abram espaço para a apreciação da justificação de posições opostas, a exemplo de como Rainer Forst pensa a tolerância no contexto da deliberação política (FORST, 2013FORST, Rainer. Toleration in Conflict: Past and Present. Cambridge: Cambridge University Press, 2013., p. 504 e ss).

Em síntese, do conceito de agonismo depreende-se que o pluralismo defendido por Mouffe acaba tendo como limite precisamente as instituições básicas que permitem a continuidade dos debates e outras formas de contraposição de perspectivas. Demandas que colocam em xeque o funcionamento daquelas instituições põem também em perigo a democracia de um modo geral. Esse detalhe, porém, esconde uma sutileza: essa exclusão em termos estritamente políticos e não morais. As demandas são excluídas não por serem más ou abjetas em si mesmo, mas porque colocam em risco uma forma específica de associação democrática (RUMMENS, 2009RUMMENS, Stefan. Democracy as a Non-Hegemonic Struggle?: Disambiguating Chantal Mouffe´s Agonistic Model of Politics. Constellations, v. 6, n. 3, 2009, pp. 377-391., p. 385 e ss). O risco de forças anti-democráticas se desenvolverem e ocuparem o centro do poder político é uma constante na dinâmica democrática (OFFE, 1998OFFE, Claus. "Homogeneity" and Constitutional Democracy: Coping with Identity Conflicts through Group Rights. The Journal of Political Philosophy, v. 6, n. 2, 1998, pp. 113-141., p. 116 e ss).

Sendo este espaço comum uma pré-condição para o agonismo, é preciso observar a maneira pela qual ele também é objeto do conflito e de que maneira ele tende a limitá-lo. Dito de outro modo, trata-se de buscar vislumbrar, nas democracias contemporâneas, mecanismos que, sendo consensualmente aceitos pelas partes como referenciais normativos os quais podem contar para ajustar as suas demandas, também podem se encontrar como objetos dessas disputas.

Consenso conflituoso e direitos fundamentais: a circularidade da democracia agonística

Nos direitos fundamentais frequentemente se estabelecem mecanismos que visam a garantir aspectos existenciais básicos na vida dos cidadãos, abarcando tanto o domínio da representação política, como o de sua individualidade e seguridade social. Todos concorrendo para o asseguramento da dignidade humana, este último ponto também sendo importante para as concepções mais abrangentes de direitos humanos (MOUFFE, 2014MOUFFE, Chantal. Democracy, Human Rights and Cosmopolitanism. In: DOUZINAS, Costas; GEARTY, Conor (orgs). The Meanings of Rights: The Philosophy and Social Theory of Human Rights. Cambridge: Cambridge University Press, 2014, pp. 181-192., p. 189 e ss). Se compõem a base dos ordenamentos jurídicos positivos, não raro as demandas políticas de larga abrangência trazem consigo alguma forma de interpretação em torno desses direitos. Em tese, uma proposta política de um certo partido brasileiro que vise a coletar dados dos cidadãos sem que eles tenham consciência de como esse processo está sendo feito ou quais dados serão compartilhados vai esbarrar no direito à privacidade: a fundamentação jurídica de uma proposta dessa precisa compartilhar o referido direito com outros elementos que se fazem presentes no ordenamento jurídico nacional.

O pluralismo de perspectivas não apenas permite uma maior vocalização acerca de questões que afetam grupos específicos, como também pode vir a proporcionar impactos significativos em formas de desigualdade material, como a econômica. Essa compatibilização, porém, precisa ser construída e devidamente articulada uma vez que a diversidade de perspectivas não necessariamente vai coincidir com a problematização de questões mais abrangentes do social. William E. Connolly tece uma consideração significativa para o projeto de Mouffe:

Muito embora existam tensões entre um pluralismo profundo e a redução da desigualdade econômica, no nível mais básico cada série estabelece as condições de possibilidade para a outra. Parte da conexão é pensada em termos de definição: um ethos de pluralismo estende a questão da igualdade de uma cultura econômica para outras identidades culturais... Progredir seja pela redução da desigualdade econômica ou promovendo a diversidade é melhorar as perspectivas de progresso também em outras frentes (CONNOLLY, 2005CONNOLLY, William E. Pluralism. London: Duke University Press, 2005., p. 8)11 11 No original: “While there are tensions between deep pluralism and the reduction of economic inequality at a most basic level each sets a condition of possibility for the other. Part of the connection is definitional: an ethos of pluralism extends the issue of equality from economic culture to other cultural identities... To make progress in either reducing economic inequality or extending diversity is to improve the prospects for progress on the other front as well”. .

Uma cultura pluralista permite abordar os direitos fundamentais desde perspectivas as mais distintas, instrumentalizando-os a partir das experiências específicas de cada grupo. As variadas formas de diferença - sexual, econômica, política, cultural - trazem consigo a possibilidade de redefinir o sentido usual de cada um desses termos nas mais variadas esferas.

No Brasil, as demandas que põem em questão as diversas formas de diferenciação sexual tendo em vista uma maior inclusão das mulheres proporcionou modificações significativas no âmbito dos direitos políticos - o direito ao voto e a ser eleita -, laborais - o auxílio maternidade, creches nos ambientes de trabalho, dentre outros-, como também implicações significativas nas esferas do direito penal e civil. A proposição dessas demandas, porém, demandou antes uma estrutura normativa que permitiu a sua elaboração, inclusive legitimando-as. Esse é apenas um exemplo de como a expansão das esferas de representação apontadas pelo pluralismo mencionado por Connolly pode trazer importantes consequências materiais, neste caso econômicas, para os grupos que passam a expor as suas perspectivas singulares (CONNOLLY, 2005CONNOLLY, William E. Pluralism. London: Duke University Press, 2005., p. 131 e ss).

O que é preciso destacar nessa abordagem é a vinculação entre os direitos fundamentais e as condições políticas nas quais eles são produzidos e modificados. Em síntese, o decisivo é ponderar de que maneira as mobilizações políticas, no âmbito da democracia radical de Mouffe, concorreriam para a produção e fortalecimento dos direitos fundamentais positivos. Muito embora a autora tenda a não explorar este vínculo, abrangido na ideia recorrente de um pano de fundo compartilhado, a presença desses direitos necessita de um tratamento mais específico em virtude da dinâmica particular que tende a estabelecer não só com outras instituições, como também com a demarcação dos conflitos políticos (MENDONÇA, 2010MENDONÇA, Daniel de. Teorizando o agonismo: crítica a um modelo incompleto. Revista Sociedade e Estado, v. 25, n. 3, Dezembro/2010, pp. 479-497., p. 494 e ss; PATTON, 2016PATTON, Paul. Government, Rights and Legitimacy: Foucault and liberal political normativity. European Journal of Political Theory, v. 15, n. 2, 2016, pp. 223-239., p. 225 e ss).

Para além dessas considerações, os embates por novos direitos colocam em seu centro o reconhecimento e a proteção de formas de vida cujas necessidades e carências específicas tendem a ser negligenciadas pelas autoridades estatais e também por terceiros. Neste ponto, o direito se torna de maneira decisiva um instrumento central no tipo de conflito político teorizado por Mouffe. Paul Patton resume este ponto da seguinte forma:

Afirmar que alguém possui um direito a algo significa dizer que eles possuem um tipo de privilégio de tal modo que outros, ou mesmo o governo, estão sob a obrigação de proporcionar isso ou ao menos não impedir que se obtenha isso. Por esta razão, o apelo aos direitos tem desempenhado um papel importante na história recente das lutas minoritárias. Atividades e relacionamentos associados com formas particulares de vida, como as formas de vida dos indígenas não-europeus ou relações não-heterossexuais, são frequentemente defendidas em termos de direitos (PATTON, 2014PATTON, Paul. History, Normativity, and Rights. In: DOUZINAS, Costas; GEARTY, Conor (orgs). The Meanings of Rights: The Philosophy and Social Theory of Human Rights. Cambridge: Cambridge University Press, 2014, pp. 233-250., p. 233)12 12 No original: “To say that someone has a right to something is to say that they have a particular kind of entitlement such that others, or governments, are under an obligation to provide it or at least not to prevent their obtaining it. For this reason, the appeal to rights has played an important role in the recent history of minority struggles. Activities and relationships associated with particular forms of life, such as non-European Indigenous ways of life or non-heterosexual relationships, are often defended as rights”. .

Em um contexto agonístico, os direitos fundamentais podem servir de ponto de partida para a legitimação de demandas por direitos ainda não reconhecidos. Se determinados grupos venham a se opor à adoção de crianças por casais homoafetivos, é necessário que eles justifiquem as suas reservas também através dos direitos fundamentais para fins de que a posição se mostre em conformidade com o pano de fundo institucional que envolve o conflito. A tarefa de justificação não implica, por sua vez, em uma tentativa de exercer um controle racional e objetivo nos rumos do conflito através de uma linguagem jurídica, mas de proporcionar procedimentos de resolução não-violenta e previsível para a resolução dos conflitos de interesses coletivos (OFFE, 1998OFFE, Claus. "Homogeneity" and Constitutional Democracy: Coping with Identity Conflicts through Group Rights. The Journal of Political Philosophy, v. 6, n. 2, 1998, pp. 113-141., p. 114).

Ainda que Mouffe não aborde explicitamente essa temática nestes termos, é impraticável esperar que, em um acirrado conflito político sobre um tema controverso, as partes venham a concordar com o sentido e a extensão dos direitos fundamentais. Militantes do Pro-Life, contrários ao aborto, dificilmente vão concordar com uma interpretação de direitos que venha acentuar não somente a autonomia que as mulheres dispõem sobre o próprio corpo e por isso o seu direito de escolher se vai levar adiante ou não a gestação. A maneira pela qual vão caracterizar o direito fundamental à vida, logo de início, dificulta, senão mesmo obstrui, um hipotético direito ao aborto. Movimentos sociais trazem consigo essa potência de criação e redefinição de formas de vida enraizadas no espaço social em que atuam (BROUMAS, 2015BROUMAS, Antonios. Movements, Constitutability, Commons: Towards a Ius Communis. Law and Critique, v. 26, 2015, pp. 11-26., p. 12 e ss).

Embora o trabalho de justificação, a princípio, não forneça uma solução na qual os interesses de ambas as partes sejam conciliados e, por isso mesmo, satisfeitos, ele proporciona uma visualização dos interesses e das perspectivas em conflito de maneira a mobilizar as paixões e aspirações políticas em uma ou outra direção. O surgimento de novas razões acaba por formatar as aspirações sociais de maneira a propor mudanças na compreensão dos direitos estabelecidos. Conquistas jurídicas tendem a consolidar conquistas políticas ao menos a longo prazo. Essa forma de proteção por vezes tende a converter o que outrora fora controvertido em senso comum, algo que dificilmente pode ser colocado em questão, como exemplifica o direito feminino ao voto (FORST, 2012FORST, Rainer. The Right to Justification: Elements of a Constructivist Theory of Justice. New York: Columbia University Press, 2012., p. 13 e ss; p. 188 e ss).

Uma vez que há um entrelaçamento significativo entre consenso e dissenso, segue-se que um aspecto importante da teorização referente à democracia agonística precisa recair na tensão entre a estabilidade proporcionada pelos acordos circunstanciais, porém persistentes, materializados nas instituições políticas, e os momentos de desestabilização associados às formas de conflito que redefinem aqueles acordos. A hipótese apontada nesta pesquisa é a de que os direitos fundamentais possuem os elementos e a significação histórica para formarem uma conexão entre essas duas dinâmicas, muito embora se reconheça formas e dinâmicas que impliquem em sua perda e exclusão do campo jurídico, como Claire Colebrook observa acerca das estratégias de desumanização que retiram indivíduos do próprio horizonte de abrangência desses direitos (COLEBROOK, 2015COLEBROOK, Claire. Pragmatic Rights. Law and Critique, v. 26, pp. 155-171, 2015., p. 160 e ss)

O desenvolvimento adequado desta ideia, porém, demanda um aporte teórico um pouco diferenciado a ser proporcionado por Aletta J. Norval. Tendo como fio condutor essa preocupação que Norval desenvolve uma outra concepção de democracia que, muito embora profundamente influenciada pelos trabalhos de Mouffe e Laclau, fornece também alguns esclarecimentos e modificações teóricas oportunas.

A sua proposta de democracia aversiva propõe uma aproximação entre os proponentes da democracia deliberativa, especialmente Habermas, e a abordagem pós-estruturalista de Mouffe, mais focada em teorizar os potenciais de desestabilização e dissenso. Considerando que os direitos fundamentais, para além de integrarem as bases do ordenamento jurídico positivo, também fornecem um vocabulário no qual diferentes demandas políticas podem encontrar amparo institucional, é de grande relevância observar como o momento de fixação de sentido dos valores e termos desses direitos ocorre também através de um processo de exclusão de certas possibilidades latentes. Norval escreve:

Se a liberdade é compreendia através de uma teoria do crescimento humano, ao invés de uma teoria da autodeterminação ilimitada, os seus conceitos adjacentes serão de algum modo limitados. Noções de igualdade e oportunidade, ao invés de não-interferência, vão ocupar o centro do palco. Deste modo, a maneira em que o conceito político central é acordado limita a sua utilização política. Semelhante acordo não pode ser submetido à falsificação ou a testes empíricos. Ele torna visível a maneira pela qual uma determinada gramática exige o desvalimento de caminhos e práticas específicas que foram obstruídas (NORVAL, 2007NORVAL, Aletta J. Aversive Democracy: Inheritance and Originality in the Democratic Tradition. Cambridge: Cambridge University Press, 2007., p. 107 e ss)13 13 No original: “If liberty is understood as a human-growth theory, rather than as an unlimited self-determination theory, its surrounding concepts will be limited in a particular way. Notions of equality of opportunity, rather than non-interference, will take center stage. Thus, the manner in which a central political concept is decontested, limits its political usage. Such deconstetation may not be amenable to falsification and empirical testing. Rather, making visible the grip of a particular (decontestation within a) grammar requires disclosing the specific paths and practices that have been closed off”. .

Uma vez que os acordos não podem ser submetidos a processos que, ao menos em tese, levariam a uma determinação objetiva do conceito, restam apenas sucessivas tentativas de fixação no seu sentido. Basta observar a maneira como, na década de oitenta, o discurso neoliberal reinscreveu o ideal de autorregulação do mercado e mínima intervenção no domínio econômico como formas de reforçar a dimensão liberal do Estado contra a estrutura do Welfare State até então em voga (OFFE, 1987OFFE, Claus. Democracy Against the Welfare State: Structural Foundations of Neoconservative Political Opportunities. Political Theory, v. 15, n. 4, 1987, pp. 501-537., p. 503 e ss). A gramática não só é objeto dos conflitos entre as diversas forças que compõem o social, como é também constitutivo desse cenário uma vez que, conforme observado, tende a fixar os elementos e os referenciais nos quais eles vão ocorrer.

A mencionada relação circular entre os conflitos políticos e a dinâmica das instituições que os envolvem permite, aos poucos, um ajuste dos conteúdos normativos do direito ao grau e a forma de pluralidade presentes no espaço político. As instituições tendem a refletir o grau de composição das relações sociais e forças políticas que atuam na sua produção. Não são apenas os conteúdos normativos do direito, na forma de normas jurídicas, que unilateralmente vão fixar uma ordem a qual os conflitos devem respeitar e se subordinar: os embates, aos poucos, também interferem e moldam a abrangência e o conteúdo das disposições normativas. Simone Chambers aponta esse processo circular da seguinte forma:

Cidadãos frequentemente demandam ser reconhecidos pelas constituições e reconhecer a si mesmos nas constituições. Constituições são reflexos das identidades multifacetadas que compõem a ordem política. Ao invés de impor uma ordem sobre um mundo bagunçado, o mundo bagunçado é refletido nas constituições (CHAMBERS, 2004CHAMBERS, Simone. Democracy, Popular Sovereignty and Constitutional Legitimacy. Constellations, v. 11, n. 2, 2004, pp. 153-173., p. 159)14 14 No original: “Citizens often demand to be recognized by constitutions and to recognize themselves in constitutions. Constitutions are to be mirrors of the multifaceted identities that populate a political order. Rather than imposing order on the messy world, the messy world is reflected in constitutions”. .

Em síntese, um possível papel para os direitos fundamentais, dentro da teorização proposta por Mouffe, reside em integrar o pano de fundo compartilhado entre as partes divergentes, estabelecendo limites e formas de procedimentos institucionalizados (MOUFFE, 2013MOUFFE, Chantal. Agonistics: Thinking the World Politically. London: Verso, 2013., p. 68 e ss). No entanto, considerando que a democracia agonística carece de qualquer fundamentação última, os sentidos e a abrangência dos conteúdos normativos abrem-se para um processo circular na qual, ao mesmo tempo em que estruturam as formas de oposição e conflito, são também por eles modificados.

Ao formular o seu conceito de democracia aversiva mediante a contraposição dos modelos deliberativo e agonístico, Norval isola duas tensões que ela considera persistentes na democracia moderna: momentos de estabilidade materializados nas disposições normativas, sejam elas jurídicas ou políticas, presentes em suas instituições, e aqueles de desestabilização responsáveis por colocar em xeque, por vezes radicalmente, os valores mais sólidos que proporcionam o sustentáculo da vida política (NORVAL, 2007NORVAL, Aletta J. Aversive Democracy: Inheritance and Originality in the Democratic Tradition. Cambridge: Cambridge University Press, 2007., p. 54 e ss). Nisto reside em parte a crítica de Norval à forma pela qual a democracia agonística de Mouffe termina por desconsiderar tanto uma necessidade de institucionalização dos arranjos democráticos, para que sejam persistentes e seguros, como também a dimensão mais superficial, ôntica e imediata, na qual a vida política se estrutura (NORVAL, 2008, p. 55 e ss).

Considerar que o dissenso integra a própria constituição do social, ou seja, tem uma significação ontológica, é teoricamente importante para se conceber o pluralismo como constitutivo da democracia como forma de organização do político. Isso é algo que Mouffe desenvolve meticulosamente. Porém, como Norval observa, é preciso também explorar a diversidade de mecanismos institucionais que permitem reforçar, como também proteger, os espaços nos quais os conflitos podem ocorrer e se desenvolver, o que envolve considerar também os arranjos normativos concretos dessas democracias, a exemplo dos desenhos institucionais, da atuação das cortes, das Constituições e também dos direitos fundamentais. Mostrar uma possível articulação entre esses dois domínios foi o principal objeto desta pesquisa.

Considerações Finais

O principal propósito do artigo fora o de esclarecer a maneira pela qual Chantal Mouffe se apropria da obra da teoria política para desenvolver a sua teorização acerca da democracia radical e quais as implicações para se pensar os direitos fundamentais a partir dessa concepção de democracia estabelecida pela autora. As seções iniciais trataram de esclarecer as motivações de Mouffe em repensar a democracia radical através do seu conceito de agonismo, tendo a ênfase recaído no que a autora caracteriza de panorama pós-político.

Embora enraizado em certos acontecimentos históricos pontuais e de grande significação, sendo o principal o colapso da antiga União Soviética, a pós-política se caracteriza, dentre outros aspectos, por extrair do político a sua dimensão conflituosa em prol da formação de consensos racionalmente alcançados. Com isso postula-se a superação das tensões entre direita e esquerda, assim como a consideração das divergências políticas em termos de antagonismos. O recurso a Carl Schmitt serve para enfrentar o caráter incontornável do conflito no tocante ao político. Significa não só evitar o político como forma de administração tecnológica de interesses divergentes, como a sobreposição do conflito pelo consenso.

Em sua elaboração do conceito de agonismo, um dos pontos de sua teoria no qual a influência de Schmitt é decisiva, Mouffe propõe uma articulação entre dissenso e consenso no qual determinadas configurações institucionais permitiriam, por sua vez, a manutenção das divergências e o pluralismo das convicções. De maneira similar aos jogos desportivos, no qual a competitividade requer a existência e a obediência de normas pré-existentes, a preservação do conflito em termos de um horizonte democrático depende, por sua vez, do consenso sobre normas que imponham limites, preservando os espaços nos quais o pluralismo de perspectivas possa surgir.

A segunda seção tratou de inserir os direitos fundamentais nesse ponto ao repensá-los como elementos que reforçam, no nível institucional, as condições de existência da democracia agonística, especialmente no tocante ao pluralismo de perspectivas e à determinação de limites aos conflitos. Para que a democracia não corra o risco de abrir caminho para a sua própria dissolução, é necessário que certos elementos sejam consensualmente aceitos e respeitados pelas partes envolvidas, independentemente da tendência ideológica e do projeto político que tendam a defender. Sem a fixação desses limites, uma das consequências é a transformação do agonismo para o antagonismo, ou seja, a substituição de um respeito pela posição adversária que, justamente por ser discordante, abre espaço para um refinamento da própria posição, para uma voltada para a aniquilação do outro e, indiretamente, para o sufocamento dos dissensos e do pluralismo.

Recorrendo brevemente aos trabalhos de Castoriadis e Norval, a terceira seção do artigo tratou de esclarecer e aprofundar mais os aspectos consensuais e limitadores do tipo de embate político constitutivo da democracia agonística que a própria Mouffe reconhece. Castoriadis e Norval, cada um ao seu modo, trazem para a discussão elementos que permitem trabalhar uma dinâmica circular entre estabilidade e desestabilização, o que serve para assinalar a relevância de elementos que institucionalizam formas de atuação democrática.

É neste ponto que a pesquisa tratou de chamar atenção para uma possível relevância dos direitos fundamentais como elementos que integrariam esse pano de fundo institucional no qual as partes de um conflito agonístico necessitam compartilhar caso queiram preservar as condições de pluralismo político presente nas sociedades democráticas. Uma vez que trazem para dentro do ordenamento jurídico valores centrais para a organização daquele pluralismo, a exemplo da liberdade, da igualdade, da dignidade a ser estendida a cada cidadão. Em certo sentido, o reconhecimento e o respeito a esses valores permitem que a dinâmica agonística perdure sem necessariamente chegar a uma solução racional, provisória e capaz de satisfazer ambas as partes.

Uma vez que os direitos fundamentais, por sua vez, são eles mesmos objetos de conflito através das diversas maneiras pelas quais os valores que os orientam, como dignidade, liberdade e igualdade, encontram-se sujeitos a diversas interpretações, instaura-se uma relação circular entre direitos fundamentais e democracia, sendo esta o cerne da terceira e última seção do artigo. Se a relação é caracterizada por uma circularidade, o mesmo não levaria à estagnação por razões já apontadas: o embate entre os pontos de vista concorrentes tem o potencial de levar à problematização de aspectos do social que, aos poucos, podem ser incorporados à novas formas de consenso, logo, deixados de fora de novos embates. É nesse sentido em que, através dos diversos focos de conflito, é possível fortalecer o pluralismo de perspectivas e os mecanismos nos quais ele pode ser assegurado - e nisso os direitos fundamentais podem desempenhar papel relevante.

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  • OFFE, Claus. Democracy Against the Welfare State: Structural Foundations of Neoconservative Political Opportunities. Political Theory, v. 15, n. 4, 1987, pp. 501-537.
  • PATTON, Paul. Government, Rights and Legitimacy: Foucault and liberal political normativity. European Journal of Political Theory, v. 15, n. 2, 2016, pp. 223-239.
  • PATTON, Paul. History, Normativity, and Rights. In: DOUZINAS, Costas; GEARTY, Conor (orgs). The Meanings of Rights: The Philosophy and Social Theory of Human Rights. Cambridge: Cambridge University Press, 2014, pp. 233-250.
  • ROSANVALLON, Pierre. Counter-Democracy: Politics in an Age of Distrust. Cambridge: Cambridge University Press, 2008.
  • ROSANVALLON, Pierre. The Society of Equals. Cambridge: Harvard University Press, 2013.
  • RUMMENS, Stefan. Democracy as a Non-Hegemonic Struggle?: Disambiguating Chantal Mouffe´s Agonistic Model of Politics. Constellations, v. 6, n. 3, 2009, pp. 377-391.
  • SCHMITT, Carl. The Concept of the Political. Chicago: University of Chicago Press, 2007.
  • SNIR, Itay. "Not Just One Common Sense": Gramci´s Common Sense and Laclau and Mouffe´s Radical Democratic Politics. Constellations, v. 23, n. 2, pp. 269-280, 2016.
  • YOUNG, Iris Marion. Inclusion and Democracy. Oxford: Oxford University Press, 2000.
  • 1
    Gostaria de agradecer a Carolina Leal de Moraes Vieira pelo paciente de trabalho de leitura, revisão e discussão dos temas apresentados neste artigo. Sua contribuição foi inestimável para o desenvolvimento desta pesquisa.
  • 2
    No original: “We have, in fact, to acknowledge that the victory of liberal democracy is due more to the collapse of its enemy than to its own successes. Far from being in excellent health, there is growing disaffection with political life in the Western democracies and clear signs of a dangerous erosion of democratic values. The rise of the extreme right, the rebirth of fundamentalism, and the creeping marginalization of vast sectors of the population are there to remind us that the situation is far from satisfactory in our own countries”.
  • 3
    No original: “The ´free world´ has triumphed over communism and, with the weakening of collective identities, a world ´without enemies´ is now possible. Partisan conflicts are a thing of the past and consensus can now be obtained through dialogue. Thanks to globalization and the universalization of liberal democracy, we can expect a cosmopolitan future bringing peace, prosperity and the implementation of human rights worldwide”.
  • 4
    No original: “The democratic debate is envisaged as a dialogue between individuals whose aim is to create new solidarities and extend the bases of active trust. Conflicts can be pacified thanks to the ´opening up´ of a variety of public spheres where, through dialogue, people with very different interests will make decisions about the variety of issues which affect them and develop a relation of mutual tolerance allowing them to live together. Disagreements will of course exist but they should not take an adversarial form”.
  • 5
    No original: “They also provide people with some form of hope, with the belief that things could be different. Of course, it is an illusory hope, founded on false premises and unacceptable mechanisms of exclusion where xenophobia usually plays a central role. But when they are the only channels for the expression of political passions, their presence to represent an alternative is very seductive. This is why I submit that the success of right-wing populist parties is the consequence of the lack of a vibrant democratic debate in our post-democracies”.
  • 6
    No original: “The systematic theory of liberalism concerns almost solely the internal struggle against the power of the state. However, the liberal attempt to annihilate the political is, he says, bound to fail. The political can never be eradicated because it can derive its energy from the most varied human endeavours: ´every religious, moral, economic, ethical or other antithesis transforms itself into a political one if it is sufficiently strong to group human beings effectively according to friend and enemy”.
  • 7
    No original: “A well functioning democracy calls for a clash of legitimate democratic political positions. This is what the confrontation between left and right needs to be about. Such a confrontation should provide collective forms of identification strong enough to mobilize political passions”.
  • 8
    No original: “While antagonism is a we/they relation in which the two sides are enemies who do not share any common ground, agonism is a we/they relation where the conflicting parties, although acknowledging that there is no rational solution to their conflict, nevertheless recognize the legitimacy of their opponents. They are ´adversaries´ not enemies. This means that, while in conflict, they see themselves as belonging to the same political association, as sharing a common symbolic space within which the conflict takes place”.
  • 9
    No original: “Democracy entails political equality, that all members of the polity are included equally in the decision-making process and have an equal opportunity to influence the outcome. Inclusion increases the chances that those who make proposals will transform their positions from an initial self-regarding stance to a more objective appeal to justice, because they must listen to others with differing positions to whom they are also answerable. Even if they disagree with an outcome, political actors must accept the legitimacy of a decision if it was arrived at through an inclusive process of public discussion”.
  • 10
    No original: “Consensus is needed on the institutions constitutive of democracy and on the ´ethico-political´ values informing the political association - liberty and equality for all - but there will always be disagreement concerning their meaning and the way they should be implemented. In a pluralist democracy such disagreements are not only legitimate but also necessary”.
  • 11
    No original: “While there are tensions between deep pluralism and the reduction of economic inequality at a most basic level each sets a condition of possibility for the other. Part of the connection is definitional: an ethos of pluralism extends the issue of equality from economic culture to other cultural identities... To make progress in either reducing economic inequality or extending diversity is to improve the prospects for progress on the other front as well”.
  • 12
    No original: “To say that someone has a right to something is to say that they have a particular kind of entitlement such that others, or governments, are under an obligation to provide it or at least not to prevent their obtaining it. For this reason, the appeal to rights has played an important role in the recent history of minority struggles. Activities and relationships associated with particular forms of life, such as non-European Indigenous ways of life or non-heterosexual relationships, are often defended as rights”.
  • 13
    No original: “If liberty is understood as a human-growth theory, rather than as an unlimited self-determination theory, its surrounding concepts will be limited in a particular way. Notions of equality of opportunity, rather than non-interference, will take center stage. Thus, the manner in which a central political concept is decontested, limits its political usage. Such deconstetation may not be amenable to falsification and empirical testing. Rather, making visible the grip of a particular (decontestation within a) grammar requires disclosing the specific paths and practices that have been closed off”.
  • 14
    No original: “Citizens often demand to be recognized by constitutions and to recognize themselves in constitutions. Constitutions are to be mirrors of the multifaceted identities that populate a political order. Rather than imposing order on the messy world, the messy world is reflected in constitutions”.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Jun 2020
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2020

Histórico

  • Recebido
    29 Abr 2019
  • Aceito
    01 Ago 2019
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