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Bourdieu Encontra Pachukanis

Resumo

A partir do resgate dos diálogos imaginados por Burawoy entre os marxismos e Bourdieu, sobretudo o capítulo dedicado a própria obra marxiana, o objetivo do presente trabalho é sugerir uma conversação adicional entre o sociólogo francês e o jurista soviético Pachukanis, demonstrando como muitas das intuições apresentadas em A força do direito foram antecipadas pelo autor de A teoria geral do Direito e marxismo. Conclui-se pela complementariedade dos marcos teóricos como possibilidade de investigação empírica no campo jurídico.

Palavras-chave:
Sociologia Relacional; Marxismo; Campo Jurídico

Abstract

Following the model developed by Michael Burawoy in Bourdieu meets Marxism, the purpose of this paper is to suggest an additional dialogue between the French sociologist and the Soviet jurist Pachukanis. Our intention is to demonstrate that many of the intuitions presented in The Force of Law were actually anticipated by the author of General Theory of Law and Marxism. We argue that these theoretical frameworks are not only complementarity bur also offers fruitful possibilities for empirical investigation in the legal field.

Keywords:
Relational Sociology; Marxism; Legal Field

Introdução

A parte central do argumento aqui desenvolvido foi pensada como um desenvolvimento complementar da obra do sociólogo Michael Burawoy (2010BURAWOY, Michael. O marxismo encontra Bourdieu. Tradução de Fernando Jardim. Campinas: Editora Unicamp, 2010.), sugestivamente intitulada de O marxismo encontra Bourdieu. Na oportunidade, o professor de Berkeley procurou imaginar diálogos entre diferentes autores inseridos na tradição marxista e a obra de Bourdieu. Cada diálogo fora pensado a partir de como esses autores poderiam responder às críticas apresentadas pelo sociólogo francês ao marxismo, além de apontar eventuais insuficiências e/ou falhas na teoria bourdieusiana.

A obra de Burawoy inicia pelas relações entre teoria e prática no pensamento marxiano, passa pela discussão da hegemonia e do papel dos intelectuais em Gramsci, por Simone de Beauvoir e a questão de gênero, por Frantz Fanon e o pensamento (de)colonial e considera o trabalho do próprio Burawoy sobre a noção de falsa consciência. Além de autores identificados enquanto marxistas, a obra trava um diálogo com o sociólogo estadunidense Wright Mills, apresentando-o como um precursor do trabalho de Bourdieu.

Para Burawoy, trata-se de um conjunto especial de teóricos da sociedade que “perambulam feito fantasmas” pela obra de Bourdieu. A principal diferença entre esse grupo de pensadores e o sociólogo francês seria que:

Eles acreditavam que os dominados (talvez alguma parte deles) pudessem sob certas condições perceber e avaliar a natureza de sua própria opressão. Com efeito, aqui me refiro à tradição marxista que Bourdieu empregava mesmo sem admitir isso, chegando inclusive ao ponto de recusar à tradição marxista algum lugar no campo descrito por ele (BURAWOY, 2010BURAWOY, Michael. O marxismo encontra Bourdieu. Tradução de Fernando Jardim. Campinas: Editora Unicamp, 2010., p. 29).

De certa forma, assim apresentado, Bourdieu pode parecer identificado nas fileiras de certo pessimismo pós-modernista, em função do abandono das perspectivas emancipatórias das grandes narrativas e da aparente negação da possibilidade dos explorados tomarem ciência de sua própria opressão. No entanto, ainda que concordemos que na obra de Bourdieu haja efetivamente menos espaço para um otimismo triunfante das classes exploradas, tampouco é correto afirmar que os dominados não teriam quaisquer condições de “perceber e avaliar a natureza de sua própria opressão”.

A questão, aliás, é apenas mais um ponto importante de disputa acerca da obra de Bourdieu, a saber, se sua descrição crítica da sociedade é neutra, no sentido de não intervir na dominação que descreve ou se, a maneira do marxismo, objetiva arrancar as flores imaginárias dos grilhões que prendem os dominados, não para que suportem a dominação sem ilusões, mas para que se livrem da exploração. Em outras palavras, existiria ou não em uma teoria da ação em sua sociologia e, em havendo, exatamente qual papel devem desempenhar os intelectuais nesse processo.

Com efeito, por vezes beirando uma posição conservadora, pela ausência de alternativas, sua construção teórica demanda um afastamento do cientista social em relação ao seu objeto de estudo, ou seja, propugna que se mantenha afastado das próprias dinâmicas da objetividade social. O autor defende que esse distanciamento chega a ser uma condição prévia e sine qua non de uma intervenção social de qualidade. E nesse ponto reside um paradoxo aparente, uma vez que esse distanciamento não é absoluto, não é um fim em si, nem significa a abdicação da intervenção; o distanciamento, pelo contrário, deve anteceder e informar a ação.

O fato é que o conselheiro dificilmente conseguiu seguir seu próprio conselho. Com efeito, em vários momentos de sua biografia assumiu a postura de “intelectual público”, fazendo intervenções em grandes auditórios, aparições em manifestações organizadas por movimentos sociais e até participações em programas de televisão. Nessas oportunidades, sua postura sempre fora de crítica contumaz à razão neoliberal, o que também o aproximou da causa trabalhista-sindical. A frequência dessas intervenções cresceu proporcionalmente ao seu prestígio no campo intelectual, tendo atingido seu ápice com sua participação nos movimentos grevistas da França durante a década de 1990. O autor publicou uma coletânea desses seus textos de intervenção, com um título que não deixa dúvida acerca de suas intenções, Contrafogos: táticas para enfrentar a invasão neoliberal (BOURDIEU, 1998__________. Contrafogos: táticas para enfrentar a invasão neoliberal. Tradução de Lucy Magalhães. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.).

Dentre as conversações propostas por Burawoy, sem dúvida, o capítulo mais importante é justamente o diálogo inicial, imaginado entre Bourdieu e Marx, mais especificamente, como poderia o segundo rebater as críticas que lhe são feitas pelo primeiro.

Ao fim das considerações acerca dos diálogos de Bourdieu com a tradição marxista, seguindo o método de exposição dos diálogos imaginados por Burawoy, propomos uma conversação a mais, centrada na compreensão do momento jurídico, a saber, entre Bourdieu e o jurista soviético, Evguéni Pachukanis (2017PACHUKANIS, Evguiéni. Teoria geral do direito e marxismo. Tradução de Paula Vaz de Almeida. São Paulo: Boitempo, 2017.). Parece-nos, aliás, uma falta grave a ausência do principal teórico marxista do direito nas críticas que Bourdieu (1989a) faz justamente a análise marxista do direito em seu A força do direito.

Ainda em caráter introdutório à relação entre Bourdieu e o marxismo, pretendemos destacar uma dimensão biográfica, ao argumentar que ambas as trajetórias individuais dos autores aqui considerados [Marx e Bourdieu], possuem um “encontro forçado com a prática”, que os conduziu, cada um a sua maneira e no seu tempo, ao rompimento com tradição filosófica escolástica na qual ambos estavam inseridos.

Enquanto Marx, por uma questão de necessidade financeira, fora impelido a exercer a função de jornalista na gazeta renana (1842-43), quando teve a oportunidade de debruçar-se sobre as questões materiais e despertar para os estudos econômicos, Bourdieu fora forçado a servir o exército francês na Argélia e deparou-se com as tensões e contradições do imperialismo francês. Ambos os eventos são narrados pelos próprios autores como um ponto de cisão com a filosofia do seu tempo: por Marx no prefácio de 1859 da Contribuição à crítica da economia política (MARX, 2008_________. Contribuição à crítica da economia política. Tradução de Florestan Fernandes. 2 ed. São Paulo: Expressão Popular, 2008.)e por Bourdieu em seu Esboço para uma auto-análise (BOURDIEU, 2005__________. Esboço para uma auto-análise. Tradução de Victor Silva. Lisboa: Edições 70, 2005.).

No que concerne a Marx, as conclusões a que chegou a partir desse encontro com a prática são bem conhecidas no campo acadêmico e estão documentadas no texto mencionado. Na oportunidade, escreveu que:

As relações jurídicas, bem como as formas de Estado, não podem ser explicadas por si mesmas, nem pela chamada evolução natural do espírito humano; essas relações têm, ao contrário, suas raízes nas condições materiais de existência, em suas totalidades, condições essas que Hegel, a exemplo dos franceses e dos ingleses do século 18, compreendia sob o nome de “sociedade civil”. Cheguei também à conclusão que a anatomia da sociedade burguesa deve ser procurada na Economia Política (MARX, 2008_________. Contribuição à crítica da economia política. Tradução de Florestan Fernandes. 2 ed. São Paulo: Expressão Popular, 2008., p. 47).

Na exposição que se segue, explica que os homens, na produção social de sua existência, adentram em relações de produção por necessidade e alheios à suas vontades. A totalidade dessas relações, a soma das interações sociais da existência, constitui a base econômica da sociedade, sobre a qual se erguem superestruturas jurídicas e políticas correspondente ao estado de desenvolvimento dessa infraestrutura econômica. Assim, “o modo de produção condiciona o processo de vida social, política e intelectual”, pois “não é a consciência dos homens que determina o seu ser, é o seu ser social que determina a sua consciência” (MARX, 2008_________. Contribuição à crítica da economia política. Tradução de Florestan Fernandes. 2 ed. São Paulo: Expressão Popular, 2008., p. 47).

Essa importante passagem já serviu a inúmeras deformações do pensamento marxiano. É nesse mesmo texto que está contido a metáfora da relação entre infraestrutura e superestrutura, lida por muitos como uma relação de determinismo econômico das demais esferas sociais. A passagem realmente se presta a equívocos, muito em função das diferentes traduções via diferentes idiomas, além da utilização pelo autor de verbos próximos, mas diferentes, para tratar das relações entre economia, política e direito: afinal, o modo de produção determina ou condiciona a realidade social?

No entanto, considerando a obra marxiana como um conjunto, perceber-se-á que a melhor interpretação é aquela que procura relativizar essa relação de reflexo entre base e superestrutura, porém, sem negar à esfera econômica seu momento preponderante.

A nosso ver, as principais críticas feitas por Bourdieu ao marxismo advêm do fato do autor privilegiar a interpretação reducionista, para então contrapor-lhe sua própria noção de superação do materialismo mecanicista. A partir dessa visão, apresenta sua própria gramática sociológica - com as noções de habitus, campo, poder simbólico etc. - como a melhor opção para descrever como e por que o ser social não determina - ou pelo menos não determina completamente - a consciência dos homens, apesar de ter uma forte influência na formação dos filtros avaliativos e tomadas de decisões dos sujeitos dentro dos espaços nos quais indivíduo se desloca.

A nosso ver, o autor parece tomar essa posição não necessariamente porque estivesse convencido que esse fosse o “verdadeiro” conteúdo das exposições de Marx, mas antes, age estrategicamente dentro do campo intelectual que disputava. Assim, o faz para se opor às formas do marxismo estruturalista do seu tempo - essas sim, leituras mecanicistas do materialismo -, ao mesmo tempo em que buscava separar-se da tradição marxista na busca de uma originalidade que o distinguisse dentro do campo intelectual que atuava. O próprio Bourdieu, mais de uma vez, afirmou que o campo intelectual é também uma espécie de campo de batalha (BOURDIEU, 2005__________. Esboço para uma auto-análise. Tradução de Victor Silva. Lisboa: Edições 70, 2005., p. 183).

O fato é que ambos os autores sustentam de maneira muito dura suas críticas às diferentes manifestações do “pensamento puro”, afastado da realidade, bem como criticam o pensamento que, apesar de progressista, compreende insuficientemente ou de maneira demasiadamente simples a realidade objetiva.

Para Marx, o socialismo conservador ou burguês professava uma espécie de dialética impossível, inocente ou mal intencionada, que almejava “as condições de vida da sociedade moderna sem as lutas e os perigos que dela decorrem”, em outras palavras, desejava apenas as benesses da modernidade. Economistas, filantropos, humanistas no geral e, sobretudo, juristas, que se dedicam a amenizar os efeitos da exploração sem atacar suas causas, constituem a categoria de socialistas conservadores, “reformadores de gabinete de toda categoria” (MARX; ENGELS, 2010__________. Manifesto comunista. Tradução Álvaro Pina. São Paulo: Boitempo, 2010., p. 64).

Já o socialismo e o comunismo crítico-utópico, apesar de encerrarem elementos críticos que atavam todas as bases da sociedade existente e terem sido de grande valor para o esclarecimento do movimento operário de seu tempo, ainda assim, tinham “um sentido puramente teórico”. Percebe-se que quanto ao socialismo utópico, Marx não deixa de reconhecer seu valor prático, ao servir ao esclarecimento das massas trabalhadoras, e teórico, ao apontar para a emancipação do homem. Porém, em função das condições objetivas contemporâneas aos socialistas utópicos - e não devido à eventual falta de compromisso ou capacidade dos autores - não lhes fora possível desenvolver uma visão científica do socialismo, o que poderá ser feito apenas ao tempo de Marx, após a observação dos efeitos da Revolução Industrial. Marx referia-se ao fato do antagonismo de classes, para Owen, Fourieu e Cabet, existir apenas em sua fase inicial, manifestado em formas ainda muito imprecisas (MARX; ENGELS, 2010__________. Manifesto comunista. Tradução Álvaro Pina. São Paulo: Boitempo, 2010., p. 67).

Por sua vez, na França da década de 1960, Bourdieu destacava que o distanciamento dos intelectuais em relação à realidade objetiva tinha por consequência tentativas “frequentemente patéticas” de reconciliação com o real. Esse afastamento era promovido pelo método escolástico de fazer filosofia, hegemônico no período, assim como pela existência de um campo intelectual cercado de privilégios e compartilhado por indivíduos de habitus muito homogêneos. O cenário promovia a proliferação da razão escolástica e as tentativas de “regressar ao mundo real [...] assumindo compromissos políticos (estalinismo, maoismo, etc.) cuja utopia irresponsável e radicalismo irrealista são ainda uma maneira absurda de negar as realidades do mundo social” (BOURDIEU, 2005__________. Esboço para uma auto-análise. Tradução de Victor Silva. Lisboa: Edições 70, 2005., p. 20).

A crítica de Bourdieu ao pensamento crítico meramente teórico do seu tempo, portanto, chega a ser ainda mais severa que aquela que Marx dirigia aos socialistas utópicos, o que é perfeitamente compreensível na lógica que viemos descrevendo. Enquanto para Marx tratava-se de uma impossibilidade de construção de um compromisso científico com o socialismo, em função do nível de desenvolvimento das condições objetivas não terem sido apropriadas para tanto, para Bourdieu trata-se de um resultado parcialmente consciente da vontade de manter-se no exercício meramente escolástico do pensamento, quando as condições para sua superação já estavam postas.

Ao fim e ao cabo, em função da proximidade dos autores com as questões materiais do seu tempo, ambos são levados a ultrapassar o pensamento puramente teórico para destacar o momento da prática. Enquanto Marx fora conduzido a esse lugar por necessidades econômicas e, posteriormente, após o fechamento da Gazeta Renana, pelo seu período de exílio na França e na Inglaterra, no qual se encontrou diretamente com o movimento operário da Europa ocidental; para Bourdieu, fora seu período na Argélia, durante as guerras imperialistas do século XX, que o convenceram da necessidade de romper com a razão escolástica.

O autor sumariza a importância do seu tempo na Argélia para sua transição da filosofia para sociologia, que representou sua migração do campo meramente teórico para o campo das questões práticas - o que, no entanto, não significou o abandono das reflexões teóricas, mas sim sua associação dialética às demandas da práxis:

A transformação da visão do mundo que foi concomitante à minha passagem da filosofia para a sociologia, e de que minha experiência argelina representa, sem dúvida, o momento crítico, não é, como já disse, fácil de descrever, porque é feita da acumulação imperceptível de mudanças que as experiências da vida pouco a pouco me impuseram e das que efetuei à custa de um grande trabalho sobre mim mesmo, inseparável do trabalho que realizada no mundo (BOURDIEU, 2005__________. Esboço para uma auto-análise. Tradução de Victor Silva. Lisboa: Edições 70, 2005., p. 65-66).

Portanto, nesse primeiro momento, destacamos que o desejo de romper, por meio das análises históricas, com o pensamento idealista ou escolástico - desejo que é fruto de um contato prematuro com as questões materiais de seus respectivos contextos -, é um forte traço em comum que conecta as origens das obras de Bourdieu e Marx e, de certa forma, condicionará seus desenvolvimentos e resultados futuros.

Para Marx, por meio da crítica da religião o homem descobriu na realidade fantástica do céu apenas o próprio homem; descobriu que é ele mesmo o responsável pela feitura não apenas da própria religião, mas também do mundo social em que vive (MARX, 2013__________. Crítica da filosofia de Hegel: Introdução. In: Karl Marx. Crítica da Filosofia do Direito de Hegel. Tradução de Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2013., p. 151). As coisas são inteiramente precedentes da história dos homens, e é justamente aí que se deve buscar os fundamentos do Estado e do direito; é nesse sentido que devemos entender a afirmação que se conhece apenas uma ciência, a ciência da história. Lembrar que tudo é histórico, no entanto, não significa defender um reducionismo histórico ou sociologizante, mas sim negar qualquer instância apriorística, criadora de verdades e valores absolutos - seja deus ou a razão -, assim como negar também o sujeito criador absolutamente livre de amarras sociais: é, portanto, “devolver à história e à sociedade, o que fora confiado a uma transcendência ou sujeito transcendental” (BOURDIEU, 2001__________. Meditações pascalianas. Tradução de Sérgio Miceli. Rio de Janeiro: Bertrand, 2001., p. 139).

Traçadas essas primeiras linhas sobre a relação entre Marx e Bourdieu, centradas em aspectos biográficos, no posicionamento dos autores em seus respectivos campos e o materialismo marcante de suas obras, passaremos a análise da relação entre os autores como posta por Burawoy (2015). Após esse momento, procuraremos demonstrar, por meio de citações diretas, a validade de um de nossos principais argumentos de aproximação dos autores, a saber: como, no mais das vezes, a crítica bourdieusiana é específica e adequada apenas a uma variante do marxismo, que fora hegemônica na França no momento de sua formação intelectual, apesar do autor procurar alargá-la de modo a atingir a tradição marxista considerada em seu conjunto.

Durante esse exercício, destacaremos três das mais importantes obras do autor: A distinção (BOURDIEU, 2007__________. A distinção: crítica social do julgamento. Tradução de Daniela Kern e Guilherme Teixeira. São Paulo: Edusp; Porto Alegre: Zouk, 2007.), em razão de ser o texto que lhe consagrou no mundo acadêmico, Meditações Pascalianas (BOURDIEU, 2001) e seus cursos Sobre o Estado (BOURDIEU, 2014), em razão de serem obras maduras nas quais o sociólogo procura diferenciar seu método histórico daquele que apresenta como sendo marxista.

1. Teoria e prática em Marx e Bourdieu: as considerações de Burawoy

Os textos escolhidos por Burawoy para traçar o diálogo entre os dois autores foram, especialmente, as Meditações pascalianas - em sua opinião, “o ápice e a consumação” das conquistas teóricas de Bourdieu - e A ideologia alemã. A escolha se deu em razão das obras guardarem paralelos importantes, tanto em sua estrutura quanto em seus argumentos:

Ambos os escritos foram um acerto de contas com suas respectivas heranças filosóficas, sublinhando e denunciando as falácias escolásticas dos intelectuais associados, distanciados como estavam das relações e das práticas do mundo concreto (BURAWOY, 2010BURAWOY, Michael. O marxismo encontra Bourdieu. Tradução de Fernando Jardim. Campinas: Editora Unicamp, 2010., p. 15).

Para Burawoy, apesar dos paralelismos apresentados entre as obras, enquanto Marx, após seu acerto de contas com a tradição filosófica, partiu para um estudo da história como resultado da sucessão dos sistemas de produção econômica, Bourdieu centrou-se não na sucessão, mas na coexistência e interferências recíprocas dos campos de produção econômica, científica e cultural, entendendo-os como relativamente autônomos. Nesse sentido, “os trabalhos de Bourdieu constituem tanto uma revisão como um complemento às obras de Marx” (BURAWOY, 2010BURAWOY, Michael. O marxismo encontra Bourdieu. Tradução de Fernando Jardim. Campinas: Editora Unicamp, 2010., p. 16).

É exatamente nesse sentido que compreendemos os autores. Naturalmente, o século que os distanciam não permitiria a simples aplicação das categorias marxianas ao tempo presente. Mas, não se trata de uma mera atualização, pois todo um espaço da produção cultural fora deixado não trabalhado por Marx, seja em função dos limites da capacidade humana ou mesmo eventual desinteresse do autor. E, evidentemente, Marx não podia dedicar-se com mesma desenvoltura sobre todas as áreas do conhecimento, não obstante o que pensem certos marxistas a respeito disso.

Aliás, é exatamente essa pretensão de versar sobre a totalidade, presente na tradição dos continuadores do marxismo e, em alguma medida, no próprio Marx, um dos principais pontos da crítica de Bourdieu a essa tradição. Sua tentativa deliberada de escapar à produção da “grande teoria” foi manifestada na sua dedicação de compreender campos sociais específicos, em suas particularidades (BOURDIEU, 1996__________. O ponto de vista escolástico. In: Pierre Bourdieu. Razões práticas: sobre a teoria da ação. São Paulo: Papirus, 1996.), assim como a busca por empreendimentos de pesquisa coletivos que, a partir da soma das contribuições de várias áreas e de vários pesquisadores e pesquisadoras, pudesse então se aproximar dessa totalidade (BOURDIEU, 2001). Esses tipos de procedimentos de pesquisa prescindem da figura do intelectual puro e polivalente que, não obstante radicalmente distante da prática, ainda assim, acredita ser capaz de compreender e explicar o mundo em toda a sua complexidade.

Dessa forma, não apenas a proximidade no tempo, mas, sobretudo, o fato do sociólogo francês ter se dedicado exaustivamente a compreensão de esferas sociais individualmente consideradas - entre elas o campo jurídico - faz com que sua proposta de sociologia relacional, a nosso ver, seja um marco teórico mais adequado para realização de pesquisas empíricas sobre o campo jurídico. Porém, não acreditamos que a escolha do marco teórico bourdieusiano signifique necessariamente a contradição ou superação do marxismo, mas antes, tem o sentido de complementar suas intuições acertadas e atualizar aquelas que se tornaram ultrapassadas ou equivocadas,1 1 Como já tivemos a oportunidade de salientar, o próprio Bourdieu entende que o seu trabalho pode, não raras vezes e em função de uma série de fatores que influenciam as dinâmicas dos campos, confirmar antes de negar muitas das hipóteses marxistas. O autor fornece como exemplo o caso de como a análise do campo da cultura confirma a noção de que “a cultura dominante é a cultura da classe dominante”. Dessa forma, o autor concede que, apesar de parte do seu trabalho ter sido construído “contra” o marxismo, simultaneamente, não o contradiz (BOURDIEU, 2015, p. 28). além de desenvolver passagens que não tiveram a oportunidade de serem melhor trabalhadas - a exemplo do entendimento que o direito não seja nada mais que o mero reconhecimento dos fatos (MARX, 2004aMARX, Karl. A miséria da filosofia. São Paulo: Ícone, 2004a., p. 85).

Tratar como dogma a afirmação que “o direito nada mais é que o reconhecimento oficial do fato” (MARX, 2004b__________. Manuscritos econômico-filosóficos. Tradução de Jesus Ranieri. São Paulo: Boitempo, 2004b., p. 84) significa defender que ele sempre advém no pos festum, ou seja, apenas após eventuais transformações na esfera econômica e política terem se estabilizado e as relações de força se reorganizado, apenas nesse momento, o direito empresta o seu selo de legitimidade, que oficializa e garante a nova ordem que, no mais das vezes, nada mais é que a velha ordem transformada em nova. Esse tipo de concepção, que dogmatiza a afirmação marxiana, assume que o direito é completamente determinado pelas forças político-econômicas, como o campo jurídico não participasse das disputas que antecedem o novo fato a ser reconhecido.

Noutro sentido, ainda que considerando a esfera econômica como momento preponderante das relações sociais, a tradição marxiana - continuada adequadamente por autores como Paschukanis e Lukács -, concede algum espaço de autonomia às esferas do direito e da política, mas entende que eventuais projetos alternativos de sociedade, que venham a ser elaborados exclusivamente ou majoritariamente nessas esferas, têm suas ações pensadas e condicionadas em um universo muito escasso de possibilidades, sendo frequentemente mero engodos que auxiliam na legitimação do todo (SARTORI, 2010SARTORI, Vitor Bartoletti. Lukács e a crítica ontológica ao direito. São Paulo: Editora Cortez, 2010., p. 113).

Essa concepção, em que pese seus méritos conceituais e capacidade explicativa da realidade objetiva, parece pecar aos restringir demasiadamente as esferas culturais. Dessa forma, preferimos a saída bourdieusiana - e de outros autores, como Bloch, que enxerga potencial utópico concreto em determinadas dimensões do direito natural ou Neumann, com sua defesa da possibilidade de sequestro do direito burguês por outros sujeitos coletivos. Apesar de reconhecer que a tendência histórica e atual é que o direito se apresente sim como mero reconhecimento do fato, ainda assim, essas abordagens não descartam alguma possibilidade de transformação social intermediada por esse campo. Em que pese a história da tradição jurídica ocidental, com raríssimos lampejos de exceção, ter apontado quase sempre na direção da conservação da ordem desigualmente e violentamente estabelecida, notadamente no contexto brasileiro.

Evidentemente, não se trata de substituir o momento preponderante do econômico ou da política pelo do direito, como se uma simples modificação das leis pudesse dotar a política ou e economia de alguma dimensão moral, antes, trata-se de buscar compreender as reais possibilidades dessa autonomia relativa do campo jurídico e inquirir sobre suas possíveis contribuições no progresso de emancipação humana.

Retomando a questão do paralelismo entre os autores, enfatizamos mais uma vez o destaque de ambos sobre a práxis. Na esteira de Marx, Bourdieu também pretendeu destacar o momento da prática humana. Para o sociólogo francês, era necessário “chamar a atenção para o primado da razão prática de que falava Fichte, [...] como Marx sugeria nas Teses sobre Feuerbach, o lado ativo do conhecimento prático que a tradição materialista [...] tinha abandonado” (BOURDIEU, 1989b__________. A gênese dos conceitos de habituse campo. In: Pierre Bourdieu. O poder simbólico. Tradução de Fernando Tomaz. Rio de Janeiro: Bertrand, 1989b., p. 61). A passagem, como muitas outras, aliás, comprova que Bourdieu efetivamente diferenciava o momento marxiano, onde haveria sim a valorização da prática, da versão materialista mecanicista que o sucede no materialismo, na qual equivocadamente é abandonado o lado ativo do conhecimento prático.

Essa passagem, aliás, dá o tom da sua relação ambígua com o marxismo. Ao mesmo tempo em que tece duras críticas à essa tradição, sobretudo a sua corrente estruturalista francesa, muito de suas intuições, seu método de pesquisa e a sua visão sobre a relação entre a teoria e a prática, são influenciadas de maneira significativa pelas obras de Marx, como sugere Michel Burawoy (2010BURAWOY, Michael. O marxismo encontra Bourdieu. Tradução de Fernando Jardim. Campinas: Editora Unicamp, 2010.). Mesmo que Bourdieu não reconheça a dívida em toda a sua extensão, ainda assim, não deixa de fazer alguns esparsos elogios a obra de Marx, como o trecho mencionado sobre as onze teses.

Dessa forma, a questão da prática é central à obra dos dois autores. Suas intenções são bastante análogas, enquanto Bourdieu denuncia as diferenças entre a lógica da teoria e lógica da prática, Marx e Engels, na Ideologia alemã falam das coisas da lógica e a lógica das coisas, para, em suma, defenderem que as condições sociais da produção do conhecimento científico são radicalmente diferentes das condições nas quais concretamente o conhecimento é utilizado e desenvolvido na práxis. Mais uma vez é a questão da falsa oposição entre aqueles que projetam a ciência sobre o cotidiano e aqueles que a reduzem ao conhecimento prático. As principais obras de Bourdieu sobre a questão perpassam toda sua produção acadêmica, iniciando com seu Esboço para uma teoria da prática (1972), passando pela A lógica da prática (1980) e terminado nas Meditações pascalianas (1997).

A questão, para Marx e Engels, estava na divisão artificial entre o trabalho intelectual e manual, pois, apenas após essa cisão aparente a consciência pode se imaginar como algo radicalmente diferente da prática humana (MARX; ENGELS, 2007ENGELS, Friedrich; MARX, Karl. A ideologia alemã: crítica da mais recente filosofia alemã em seus representantes Feuerbach, Bauer e Stirner, e do socialismo alemão em seus diferentes profetas (1845-1846). Tradução de Rubens Enderle, Nélio Schneider e Luciano Martorano. São Paulo: Boitempo, 2007.) e, de certa forma, passar a acreditar poder modificar a realidade objetiva a partir do pensamento. Mesmo os jovens hegelianos em sua crítica supostamente radical não conseguiam superar essa cisão, uma vez que se opunham a filosofia hegeliana apenas com palavras. A proposta marxiana era justamente “essa quebra epistemológica real” (BURAWOY, 2010BURAWOY, Michael. O marxismo encontra Bourdieu. Tradução de Fernando Jardim. Campinas: Editora Unicamp, 2010., p. 32) que os hegelianos de esquerda apenas acreditavam terem realizado.

Mais de cem anos depois, o campo intelectual em que se debate Bourdieu parece padecer dos mesmos problemas apontados por Marx e Engels. O sociólogo francês procede com sua crítica por meio de uma gramática diferente, mas os paralelos são evidentes. Para o autor, existem sobre todo o campo intelectual “ilusões escolásticas” que ele denomina skholè - sumarizadas por Burawoy como “visões de mundo que são projeção das condições de existência privilegiadas dos intelectuais, a saber, sua vida despreocupada e livre das necessidades materiais imediatas” (BURAWOY, 2010BURAWOY, Michael. O marxismo encontra Bourdieu. Tradução de Fernando Jardim. Campinas: Editora Unicamp, 2010., p. 33). Assim, sublimando as condições de privilégios de sua existência, os intelectuais têm a propensão de tratar seu próprio ponto de vista de maneira escolástica, aliás, como parece ser o caso do ideal habermasiano da comunicação sem distorções (BURAWOY, p. 33).

Ainda segundo Burawoy, o leitmotif de toda a obra de Bourdieu pode ser sintetizado na primeira tese de Marx contra Feuerbach que, aliás, não por coincidência, constitui a epígrafe da primeira excursão de Bourdieu sobre a lógica da prática, em seu Esboço de uma teoria da prática.

O principal defeito do materialismo até Feuerbach - insuficiência que Marx enxergou e procurou superar e que um século depois Bourdieu ainda sentia a necessidade de criticar - seria que esse tipo incompleto de materialismo concebe as coisas, a realidade objetiva, apenas como objetos externos ao pensar e não eles também como resultados da própria atividade humana sensível.

As convergências entre os autores vão até esse ponto. Daqui Marx parte para a análise mais centrada na atividade econômica e, em alguma medida, coloca a prática humana como um reflexo das relações de produção, enquanto Bourdieu se direciona a conceber a prática humana mais como a produção de bens não apenas materiais, mas, sobretudo, bens culturais.

Em outras palavras, enquanto Marx reduz a atividade prática à atividade econômica e sobre essa base constrói a história humana como sucessão de modos de produção, Bourdieu estende a ideia da atividade da prática às esferas da produção intelectual (BURAWOY, 2010BURAWOY, Michael. O marxismo encontra Bourdieu. Tradução de Fernando Jardim. Campinas: Editora Unicamp, 2010., p. 34).

Ainda que a citação guarde sua verdade, a saber, o que efetivamente melhor distingue os autores são os campos sobre os quais dedicaram suas obras maduras, a crítica é apenas parcialmente justa em relação à obra marxiana. Com efeito, Marx não exatamente reduz toda a prática humana à esfera econômica e às consequências de sua influência, mas apenas institui o econômico como momento preponderante do social e foca seus esforços na compreensão desse fenômeno, naturalmente, deixando de explorar outros campos como consequência dessa decisão. Já Bourdieu, de certa forma, toma a análise econômica de Marx senão como modelo, certamente como inspiração, para realizar a análise das esferas intelectuais, tendo se dedicado aos campos da arte, da educação básica, do jurídico, do ensino superior etc.

Mesmo a descrição da teoria de campos como espaços sociais nos quais agentes habilitados agem estrategicamente na disputa pela acumulação do capital específico desse campo, leva em consideração também a capacidade de conversibilidade entre capitais. O que, aliás, é facilmente perceptível na realidade brasileira, na qual o capital econômico logra, com alguma facilidade, converter-se em capital político por meio da influência de ativos financeiros nas eleições. Assim, como já tivemos a oportunidade de salientar, não raro a aplicação da sociologia relacional bourdieusiana pode levar a confirmação de intuições marxianas fundamentais, pois, em determinados contextos sócio-históricos, o campo econômico domina e determina os demais campos, como reconhece o próprio Bourdieu.

Em suma, separados por pouco mais de um século, Marx e Bourdieu chegaram a conclusões semelhantes acerca da necessidade de superar-se a cisão fictícia entre um materialismo parcial e o idealismo, porém, de acordo com suas inclinações pessoais e das necessidades históricas do seu tempo - caso se queira, em função de seus habitus respectivos e dos campos culturais de atuação -, tomaram caminhos distintos. Enquanto o primeiro se dedicou a identificar a história humana como resultado da sucessão de modelos de produção econômica no tempo, entre passado, presente e futuro, no objetivo de compreender tendências no desenvolvimento da história que indicassem as possibilidades de emancipação humana, o segundo focou-se no presente, na compreensão da coexistência simultânea de diversos campos relativamente autônomos - talvez em função de um maior ceticismo decorrente das características do seu próprio tempo.

No entanto, ainda que muitas vezes pareça ser o caso, a sociologia relacional de Bourdieu e sua demanda por certo afastamento do intelectual em relação ao objeto de estudo - desenvolvida muito em função do pouco apreço que tinha pela noção de intelectual orgânico de Gramsci -, não implica, necessariamente, numa sociologia como mera descrição desinteressada da práxis. Está subjacente às suas descrições uma tendência a emancipação e a transformação da realidade, ainda que de forma bem mais modesta do que apresentada na tradição revolucionária marxista.

Regressando ao ponto no qual divergem. Marx e Bourdieu, por consequência de suas ênfases específicas na esfera econômica e nos campos culturais, respectivamente, se preocuparam com espécies distintas de exploração e dominação, consideradas nos espaços das relações de produção e dos campos culturais. Porém, ainda assim, as semelhanças nos métodos de exposição persistem, como veremos.

Lançaremos mão de outra passagem célebre d’A ideologia alemã para demonstrar como os desenvolvimentos posteriores de Bourdieu estão conectados com o pensamento de Marx. A passagem que temos em mente é aquela na qual lê-se que “as ideias da classe dominante são, em cada época, as ideias dominantes”. Na referida passagem, Marx e Engels defendem que a classe que possui os meios de produção material, por consequência dessa posse, possuem também os meios para a produção espiritual. Dessa forma, por um interesse consciente ou não dos sujeitos pertencentes às classes dominantes, “as ideias dominantes não são nada mais que a expressão ideal das relações materiais dominantes”.

Dois pontos importantes da crítica de Bourdieu ao marxismo podem ser encontrados nessa passagem. A simplicidade reducionista da afirmação que as ideias dominantes “não são nada mais que a expressão” das relações econômicas e a confiança que os indivíduos que compõem a classe dominante possuem plena consciência da dominação que exercem e, assim, “pensam na medida em que dominam como classe e determinam todo o âmbito de uma época histórica”. Sobre a redução, ela contrasta com outras passagens da obra marxiana onde se abre espaço para uma autonomia dos sujeitos e das esferas sociais, ainda que sempre relativa e condicionada pelo momento preponderante da economia. O mesmo vale para a questão da consciência.

No entanto, no que concerne a questão da consciência do exercício da dominação por parte das classes dominantes, nos parece que o esquema bourdieusiano é mais completo porque menos maniqueísta. O espaço de autonomia individual, ainda que concretamente seja fortemente limitado e influenciado pelo habitus, consegue aparecer na superfície tanto para o indivíduo como para a sociedade, como uma autonomia absoluta, dessa forma é capaz de mascarar o resultado da dominação tanto para quem é dominado quanto para os dominantes.

A referida passagem, de forma isolada, parece supor que Marx e Engels não enxergavam nenhuma mediação entre as classes dominantes e dominadas, como se as ideias fossem mecanicamente transladadas de uma esfera a outra, dispensando, por exemplo, o trabalho dos intelectuais. No entanto, ainda que seja verdade que Marx não tenha desenvolvido uma investigação sobre os mecanismos e procedimentos pelos quais os ideólogos criam as ilusões de uma classe sobre si mesmo, isso não significa que não reconhecia a importância dessa mediação.

Em outra passagem d’A ideologia alemã, os autores falam sobre as divisões de classe dentro da própria classe dominante e como essas cisões até podem conduzir a certas oposições e hostilidades entre elas, desde que essas disputas nunca cheguem efetivamente a por a própria condição da classe, como um todo, em perigo. Entre essas divisões está também aquela fundamentada na divisão do trabalho espiritual e material, visto que mesmo entre os dominantes existem aqueles que estão mais distantes da posse dos meios de produção e que fazem da criação de conceitos e ideias sua estratégia de subsistência e reprodução social (jornalistas, juristas, sociólogos e cientistas políticos profissionais ou tradicionais).

Dessa forma, parece-nos claro que já estava presente nos textos marxianos, ou pelo menos poderiam ser retirada como consequência quase necessária desses, a ideia de uma cisão circunstancial entre frações de classe: a fração dominante da burguesia (composta, naquele momento histórico, pelos grandes industriais que efetivamente detinham a propriedade sobre os meios de produção e hoje ocupada pelos principais acionistas do mercado financeiro) e a fração dominada dessa burguesia (jornalistas, profissionais liberais e outros intelectuais). Chamamos de cisão circunstancial, pois, apesar de em alguns momentos essas frações possam vir a possuir interesses antagônicos que as conduzam a conflitos, nunca deixam de constituir uma classe que, quando efetivamente ameaçada, tende a agir em consonância com seus interesses comuns. Essa noção, trabalhada por meio de outra gramática, naturalmente, é muito cara a Bourdieu. Porém, nesse ponto, reside um paradoxo acerca do tratamento da questão da autonomia pelo autor.

Bourdieu defenderá de maneira obstinada, ao longo de toda sua obra, a questão da autonomia dos campos culturais, seja frente à regulação estatal, seja em relação às forças do mercado. O paradoxo consiste em que a mesma autonomia que, inicialmente, parece como uma característica positiva em si, por indicar que os campos potencialmente podem opor-se às determinações econômicas e até mesmo regulá-las a partir de suas próprias regras - uma autonomia que impede que os campos sejam concebidos como meros reflexos fotográficos das forças externas da economia -; é também um pré-requisito para a mistificação dos resultadosmais ou menos arbitrários desses espaços sociais. É nesse momento que reside o poder simbólico dos produtos culturais, aquela manifestação do poder que, independente das relações de força contingenciais presentes em sua gênese, aparece para a sociedade como distinções e desigualdades naturalizadas e justas.

Nunca é demais frisar que as considerações feitas acerca dos campos da cultura e da ciência, naturalmente, se aplicam também ao direito, desde que feitas as devidas mediações. É exatamente a crença numa autonomia absoluta do campo jurídico frente à economia e a política que está na base das más leituras das teorias positivistas do Direito que compõem o senso comum jurídico (doxa jurídica) e, consequentemente, mascaram uma práxis judicial profundamente política. A mesma ideia falsa que permite acreditar que o direito seja capaz de regular de maneira neutra e estritamente técnica setores da economia e os processos políticos.

Por fim, ainda no que se refere à relação entre Marx e Bourdieu, como vista por Burawoy, vencido os principais paralelismos entre as obras, destacaremos o principal ponto de distanciamento entre os autores. Com efeito, ao apropriar-se do modelo de análise presente em O capital e aplicá-lo aos campos culturais, Bourdieu suprimiu uma categoria fundamental do marxismo, a saber, o conceito de exploração.

Em substituição a essa categoria, para evitar a gramática da luta de classes que seria impulsionada pela exploração entre elas, o sociólogo francês prefere descrever os campos como espaços de concorrência em busca de dominação e não de exploração. Porém, quais seriam as consequência práticas da caracterização das relações sociais enquanto centradas numa concorrência por dominação ao invés de exploração entre classes?

Parece-nos que seja mais um recurso de Bourdieu para fugir das armadilhas das grandes teorias. Entender as relações sociais em termos de exploração, como descrito na teoria marxista, significa necessariamente compreender as dinâmicas estabelecidas na objetividade como valorativamente negativas e injustas, demandando reparação por meio de uma teoria da ação que tenha por objetivo específico a emancipação do trabalho explorado. Por outro lado, compreender essas mesmas relações em termos de uma concorrência, na qual os sujeitos disputam capitais específicos de forma mais ou menos autônoma, de certa maneira, legitima o próprio jogo e, assim, elide a necessidade de responder à pergunta “o que fazer?”.

Mais uma vez nos deparamos com a questão ambígua do afastamento prudencial do sociólogo do seu objeto como condição da autonomia do seu próprio trabalho. Bourdieu chegou a comparar as condições ideais dessa autonomia com a carimbada metáfora da torre de marfim. Porém, como já mencionado, essa descrição contrastava drasticamente com as atividades públicas engajadas de Bourdieu, sobretudo nas últimas décadas de sua vida quando se dedicou publicamente à critica da razão neoliberal, em aliança com outros grupos sociais.

Essa ambiguidade em relação à autonomia, no entanto, não é fruto de um pensamento maduro de Bourdieu em oposição aos seus escritos mais jovens, ela se manifesta ao longo de toda sua obra, em momentos escassos, mas sempre muito significativos de sua produção - como na passagem sobre o pensamento genético e a utopia prática ou na defesa de uma ação política orientada para a garantia das condições sociais do exercício da razão.2 2 Ambas as passagens estão presentes na coletânea Razões práticas, respectivamente nos textos Espírito do Estado: gênese e estrutura do campo burocrático e O ponto de vista escolástico (BOURDIEU, 1996).

Dessa forma, o fechamento na “torre de marfim” se destina a proteger o campo da proliferação dos amadores e diletantes doxósofos (ideólogos) e representa um pré-requisito necessário a boa intervenção pública. Nesse mesmo sentido, entende Burawoy:

A autonomia não significa somente ter por finalidade a busca do conhecimento pelo conhecimento - embora ela também signifique isso. No caso específico da sociologia, a autonomia, caso realmente fosse almejada, garantiria o avanço da ciência que, conforme Bourdieu, necessariamente conduziria a desmistificação da dominação simbólica - se não dentro do campo sociológico, pelo menos no mundo social mais amplo (BURAWOY, 2010BURAWOY, Michael. O marxismo encontra Bourdieu. Tradução de Fernando Jardim. Campinas: Editora Unicamp, 2010., p. 46).

Portanto, o bom funcionamento de um campo específico demanda a superação da dominação simbólica no seu interior e não a mera substituição entre dominantes e dominados. Assim, não obstante as diferenças substanciais entre as categorias da exploração e da dominação, é perfeitamente justificável a investigação das condições e possibilidades de superação também do que Bourdieu denomina dominação.

2. O Direito para Além da Mera Ideologia: Pachukanis Encontra Bourdieu

Seguindo o modelo desenvolvido por Burawoy em O marxismo encontra Bourdieu, propomos mais um diálogo importante entre um autor dessa tradição e o sociólogo francês, a saber, o jurista soviético Evguiéni Pachukanis. As obras aqui consideradas serão, principalmente, a Teoria Geral do Direito e Marxismo de Pachukanis (2017) e o já comentado texto A Força do Direito de Bourdieu (1989a).

Nosso intuito é demonstrar que o grosso das críticas direcionadas por Bourdieu às concepções marxistas do direito já foram adequadamente consideradas e afastadas por Pachukanis, ainda na década de 1920. A ausência de referências a Pachukanis na obra de Bourdieu, sobretudo em A força do direito, quando o autor elaborou uma crítica específica do momento jurídico, não pode ser justificada senão por uma opção estratégica de diminuir valorativamente a tradição que seus “inimigos” reivindicavam3 3 É comum nas obras de Bourdieu a comparação dos campos, especialmente do campo intelectual em Homo academicus (BOURDIEU, 2011) e Meditações pascalianas, a campos de batalha, com seus oponentes, companheiros e estratégias com finalidade de vitória. Nesse sentido, em A força do direito, o campo marxista é retratado por meio de figuras como Louis Althusser e Edward Thompson, enquanto que as correntes formalistas contemporâneas seriam representadas por autores como Niklas Luhmann. e, se distanciado dessa mesma tradição, buscar a originalidade pela originalidade, ocultando a presença, dentro do campo marxista, de muitas das intuições que são apresentadas ali como próprias.

O que não significa dizer que as proposições dos autores sejam idênticas ou que Bourdieu não traga nenhuma inovação à discussão, pelo contrário. Para além do efeito prático desejado com sua crítica ao estruturalismo, qual seja, resgatar a teoria sociológica presumidamente crítica da prisão do materialismo mecanicista, Bourdieu centrou-se muito mais na dinâmica das relações sociais no interior do campo jurídico como o vetor decisivo para determinação do direito. Dessa forma, sua sociologia dá menos importância às relações econômicas em si do que aos efeitos da reconversão do capital econômico no interior dos demais espaços sociais.

A concentração de capital econômico na mão de um grupo reduzido de indivíduos deixa de ser o critério decisivo ou exclusivo para configuração de pertencimento a uma classe, mas não deixa de ser influente na determinação da posição social final do agente. Porém, concorrem com o capital econômico nessa determinação, outras formas de capitais (notadamente o cultural e o social); todos com potencialidade de se manifestarem, a depender de cada situação concreta, enquanto capital simbólico: aquele que exerce a dominação reconhecida pelos demais sujeitos como justa e legítima (BOURDIEU, 2013__________. Capital simbólico e classes sociais. Novos Estudos CEBRAP, n. 96, pp. 105115, 2013.).

Já em Pachukanis a questão é completamente diferente; fiel ao método de investigação da crítica da economia política de Marx (MACARO, 2002), o autor soviético destaca a subjetividade jurídica como momento central da forma jurídica e, a partir daí, constrói uma teoria geral do direito que o enxerga como resultado, em última instância, da produção capitalista (KASHIURA JUNIOR, 2015KASHIURA JUNIOR, Celso Naoto. Pachukanis e os 90 anos de Teoria geral do direito e marxismo. Verinotio, n. 19, Ano X, 2015., pp. 70-78). Divergindo do pensamento jurídico então hegemônico na União Soviética pós-revolucionária, que entendia o Direito como uma mera ideologia a serviço do Capital, Pachukanis se esforçara para demonstrar a indissociabilidade entre a forma mercadoria e a forma jurídica (NAVES, 2000, p. 53), consequentemente apontando para a necessidade de sua superação para emergência do socialismo.

A primeira e mais fundamental diferença está justamente no fato de Bourdieu não estar preocupado com a construção de uma teoria geral do direito e ou nas possibilidades de superação do direito numa sociedade vindoura, ainda que reconheça as relações de dominação no interior desses espaços sociais.

Ao apresentar o seu modelo de ciência rigorosa do direito, Bourdieu o faz diferenciando-o do formalismo de matriz neokantiano4 4 Dentro do qual o pensamento de Kelsen seria sua realização máxima e a teoria luhmanniana sua versão contemporânea. “A teoria dos sistemas apresenta com um nome novo a velha teoria do sistema jurídico que se transforma segundo suas próprias leis, ela fornece hoje um quadro ideal à representação formal e abstrata do sistema jurídico”. (BOURDIEU, 1989a, p. 209-211). e de sua corrente oposta, que “vê no direito e na jurisprudência um reflexo direto das relações de força existentes” (BOURDIEU, 1989a__________. A força do direito: elementos para uma sociologia do campo jurídico. In: Pierre Bourdieu. O poder simbólico. Tradução de Fernando Tomaz. Lisboa: Bertrand, 1989a., p. 210). A segunda tradição seria representada pelo marxismo, especialmente pela sua vertente estruturalista.

Não nos deteremos acerca dos méritos da crítica de Bourdieu à linguagem dos aparelhos do marxismo estruturalista de Althusser e de seus seguidores, que, segundo ele, ignorariam a estrutura dos sistemas simbólicos e, neste caso particular, a forma específica do discurso jurídico. Nesse quesito, basta mencionar que a obra do marxista francês passa por um importante período de resgate (MOTTA, 2014MOTTA, Luiz Eduardo. A favor de Althusser: revolução e ruptura na teoria marxista. Rio de Janeiro: Gramma, 2014.; NEGRI, 2014NEGRI, Antonio. A favor de Althusser: notas sobre a evolução do pensamento do último Althusser. Tradução de Eduardo Davoglio. Lugar Comum, nº 41, pp. 51-69, 2014.) e que a análise da pertinência das críticas que lhes são apontadas demandaria um esforço mais detalhado que, no entanto, não é objetivo do presente trabalho.

De nossa parte, nos interessa mais interrogar sobre as razões e consequências da ausência de Pachukanis, autor da obra mais acabada de análise marxista do direito, num texto que pretende exatamente superar essa tradição. Nesse sentido, era de se esperar que o diálogo bourdieusiano fosse travado com esse autor e não com Louis Althusser. Como não se deu dessa forma, outra pergunta se impõe, as críticas feitas por Bourdieu à visão marxista do direito procedem contra Pachukanis?

Alegadamente, segundo Bourdieu, por estarem demasiadamente vinculados á metáfora arquitetural das relações reflexas entre base e superestrutura, os marxistas que, como Edward Thompson (2000) ou mais recentemente Perry Anderson (2016ANDERSON, Perry. Linhagens do Estado absoluto. Tradução de Renato Prelorentzou. São Paulo: Editora da Unesp, 2016.), julgam equivocadamente terem rompido com o economicismo ao substituírem essa análise pelo fetiche do momento histórico, e então, a partir daí, no que concerne ao direito, se contentam em declarar-lhe imbricado nas relações de produção e circulação. Em suma, segundo Bourdieu, “a preocupação de situar o direito no lugar profundo das forças históricas impede, mais uma vez, que se apreenda na sua especificidade o universo [jurídico]” (BOURDIEU, 1989a__________. A força do direito: elementos para uma sociologia do campo jurídico. In: Pierre Bourdieu. O poder simbólico. Tradução de Fernando Tomaz. Lisboa: Bertrand, 1989a., p. 210).

Ainda segundo o sociólogo, as duas visões antagonistas - internas ou formalistas versus externas ou marxistas - ignoram, cada uma a sua maneira, “a existência de um universo social relativamente independente em relação às pressões externas, no interior do qual se produz e exerce a autoridade jurídica” (BOURDIEU, 1989a__________. A força do direito: elementos para uma sociologia do campo jurídico. In: Pierre Bourdieu. O poder simbólico. Tradução de Fernando Tomaz. Lisboa: Bertrand, 1989a., p. 211). Em resumo, as teorias marxistas estariam preocupadas apenas no conteúdo final das normas para, por meio da análise superficial desses conteúdos, declarar o direito como mero instrumento ideológico de dominação de classe. Essas perspectivas não atentariam para a forma específica do direito e os processos dinâmicos que estão por trás da aplicação da norma. Mas será que o direito é realmente enxergado assim pela teoria geral do direito pachukaniana?

Na verdade, a exposição de Bourdieu guarda muitas semelhanças com a introdução da obra de Pachukanis, na qual o autor traça o que lhe parece ser as tarefas essenciais de uma adequada teoria geral do direito, semelhante ao que Bourdieu chamou de ciência rigorosa do direito. A semelhança é de tal monta que pode levar um leitor à suposição que o sociólogo “tomou emprestado” tais formulações sem, no entanto, revelar propriamente a fonte.

Com efeito, Pachukanis apresenta duas correntes diferentes e concorrentes de compreensão da teoria jurídica: as teorias neokantianas, para quem “a teoria geral do direito pode ser definida como o desenvolvimento dos conceitos jurídicos fundamentais, ou seja, os mais abstratos”, porém, com a inversão de enxergarem esses conceitos “como algo que se destaca da experiência e torna[m] a própria experiência possível” (PACHUKANIS, 2017PACHUKANIS, Evguiéni. Teoria geral do direito e marxismo. Tradução de Paula Vaz de Almeida. São Paulo: Boitempo, 2017., p. 67); e as teorias sociológicas e psicológicas que, apesar de pretenderem explicar o direito como um fenômeno histórico, ao investigarem as suas origens, pecam ao fazer referências, desde o princípio, a características extrajurídicas.

Em suas palavras:

E se suas considerações apontam para definições puramente jurídicas, é só para denunciar seu aspecto fictício, de fantasmas ideológicos, projeções, etc. Esse enfoque naturalista ou niilista pode, sem dúvida, despertar verdadeira simpatia à primeira vista, sobretudo se contraposto às teorias idealistas do direito, impregnadas de teologismo e moralismo (PACHUKANIS, 2017PACHUKANIS, Evguiéni. Teoria geral do direito e marxismo. Tradução de Paula Vaz de Almeida. São Paulo: Boitempo, 2017., p. 71).

Essas teorias sociológicas e psicológicas eram desenvolvidas também por “diversos camaradas marxistas” (PACHUKANIS, 2017PACHUKANIS, Evguiéni. Teoria geral do direito e marxismo. Tradução de Paula Vaz de Almeida. São Paulo: Boitempo, 2017., p. 71), para os quais parecia-lhes suficiente inserir artificialmente a questão da luta de classes na análise do direito para obter uma teoria genuinamente marxista e materialista do direito. No entanto, segundo Pachukanis, por meio desse processo “o resultado que obtemos é uma história das formas econômicas com um colorido jurídico mais ou menos acentuado ou uma história das instituições, mas de modo nenhum uma teoria geral do direito” (PACHUKANIS, 2017, p. 72).

Ainda segundo o jurista soviético, os autores marxistas em geral, ao tratarem do momento jurídico, tinham em vista apenas o conteúdo concreto das regulamentações jurídicas, porém, uma teoria geral do direito marxista - genuinamente materialista - deve ir muito além:

[Nas teorias sociológicas e psicológicas] O conceito de direito é visto exclusivamente a partir do ponto de vista do conteúdo. A questão da forma do direito como tal não é sequer colocada. Entretanto, não resta dúvida de que a teoria marxista deve não apenas examinar o conteúdo material da regulamentação jurídica nas diferentes épocas, mas também oferecer uma interpretação materialista da própria regulamentação jurídica como uma forma histórica determinada (PACHUKANIS, 2017PACHUKANIS, Evguiéni. Teoria geral do direito e marxismo. Tradução de Paula Vaz de Almeida. São Paulo: Boitempo, 2017., p. 72).

O principal defeito desse tipo de abordagem seria sua incapacidade de compreender o conceito de direito em seu movimento real, em sua práxis, “revelando todas as suas inter-relações e ligações internas”. Findam por apresentar um lugarcomum acerca da “regulamentação autoritária externa” do direito que, por servir bem a qualquer época e estágio de desenvolvimento da humanidade, não serve para mais nada.

Não é difícil perceber que os autores concordam acerca da insuficiência das teorias neokantianas - que Bourdieu chama de formalistas ou internalistas, enquanto Pachukanis as rotula de filosofia burguesa, ainda que ambos se refiram a obra de Kelsen como representação maior dessas correntes. Porém, mais do que isso, as críticas feitas por Pachukanis às teorias sociológicas e psicológicas - dentro das quais estão contidos vários “camaradas” marxistas - são semelhantes as que Bourdieu faz ao marxismo como um todo.

Portanto, as críticas de Bourdieu ao marxismo não procedem em relação à obra de Pachukanis, pois, como visto, esse autor não está limitado a denunciar o direito como mera falsa consciência ou reflexo direito das relações de produção, antes, o jurista soviético destaca a questão da forma como dialeticamente conectada ao conteúdo, declarando a necessidade de apreensão das relações internas do momento jurídico.

Nesse sentido, o economicismo mecanicista que inegavelmente atinge algumas manifestações vulgares da tradição marxista, de forma nenhuma é uma característica inerente ao pensamento marxiano, pelo contrário, a transposição de seu método de pesquisa da economia política ao direito, o que efetivamente Pachukanis procurou empreender, conduziu a conclusão acerca da necessidade da compreensão da forma específica do jurídico e de suas “ligações internas”. Conclusão muito semelhante a que Bourdieu anunciará com pretensão de originalidade em seu A força do direito, quase meio século depois e sem qualquer citação a Pachukanis.

Mas e o que diferenciaria então os autores? Enquanto Pachukanis, no contexto de uma crítica a jurisprudência burguesa do ponto de vista do socialismo científico, buscou “demonstrar as condições históricas da forma jurídica”, aplicando ao direito o modelo da crítica da economia burguesa desenvolvido por Marx, com o objetivo de superação do Estado e do direito; Bourdieu buscou a descrição do universo relativamente autônomo no interior do qual se produz e exercer a autoridade jurídica, por meio das suas categorias sociológicas do habitus, do campo e da dinâmica da violência simbólica, cujo monopólio pertence ao Estado e é exercida, sobretudo, por meio da linguagem jurídica.

Portanto, Bourdieu não tinha em vista o horizonte da revolução permanente do contexto marxista, no qual estava inserido Pachukanis. O que, aliás, é perfeitamente compreensível, considerando outra máxima do pensamento bourdieusiano, mas que tampouco lhe é exclusiva, a saber, acerca dos imperativos metodológicos para compreensão de um dado autor; entre os quais se destaca a consideração do momento histórico no qual está inserido e o levantamento dos autores a favor de quem e contra quem o intelectual produz suas intervenções.

Dessa forma, enquanto o sociólogo francês teve sua formação inserida num contexto de descrédito das alternativas socialistas e comunistas, marcado pela deturpação autoritária da Revolução de 1917 e pelo fracasso da União Soviética em acompanhar o progresso do desenvolvimento tecnológico dos países mais desenvolvidos do Ocidente, o jurista soviético escreveu durante os primeiros anos da utopia concreta e socialista.

Portanto, é natural que possuam disposições distintas acerca do futuro, uma marcada pelo otimismo militante da possibilidade de construção de uma nova sociedade e outra marcada pelo pessimismo da era do fim das utopias e consolidação do consenso [doxa] neoliberal, com sua ingênua, porém poderosa, celebração do fim da história e a consolidação das democracias liberais ocidentais como modelo último de organização social.

Não obstante o cenário político de desesperança no qual Bourdieu estava inserido - aliás, a nosso ver, um cenário que não só se arrasta até nossos dias como está ainda mais acentuado com a ascensão de populismos de extrema direita que logram eleger Chefes de Estado no centro e na periferia do sistema capitalista e uma política neoliberal de hiperausteridade destinada sobretudo à periferia do sistema -, ainda assim, encontramos em Bourdieu resquícios de uma teoria da ação, como sustentamos anteriormente, consubstanciada na possibilidade de universalização das condições concretas da razão mediante compromissos políticos efetivos.

Bourdieu e Pachukanis têm em comum a crítica das concepções idealistas do direito e a compreensão que o jurídico não seja mera ideologia ou falsa consciência, tendo efeitos concretos na objetividade e uma autonomia relativa frente ao momento econômico. Porém, Pachukanis, a partir da concepção do econômico como momento preponderante - na esteira do próprio Marx e autores como Lukács - enxerga esse espaço de autonomia como muito mais reduzido do que percebe a sociologia relacional de Bourdieu.

A partir desses pontos comuns, os autores partem para empreendimentos substancialmente diferentes. De certa forma, podemos dizer que Pachukanis buscou uma compreensão macro social do direito, focada na aplicação da metodologia marxiana presente na crítica da economia política ao direito, enquanto Bourdieu procurou uma compreensão micro social do campo jurídico, a partir das análises do sentido do jogo historicamente presente nesse espaço, os habitus dos agentes habilitados e suas estratégias no movimento competitivo de busca pelo monopólio do capital jurídico, bem como a relação desse tipo de capital como os demais capitais (político, econômico, cultural etc.)

Conclusão

Ao longo de toda a sua obra, o marxismo foi uma espécie de inimigo escolhido e companheiro oculto de Bourdieu, no sentido que o sociólogo francês sentiu a necessidade de diferenciar-se das correntes estruturalistas do marxismo que hegemonizavam o campo intelectual francês, para reposicionar sua sociologia relacional e seu materialismo simbólico como uma superação das correntes economicistas do marxismo, sem refluir nas teorias subjetivistas da escolha racional.

No entanto, como demonstrado por Burawoy (2015), assim como pela descrição das semelhanças entre as trajetórias biográficas e intelectuais de Bourdieu e Marx, não resta dúvida que a obra do primeiro, em muitos sentidos, partiu de questões e problemas compartilhados pela teoria marxiana, assim como desenvolveu muitas das intuições dessa tradição do pensamento. Sua insistência em distanciar-se de maneira definitiva do marxismo é antes fruto de uma escolha estratégica de posicionamento no campo intelectual do que de incompatibilidades insuperáveis entre os pressupostos teóricos.

A ausência de Pachukanis na crítica bourdieusiana ao campo jurídico comprova a nossa hipótese. Ao ocultar o principal teórico marxista do direito, que antecipa muito das análises feitas por Bourdieu em A força do direito, o sociólogo francês produz uma caricatura da crítica marxista ao direito - em que pese essa concepção reducionista ser amplamente difundida naquele período e sua confrontação ser um desígnio justo e ainda atual.

Em suma, sustentamos que a teoria bourdieusiana refuta apenas o materialismo mecanicista do estruturalismo de Althusser ou, pelo menos, a leitura que Bourdieu faz desse autor e dessa corrente de pensamento, mas não refuta o pensamento marxista ou marxiano; antes, a nosso ver, lhe é complementar. Defendemos que a associação dessas correntes de pensamentos seja senão imprescindível, muito oportuna e capaz de garantir a melhor aproximação possível do fenômeno jurídico em seu movimento real. A consideração do funcionamento das dinâmicas internas do campo jurídico, associado à perspectiva de inserção do fenômeno jurídico numa totalidade social que é capitalista e lhe influencia forte e diretamente, consiste, a nosso ver, no melhor método para construção de uma ciência rigorosa do direito.

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  • _________. Contribuição à crítica da economia política. Tradução de Florestan Fernandes. 2 ed. São Paulo: Expressão Popular, 2008.
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  • THOMPSPON, Edward. Agenda para una historia radical. Tradução de Elene Grau. Barcelona: Crítica, 2000.
  • 1
    Como já tivemos a oportunidade de salientar, o próprio Bourdieu entende que o seu trabalho pode, não raras vezes e em função de uma série de fatores que influenciam as dinâmicas dos campos, confirmar antes de negar muitas das hipóteses marxistas. O autor fornece como exemplo o caso de como a análise do campo da cultura confirma a noção de que “a cultura dominante é a cultura da classe dominante”. Dessa forma, o autor concede que, apesar de parte do seu trabalho ter sido construído “contra” o marxismo, simultaneamente, não o contradiz (BOURDIEU, 2015, p. 28).
  • 2
    Ambas as passagens estão presentes na coletânea Razões práticas, respectivamente nos textos Espírito do Estado: gênese e estrutura do campo burocrático e O ponto de vista escolástico (BOURDIEU, 1996).
  • 3
    É comum nas obras de Bourdieu a comparação dos campos, especialmente do campo intelectual em Homo academicus (BOURDIEU, 2011) e Meditações pascalianas, a campos de batalha, com seus oponentes, companheiros e estratégias com finalidade de vitória. Nesse sentido, em A força do direito, o campo marxista é retratado por meio de figuras como Louis Althusser e Edward Thompson, enquanto que as correntes formalistas contemporâneas seriam representadas por autores como Niklas Luhmann.
  • 4
    Dentro do qual o pensamento de Kelsen seria sua realização máxima e a teoria luhmanniana sua versão contemporânea. “A teoria dos sistemas apresenta com um nome novo a velha teoria do sistema jurídico que se transforma segundo suas próprias leis, ela fornece hoje um quadro ideal à representação formal e abstrata do sistema jurídico”. (BOURDIEU, 1989a, p. 209-211).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Mar 2020
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2020

Histórico

  • Recebido
    12 Dez 2018
  • Aceito
    13 Abr 2019
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