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Elementos para uma análise da formação das políticas de bem-estar na Grã-Bretanha a partir da Teoria da Reprodução Social

Elements for an analysis of welfare policy making in Great Britain through Social Reproduction Theory

Resumo

Esse artigo aborda a relação das políticas sociais britânicas com as contradições de gênero e raça específicas do sistema capitalista e a maneira como este se desenvolveu naquela formação social. A partir do arcabouço da Teoria da Reprodução Social, traçamos essa relação desde a sua gênese, mostrando como a formulação e aplicação dessas políticas no começo do século XX ajudaram a cristalizar materialmente determinadas relações de gênero e concepções específicas de cidadania, nação e trabalho assalariado que na prática consagravam divisões internas à classe trabalhadora como um todo, instituindo papeis sociais hierarquizados entre os diferentes grupos subalternos.

Palavras-chave:
Grã-Bretanha; políticas sociais; Teoria da Reprodução Social

Abstract

This article addresses the relationship of British social policies to the gender and race contradictions specific to the capitalist system and how it developed in that social formation. Based on the framework of the Social Reproduction Theory, we trace this relationship from its genesis, showing how the formulation and implementation of these policies at the beginning of the 20th century helped to materialize certain gender relations and specific notions of citizenship, nation, and wage labour that in practice enshrined internal divisions within the working class as a whole, establishing hierarchical social roles among different subordinate groups.

Keywords:
Great Britain; social policies; Social Reproduction Theory

Introdução

O pós-Segunda Guerra representa, ainda hoje, um período peculiar e excepcional no interior da história do modo de produção capitalista. Os altos níveis de produtividade, o boom de uma sociedade de consumo de massas e a relativa estabilidade social e política que caracterizaram os trinta anos “gloriosos” do capitalismo nos países centrais sob o que se convencionou chamar de “Estado de bem-estar social” (BEHRING; BOSCHETTI, 2017BEHRING, Elaine e BOSCHETTI, Ivanete. Política Social: fundamentos e história.São Paulo: Cortez, 2017.) permanecem como um marco que norteia boa parte das atividades e manifestações da esquerda, principalmente em uma conjuntura de crise econômica prolongada, austeridade, cortes de gastos sociais e esvaziamento de políticas públicas, como a que vivemos desde os anos 1980, tanto em países centrais do capitalismo como em sua periferia.

No entanto, sempre importante lembrar, o estabelecimento dos Estados de bem-estar social no centro do capitalismo foi resultado dos conflitos de classe em uma conjuntura específica: na esfera interna, como parte da solução para a crise capitalista e como resposta à organização da classe trabalhadora desde os anos 1930, no contexto da crise de 1929 e da resistência ao nazifascismo; na esfera externa, como contraponto ao avanço político-ideológico dos soviéticos, acompanhando o movimento mais geral das metamorfoses por que passava a forma-Estado na Europa ocidental do pós-Segunda Guerra. O boom do capitalismo central nos trinta anos seguintes deveu muito a esse rearranjo político ancorado nas políticas macroeconômicas e nas medidas anticíclicas inspiradas na teoria do economista inglês John M. Keynes.

A defesa do pleno emprego e a extensão da previdência e do bem-estar através de políticas sociais eram vistas como essenciais para a manutenção da coesão social, e tal visão foi consagrada no relatório parlamentar do economista inglês William Beveridge, de 1942, cuja conclusão foi a necessidade de maior intervenção do Estado em áreas sociais para salvar a economia britânica no período de guerra e após o fim desta (PEREIRA, 2011). De acordo com o chamado “relatório Beveridge”, as novas políticas estatais de habitação, educação, emprego, saúde e assistência social deveriam ter por objetivo combater a “ignorância, a sujeira, a enfermidade, a preguiça e a miséria” (idem, p. 93) ao abarcar todos os cidadãos, e não apenas os mais necessitados, universalizando, racionalizando e reformando um conjunto de políticas estabelecido desde a primeira década do século XX. Coube aos trabalhistas recém-eleitos em 1945 implementarem tais medidas: em 1946 foi editada a Lei Nacional de Seguro, seguida da Lei Nacional de Assistência, em 1948, reunindo no mesmo ministério a nova regulamentação e concessão do auxílio-doença e desemprego, pensão aos aposentados (aos 65 anos para homens e 60 para mulheres), auxílio-maternidade, viuvez e funeral que, aliados ao NHS1 1 National Health Service, o Serviço Nacional de Saúde britânico. e às políticas de emprego, educação e habitação desenvolvidas, deram novo sentido ao funcionamento do esquema de Seguridade Social.

No entanto, tal modelo na verdade se constituiu de contradições que por muito tempo permaneceram ignoradas pelas análises dessa quadra histórica, apesar de representarem aspectos fundantes e estruturantes do sistema capitalista. O estudo da formação das políticas sociais no período anterior à Primeira Guerra traz à luz tais especificidades. Neste artigo buscaremos, a partir da Teoria da Reprodução Social, trazer para o centro do debate a relação entre essas contradições, a formação das políticas sociais e a lógica histórica da acumulação capitalista, mostrando, dessa forma, como o fenômeno do bem-estar social no pós-1945 se sustentou em exclusões e definições específicas de cidadania e de trabalho produtivo que passaram pela ampliação e consolidação das políticas sociais em moldes keynesianos.

A Teoria da Reprodução Social e o desenvolvimento das relações capitalistas2 2 Agradeço à Rhaysa Sampaio Ruas da Fonseca pelos importantes debates e ricos ensinamentos sobre essa teoria, isentando-a de qualquer equívoco teórico presente neste artigo. Para mais, cf. FONSECA, 2019.

Ao analisarmos as particularidades das políticas sociais e do seguro social britânico desenvolvidos no começo do século XX, salta aos olhos como essas políticas se alicerçaram a partir das opressões de gênero e raça características do capitalismo, geradoras de tensões e hierarquias no interior da classe trabalhadora que, em última instância, beneficiam o capital e seus detentores (mas não apenas eles, como veremos) de diversas formas. Neste sentido, a ideia de reprodução social torna-se central para o desvelamento do sentido de tais tensões. Uma definição clara e simples do que é a reprodução social pode ser encontrada no trabalho Laslett e Brenner (1989LASLETT, Barbara; BRENNER, Johanna. “Gender and Social Reproduction: Historical Perspectives”. Annu. Rev. Sociol. 1989. 15: - p. 381-404., p. 382-383, tradução nossa): segundo as autoras,

feministas utilizam “reprodução social” para se referirem às atividades e atitudes, comportamentos e emoções, responsabilidades e relacionamentos diretamente envolvidos na manutenção da vida diariamente e “inter-geracionalmente”. (…) Reprodução social deve então ser vista como incluindo vários tipos de trabalho - mental, manual e emocional - no sentido de prover o tipo de cuidado definido historicamente, socialmente e biologicamente, necessário para manter a vida existente e reproduzir a próxima geração. E a organização da reprodução social se refere a uma variedade de instituições no interior das quais esse trabalho [de reprodução social] é realizado, as estratégias variáveis para cumprir tais tarefas, e as diferentes ideologias que moldam e ao mesmo tempo são moldadas por ele.

O trabalho de reprodução social, realizado essencialmente por mulheres, é fundamental e indispensável para a economia capitalista ao reabastecer o mercado com sua energia vital e fonte de suas riquezas, a força de trabalho, seja renovando as gerações de indivíduos que um dia serão trabalhadores, seja recarregando a energia psicofísica e mantendo o padrão de vida dos trabalhadores já existentes para um novo dia de trabalho. Mas, como bem identifica Fraser (2017FRASER, Nancy. “Crisis of Care? On the Social-Reproductive Contradictions of Contemporary Capitalism”. In: BHATTACHARYA, Tithi (org.). Social Reproduction Theory: Remapping Class, Recentering Opression. Londres: Pluto Press, 2017., p. 22, tradução nossa), a existência do trabalho de reprodução social - e sua relação com os impulsos da economia capitalista - não se dá sem contradições:

qualquer forma de sociedade capitalista possui, de maneira profundamente arraigada, uma “tendência de crise” ou “contradição” reprodutiva-social. Por um lado, a reprodução social é a condição da possibilidade de acumulação sustentada de capital; por outro, a orientação do capitalismo para a acumulação ilimitada tende a desestabilizar o próprio processo de reprodução social no qual ela se apoia.

Assim, um dos grandes problemas históricos e políticos com que a Teoria da Reprodução Social (TRS) se defronta são as diversas formas em que tal contradição reprodutiva-social se materializou a partir das disputas entre capital e trabalho3 3 “Trabalho” entendido aqui como qualquer atividade que contribua direta ou indiretamente para a acumulação capitalista - definição que, ao incluir o trabalho reprodutivo descrito anteriormente, amplia de sobremaneira a ideia de “classe trabalhadora” para além do assalariamento direto. Para uma importante e fundamental discussão sobre tal ampliação,cf. Bhattacharya (org.), 2017, obra que lançou as bases teóricas da TRS. em suas diversas frações em diferentes contextos, além de prestar especial atenção em como as forças sociais em confronto lidaram com as modificações demandadas pelo capitalismo e sua relação com o trabalho de reprodução. Vejamos como isso se deu na prática, tomando por norte as sociedades do centro do capitalismo.

Na economia pré-industrial, cuja produção era basicamente doméstica, “lar e comércio, reprodução social e produção, homens e mulheres, crianças e adultos, se localizavam no mesmo mundo de experiência cotidiana” (LASLETT; BRENNER, 1989LASLETT, Barbara; BRENNER, Johanna. “Gender and Social Reproduction: Historical Perspectives”. Annu. Rev. Sociol. 1989. 15: - p. 381-404., p. 386, tradução nossa). O avançar e a disseminação da Revolução Industrial aprofundou a retirada, dos trabalhadores, dos seus meios de produção e subsistência, ao mesmo tempo em que, consequentemente, lhes roubou o controle sobre o próprio processo de trabalho, agora confinado entre as paredes das modernas fábricas e regulado pelo relógio do pátio em seu novo ambiente de trabalho. Como afirmam Laslett e Brenner (1989LASLETT, Barbara; BRENNER, Johanna. “Gender and Social Reproduction: Historical Perspectives”. Annu. Rev. Sociol. 1989. 15: - p. 381-404., p. 389, tradução nossa), “ao perder o controle sobre a propriedade produtiva e sobre o processo de trabalho para os seus patrões capitalistas, as famílias perderam sua capacidade de coordenar tarefas produtivas e reprodutivas”. A perda de tal capacidade significou a separação irrevogável entre o trabalho de reprodução social e o que passou a ser conhecido como “trabalho produtivo”, realizado de forma independente deste nas fábricas e minas. Ao mesmo tempo, a preservação e a reprodução da força de trabalho cada vez mais se vinculava às relações de mercado e se tornava ainda mais mediada pela forma-salário.

Essa separação tornou mais visível ainda as contradições que se instalariam entre o que consideramos aqui a esfera doméstica e a esfera industrial da produção capitalista. Comparando as sociedades industriais com suas predecessoras, E. P. Thompson (1998THOMPSON, E. P. “Tempo, disciplina de trabalho e capitalismo industrial”. In: THOMPSON, E. P. Costumes em Comum. São Paulo: Companhia das Letras, 1998., p. 300), em um importante artigo, concluiu que “sociedades industriais maduras de todos os tipos são marcadas pela administração do tempo e por uma clara demarcação entre o ‘trabalho’ e a ‘vida’”. Neste processo, a esfera da “vida” passou a ser identificada de forma isolada, como uma esfera particular e privada localizada no lar, apartada da esfera pública do trabalho remunerado. A reestruturação dessas esferas, ocorrida ao longo do século XIX, correspondeu igualmente a uma reorganização da relação entre os gêneros. Como explica Fraser (2017FRASER, Nancy. “Crisis of Care? On the Social-Reproductive Contradictions of Contemporary Capitalism”. In: BHATTACHARYA, Tithi (org.). Social Reproduction Theory: Remapping Class, Recentering Opression. Londres: Pluto Press, 2017., p. 23, tradução nossa), “isolando o trabalho reprodutivo do universo maior das atividades humanas, onde o trabalho das mulheres possuía anteriormente um lugar reconhecido, relegou-se este a uma ‘esfera doméstica’ recentemente estabelecida, onde sua importância social foi obscurecida”.

No entanto, em um contexto em que trabalhar significava longas e exaustivas sob condições insalubres vastamente documentadas e salários baixíssimos onde, em um primeiro momento, mulheres e crianças eram inclusive preferidas por seu trabalho tratado como mais barato e por sua pretensa docilidade, os imperativos de produção e de reprodução social entraram em contradição direta, posto que a exploração sobre crianças e mulheres resultou numa

crise em ao menos dois níveis: uma crise de reprodução social entre os pobres e as classes trabalhadoras, cujas capacidades de sustento e recuperação foram exploradas até um ponto de ruptura, e um pânico moral entre as classes médias, que se escandalizaram com o que entenderam como a “destruição da família” ou a “dessexualização” da mulher proletária (FRASER, 2017FRASER, Nancy. “Crisis of Care? On the Social-Reproductive Contradictions of Contemporary Capitalism”. In: BHATTACHARYA, Tithi (org.). Social Reproduction Theory: Remapping Class, Recentering Opression. Londres: Pluto Press, 2017., p. 23, tradução nossa).

A solução para tal problema, que ameaçava esgarçar o tecido social ultrapassando limites incontornáveis, foi a criação de legislações específicas sobre o trabalho infantil e o feminino, para assim “estabilizar a reprodução social” (ibid., p. 27, tradução nossa), limitando o trabalho fabril de mulheres e crianças. Vosko (2010VOSKO, Leah F. Managing the margins: gender, citizenship and the international regulation of precarious employment. Oxford: Oxford University Press, 2010.) mostra como, ao longo do século XIX, os países centrais do capitalismo, sob a justificativa de “proteção” da mão-de-obra feminina, impuseram limitações legais com relação ao trabalho noturno e ao manejo de substâncias nocivas à sua saúde, além de estabelecerem salários mínimos menores para indústrias predominantemente femininas e instituírem proteções à maternidade, regulando de forma incisiva o trabalho fabril das mulheres. No entanto, como aponta a autora, os argumentos da maioria dos grupos em prol dessa legislação

enfatizavam os deveres maternos de proteger aqueles por nascer e cumprir com suas obrigações domésticas, a “preservação da nação”, e uma suposta aptidão física e moral menor para tomar parte em certas formas de emprego e ocupação. Em muitos casos, tais proteções não se aplicavam a categorias de trabalho consideradas aceitáveis para mulheres, percebidas ou como intermitentes, realizadas na esfera doméstica, ou como relacionadas ao trabalho de cuidado, como no caso das empregadas domésticas, trabalhadoras rurais, trabalhadoras casuais, trabalhadoras da família e trabalhadoras em pequenos locais de trabalho, como garçonetes e enfermeiras (VOSKO, 2010VOSKO, Leah F. Managing the margins: gender, citizenship and the international regulation of precarious employment. Oxford: Oxford University Press, 2010., pp. 27-28, tradução nossa).

Com a limitação e em muitos casos proibição de seu trabalho, vivendo em uma sociedade onde o assalariamento era cada vez mais a única garantia de acesso à subsistência, as mulheres sofreram um rebaixamento de seu papel econômico e político e de sua cidadania ao terem sua atuação relegada à esfera doméstica (fosse recebendo salários ou não), tornando-se assim dependentes dos homens, economica e politicamente. Ao mesmo tempo, ganhou força nesse contexto uma espécie de culto à maternidade e à domesticidade na Inglaterra vitoriana, que reforçava a dependência feminina com relação aos homens e a sua exclusão do trabalho fora do lar ao exaltar a maternidade e o cuidado do lar enquanto única função da mulher, dessa forma disciplinando e recriando, à imagem e semelhança das classes altas, os lares da classe trabalhadora de forma específica.

Dorothy Thompson (2015THOMPSON, Dorothy. “Women Chartists”. In: ROBERTS, Stephen (org.). The Dignity of Chartism: essays by Dorothy Thompson. Londres: Verso, 2015.) mostrou como essas ideias se expandiram para a própria classe trabalhadora. Em seus estudos sobre o cartismo inglês, a autora mostrou as contradições desse histórico movimento da classe trabalhadora com relação à essas modificações: segundo a autora, ao mesmo tempo em que muitas das vezes as lutas das mulheres cartistas se limitavam a apoiar as demandas políticas dos homens trabalhadores ou em insistir nos direitos e necessidades femininas enquanto componentes das famílias operárias - onde o lema “Não ao trabalho das mulheres a não ser no lar ou na sala de aula” (THOMPSON, 2015THOMPSON, Dorothy. “Women Chartists”. In: ROBERTS, Stephen (org.). The Dignity of Chartism: essays by Dorothy Thompson. Londres: Verso, 2015., p. 44, tradução nossa) era comum -, sua participação na esfera pública era fundamental para o desenrolar do movimento em suas fases iniciais, seja participando dos protestos e enfrentamentos com as forças repressoras, seja organizando as reuniões comunitárias que levariam a tais protestos. No entanto, “as manifestações da política de massa foram abandonadas em favor de tipos de organização mais ‘modernos’, como a Associação Nacional dos Cartistas”, e

apesar de haver evidências da participação de muitas mulheres nessa organização, no geral este tipo de estrutura, que iria se tornar mais usual à medida que o movimento trabalhista moderno se desenvolvia, tinha menos espaço para as trabalhadoras não-assalariadas, os imigrantes e os trabalhadores não-qualificados no interior da classe trabalhadora. Mudanças nos padrões de trabalho que também ocorreram nesses anos tenderam a retirar o trabalho dos lares e das pequenas oficinas, afastando-o da produção familiar. Tais fatores aparentemente reduziram a participação ativa das mulheres na política popular que, como tantos outros aspectos da vida pública na Grã-Bretanha, se tornou amplamente ‘masculinizada’ durante a segunda metade do século XIX (ibid., p. 46, tradução nossa).

Essa “masculinização da vida pública” sofreu forte impulso da ideologia utilitarista e do impulso conformista do evangelismo cristão. O século XIX na Grã-Bretanha, conhecido como o século das reformas (HALL, 1998HALL, Catherine. “A Family for Nation and Empire”. In: LEWIS, Gail (org.). Forming Nation, Framing Welfare. Londres: Routledge, 1998.), viu no utilitarismo e na sua ênfase no cálculo racional enquanto forma mais adequada de se desenvolver as instituições sociais e melhorar as condições de felicidade do maior número possível de cidadãos, uma saída adequada para os temores que a revolução industrial e a nascente “questão social” traziam. E para seus adeptos entre boa parte das classes médias aburguesadas e da gentry vitoriana, um tipo específico de família - formado por um homem que trabalhasse e sustentasse seus dependentes, dentre os quais a mulher cuidadora da casa e dos filhos - era a pedra fundamental para uma sociedade reformada e socialmente estável. Desta forma, ganhava força a ideia do modelo homem-provedor/mulher dona de casa, a partir do qual “um elo foi criado entre o lar privado separado do local de trabalho, uma mãe cuidando do marido e dos filhos, um homem trabalhador e uma nação sadia” (idem, p. 20, tradução nossa).

Trazer a questão da nação para o centro do debate é essencial para o desenrolar da discussão que viemos travando até aqui. Se o século XIX na Grã-Bretanha é o século das reformas, ele é também, a partir da segunda metade, o século da expansão imperialista e da consolidação do discurso racista e racializante em bases supostamente científicas sustentadas pela biologia da época (LEWIS, 1998LEWIS, Gail. “Welfare and the Social Construction of ‘Race’”. In: SARAGA, Esther (org.). Embodying the Social: Constructions of Difference. Londres: Routledge, 1998.).4 4 Importante fazer a ressalva de que o termo “raça” e seus derivados serão usados nesse artigo com um sentido específico e determinado, de construção social que se impõe aos indivíduos, que passama ser lidos sob esta ótica, ou seja, que se tornam racializados. Conforme explica Banerji (2005, p. 148-149, tradução nossa), “o fenômeno social a que me refiro como ‘raça’ não é uma distinção biológica que na realidade seja herdada pelas próprias pessoas. É uma forma, e uma forma de poder inscrito, de ler ou estabelecer diferenças e encontrar formas duradouras de reproduzir tais leituras, organização e prática. No geral é a isto que as pessoas sinalizam quando dizem que "raça" é uma construção. A inexistência da ‘raça’ como uma entidade física tem sido observada por darwinistas críticos (...), [buscando evitar] o perigo de o termo ser considerado como um fato real da natureza. ‘Raça’, portanto, é uma organização social ativa, uma constelação de práticas motivadas, consciente e inconscientemente, por imperativos políticos ou de poder com formas culturais implícitas - imagens, símbolos, metáforas, normas que vão desde o cotidiano até o institucional.” Tal discurso se expandiu para diversas áreas de conhecimento, tornando-se a principal lente de estudo, compreensão e interpretação da realidade social, influenciando diretamente a consolidação e auto-representação desse Estado nacional imperial britânico. Como explica Hall (1998HALL, Catherine. “A Family for Nation and Empire”. In: LEWIS, Gail (org.). Forming Nation, Framing Welfare. Londres: Routledge, 1998., p. 15, tradução nossa), “a linguagem da hierarquia racial e étnica se tornou uma maneira de diferenciar os Ingleses dos ‘outros’, fossem eles irlandeses católicos em Liverpool ou Birmingham, judeus em Londres, indivíduos escravizados das Índias Ocidentais ou livres depois da emancipação, ou ‘hindus’ indianos”. Tal distinção e hierarquização em bases raciais valia tanto para o interior das ilhas britânicas - onde o branco inglês anglo-saxão protestante assumia lugar de domínio sobre os irlandeses celtas católicos e os galeses, por exemplo - como para o exterior, na ampla gama de povos e etnias subjugados pelo império britânico. A partir de tal visão de mundo, as práticas de melhoria da nação a partir da reformulação do lar e da família eram formuladas e levadas a cabo, tomando “a particular forma de construção de uma fronteira a partir das noções de diferença racial e/ou étnica” (idem, p. 29, tradução nossa).

Os paralelos entre a biologia e os estudos sociais faziam com que as propostas de reforma legislativa do mundo do trabalho tivessem por intuito promover uma espécie de cura do corpo social da nação. O caso dos irlandeses é explícito quanto a isso: vistos como raça inferior e indesejável, parasitas que contaminavam o outrora saudável tecido inglês, tornaram-se bode expiatório das primeiras políticas higienistas britânicas, que se limitavam a tratar graves problemas sociais decorrentes da industrialização e urbanização desordenada a que tal povo estava submetido como problemas morais inerentes a “raça celta”. De acordo com esta visão, seria a pretensa imoralidade e o barbarismo dos irlandeses5 5 Vistos como imorais justamente porque não se adaptavam às demandas que o ritmo industrial e o modelo de família proposto por utilitaristas e evangélicos vitorianos exigiam. Quanto à ideia do seu barbarismo, esta se relacionava ao fato deles não terem “acesso aos prazeres da ‘civilização’, que na mente dos economistas políticos eram as mercadorias com que uma casa poderia ser mobiliada de forma apropriada, com uma dieta alimentar nutritiva e variada, e o uso de roupas decentes. A ideia de ‘Civilização’ encorajava desejos que eram artificiais, e era isso que distinguia o homem de uma fera selvagem. A barbárie nada mais era do que a vida sem as mercadorias” (HALL, 1998, p. 33, tradução nossa). a grande causa de sua pobreza e de suas doenças, como no caso do surto de cólera ocorrido em Manchester - berço da Revolução Industrial e da imigração irlandesa - na década de 1830. Portanto, a inadequação do lar e das famílias operárias frente ao modelo pretendido pelas classes dominantes não era lida em termos de classe pura e simplesmente, mas em termos étnicos cada vez mais racializados, construindo uma fronteira interna entre os nacionais anglo-saxões e os celtas de fora, definindo os contornos simbólicos da nacionalidade inglesa ao mesmo tempo em que reforçava a branquitude desse povo a partir dessas hierarquias, posto que enquanto pregava-se reforma social para os nacionais com vistas a recuperar sua essência inata e curá-los do “mal irlandês”, determinava-se que o problema que tal reforma buscava curar tinha sua causa na presença de elementos de fora que deveriam ser excluídos - no caso, os irlandeses. Criou-se dessa forma um potente nexo entre reforma social/reforma nacional, lar/nação, mediado por redefinições de gênero e raça que atuavam diretamente na consolidação de fronteiras tanto do lar como do próprio Estado-nação, o que em contrapartida teve consequências concretas para os acessos aos bens que propiciavam uma ampliação da cidadania desses indivíduos, conforme veremos a partir da próxima seção.

A grande transformação: interiorização da fronteira do Estado e surgimento das modernas políticas sociais

O problema de queda de natalidade entre as classes mais altas e aumento da mortalidade infantil entre os trabalhadores assumiu importância nacional e virou problema de Estado nos fins do século XIX (HALL, 1998HALL, Catherine. “A Family for Nation and Empire”. In: LEWIS, Gail (org.). Forming Nation, Framing Welfare. Londres: Routledge, 1998.; DAVIN, 1989DAVIN, Anna. “Imperialism and Motherhood”. In: SAMUEL, Raphael (org.). Patriotism: the Making and Unmaking of British National Identity (vol. 1: History and politics). Londres: Routledge, 1989.). Se para Malthus, na primeira metade deste século, a relação de desequilíbrio estabelecida entre o aumento populacional - em progressão geométrica - a produção e oferta de alimentos e meios de subsistência - em progressão aritmética - o fazia bradar por controle de natalidade baseando-se em argumentos abertamente racistas e classistas envolvidos em um discurso religioso e moralista radical, na segunda metade do mesmo século, tal aumento tornara-se objetivo de Estado. O que trouxe tal mudança de atitude? O império, e a necessidade de habitá-lo: “era um dever, um dos mais nobres deveres, ajudar a aumentar a raça inglesa tanto quanto possível” (KINGSLEY, 1858KINGSLEY, Charles. The Massacre of the Innocents, conferência proferida na primeira reunião da Associação Nacional para a Difusão de Conhecimento Sanitário para Senhoras em 1858.apud DAVIN, 1989, p. 203, tradução nossa). A visão imperial voltada para esse problema específico advogava que as crianças e os recém-nascidos pertenciam “não apenas aos pais, mas à comunidade nacional como um todo” (CADBURY, 1906CADBURY, E. et al. Women’s work and wages, 1906apud DAVIN, 1989, p. 204, tradução nossa), eram um “recurso nacional” (idem), e deles dependiam a saúde e o desenvolvimento sadio do país e do Império, afinal de contas, eles eram os cidadãos do futuro.

Os males sociais agora atingiam de frente os ingleses, escapando à fronteira traçada contra os irlandeses e outros estrangeiros, e novamente uma onda de controle moral se espalhou nos escalões do Estado, motivando diversas medidas de cunho disciplinador com relação ao modo de vida dos trabalhadores. Os primeiros resultados apareceram logo no início do novo século: legislações com relação ao treinamento das parteiras (1902), fornecimento de refeição escolar para crianças carentes (1906) e depois inspeção médica (1907), além da institucionalização do registro de nascimentos (nacional a partir de 1907, antes de caráter municipal), foram reunidas em legislação nacional no Children Act de 1908 (DAVIN, 1989DAVIN, Anna. “Imperialism and Motherhood”. In: SAMUEL, Raphael (org.). Patriotism: the Making and Unmaking of British National Identity (vol. 1: History and politics). Londres: Routledge, 1989.).

O temor de uma “degeneração física da raça inglesa” - como era referido o problema - gerou debates, relatórios e inquéritos parlamentares, e todos eles chegaram à mesma conclusão: a queda de qualidade na “oferta de mão-de-obra e de soldados” para a nação era causada pela situação de penúria da classe trabalhadora, mas principalmente pela ignorância das mães dessa classe ao cuidarem do seu lar e criarem seus filhos (idem). Chegava-se assim a um novo estágio na rota de disciplinamento e produção de novas subjetividades no interior do lar operário. Uma gama de iniciativas buscou intervir nesse quadro, desde o desenvolvimento da Educação Física nas escolas, aulas de higiene alimentar, asseio e culinária para as colegiais e também para mulheres trabalhadoras, até a recusa de licenças de casamento para casais considerados degenerados ou inaptos fisicamente para o matrimônio e para a reprodução geracional de acordo com a ideologia dominante da época, permeada de eugenismo (alcóolatras, tuberculosos, mendigos, e também os cronicamente desempregados).

Nesse contexto, associações ideológicas e materiais entre classe, gênero e raça ganharam corpo e espírito nas políticas públicas que caracterizaram o período. A associação mais comum era aquela que igualava as classes trabalhadoras, o gênero feminino e os africanos colonizados. A preocupação com relação à degeneração da raça inglesa, era lida de forma ainda mais explícita nesses termos. Como sintetiza McClintock (2010, p. 76),

por volta da segunda metade do século XIX, a analogia entre degeneração de raça e de gênero passou a exercer uma forma especificamente moderna de dominação social, com o surgimento de uma intrincada dialética - entre a domesticação das colônias e a racialização da metrópole. Na metrópole, a ideia do desvio racial era evocada para policiar as classes "degeneradas" - a classe trabalhadora militante, os irlandeses, os judeus, as feministas, os gays e as lésbicas, as prostitutas, os criminosos, os alcoólatras e os loucos -, que eram vistas coletivamente como desviantes raciais, atávicos em regressão a um momento primitivo na pré-história humana.

Para tornar inteligível a hierarquização racial que cada vez mais definia o mercado de trabalho e a forma de vida dos trabalhadores e trabalhadoras da Inglaterra vitoriana, criou-se a complexa figura do “negro branco”. Essa analogia servia para se referir àqueles grupos sociais cujo lar não se adequava aos modelos das classes dominantes e cuja raça se desviava da essência inglesa6 6 Aqui, a função da mulher e o seu comportamento no interior do lar era fundamental para esse julgamento. : irlandeses, prostitutas, a classe trabalhadora com mulheres trabalhando fora do lar. Analisando a iconografia do que os contemporâneos chamavam de “degeneração doméstica”, McClintock (idem, p. 93) mostra como, em charges e caricaturas da época, “estigmas raciais foram usados sistematicamente, ainda que muitas vezes contraditoriamente, para elaborar mínimas nuanças de diferenças em que as hierarquias sociais de raça, classe e gênero se sobrepunham num gráfico tridimensional de comparação”, lançando mão de desenhos com caracteres simiescos nas fisionomias: lábios exagerados, testas baixas, cabelo desleixado, entre outras características, associando estas com os habitantes dos lares que guardavam qualquer dessemelhança com o modelo dominante proposto. Para muitos investigadores sociais e inspetores governamentais, por exemplo, as favelas em Londres se assemelhavam a navios negreiros. As reportagens sobre as descobertas da Comissão de Emprego de Crianças se referiam sempre às “expedições” dos fiscais do governo enquanto “viagens a um remoto país bárbaro” (idem, p. 179), com referências a descobrimentos e conquistas no interior do império. Tal analogia servia para difundir a ideia de que os cortiços, habitação primordial das classes trabalhadoras pauperizadas nos grandes centros urbanos ingleses, eram habitados por indivíduos com as mesmas características dos que eram colonizados no além-mar: como habitantes, sem capacidade ou racionalidade, de um espaço de atraso e pré-história no interior da modernidade industrial metropolitana, o que permitia o disciplinamento, a vigilância, a despossessão, a invasão dessas áreas e a reconfiguração de suas características e de seu modo de funcionamento interno, uma espécie de colonização no interior da própria Londres e de seus cortiços, onde o papel da mulher no lar e na família recebia atenção primordial para o desenvolvimento da nação.

Foi, portanto, nesse arcabouço - que vinculava racismo, culto à domesticidade, controle da reprodução social e desenvolvimento do Estado-nação - que as leis e reformas sociais que ganharam força começo do século XX estiveram sustentadas. Tudo era pensado e feito com intuitos específicos: desenvolver a raça inglesa, mantendo sua superioridade com relação às outras, através de projetos e medidas que, ao mesmo tempo em que melhoravam as condições de vida dos trabalhadores e de seus filhos no lar - os futuros cidadãos - para que fossem bons trabalhadores e bons defensores do império7 7 Davin (1989) alerta para o fato de que, na maioria dos projetos de leis referentes a essas questões, partia-se do pressuposto de que os recém-nascidos a quem essas políticas seriam voltadas eram todos do sexo masculino, futuros cidadãos que guardariam a “virilidade” do Império. O “estoque racial” deveria ser melhorado, e dentro dessa melhora incluía-se a “demanda” por mais indivíduos do sexo masculino. , incentivavam e reforçavam esse modelo de um homem-provedor/mulher dona-de-casa, apropriado apenas para os lares ingleses.

O complemento fundamental dessa visão, que firmou tais desigualdades em bases materiais, foi o surgimento e a consolidação do chamado “salário-família”, um salário suficiente para garantir os custos de subsistência do trabalhador inglês e de seus dependentes não-assalariados - esposa e filhos. Os exemplos de políticas sociais das primeiras décadas do século XX possuem, como ideologia explícita ou implícita, a ideia do salário-família e das relações desiguais complementares entre homens e mulheres - no lar e fora dele - que o salário-família cristalizava. É o salário-família que regula a reprodução social em boa parte do século XX no Norte Global, consagrando a divisão generificada das esferas doméstica e industrial da produção capitalista. Neste longo processo de separação, hierarquização de gênero e nova regulação da reprodução social em moldes nitidamente racializados, como já explicamos, o papel normativo do Estado-nação imperial redefiniu as fronteiras das instituições privadas - como a própria família e o lar - e públicas envolvidas no trabalho reprodutivo, cada uma com suas particularidades e em relação direta entre si, pois como ressalta Picchio (1996, p. 94, tradução nossa),

quando o Estado assume responsabilidades diretas em relação à reprodução, nunca pretende substituir o trabalho doméstico, mas apenas complementá-lo. As obrigações domésticas da mulher são sempre tacitamente aceitas na formulação de políticas sociais. Os serviços de saúde e as escolas não poderiam funcionar se não fossem sustentados por muito trabalho doméstico dentro da família.

Os posicionamentos do movimento trabalhista britânico frente a tais questões trariam à tona as diversas e instáveis mediações que sustentavam as desigualdades de gênero naquele contexto. Já em 1909, o TUC8 8 Trade Union Congress, principal central sindical britânica. e o Partido Trabalhista - fundado em 1900 - debateram resoluções proibindo mulheres casadas de aceitarem trabalho remunerado sob a justificativa de que elas estariam roubando empregos dos homens, e por consequência tornando-se mais negligentes com relação aos seus deveres domésticos enquanto mãe e esposa (LAND 1980_____ . “The Family Wage”. Feminist Review, No. 6 (1980), pp. 55-77.; PEDERSEN, 1989PEDERSEN, Susan. “The Failure of Feminism in the Making of the British Welfare State”. Radical History Review, 43 (1989), pp. 86-110.). Além disso, para as mesmas instituições, uma esposa trabalhando e sendo paga por isso também acabaria por encorajar seu marido ao ócio, pois reduziria o impulso masculino em procurar trabalho para sustentar sua família ou buscar melhorias salariais, ameaçando, dessa forma, a própria instituição do casamento ao eliminar a dependência econômica das mulheres com relação a seus maridos. Um trabalhador independente garantindo a subsistência de si próprio e de sua família com a ajuda de seu sindicato, a partir de seu próprio suor: esse era o ideal de “respeitabilidade” que inspirava os homens do movimento trabalhista britânico.9 9 A relação do movimento trabalhista com os esquemas estatais de bem-estar social em seus primórdios não foi unívoca, e na verdade reuniu diversos debates que, por falta de espaço e fuga do escopo deste artigo, não abordaremos. Basta aqui mencionar que, para muitas sociedades de auxílio mútuo - que na virada do século XIX para o XX possuíam mais membros do que os sindicatos -, era moralmente adequado e politicamente preferível manter seus esquemas particulares e contributivos (e a independência que estes traziam) frente à “capitulação” aos esquemas controlados por um Estado que, àquela altura, ainda não lhes garantia nem direito ao voto e que, ainda assim, requisitava contribuições pecuniárias dos trabalhadores. Naquela correlação de forças, tais sociedades defendiam o aumento de salários, que garantiria controle total dos trabalhadores das quantias e do destino de suas contribuições e manteria sua independência de classe. Mas tais reivindicações, como estamos argumentando, se mantinham no interior do arcabouço do modelo do homem-provedor e tinham por pilar a reivindicação do salário-família. Para um relato mais detalhado de tais posicionamentos, ver a importante obra de Thane (1996). Como se vê, o ideal do salário-família e tudo o que ele representava tinha valiosos defensores nas fileiras do movimento trabalhista, e o questionamento desse ideal equivalia a atacar as próprias bases da masculinidade dos trabalhadores. Como conclui Pedersen (idem, p. 99, tradução nossa), “a construção da identidade masculina enquanto detentora natural de direitos econômicos sobre mulheres e crianças foi uma das conquistas mais poderosas do movimento trabalhista, que compreensivelmente a protegia com zelo”. Tal zelo acabava por reforçar a ideia de separação de esferas por gênero tão cara ao capitalismo, como explicamos no ponto anterior.

Ao mesmo tempo, a visão do homem-provedor, hegemônica no movimento trabalhista, possuía respaldo na ciência social da época. Na virada para o século XX, as pesquisas sociológicas de Charles Booth (1902) e Seebohm Rowntree (1901ROWNTREE, B.S. Poverty, A Study of Town Life. Londres: Macmillan and Co., 1901.; 1941) marcaram época ao servirem de suporte científico para a construção das políticas sociais em torno do salário-família, constituindo-se numa “representação da economia familiar da classe trabalhadora que normalizava o modelo do homem-provedor, alçado agora ao nível de ‘verdade’ científica e aceito como única base razoável para a elaboração de políticas” (PEDERSEN, 1989PEDERSEN, Susan. “The Failure of Feminism in the Making of the British Welfare State”. Radical History Review, 43 (1989), pp. 86-110., p. 93, tradução nossa). Um dos apontamentos de Rowntree a partir dos estudos realizados no condado de York, no norte inglês (1941 apudLAND, 1980_____ . “The Family Wage”. Feminist Review, No. 6 (1980), pp. 55-77.), foi de que o salário dos homens representava 70% da renda familiar dos trabalhadores em um lar padrão com cinco integrantes, o que significava a admissão de que as mulheres deveriam prover, à sua maneira - e sem afetar suas tarefas prioritárias no lar -, os 30% restantes. Geralmente, essa renda complementar feminina vinha através de trabalho fora de casa envolvendo atividades de reprodução social que as mulheres já realizavam no lar, trabalhando como faxineira, passadeira, babá, lavadeira ou cozinheira nos lares da classe média e da burguesia vitoriana, como aponta Land (1980_____ . “The Family Wage”. Feminist Review, No. 6 (1980), pp. 55-77.). No entanto, em um contexto em que o ideário do homem-provedor cada vez mais se solidificava, a argumentação de Rowntree ia no sentido da reivindicação do aumento dos salários masculinos, de modo que o trabalho assalariado feminino fora do lar não fosse necessário. Nos casos em que não houvesse um homem na família capaz desse provimento, Rowntree defendia a pensão para viúvas, para filhos de pais inválidos e subsídio complementar para famílias com mais de cinco integrantes (a partir do quarto filho).

As propostas de Rowntree serviram de base para as políticas institucionalizadas a partir da primeira década do século XX, o que contribuiu para “deixar intocadas - na verdade, agora codificadas - as duas condições que as feministas explicitamente combatiam: a desigualdade salarial e a determinação das vidas das mulheres pelas mãos masculinas” (PEDERSEN, 1989PEDERSEN, Susan. “The Failure of Feminism in the Making of the British Welfare State”. Radical History Review, 43 (1989), pp. 86-110., p. 94, tradução nossa). Por outro lado, o apoio a essa configuração da relação entre os gêneros, mediada pela forma específica que as políticas sociais tomaram e pelos acordos coletivos buscados pelos sindicatos através do argumento do salário-família, acabava por impor um limite às demandas salariais da classe trabalhadora como um todo, rebaixando assim o nível de subsistência geral ao impedir que mulheres ganhassem salários no mesmo nível que os homens e que lutassem a seu lado por amplas melhorias em suas condições de existência. Sem falar na exclusão desse modelo do homem-provedor dos trabalhadores não-ingleses, cujas condições de vida eram precarizadas, algo que, no conjunto da classe trabalhadora, tinha o mesmo efeito que os baixos salários femininos. Tais contradições surgiam e beneficiavam prioritariamente a burguesia, relação já apontada por Marx (2014MARX, Karl. “A Irlanda e a classe trabalhadora inglesa”. In: MUSTO, Marcelo (org.). Trabalhadores, uni-vos!: antologia política da I Internacional. São Paulo: Boitempo, 2014., pp. 275-276, grifos nossos) em um de seus pronunciamentos sobre a “Irlanda e a classe trabalhadora inglesa” na I Internacional, em 1864:

ao rebaixar ainda mais a classe trabalhadora por meio da imigração forçada da população irlandesa pobre, a burguesia inglesa não apenas explorou a pobreza irlandesa, mas também dividiu o proletariado em dois campos hostis. (...) em todos os grandes centros industriais da Inglaterra há um profundo antagonismo entre os proletários irlandeses e os ingleses. O trabalhador inglês comum odeia o trabalhador irlandês como um concorrente que rebaixa seu salário e seu padrão de vida; também alimenta contra ele antipatias nacionais e religiosas. (...) Esse antagonismo entre os dois grupos de proletários no interior da própria Inglaterra é artificialmente mantido e alimentado pela burguesia, que sabe muito bem que essa cisão é o verdadeiro segredo da preservação de seu próprio poder.

Família, nação e trabalho nas políticas públicas britânicas

Como já ficou claro, a história das políticas sociais no Reino Unido não começou no pós-1945 e seguiu, na verdade, a evolução e as necessidades do regime capitalista naquela nação, além de responder, de forma mediada, às demandas da classe trabalhadora organizada. O período de 1870 a 1920 assistiu a mudanças significativas no sistema capitalista, com a intensificação da competição internacional, a maximização da produção e da eficiência, o aumento dos investimentos e da mecanização. Ao mesmo tempo em que esse processo ocorria, no Norte global surgiram também os primeiros esquemas de bem-estar a cargo do Estado, tentativas de implementação de educação e saúde públicas, mas também seguridade social e provimentos de maternidade. As políticas de bem-estar introduzidas no Reino Unido na primeira década do século XX, a partir do liberal National Insurance Act de 1911 - que reunia aposentadorias, um incipiente seguro de saúde nacional, refeições escolares, supervisão de pessoas portadoras de problemas de saúde mental, bem-estar de mães e crianças e habitação pública em um único fundo orçamentário - eram parte das tentativas do Estado de disciplinar, supervisionar e controlar uma classe trabalhadora cada vez mais militante, desde 1900 organizada no Partido Trabalhista, tomando para si a gerência do regime de reprodução social que se estabelecia (THANE, 1996THANE, Pat. Foundations of the Welfare State. Londres: Longman, 1996.).

O desenvolvimento de benefícios de maternidade e serviços de bem-estar infantil a partir de 1911 atendeu necessidades genuínas da classe trabalhadora, mas, ao mesmo tempo, serviu para reforçar o lar como o lugar da mulher, já que seus salários continuavam muito abaixo ao do nível dos homens, isso quando elas conseguiam de fato trabalhar. Além disso, tais políticas deram um novo status à maternidade, posto que a intenção principal dessas medidas era “resguardar” - ou, melhor dizendo, limitar - o papel das mulheres à sua capacidade reprodutiva: devia-se, fundamentalmente, proteger as reprodutoras dos novos cidadãos, britânicos10 10 Leia-se: ingleses. Cada vez mais “o inglês” se confundia com “o britânico”, apagando da constituição da “britanidade” o galês, o escocês e o irlandês. de nascimento. O atrelamento do papel da mulher na família ao desenvolvimento da raça e da nação ganhava chancela do Estado a partir de suas políticas públicas, que se consolidavam a partir do modelo do homem-provedor/mulher dona de casa e do salário-família. Alguns exemplos, abordados a partir de uma visão comparativa de média duração que abarca também o resultado de tais políticas no pós-Segunda Guerra, fazem-se necessários, a fim de reforçar os argumentos até aqui apresentados.

O caso do auxílio-desemprego já deixa explícita tal configuração: além de ser previsto apenas para trabalhadores em regime integral de trabalho e com tempo longo e estável de contribuição - o que por si só excluía grande parte das mulheres casadas11 11 Que costumeiramente interrompiam sua carreira profissional quando tinham filhos ou, nesse contexto, mesmo ao se casarem, graças a existência, formal ou informal, das chamadas “cláusulas de solteirice”, que impediam mulheres casadas de trabalharem. -, apenas famílias onde a mulher recebia menos da metade do salário médio para trabalhadores não-especializados tinham direito ao auxílio. Assim, tal benefício agia como uma espécie de incentivo para que as mulheres desistissem do trabalho assalariado caso seus maridos ficassem desempregados, uma vez que apenas uma minoria de mulheres conseguia estar empregada recebendo um salário alto ao ponto de garantir o sustento da família sem qualquer outra renda complementar, nem mesmo do marido ou do seguro desemprego dele. Do ponto de vista da renda total familiar, de fato era mais vantajoso que a esposa deixasse de trabalhar e a família se apoiasse no auxílio-desemprego do marido, fato que mostra por si só a desigualdade desse sistema. Mas mesmo se isso acontecesse, as tarefas do lar continuavam nos ombros das mulheres, mesmo com os maridos desempregados. Dessa forma, indiretamente, o sistema de seguridade acabava por manter inalterada a divisão de trabalho no interior do lar mesmo quando o homem estava fora do mercado de trabalho e dependia de benefícios estatais.

O caso do auxílio-doença - para trabalhadores incapacitados temporariamente de trabalhar por motivo de saúde -, era ainda mais explícito. Com o já citado National Insurance Act em 1911, 700 mil mulheres tornaram-se elegíveis ao sistema, o que aumentou exponencialmente os pedidos de seguro por parte delas e levou o governo a investigar a veracidade e viabilidade de suas requisições (LAND, 1978LAND, Hilary. “Who Cares for the Family?”.Journal of social policy. Cambridge, v. 7, n. 3, 1978, pp. 257-284., p. 262). A noção de “incapacidade de trabalhar” era levada ao pé da letra, e as autoridades fiscalizadoras começaram a cortar o benefício de mulheres que fossem encontradas pelos fiscais do serviço social realizando tarefas domésticas enquanto estavam afastadas do trabalho nas fábricas recebendo o auxílio-doença. Para as autoridades, seguindo o espírito da lei, um fator necessariamente excluiria o outro, e tal visão permaneceu ao longo das décadas, como mostra uma recomendação do Departamento de Saúde e Seguridade Social em 1976, que perguntava se a mulher requerente desse auxílio era capaz de cuidar da família ou fazer seu próprio trabalho doméstico. Em caso de resposta afirmativa, a mulher perdia o direito ao auxílio. Tal pergunta não existia nos formulários masculinos para o mesmo auxílio (idem, p. 263). Se levarmos em conta a baixa participação masculina nos serviços domésticos mesmo nessas situações de enfermidade da esposa, percebe-se a injustiça de tal medida por parte das autoridades.

O caso do seguro para “governantas” era ainda mais específico: criado em 1918, serviu primeiro para atender homens viúvos com filhos pequenos, mas já em 1919 foi ampliado para viúvos sem filhos. Tal seguro permitia um desconto no imposto de renda dos homens viúvos para que esses pudessem contratar governantas ou empregadas para cuidarem de suas casas, mas não era previsto para mulheres viúvas, posto que essas “já eram acostumadas a cuidar da casa sozinhas”, como justificava ainda em 1953 um relatório da Comissão Real de Impostos de Renda e sobre Lucros12 12 Royal Comission on the Taxation of Profits and Income 1951-5, Evidence, vol. 4, HMSO, Londres: 1953, p. 55, citado por Land, 1978. . Dessa forma, como ressalta Land (1978LAND, Hilary. “Who Cares for the Family?”.Journal of social policy. Cambridge, v. 7, n. 3, 1978, pp. 257-284.), não se esperava dos homens que combinassem seu habitual trabalho assalariado com a nova necessidade do trabalho doméstico, e portanto esses ganhavam o direito de serem auxiliados com os custeios de prover uma substituta para a esposa doente ou falecida. A substituta, claro, deveria ser outra mulher, deixando claro os papeis sociais que as políticas esperavam de cada gênero.

Quanto ao cuidado dos filhos e dos idosos, a teia ideológica e emocional que atrela mulheres a tais tarefas se faz ainda mais perceptível e indiscutível perante os dados. Uma pesquisa dos anos 1960 (SHANAS, 1968SHANAS, E. et all. The Old in Three Industrial Societies. Londres: Routgledge and Kegan Paul, 1968.apudLAND, 1978LAND, Hilary. “Who Cares for the Family?”.Journal of social policy. Cambridge, v. 7, n. 3, 1978, pp. 257-284.) mostrou que o número de idosos morando com suas filhas casadas era três vezes maior do que os que moravam com os filhos casados. Quando acontecia de morarem com esses últimos, a mesma pesquisa apontou a importância do trabalho doméstico de suas noras para o seu cuidado. No caso de casais de idosos sem filhos, geralmente as mulheres cuidavam mais dos maridos em casa do que o contrário, o que fez com que idosas casadas e sem filhos fossem maioria nos asilos, que recebem diminuta parcela de idosos na mesma situação. Tal questão se imbricava com a questão do serviço domiciliar de cuidados para idosos, fornecido pelo Estado nas residências dos segurados: quem recebia mais o serviço eram idosos morando sozinhos e longe de filhos. E já que, quanto mais incapacitados os idosos, maior era a chance de eles morarem com suas filhas (casadas ou não), o serviço domiciliar nem sempre ajudava os idosos mais incapacitados, os mais necessitados de tal auxílio estatal, pois o cuidado desses ficava por conta dessas filhas. Dentre os que recebiam o auxílio de tal serviço, a comparação da qualidade da situação de homens e mulheres faz saltar aos olhos algumas características: “89% dos homens conseguiam andar sozinhos na rua, contra 68% das mulheres; 29% dos homens não tinham nenhuma dificuldade de mobilidade em tarefas pessoais, contra 8% das mulheres” (idem, p. 268, tradução nossa). Ou seja: idosas, para conseguir o auxílio, precisavam estar mais incapacitadas do que os idosos.

Os cuidados com os filhos pequenos também explicitavam os papeis sociais reforçados pelas políticas sociais, e possuem resultados práticos importantes que explicitam as contradições do que viemos apontando até aqui. Não espanta que, em 1975, 84% dos 4 ¼ milhões de empregados em meio período no Reino Unido eram mulheres, em sua grande maioria casadas. Dessas, 2/5 afirmaram trabalhar em meio-período por causa da obrigação do cuidado de filhos pequenos, e geralmente trabalhavam apenas na hora do expediente da pré-escola. Outro 1/5 nomearam como justificativa o cuidado com parentes idosos ou doentes. Ao mesmo tempo, 60% das mulheres que se encontravam totalmente excluídas do mercado de trabalho, deram circunstâncias domésticas ou gravidez como motivo para se demitirem do último emprego. A partir de tais dados, Land (1978LAND, Hilary. “Who Cares for the Family?”.Journal of social policy. Cambridge, v. 7, n. 3, 1978, pp. 257-284.) mostrou como o modelo do homem-provedor interferiu diretamente na inserção das mulheres no mercado de trabalho. Como só uma diminuta parcela - branca, protestante e inglesa - da classe trabalhadora realmente tinha possibilidade de fazer jus ao modelo, em 1977, a maioria das mulheres casadas que possuíam empregos pagos recebiam salários que representavam apenas ¼ da renda familiar total13 13 O que mostra que, quase setenta anos depois da pesquisa de Rowntree e de todas as políticas sociais e do Estado de bem-estar do pós-Segunda Guerra, a contribuição das mulheres casadas à renda doméstica total na verdade diminuiu. . Tais exemplos - e poderíamos acrescentar ainda outros - servem pra mostrar como, na própria concepção das diferentes políticas sociais, papeis de gênero delimitados e hierarquizados inspiravam tais seguros e auxílios, reforçando estereótipos infundados que serviam de base para determinada configuração das relações tanto no interior do lar e das famílias, como fora dele, definindo o sentido da cidadania das mulheres (donas de casa e mães) e dos homens (trabalhadores).

Raça e bem-estar social

De forma até mais explícita, para além dos impulsos racistas que, como já vimos, motivavam e na verdade forneciam aos reformadores sociais de fins do século XIX as estruturas ideológicas para a sua visão de mundo, a questão da raça se fez presente nas políticas públicas especialmente através das regras de elegibilidade, mecanismo extremamente útil para tal intuito. Assim, a permissão para o acesso a certas formas de benefícios de bem-estar deveria se relacionar, como não podia deixar de ser, com a nacionalidade/raça do requisitante, beneficiando os indivíduos brancos cristãos e que tinham a língua inglesa como nativa. Algumas políticas sociais conectavam de forma bem próxima provimento de bem-estar e controle de imigração, sob duas formas principais: ameaçando de deportação os estrangeiros (alien) que buscavam fundos públicos - partindo do princípio de que, para ter aceito o pedido de permanência no país, os imigrantes deveriam comprovar que conseguiam, por seus próprios meios e sem acesso aos programas de assistência pública, se manter financeiramente no país; ou se relacionando com a teia de relações internacionais e de povos no interior de seus impérios coloniais, que determinava diretamente quais nacionalidades teriam direito a benefícios. Assim, por exemplo, o Aliens Act de 1905 na Grã-Bretanha marcou o início do processo de controle de imigração mais restritivo e de maior delineação da coletividade nacional-imperial ao impor restrições a imigrantes judeus da Rússia e do leste europeu, tendo apoio da maioria dos partidos e sindicatos do espectro político, inclusive dos trabalhistas; o Pensions Act de 1908 negava aposentadoria a quem não fosse residente e súdito britânico pelos últimos vinte anos - o que excluía imigrantes recentes e os que não faziam parte do império britânico; e o já citado National Insurance Act de 1911 dava menos benefícios aos cidadãos não-britânicos que fossem residentes no país há menos de cinco anos. Como afirma Lewis (1998LEWIS, Gail. “Welfare and the Social Construction of ‘Race’”. In: SARAGA, Esther (org.). Embodying the Social: Constructions of Difference. Londres: Routledge, 1998., p. 95), “a ‘raça’ pode ser identificada como ‘a nação’ para produzir uma estrutura para excluir grupos de pessoas de entrar nas fronteiras da nação ou, se ‘dentro’ dela, de ter acesso à gama completa [de benefícios de bem-estar]”.

Bonnett (1998BONNETT, Alastair. “How the british working class became white: the symbolic (re)formation of racialized capitalism”. Journal of historical sociology. Hoboken, v. 11, n. 3, 1998, pp. 316-340.) mostra como o imperialismo e as inéditas políticas sociais de começo do século XX aqui descritas se fundiram num amálgama ideológico e material que serviu de base de sustentação para os impulsos expansionistas e nacionalistas do império britânico. Se antes do século XIX as menções às classes trabalhadoras na Inglaterra vitoriana eram permeadas de argumentos e menções a “raças inferiores”, como já vimos aqui, - e se antes, a burguesia se apresentava como a única representante autêntica dos ideais nacionais e raciais ingleses -, com o avançar do imperialismo na virada para o século XX, principalmente após o surto de nacionalismo popular advindo da Guerra dos Boeres e com a criação dos primeiros programas e seguros sociais, há um deslocamento e expansão dessa chamada “britanidade”, que passa a abarcar não apenas a burguesia, mas também as classes trabalhadoras brancas inglesas. A relação cada vez mais tensa com os irlandeses, que culminou na independência da República da Irlanda em 1922, agregou a minoria protestante da porção norte da ilha, incluindo-a na nacionalidade britânica e lhes garantindo direitos de cidadania na Irlanda do Norte, mas negando-os aos católicos do norte irlandês (WILLIAMS, 1995WILLIAMS, Fiona. “Race/ethnicity, gender, and class in welfare states: a framework for comparative analysis”. Social politics: international studies in gender, state & society. Oxford, v. 2, n. 2, 1995, pp. 127-159.).

O sentido segregacionista das políticas de bem-estar torna-se cada vez mais explícito, principalmente se for conjugado à hierarquização racial existente em outras áreas, como o acesso à qualificação, moradia e a entrada no mercado de trabalho. Em um dos mais importantes estudos sobre imigração na Grã-Bretanha, Ramdin (2017RAMDIN, Ron. The Making of the Black Working Class in Britain. Londres: Verso, 2017.) mostra a dificuldade encontrada pelos imigrantes caribenhos e do sudeste asiático no pós-1945 para serem contemplados por benefícios de habitação e emprego - tradicionalmente e por motivos óbvios, as áreas de política social mais demandadas por imigrantes recém-chegados. Os imigrantes acabavam sendo empurrados para guetos, tanto no que tangia aos bairros e regiões que habitavam, como também nos setores de emprego que ocupariam de forma precária ou rebaixada14 14 Principalmente nos setores onde a demanda por mão-de-obra em um país reconstruindo-se da guerra era maior: nos nascentes serviços públicos de transporte, na construção civil e no sistema de saúde pública recém-criado. . É conhecida, por exemplo, a importante participação de mulheres provenientes das antigas colônias inglesas no Caribe (Jamaica, Barbados e Trinidad, principalmente) no NHS, imigrando para trabalhar como enfermeiras. No caso de Barbados, inclusive, um esquema de subvenção estatal foi desenvolvido entre o governo do país e a administração do NHS para que o primeiro arcasse com os custos de viagem dessas imigrantes. Ao desembarcarem na Inglaterra, essas mulheres eram direcionadas para os postos mais baixos do trabalho de enfermeira nos hospitais públicos, mais insalubres e de menor remuneração e rara possibilidade de promoção15 15 Para mais, ver McDowell (2013). Para relatos em primeira pessoa em um belo e inovador trabalho de história oral, ver Bryan, Dadzie & Scafe (2018), obra considerada clássica do feminismo negro britânico. . O caso das enfermeiras revela uma característica específica da imigração feminina caribenha para a Inglaterra: devido ao fato de a maioria emigrar sem os filhos em um primeiro momento, seu salário tinha duas justificativas ideológicas para ser rebaixado com relação à média geral: o fato dela ser mulher e o fato de não estar com os filhos. Como resume Lewis, “desenvolvimentos no interior da divisão sexual do trabalho agiram de forma orquestrada com os desenvolvimentos da economia de uma forma mais ampla, o que, junto da ideologia do racismo e da prática do racialismo determinou o lugar das trabalhadoras negras na economia britânica”.16 16 Disponível em: https://www.versobooks.com/blogs/3176-the-sexual-division-of-labour. Acesso em: 10/10/2019.

Além disso, essa posição subalterna de tais grupos com relação a habitação, qualificação e mercado de trabalho não era amenizada pelos programas sociais - que hierarquizavam e estratificavam os beneficiários através de múltiplos mecanismos e justificativas contidas nas regras de elegibilidade - o que acabava por reforçar estereótipos racistas e rebaixar sua forma de acesso aos bens de subsistência, acesso esse comparativamente mais dificultado se comparado ao dos trabalhadores brancos ingleses que agora faziam jus ao modelo do homem-provedor. Como explica Williams (1995WILLIAMS, Fiona. “Race/ethnicity, gender, and class in welfare states: a framework for comparative analysis”. Social politics: international studies in gender, state & society. Oxford, v. 2, n. 2, 1995, pp. 127-159., p. 134, tradução nossa), baseando-se no exemplo britânico,

deveríamos examinar sob que medida as modificações do modelo do homem-provedor no século XX foram racializadas e sofreram interferência das divisões de classe. Assim, por exemplo, tal modelo no Estado de bem-estar social britânico no pós-guerra teve aplicabilidade diferencial. Muitas mulheres afro-caribenhas que migraram como trabalhadoras nos anos 1950 foram forçadas economicamente para empregos de período integral - muitas vezes com horários fora do comum (turnos irregulares e noturnos) - com vistas à auxiliar dependentes familiares na Grã-Bretanha ou no Caribe. O fato de estas atividades não serem reconhecidas, auxiliadas e nem legitimadas pelas provisões de bem-estar existentes reproduzia o discurso racista acerca da natureza patológica das famílias negras.

Ao mesmo tempo, poderíamos especular sobre até que ponto a decisão de governos do pós-guerra de usar migrantes ao invés de trabalho feminino local para fazer frente à escassez de mão-de-obra dependia não apenas da sua capacidade de fazê-lo (no caso da Grã-Bretanha, enquanto poder colonial) mas também do seu comprometimento com a hegemonia do modelo do homem branco provedor. Posto de forma franca e simplista, teria o trabalho migrante - incluindo o trabalho migrante feminino - tornado possível o modo de vida do trabalhador branco provedor?

A pergunta de Williams expõe as contradições e complexidades a que está sujeito um estudo sobre o Estado de bem-estar social e as políticas sociais em geral. Podemos, sem equívoco, respondê-la afirmativamente: havia uma hierarquia específica tanto no mercado de trabalho como no acesso a direitos sociais, e foi sobre essa hierarquia que se sustentou o modelo do homem-provedor. Tal modelo, já demonstramos, tinha no topo apenas uma fração da classe trabalhadora, aquela de homens brancos qualificados empregados numa relação de emprego padrão, com direitos sindicais e sociais garantidos e reconhecidos. Percebe-se como a dinâmica entre as políticas de bem-estar reconfigurou de forma determinante as noções de família, nação e trabalho, necessariamente criando hierarquias internas a estas políticas que são indissociáveis da lógica dos Estados de bem-estar social.

Conclusões

Apenas uma análise histórica mais detida pode fornecer elementos para uma caracterização mais correta e aproximada do que foi o fenômeno do bem-estar social na Europa ocidental do pós-guerra, atentando para as especificidades do desenvolvimento histórico de cada nação desde a criação dos primeiros esquemas de seguridade social no início do século e da relação destes com as modificações por que passaram o Estado e a economia capitalistas no pós-1945. Tal ressalva torna-se importante na medida em que ajuda a desmistificar parte das ideias que sustentam a noção de “trinta anos gloriosos” do capitalismo, ressaltando, na realidade, como tal período é único e excepcional na história, resultado de uma conjuntura e de uma correlação de forças muito específicas, além de mostrar como as características geralmente apontadas como definidoras de tal período na verdade abarcaram apenas parte da classe trabalhadora, principalmente se esta for vista de forma ampliada, abarcando também a esfera do trabalho reprodutivo não-pago, como orienta Bhattacharya (2017_____ . “How Not to Skip Class: Social Reproduction of Labour and the Global Working Class”. In: BHATTACHARYA, Tithi (org.). Social reproduction theory: remapping class, recentering oppression. Londres: Pluto Press, 2017.). Serve, assim, para contrapor a uma visão por muito tempo hegemônica nos estudos dos Estados de bem-estar e de suas políticas públicas e desmistificar grande parte das visões consagradas a respeito dessa quadra histórica.

No caso específico do fordismo-keynesianismo britânico do pós-1945, as hierarquias e dependências mútuas entre gêneros e raças eram, desde o início do século, princípios formadores e definidores de tal regime de acumulação. Reforçou-se a suposição do salário-família e do trabalho doméstico feminino de forma a manter o consumo, a produção em massa e o pleno emprego masculino de determinado estrato da classe trabalhadora inglesa empregado no setor mais desenvolvido da economia. Mas tal configuração era sustentada tanto pelo trabalho invisível realizado no lar pelas esposas desses trabalhadores brancos, como pelo trabalho precarizado de mulheres e homens negros, imigrantes e racializados. Assim, nação, cidadania, direitos sociais e, indiretamente, o próprio império, mais uma vez se mesclavam numa narrativa que sustentava a hegemonia burguesa, agora readaptada ao pós-guerra, reforçando de modo ainda mais explícito as vantagens da branquitude inglesa em comparação aos “outros”. Bonnett (1998BONNETT, Alastair. “How the british working class became white: the symbolic (re)formation of racialized capitalism”. Journal of historical sociology. Hoboken, v. 11, n. 3, 1998, pp. 316-340., p. 329, tradução nossa), numa potente metáfora, afirmou que “o bem-estar social veio embalado na Union Jack17 17 Union Jack é como os britânicos se referem à bandeira do Reino Unido, que por sua vez é representativa do império britânico. . Como aponta Williams (1995WILLIAMS, Fiona. “Race/ethnicity, gender, and class in welfare states: a framework for comparative analysis”. Social politics: international studies in gender, state & society. Oxford, v. 2, n. 2, 1995, pp. 127-159., p. 153, tradução nossa), sintetizando essa relação,

na Grã-Bretanha, o Estado de bem-estar se tornou central para a reconstrução do país no pós-guerra e representou a domesticação da missão civilizatória britânica. Civilização - tudo o que restava do poder e dos lucros declinantes do Império - era o que o Estado de bem-estar parecia representar, somado a uma esperança de que este poderia substituir o velho ideal imperial ao sustentar a coesão nacional. O relatório Beveridge (1942) reproduziu ideais de família, nação, trabalho e bem-estar: mais uma vez, o casamento e a maternidade eram tarefas pessoais e nacionais da mulher branca sem deficiências, e o papel de homem-provedor era designado ao seu marido. Esse ideal capturava a subordinação da mulher ao poder econômico de seu marido, o acesso limitado das mulheres ao trabalho pago, e o destino heterossexual permanente dos relacionamentos.

Tal dispositivo, gerador de consenso interclassista nos limites do Estado nacional, se apoiava diretamente nas políticas sociais excludentes, em um Estado cada vez mais intervencionista e no capitalismo regulado keynesiano, o que permitia agora que os ideais nacionais e raciais britânicos fossem compartilhados com todos os cidadãos britânicos de nascimento, mas excluindo negros, imigrantes e estrangeiros. O reforço de tal configuração, se de certa forma beneficiava a classe trabalhadora branca inglesa em comparação com outras frações de trabalhadores, globalmente falando, com relação ao conjunto da sociedade, mantinha intocadas e até reforçadas as relações que opõem de forma definitiva capital e trabalho. É a partir dessas contradições e desse ponto de vista que a TRS analisa o desenvolvimento das políticas sociais e do Estado de bem-estar. Tal abordagem mostra-se fundamental para uma completa reavaliação desse fenômeno à luz da perspectiva de atores e relações sociais por muito tempo ignorados quando se trata dos trinta anos não tão gloriosos do capitalismo.

Referências bibliográficas

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  • 1
    National Health Service, o Serviço Nacional de Saúde britânico.
  • 2
    Agradeço à Rhaysa Sampaio Ruas da Fonseca pelos importantes debates e ricos ensinamentos sobre essa teoria, isentando-a de qualquer equívoco teórico presente neste artigo. Para mais, cf. FONSECA, 2019.
  • 3
    “Trabalho” entendido aqui como qualquer atividade que contribua direta ou indiretamente para a acumulação capitalista - definição que, ao incluir o trabalho reprodutivo descrito anteriormente, amplia de sobremaneira a ideia de “classe trabalhadora” para além do assalariamento direto. Para uma importante e fundamental discussão sobre tal ampliação,cf. Bhattacharya (org.), 2017, obra que lançou as bases teóricas da TRS.
  • 4
    Importante fazer a ressalva de que o termo “raça” e seus derivados serão usados nesse artigo com um sentido específico e determinado, de construção social que se impõe aos indivíduos, que passama ser lidos sob esta ótica, ou seja, que se tornam racializados. Conforme explica Banerji (2005, p. 148-149, tradução nossa), “o fenômeno social a que me refiro como ‘raça’ não é uma distinção biológica que na realidade seja herdada pelas próprias pessoas. É uma forma, e uma forma de poder inscrito, de ler ou estabelecer diferenças e encontrar formas duradouras de reproduzir tais leituras, organização e prática. No geral é a isto que as pessoas sinalizam quando dizem que "raça" é uma construção. A inexistência da ‘raça’ como uma entidade física tem sido observada por darwinistas críticos (...), [buscando evitar] o perigo de o termo ser considerado como um fato real da natureza. ‘Raça’, portanto, é uma organização social ativa, uma constelação de práticas motivadas, consciente e inconscientemente, por imperativos políticos ou de poder com formas culturais implícitas - imagens, símbolos, metáforas, normas que vão desde o cotidiano até o institucional.”
  • 5
    Vistos como imorais justamente porque não se adaptavam às demandas que o ritmo industrial e o modelo de família proposto por utilitaristas e evangélicos vitorianos exigiam. Quanto à ideia do seu barbarismo, esta se relacionava ao fato deles não terem “acesso aos prazeres da ‘civilização’, que na mente dos economistas políticos eram as mercadorias com que uma casa poderia ser mobiliada de forma apropriada, com uma dieta alimentar nutritiva e variada, e o uso de roupas decentes. A ideia de ‘Civilização’ encorajava desejos que eram artificiais, e era isso que distinguia o homem de uma fera selvagem. A barbárie nada mais era do que a vida sem as mercadorias” (HALL, 1998, p. 33, tradução nossa).
  • 6
    Aqui, a função da mulher e o seu comportamento no interior do lar era fundamental para esse julgamento.
  • 7
    Davin (1989) alerta para o fato de que, na maioria dos projetos de leis referentes a essas questões, partia-se do pressuposto de que os recém-nascidos a quem essas políticas seriam voltadas eram todos do sexo masculino, futuros cidadãos que guardariam a “virilidade” do Império. O “estoque racial” deveria ser melhorado, e dentro dessa melhora incluía-se a “demanda” por mais indivíduos do sexo masculino.
  • 8
    Trade Union Congress, principal central sindical britânica.
  • 9
    A relação do movimento trabalhista com os esquemas estatais de bem-estar social em seus primórdios não foi unívoca, e na verdade reuniu diversos debates que, por falta de espaço e fuga do escopo deste artigo, não abordaremos. Basta aqui mencionar que, para muitas sociedades de auxílio mútuo - que na virada do século XIX para o XX possuíam mais membros do que os sindicatos -, era moralmente adequado e politicamente preferível manter seus esquemas particulares e contributivos (e a independência que estes traziam) frente à “capitulação” aos esquemas controlados por um Estado que, àquela altura, ainda não lhes garantia nem direito ao voto e que, ainda assim, requisitava contribuições pecuniárias dos trabalhadores. Naquela correlação de forças, tais sociedades defendiam o aumento de salários, que garantiria controle total dos trabalhadores das quantias e do destino de suas contribuições e manteria sua independência de classe. Mas tais reivindicações, como estamos argumentando, se mantinham no interior do arcabouço do modelo do homem-provedor e tinham por pilar a reivindicação do salário-família. Para um relato mais detalhado de tais posicionamentos, ver a importante obra de Thane (1996).
  • 10
    Leia-se: ingleses. Cada vez mais “o inglês” se confundia com “o britânico”, apagando da constituição da “britanidade” o galês, o escocês e o irlandês.
  • 11
    Que costumeiramente interrompiam sua carreira profissional quando tinham filhos ou, nesse contexto, mesmo ao se casarem, graças a existência, formal ou informal, das chamadas “cláusulas de solteirice”, que impediam mulheres casadas de trabalharem.
  • 12
    Royal Comission on the Taxation of Profits and Income 1951-5, Evidence, vol. 4, HMSO, Londres: 1953, p. 55, citado por Land, 1978.
  • 13
    O que mostra que, quase setenta anos depois da pesquisa de Rowntree e de todas as políticas sociais e do Estado de bem-estar do pós-Segunda Guerra, a contribuição das mulheres casadas à renda doméstica total na verdade diminuiu.
  • 14
    Principalmente nos setores onde a demanda por mão-de-obra em um país reconstruindo-se da guerra era maior: nos nascentes serviços públicos de transporte, na construção civil e no sistema de saúde pública recém-criado.
  • 15
    Para mais, ver McDowell (2013). Para relatos em primeira pessoa em um belo e inovador trabalho de história oral, ver Bryan, Dadzie & Scafe (2018), obra considerada clássica do feminismo negro britânico.
  • 16
    Disponível em: https://www.versobooks.com/blogs/3176-the-sexual-division-of-labour. Acesso em: 10/10/2019.
  • 17
    Union Jack é como os britânicos se referem à bandeira do Reino Unido, que por sua vez é representativa do império britânico.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Mar 2021
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2021

Histórico

  • Recebido
    13 Out 2019
  • Aceito
    09 Mar 2020
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