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Escola como zona de passagem

School as a zone of passage

Resumos

O presente trabalho surgiu de um projeto de integração das disciplinas de Psicologia Escolar I e Psicologia Social II, desenvolvido na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) no ano de 2004. Conceitos teóricos da Psicologia Social teceram uma rede integrada com a realidade de uma escola municipal de Porto Alegre, por meio de olhares criativos de quem pela primeira vez observava o campo com o referencial teórico da psicologia pós-moderna. Abordando conceitos como instituição, dobra, enunciação e marcas, olhares desafiadores foram se constituindo. O campo da escola surge como ponto de partida para questionar e ampliar a área de atuação da Psicologia Social e da análise institucional.

Psicologia Social; Análise Institucional; Integração teórico- prática


The present work originated from a project of integration of the School Psychology I and Social Psychology II disciplines, developed at the Federal University of Rio Grande do Sul (UFRGS) in the year 2004. Theoretical concepts from the Social Psychology discipline were integrated with the context of a public school from the city of Porto Alegre (RS, Brazil), through the creative eyes of someone observing the field with the post-modern psychology theoretical reference for the first time. Approaching concepts such as institution, bend, enunciation and marks, new viewpoints were formed. The school comes as a starting point to question and broaden the area of Social Psychology and of institutional analysis.

Social Psychology; Istitutional Analysis; Practical and theoretical integration


Escola como zona de passagem

School as a zone of passage

Alexei IndurskyI; Vitor ButkusI; Laíssa Eschiletti PratiII; Nair Iracema Silveira dos SantosIII

IAlunos do curso de graduação em psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)

IIMestre em Psicologia Social e Institucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)

IIIProfessora do Departamento de Psicologia Social e Institucional da UFRGS, doutora em Educação. End.: Av. Cavalhada, 4760, Bl. A12, apto. 346 – Cavalhada – Porto Alegre – RS, CEP: 91.740-000. E-mail: laissa@vectrasys.com

RESUMO

O presente trabalho surgiu de um projeto de integração das disciplinas de Psicologia Escolar I e Psicologia Social II, desenvolvido na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) no ano de 2004. Conceitos teóricos da Psicologia Social teceram uma rede integrada com a realidade de uma escola municipal de Porto Alegre, por meio de olhares criativos de quem pela primeira vez observava o campo com o referencial teórico da psicologia pós-moderna. Abordando conceitos como instituição, dobra, enunciação e marcas, olhares desafiadores foram se constituindo. O campo da escola surge como ponto de partida para questionar e ampliar a área de atuação da Psicologia Social e da análise institucional.

Palavras-chave: Psicologia Social. Análise Institucional. Integração teórico- prática.

ABSTRACT

The present work originated from a project of integration of the School Psychology I and Social Psychology II disciplines, developed at the Federal University of Rio Grande do Sul (UFRGS) in the year 2004. Theoretical concepts from the Social Psychology discipline were integrated with the context of a public school from the city of Porto Alegre (RS, Brazil), through the creative eyes of someone observing the field with the post-modern psychology theoretical reference for the first time. Approaching concepts such as institution, bend, enunciation and marks, new viewpoints were formed. The school comes as a starting point to question and broaden the area of Social Psychology and of institutional analysis.

Keywords: Social Psychology. Istitutional Analysis. Practical and theoretical integration.

A IRRUPÇÃO

ainda borrado? Sim, ainda tá. Mais um pouquinho, como está agora, melhor? Bem melhor, doutor...

Recuperação da imagem, aproximação do olhar para o objeto, foco e... o globo ocular revela um mundo: vemos, agora, a escola. Entramos no terreno, o terreno nos marca, pilares de tijolos, cercas furadas, a rua despavimentada onde cachorros dormem dá lugar ao chão cimentado com cascas de banana igualmente descansando. E no mesmo instante "doutor, também recuperamos a audição dele!", crianças gritando correm de um lado a outro da escola; habemus minutos antes da aula. No jogo de sapata cai o seis, e logo então soa o sinal, cessa o suor, e somem os corpos, ainda assim sentimos os zunidos, os vultos, espectros da algazarra; quem nos conta é o palco, repleto das marcas e cicatrizes, é o tempo que também conspira nessa inauguração, agora batendo palmas. A trama se faz, do não-lugar ao interstício de confronto. Da pausa às passadas largas, em que o tempo pisca e retarda o próprio tempo, em que a respiração ofegante se engasga com a vontade de respirar.

CONTEXTUALIZAÇÃO

O presente trabalho é o resultado de um projeto de integração das disciplinas de Psicologia Escolar I e Psicologia Social II, desenvolvido na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) no ano de 2004. O objetivo principal era permitir um primeiro contato com o campo aos alunos da graduação. Para isso, foram criados convênios com a Secretaria Municipal da Educação (SMED) e com o Grupo Hospitalar Conceição (GHC). Grupos de alunos acompanharam o cotidiano de escolas e postos de saúde. As visitas eram supervisionadas por uma equipe de professores, espaço onde os conceitos da análise institucional eram postos em ação. Ao final dessa inserção no campo, foi realizada uma entrevista de devolução nas instituições onde foram apresentados os aspectos observados. Os alunos realizaram um trabalho final (precedido por relatórios), no qual alguns conceitos trabalhados na disciplina e experiências sentidas no campo foram discutidas e aprofundadas.

Segue a produção de um dos grupos que acompanharam uma escola. Os alunos articulam conceito e experiência, conduzindo a uma discussão das práticas do cotidiano escolar, contribuindo, assim, para problematizar alguns aspectos da psicologia social contemporânea. Nas próximas páginas, o descompasso e a trama nos levam a um olhar para si, para o encontro com linhas da psicologia social que nos constituem enquanto profissionais e pesquisadores da área. Além disso, o texto se apropria da possibilidade de abrir brechas nas opções estilísticas empregadas na abordagem das questões.

MÉTODO

Tomo1 1 A escrita do texto emprega a primeira pessoa como um recurso ficcional. Apesar de ser uma produção coletiva, optamos por unir na escrita as várias vozes em um único sujeito. a palavra método resgatando sua origem etimológica: méthodos – meta (atrás, em seguida, através) e Hodós (caminho) (HOUAISS, 2005). Pretendo falar de um modo de fazer que não está prescrito, mas que vai se construir na medida dessa escrita. Pois há um aspecto muito interessante na obra de filósofos como Gilles Deleuze e Michel Foucault e que se percebe tanto no trajeto de sua obra quanto no teor dos seus conceitos. Trata-se de uma relação com a escrita teórica que a faz pulsar. A linguagem tem vida e não está alheia à prática. A construção de teorias se dá na criação de um tempo presente, mais que na representação promissora de futuros.

O ato criativo coloca o tempo em ato, não o suspende. A crítica à representação operada por filósofos contemporâneos os aproxima da arte. Se o saber filosófico ocidental criou para si um espaço alheio, com questões necessariamente sérias, a escrita da filosofia, a partir de Nietzsche, desce de um pedestal metafísico para a terra, naquilo que ela tem de fermentante, de criadora de sujeiras e limpezas: de seres aberrantes em sua diferença singular, de casas frias, de quartos mornos, de homens e de palhaços.

Desse novo espaço virtual ganham forma novas perguntas. Pois a teoria não acabou, nem precisa acabar. Então, em vez de perguntar "o que é o homem?", pergunta-se agora: "para que saber o que é o homem?". Deleuze (2002) propõe como método de sua arte filosófica o deslocamento da questão "o que é" para as perguntas que haviam sido relegadas ao mero fato circunstancial: por que não "quando, onde e para quê?"

A teoria abre as janelas, sacode o pó e respira ares diversos do abafamento em que apodrecia. Mediante uma recolocação de perguntas, o interior é restituído à sua contigüidade com o fora. As antigas questões não deixam de existir nem de produzir verdades. Mas perdem a seriedade ranzinza que as posicionava acima ou por trás das demais questões.

A metafísica reativa parte-se então em ontologia da diferença.

Deleuze (1992) observa uma ressonância disso nos esportes: se a corrida ou o futebol colocam o esportista na dependência de um solo onde ele vai se apoiar para fazer os lances, o surfe e a asa delta vão colocar o praticante em meio a fluxos preexistentes. O corpo deixará os pontos de sustentação. As origens do movimento, nesse outro ambiente, fluido e movediço, deixarão de ser importantes. A morte do homem, sentida ou anunciada por Foucault (DELEUZE, 1992), rompe também com um ponto de sustentação. O sujeito, como objeto das ciências humanas, não é mais suficiente como ponto de partida ou chegada. As representações do homem, tal como apontou Foucault (2004a), foram construídas em paralelo a determinadas utilizações. Os saberes sobre o indivíduo foram possibilitados por tecnologias de poder específicas, ao mesmo tempo em que as possibilitaram. O presente mostra-se então como esse processo inacabado de produção de moldes representativos da individualidade, vendidos como verdadeiros e acionados em consonância com mecanismos de poder normatizantes. Talvez seja esse o tom das análises das situações em que tomei parte na escola municipal Eugênio Ionesco.2 2 O nome da escola foi alterado.

A crítica à representação segue o mesmo caminho da crítica à massificação. A cultura de massa materializa a reprodução das formas e a incidência cruel das forças sobre outras forças, num espaço tomado pela imagem.

Seria, porém, um tanto constrangedor reproduzir as idéias de Foucault e Deleuze. Seria uma lástima aplicá-las sobre algum assunto, tentando convertê-lo ou reconciliá-lo a este ou àquele conceito. Enfim, me coloco o desafio apontado por Coimbra (1995): como evitar a institucionalização da análise institucional? Corre-se um risco, ao tratar da crítica à representação, de captá-la (a crítica) numa forma, num modo de dizer, numa nova seriedade serial.

Sim, seria contraditório se isso acontecesse, mas é justamente dessa contradição que se têm nutrido as grandes máquinas publicitárias da atualidade. Esse impasse se colocou ao longo do semestre em que essa prática foi desenvolvida, e a resolução veio pela via da autoria.

A natureza de tal resolução, porém, não se mostrou a do conforto, da sustentação, da segurança. Lançou-me, sim, num mar aberto, mar cheio de ondas. O método, nesse contexto, é o esboço. Consiste em criar bolhas nesses mares para ali poder respirar. Escrever o ar para poder viver na maré.

DA DOBRA À FORMA: RETRATO ABERRANTE DE FOUCAULT

O conceito de dobra é bastante interessante para a análise estética. Problematizando a noção de interioridade na compreensão da subjetividade, Deleuze (1988) refere que o "dentro" é "uma prega do fora", constituindo uma "determinada relação consigo", um território de existência. Nem interior nem exterior, um lado de dentro coextensivo ao lado de fora, uma dobra. O "lado de fora" é pensado como um plano de superfície, um plano de composição de linhas de força. A arte mesma pode passar alheia à criação de novas possibilidades de existência: Hollywood fornece exemplos de sobra da repetição massiva do óbvio ululante.

Quando Deleuze (1988) escreve sobre Foucault, analisa as crises do pensamento do colega, traçando um panorama que se mostra interessante para a compreensão da sua trajetória. O conceito de dobra surge como potência crítica das recaptações sofridas pelo projeto da modernidade.

Foucault (2004b) traça os contornos dessa recaptação moderna. As tecnologias disciplinares funcionam como máquinas de produção de desejos e instintos. Trata-se de um magnetismo, de forças que põem os corpos em movimentos repetidos e produtivos. O autor mostra como tais forças incidem na formação de subjetividades, além de colaborar com um esquema macropolítico de dominação. A obediência, a regularidade útil cria, assim, jogos micropolíticos disseminados nas mais íntimas relações e também na relação consigo.

Os dispositivos de poder tornam necessários olhares e escutas a regiões que antes permaneciam alheias à incidência do saber. Com isso fundam-se saberes, e a psicologia é um deles que explora a experiência cotidiana, introduzindo-lhes conceitos, perguntando-lhes as maneiras de ser, criando possibilidades, exclusões, e dicotomias. As formas corretas, ou anômalas, garantem a sua reprodução e ação aliadas às forças em benefício das quais elas atuam e ganham utilidade prática. Assim, a desnaturalização das essências subjetivas pode decretar a morte do homem, abrindo caminho para individuações outras.

Há que se perguntar como a vida se dobra na escola? Olho e ouvido precisam de um exercício de desindividualização e sigo à procura de uma experimentação.

A MENINA

Escolho uma cena, e pelo simples fato de tê-la vivido, dela ter falado e ouvido, troco, sem muita escolha, de roupagem. Da maneira como a presenciei, corre o tempo, e o espaço no qual ela se inscreve muda. Escrevo – após revivê-la, pensá-la e senti-la como memória e incômodo – e então, sou outro, ela é outra.

Dessa cena, já imbuída de tantas representações, idéias, hipóteses, falas e ditos, tive que aprender a desaprender; e retirar-lhe também muitas das idéias incrustadas e palavras disseminadas acerca de sua lembrança. Faz-se então dessa escolha (uma vivência) um intermeio criado a partir de minhas memórias acrescidas de representações que são arrancadas feito nervuras indevidas, para uma melhor percepção, e então escritas. Ou seja, nada posso dizer de original além de minha própria ficção. De vivência e criação não se pode precisar os limites.

Falo do retrato que foi feito pela diretora da escola, quando estava em sua sala. Ela contou, após interrupções da menina que vinha pedir favores, que esta era prostituta. Ela falou essa frase com um quê de conformação. Em instantes antes, na reunião, dizia que como diretora fazia tudo o que podia para manter um diálogo com as crianças e tentava, sempre que possível, ajudar. No entanto, não era capaz de abarcar os problemas de todos. O comentário que ela fez a respeito da menina veio a caber, em seu discurso, como uma ilustração dos limites entre a escola e a vida que alguns alunos decidiam levar.

O que interessa nessa situação é a análise de algumas naturalizações relacionadas à interação alunos/professores, num microespaço, e num território mais abrangente, comunidade/escola. Está-se lidando com situações cotidianas de um viver já cristalizado e tão difícil de transitar. Esse viver transparece no discurso da diretora como enunciação institucional, quando ela se refere à menina como prostituta e a considera um caso intangível ao que concerne uma prática educativa.

Naturalizações também minhas, meu olhar ficou embaçado por uma palavra, o peso dela veio rapidamente fazer marca em minha fala. O prisma que me fora proposto pela diretora foi verificado. Tive como certo que aquela menina era uma prostituta, e assim me vi, por meio da própria fala, rotulando e exprimindo um campo de análise mais profundo.

Esse é um exemplo das cirurgias a que os olhares são expostos. Adaptado uma vez o olhar ao objeto, sofre-se intensamente com sua força, ele nos marca, e então somos cúmplices dessa relação. O que ocorre em seguida? Sou eu dessa vez que macero o objeto e lanço um olhar institucionalmente despido em sua direção.

Analiso o fato em conluio com ele: gostaria de, por meio desse foco, interpretar que fatos são decorrentes dessa afirmação – menina prostituta – e ao mesmo tempo a possibilitam de exercê-la como verdade, fazendo assim emergir as nuanças dessas relações produzidas todo o tempo em âmbitos comuns a essas pessoas. É passível de nota que o mesmo discurso que aparece dizendo que a escolha de uma "criança" em ser "prostituta" se dá como um fazer "fora" da escola sonega fatos que são constituintes, muitas vezes produzidos e possibilitados por uma vivência escolar. A saber, são fatos que inicialmente podem ser alheios e adquiridos fora da escola, contudo é o movimento propiciado pela escola enquanto local onde crianças passam partes de suas infâncias, que engendram meios para esses modos de subjetivação.

Do relato feito pela diretora fica uma impressão muito distinta na relação entre a criança e o educador, entre a comunidade e a escola. Um "dentro" e "fora" do ambiente escolar, no qual toda e qualquer intersecção que se produza, com a qual a escola tiver uma discordância moral, será muito difícil de tratar. Concorda-se que há muitos casos em que não se pode mais intervir, pois se criam empecilhos que dificultam o diálogo, o acesso e põe-se em risco a integridade física dos envolvidos.

Centro-me, então, justamente em: não existe uma distinção tal como "dentro" e "fora", no que concerne à Escola, Família e Comunidade; não existem territórios fixos, inclusive os físicos serão postos em dúvida. A linha traçada pelas possibilidades de intervenção da escola em casos de alunos que se confrontam com a moral escolar também demarca uma política de administração discente. É por isso que falo de uma enunciação institucional. Esta fomenta a regulamentação de uma lógica de trabalho exercida segundo algumas condutas estruturais. No entanto, dessas linhas duras e construídas com tijolos e cercas transpiram as vontades e anseios, a volúpia e ingenuidade que fazem borrar, assim, os muros de concreto armado, que simbolicamente demarcam os limites de uma instituição.

Existe sempre uma confluência, uma mistura, um emaranhado; está sempre em jogo a dúvida da margem, da borda limitante. Notar-se-á que a situação de emergência (irrupção) que constitui a entrada da criança na escola não é passível de apontamentos lineares com relação às causas e aos efeitos deste enlace.

Foucault (2004a), se apropriando dos estudos de Nietzsche, mostra que a emergência se faz na trama, engendram-se os corpos que se preparam para a batalha; não existe um estopim, alguém que acione um botão, que clarifique as relações temporalmente. Foucault se mostra preocupado com a minúcia de um estudo histórico, prepara terreno para uma genealogia do saber. No entanto, pode mostrar o quanto a cena, a preparação, os bastidores estão fundidos e colocados num não-lugar. Nunca é possível definir um lugar de atuação fixo e esperar que os estudantes não o violem. Simplesmente com sua presença, seu corpo traz consigo sua proveniência. Esta será mostrada pelo corpo cheio de cicatrizes e marcas. A criança leva consigo sua história e na escola irá depositar muitos de seus pesos e excessos, ao passo que a escola irá, ou deverá, proliferar suas raízes, que passam a invadir diversos espaços da sua comunidade e criar identificações e meios para expressão da potência que se desenvolve nesse elo.

Falo, também, do que se faz visível, em adição a isso e não contraditoriamente; o discurso já remarcado da diretora da escola e suas margens bem definidas. Pois, como enunciação, produz um jogo de verdade e constitui uma realidade institucional. No emaranhado ou no enlace surgem linhas fixas. Elas se fazem presentes e palpáveis por meio de narrativas que exprimem uma política de condutas. Constituem uma lógica estrutural e funcional de uma administração, cujos empecilhos à sua prática são vastos e, justamente por isso, a transformam, fomentam e justificam tal enunciação. A realidade se constrói nos discursos promovendo enlaces justos e apertados (nós), até o ponto em que não se discernem suas origens.

Procura-se esboçar o que essa menina me provocou nessas visitas, e as relações por ela estabelecidas com seus colegas e professores. Ela mostrou-se altamente autônoma, com uma grande desenvoltura para conversar comigo. Ela, independentemente da veracidade da narrativa da diretora, adquiriu, através dos meios que conhecia, uma grande diferenciação de seus demais colegas. Seu corpo distinguia-se, suas expressões eram provocantes, sentia-se à vontade brincando com os olhares que supunha estarem voltados para si.

O que revela essa posição perante a diretora: uma menina que aos 13 anos "decidiu" se prostituir. Há um choque muito grande. As linhas de força se confrontam.

O que se escuta, quando a diretora diz que não pode fazer nada com relação a isso, é a ressonância de um espaço entre uma assistência salutar e educativa, promovida talvez apenas pela linguagem, e as prováveis dificuldades que essa aproximação pode trazer. Uma frase da diretora sintetiza tudo: "a saúde e a escola são duas coisas que não se aproximam".

A situação da menina se fazer vista propicia que se legitime o discurso que a diretora emprega. Mas essa postura, por parte da menina, também evidencia que é na escola que ela pode expressar-se como diferenciada, singular. A escola proporciona um ambiente para ela se fazer acolhida em sua subjetivação, em outras palavras, a escola lhe dá alheamento.

Essas linhas de força que se criam e se suportam nesse âmbito comum, cujos limites são muito difíceis de precisar, se expandem e fazem da escola apenas um percurso. Não se farão valer essas linhas fora dessas intersecções, trazendo consigo, é claro, as marcas e deformações? Pois essas linhas são radioativas, envolvem uma gama de fatores que as circundam.

Nesse sentido a escola observada é muito eficiente, dentro dessa lógica empreendem-se ações que procuram fazer contornos em situações pedagógicas graves ocasionadas por muitas razões socioeconômicas e posicionadas ante ao ensino por ciclos. A escola proporcionou oficinas e laboratórios para os alunos com defasagem de aprendizado. Procurou trazer a comunidade para implementar atividades no terreno escolar nos finais de semana, concretizando uma relação contínua de diálogo.

O contato, todavia, e a identificação que é proporcionada à criança muitas vezes fora da escola, são valorosos para a constituição de sua subjetividade. Devem-se construir pontes de acesso da escola para a comunidade e fazer com que surjam trocas de forma bilateral. A escola deve contaminar de um pouco de comunidade. Há um vetor nessa troca que é muito pouco acessado. Pode-se entender muito melhor como ajudar uma vez que se conheça e desterritorialize esse espaço enunciativo próprio de uma lógica da inércia administrativa que é confrontada com tantos problemas.

Acredito falar de duas esferas existentes quando trato desse tipo de intervenção: o ideal e o real. Estou ciente de que se encontram barreiras desde o início em intervenções como essa, que visam criar espaços onde se possa dialogar, trocar, experienciar. Penso em pessoas, com o mínimo de qualificação, que possam entrar na comunidade e conversar com os pais de um aluno, conhecer "com os olhos da criança" o lugar onde eles vivem. Existem processos político-administrativos lentos, conflituosos e pouco contemplativos, recursos escassos, poucos profissionais, dificuldade de acesso a certos lugares e a barreira mais árdua, que são os próprios valores e crenças que possuem as crianças e seus familiares que, muitas vezes, não se deixam "ajudar".

Abre-se, então, uma nova janela de exploração que remete às técnicas disciplinares estudadas por Foucault. O controle sobre o corpo dar-se-á de forma mais eficaz disciplinando-se as ações, fazendo com que:

[se] dissocie o poder do corpo; faz-se dele por um lado uma aptidão, uma capacidade que ela [a disciplina] procura aumentar e inverte por outro lado a energia, a potência que poderia resultar disso, e faz dela uma relação de sujeição estrita. Se a exploração econômica separa a força e o produto do trabalho, digamos que a coerção disciplinar estabelece no corpo o elo coercitivo entre uma aptidão aumentada e uma dominação acentuada. (FOUCAULT, 2004b, p. 119)

Na sociedade disciplinar, o corpo sujeito à disciplina fica destituído de força "política". Suas ações e energia são voltadas para a produção. Exaure-se o corpo, este entra numa "maquinaria que o esquadrinha, o desarticula e o recompõe" (FOUCAULT, 2004b, p. 119).

O corpo dominado é o corpo dócil. A técnica vence o homem pelo cansaço. "Pode o homem controlar a técnica sem considerá-la neutra ao mesmo tempo?", indaga Baudrillard (1999). A sociedade contemporânea do controle se caracteriza, justamente, pelo não-controle, nada mais efetivado se não há "ninguém" para fiscalizar.

Aonde se chega com essa reflexão? Pergunta-se: por que a professora utiliza técnicas coercitivas e disciplinares que restringem seu campo de atuação e se faz acomodar com um conjunto de práticas punitivas, caso os alunos ultrapassem o limite da convivência? As raízes estão no estudo foucaultiano, mas, no caso desta escola pública, a disciplina não se faz necessária pela fala, é muito mais semiótica. Os sentidos se produzem em vários planos de composição, na mistura de corpos, olhares, cenas, enunciados, dando passagem à menina que transita e apenas se faz ver. Existe uma convenção também por parte da menina, ela não irá se prostituir na escola, no entanto, provocará, espetará os nervos da diretora que a trata como caso encerrado. Diferente será a "aptidão aumentada e a dominação acentuada". Ambas já jogam o jogo dos implícitos, pois a menina olha a diretora com olhos de um poder narcísico e a teme com olhos de menina matusquela.

DOS JOGOS DOS IMPLÍCITOS

De uma visão primeira da escola, passando para reflexão desta, tenho que atestar também minha relação de câmera e a delas [crianças] de objeto na natureza deste filmar. O contrário certamente é válido, mas não desfaz de qualquer forma a relação anterior como característica muito marcante; do olhar de matusquela todos têm um pouco, de coerção normativa, também. Obedeço e atuo.

Qual o script a ser seguido? É pergunta redundante. Qual redundância a ser deflagrada, é a melhor pergunta? Talvez seja melhor identificar a cena como não-lugar de atuação e perscrutar as confluências, em que linhas de conversão aterrizam nos corpos. Eu sou a câmera, e para mim a menina pode demonstrar sua habilidade com o manejo de milhares de imagens com que seu corpo cresceu, adaptou-se e marcou-se. Não sou câmera de vigilância, sou ponte entre um mundo ideal de objetos desejosos e desejados por ela e o repertório aprendido nesses poucos anos de aprendizagem: sou câmera de televisão, sou movimento das linhas magnéticas espalhadas via satélite nos lares.

O que disso guarda semelhança com uma sociedade da disciplina? Os implícitos, por certo. Tenho a chance de minha vida: aspiro a novos ideais, sou livre por condição primeira. Escolho, eu, meus modos e estilos de subjetivação. Sociedade massificada já na primeira premissa, condicionada pela primeira condição, a de escolher. Escolho representar o que me foi "apresentado" anteriormente. Vivo representando o normal, assim atesto minha singularidade. E num segundo momento não há mais ambivalência entre a realidade da tela e da sala. Sou também agente normativo, regulo, inspeciono e garanto individualidade impessoal.

ANÁLISE

A escola Eugênio Ionesco pode ser olhada e descrita como campo eletrificado. Campo no qual linhas e magnetismos, vindos de fora da comunidade, da contemporaneidade, desenham interiores. As paredes, sólidas e bem cimentadas, sob esse olhar mostram-se líquidas. O interior da escola garante os seus espaços internos, seus pátios, suas salas de aula e salas de reuniões, mantendo com o ambiente social uma contigüidade que essa análise vai procurar explicitar.

Dentro da escola passam corpos e, mais do que isso, passam linhas. Linhas de texto, obviamente: conteúdos, conhecimentos, formas geométricas, matemáticas, os órgãos dos corpos. Mas também, em simultâneo, encadeadas nas gramáticas da vida, linhas de força. Posicionamentos dos corpos, disposições das classes e dos olhares, lugares da fala.

O que vai ser feito desse magnetismo de linhas não me atrevo a prever. Atrevo-me a continuar essas linhas, reconstruí-las, colocando-as em relação com as ruas da cidade, com as demarcações dos jogos, com as linhas de ônibus, com os fios telefônicos, com as ondas de rádio. Continuo o traçado elétrico sem, no entanto, querer achar-lhe a fonte ou o destino. Deixo de lado o antes e o depois narrativos para criar ressonâncias. O sino da escola e a música da cidade.

Vai ter aula de dança. A professora se atrasa, mas chega. O olhar das crianças se divide entre a professora, que se esforçam para imitar, e as pessoas estranhas que as vieram observar. Atividades paralelas acontecem simultaneamente à oficina de dança. Jogos de sapata, balanço, e umas brincadeiras bastante violentas.3 3 Os relatos que seguem foram embasados nas observações realizadas em uma escola pelos alunos como atividade das disciplinas de Psicologia Escolar I e Psicologia Social II desenvolvida na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) no ano de 2004.

Essa observação captou uma cena que pode ser o mote de uma análise das tecnologias de poder criadas na modernidade. Num pátio de escola, os olhares se dividem entre o modelo a ser acompanhado e os espectadores, estranhos. O sentido visual aparece como norteador de uma disciplina a que o corpo obedece e que vai constituindo as linhas do corpo.

Na cena descrita, um esquema de colocação dos corpos se desenha: as crianças colocam-se em filas de tal maneira que todas possam ver a professora de dança para imitar-lhe os movimentos. Simultaneamente, o olhar dos estranhos exerce também um certo magnetismo. O campo visual permite a vigilância dos movimentos por parte da professora; obriga, simultaneamente, a um auto-olhar por parte das crianças: mesmo as que não participam da aula de dança parecem tentar adivinhar aquilo que poderiam fazer para chamar a atenção.

Birman (1999) afirma que a subjetividade dominante na atualidade é desenhada numa exterioridade autocentrada. Parece contraditório esse termo, mas são absurdos os pilares da cultura publicitária. A imagem a ser imitada já não precisa ser ensinada na escola (ainda que essa instituição ainda dê a sua colaboração). O espaço urbano está tomado de imagens que falam diretamente a cada um, como se já soubessem dos seus desejos. O desejo (de um grande coletivo-alvo, e de cada um) se vê captado nessa busca voraz pela imitação das belezas-padrão. A individuação se dá exibindo-se a uma imagem que permanece grudada em cada retina, fundando um autocentramento massivo.

Se na aula de dança a vigilância da professora ainda era necessária, a política subjetiva explicitada por Birman (1999) já fala num ambiente em que as instituições modernas diluem-se em apelo publicitário interiorizante e interiorizado. Deleuze (1992) fala de uma sociedade (de controle) em que o imperativo de sucesso e o poder de compra substituem, com elegância e economia de gestos, a vigilância. Na sociedade de controle, a vigilância está já internalizada o bastante, perscrutando o corpo e retirando desse os gestos mais úteis e rentáveis.

A professora adverte: "tu vais ver como aqui é um território livre, onde as crianças se libertam total". Ela vai fazendo reparos, microcirurgias que parecem aleatórias, quase desnecessárias. Aumenta o tom de voz com um aluno que parece haver brigado com uns outros. Depois, me diz: "Tu podes observar, como psicólogo, que essas crianças são extremamente agressivas". Era uma tarde ensolarada, eu queria me divertir com as crianças. Estava achando tudo bastante engraçado. A professora não captou meus humores leves, e começou a discursar sobre "a violência que aquelas crianças traziam da vila, onde moravam".

Minha posição de estudante de psicologia, por meio da qual me havia identificado para a professora, nesse trecho mostra-se suficiente para que ela me considere aliado seu. Eu, como psicólogo, podia observar claramente como aquelas crianças eram mais "agressivas", quase indomáveis.

Cabe observar como a profissão de psicólogo encontra-se naturalmente vinculada a discursos moralizantes. Pelo que entendi, eu deveria concordar com aquilo que a professora me apontou porque, afinal de contas, os psicólogos preocupam-se fundamentalmente com a adaptação dos indivíduos à sociedade.

Na correia disciplinar, a psicologia surgiu, constituindo-se como peça fundamental ao funcionamento normatizador que se prolongava nas fábricas, nos quartéis, nas prisões e nas escolas. Esse modo de dominar é descrito por Foucault (2004b) como sutil e eficaz e, por isso, muitas vezes imperceptível. Os discursos humanizadores disfarçam perfeitamente um aprisionamento que produz e faz progresso, sustentando-se no jogo representacional que capta as potências do corpo sem feri-lo.

A professora pergunta: "quem aqui se comportou mal hoje?" A esse inquérito, a maioria dos alunos levanta a mão; muitos deles, como o Pequeno Polegar, fazem-no com certo orgulho. Irônica, a professora dá-lhes cumprimentos pela sinceridade.

Pergunta-se a cada um, e ao mesmo tempo a todos, quem havia se comportado mal. Observo aqui o treinamento, na sala de aula, para um julgamento de consciência a que todos já parecem bastante acostumados. Trata-se de retomar na memória os atos de um passado e escolher entre duas identificações: a dos bem-comportados e a dos mal-comportados.

CONCLUSÕES

Lança-se um olhar crítico sobre o grande projeto moderno. Sendo verdade que em alguns campos a criação de novos valores tornou-se possível, é também verdade que houve um reaproveitamento desse mesmo projeto, num movimento de auto-aniquilação em que os desejos voltaram-se contra si. Se algumas importantes democratizações foram possíveis, outros imperativos passaram a regular os modos de existência e de utilização dos meios disponíveis. Esses imperativos se tornaram mais sutis, não se confundindo mais com dogmas ou religiões altamente restritivos, mas valendo-se do próprio relativismo libertário encenado na criação da subjetividade moderna. Uma maquinaria que conjuga publicidade e saber científico, aproveita-se da relativa liberdade do homem moderno para vender os seus produtos: pílulas, livros de auto-ajuda, aparelhos de som. Promete-se a felicidade condicionando-a a comportamentos e a compras, e o fundamento legitimador de tais propagandas é a possibilidade de escolha individual.

Definem-se situações cotidianas como cristalizadas ou invasoras, como esperadas ou contraditórias. Permite-se um jogo de autoridade e autonomia compondo ritmos, fluxos, enfim, zonas de passagem. Tanto uma professora que serve de modelo, quanto uma aluna que produz estranhamento sobrepõem-se nas marcas ocasionadas nos jogos dos implícitos. O olhar é componente indispensável para a compreensão e narração da trama que compõe a cena, as falas e o cenário. É o estranhamento que define os limites e indica a organização para o foco. Não mais estou lidando com um borramento.

Dessa forma, pode-se falar em uma recaptura que não deixa de ser contraditória, à medida que condiciona sobre um pano de fundo criativo. E ganha uma outra dimensão: a distinção entre realidade e ficção. Dimensão em que elas se confundem, se trocam, se subordinam e se imitam. Do que são capazes os personagens desta história? O que deles se espera e o que a eles se proporciona? Sou eu narrador ou personagem no exercício de retomar minhas memórias e contar o meu olhar?

Assim, a criação dispensa qualquer poética. A imitação subordinada ao olhar do outro se dá numa simples absorção, numa adaptação de si a uma imagem. E isso sem precisar ser imposta, porque a propaganda e a promessa captam justamente a possibilidade de escolha para vender as suas máscaras. Por isso desconfio da beleza de um discurso que simplesmente iguala a arte e a vida. Ele pode ter sido uma notável forma de resistência nos tempos vitorianos, constituindo o chão da obra (e da vida) de figuras incríveis como Oscar Wilde. Mas a contemporaneidade diferencia-se na eleição de outras rainhas.

Num contexto como esse, sobra à Psicologia Social um papel que não pode mais ser o de um retorno à verdade. O que me resta é habitar esse mesmo mundo que critico. Habitá-lo criticamente. Se as ficções contemporâneas nos marcam e nos constituem, resta-nos redobrá-las, inventando histórias que dêem margem a realidades eticamente interessantes.

NOTAS

Recebido em: março/2006

Aceito em: outubro/2006

  • BAUDRILLARD, J. Tela total: mito-ironias da era do virtual e da imagem. Porto Alegre: Sulina, 1999.
  • BIRMAN, J. Mal-estar na atualidade: a psicanálise e as novas formas de subjetivação. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999.
  • COIMBRA, C. M. B. Guardiães da ordem Rio de Janeiro: Oficina do Autor, 1995.
  • DELEUZE, G. Foucault São Paulo: Brasiliense, 1988.
  • ______. La méthode de dramatisation. In: LAPOUJADE, D. (Ed.). L'île déserte et autres textes Paris: Minuit, 2002. p. 131-162.
  • DELEUZE, G. Conversações Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992.
  • FOUCAULT, M. Microfísica do poder Rio de Janeiro: Graal, 2004a.
  • ______. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 2004b.
  • HOUAISS. Dicionário online da língua portuguesa Disponível em: <http://houaiss.uol.com.br>. Acesso em: 24 out. 2005.
  • 1
    A escrita do texto emprega a primeira pessoa como um recurso ficcional. Apesar de ser uma produção coletiva, optamos por unir na escrita as várias vozes em um único sujeito.
  • 2
    O nome da escola foi alterado.
  • 3
    Os relatos que seguem foram embasados nas observações realizadas em uma escola pelos alunos como atividade das disciplinas de Psicologia Escolar I e Psicologia Social II desenvolvida na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) no ano de 2004.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      02 Jan 2008
    • Data do Fascículo
      2007

    Histórico

    • Recebido
      Mar 2006
    • Aceito
      Out 2006
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