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ATENÇÃO PRIMÁRIA À SAÚDE: A TRAJETÓRIA BRASILEIRA E O CONTEXTO LOCAL EM PORTO ALEGRE (RS)1 1 Recebido em 28/9/2020, aceito em 25/8/2021.

PRIMARY HEALTH CARE: BRAZILIAN TRAJECTORY AND THE LOCAL CONTEXT IN PORTO ALEGRE

ATENCIÓN PRIMARIA DE SALUD: LA TRAYECTORIA BRASILEÑA Y EL CONTEXTO LOCAL EN PORTO ALEGRE

RESUMO

A Atenção Primária à Saúde (APS) é considerada internacionalmente como um fator de benefício aos sistemas universais de saúde. No Brasil é regulamentada pela Política Nacional de Atenção Básica (PNAB) e nos últimos quatro anos tem sofrido reformas expressivas em suas diretrizes, alterando a forma como estes cuidados à saúde são implementados nos municípios. Este artigo tem como objetivo analisar a trajetória da política de APS no Brasil e compreender o cenário local no município de Porto Alegre/RS. Com base em um estudo qualitativo e descritivo, foram analisados documentos oficiais sobre a APS (legislação federal e instrumentos normativos). Também, tivemos como fonte de dados o Plano Municipal de Saúde 2018-2021, o Relatório Anual de Gestão de 2020 e uma entrevista com uma gestora municipal da APS de Porto Alegre. Na trajetória nacional, reformas recentes indicam uma aproximação ao modelo mais seletivo de APS, maior flexibilização para parcerias com prestadores de serviço e redução da atuação comunitária. Em Porto Alegre, percebe-se uma fragmentação da gestão entre as Organizações Sociais do setor hospitalar, acompanhando as reformas nacionais e mudando expressivamente o desenho de funcionamento da APS.

Palavras-chave:
Política de saúde; Descentralização; Atenção Primária à Saúde; Cuidados à saúde

ABSTRACT

Primary Health Care (PHC) is considered internationally as a benefit to universal health systems. In Brazil, it is regulated by the National Primary Care Policy (PNAB) and in the last four years it has received significant reforms in its guidelines, changing the way in which this health care is implemented in municipalities. This article aims to analyze the trajectory of PHC policy in Brazil and understand the local context in the city of Porto Alegre/RS. Based on a qualitative and descriptive study, official documents on PHC (federal legislation and normative instruments) were analyzed. We also had as data source the Municipal Health Plan 2018-2021, the Annual Management Report 2020 and an interview with a municipal manager of the APS of Porto Alegre. In the national trajectory, recent reforms indicate an approach to the more selective PHC model, greater flexibility in partnerships with service providers and a reduction in community action. In Porto Alegre, there is a fragmentation of management between the Social Organizations of the hospital sector, following the national reforms and significantly changing the working design of the PHC.

Key Words:
Health policy; Decentralization; Primary Health Care

RESUMEN

La Atención Primaria de Salud (APS) se considera internacionalmente como un beneficio para los sistemas de salud universales. En Brasil, está regulado por la Política Nacional de Atención Primaria (PNAP) y en los últimos cuatro años ha experimentado importantes reformas en sus lineamientos, cambiando la forma en que esta atención de salud se implementa en los municipios. Este artículo tiene como objetivo analizar la trayectoria de la política de APS en Brasil y comprender el escenario local en la ciudad de Porto Alegre/RS. A partir de un estudio cualitativo y descriptivo, se analizaron documentos oficiales sobre APS (legislación federal e instrumentos normativos). También contamos con el Plan Municipal de Salud 2018-2021, el Informe Anual de Gestión 2020 y una entrevista con un gerente municipal de la APS de Porto Alegre como fuente de datos. En la trayectoria nacional, las reformas recientes indican un acercamiento al modelo de APS más selectivo, una mayor flexibilidad en las alianzas con los proveedores de servicios y una reducción de la acción comunitaria. En Porto Alegre, existe una fragmentación de la gestión entre las Organizaciones Sociales del sector hospitalario, siguiendo las reformas nacionales y cambiando significativamente el diseño de trabajo de la APS.

Palabras clave:
Política de salud; Descentralización; Atención primaria a la salud; Atención de salud

INTRODUÇÃO

O cuidado está relacionado a processos de reprodução social, da economia, da organização política, de manutenção da cultura e da própria vida (FRASER, 2016FRASER, Nancy. Contradictions of capital and care. Nem Left Review, v. 100, 2016, p. 99-117.). Segundo Nancy Fraser, a crise que se vive atualmente no cuidado está relacionada à redução de investimentos estatais no bem-estar social, o que acentua pressões de diversas direções sobre capacidades sociais como, gerar e criar crianças, cuidar da saúde, manter lares e comunidades, com maior impacto sobre grupos populacionais mais pobres. Tais necessidades são confrontadas por contradições emergentes do capitalismo financeirizado (FRASER, 2016), ou seja, poucos investimentos do Estado em políticas de proteção social, ao passo que as famílias, especialmente as mulheres, são cada vez mais responsabilizadas pela esfera de cuidados.

A pandemia global de Covid-19 tem evidenciado estas contradições. Países que investem em sistemas públicos de saúde e em estratégias capazes de identificar, tratar e recuperar pessoas infectadas conseguem sair da crise sanitária com menos danos (BLEMENTHAL, et. al, 2020BLEMENTHAL, D, FOWLER EJ, ABRAMS M, COLLINS SR. Covid-19 - Implications for the Health Care System [published online ahead of print, 2020 Jul 22]. New England Journal Medicine, 2020), demonstrando a importância do investimento em políticas universais.

O Brasil criou o Sistema Único de Saúde (SUS) em um período de emergência de políticas sociais no final da década de 1980, com a proposta de universalizar a oferta de serviços públicos de saúde e descentralizar o poder político nas esferas de governo, possibilitando maior autonomia aos estados e municípios para implementar políticas (ARRETCHE, 1999ARRETCHE, Marta. O processo de descentralização das políticas sociais no Brasil e seus determinantes.1999, Tese (doutorado em Ciência Política), Universidade Estadual de Campinas. Campinas, São Paulo, 1999.). Uma das premissas adotadas para reorganizar o modelo de atenção à saúde no país foi investir na Atenção Primária à Saúde (APS) que é reconhecida internacionalmente como um fator de benefício na sustentação de sistemas de saúde de qualidade (GIOVANELLA, 2018). Os cuidados primários maximizam o potencial resolutivo dos serviços, pois seu foco está na promoção e prevenção, funcionando como porta de entrada do usuário e atuando sobre os problemas de saúde em uma perspectiva ampliada (STARFIELD, 2002STARFIELD, Barbara. Atenção Primária: equilíbrio entre necessidades de saúde, serviços e tecnologia. UNESCO, Ministério da Saúde: Brasília, 2002.). Buscando criar serviços de saúde para atuar nesta perspectiva, o país criou a Política Nacional de Atenção Básica (PNAB) (BRASIL, 2006b).

Porém, ao longo dos trinta anos de existência do SUS algumas contradições foram evidenciadas em relação aos investimentos estatais para cumprir com seus princípios. A expansão da oferta, especialmente no nível de Atenção Básica, não foi capaz de alcançar a demanda gerada pela universalização (OCKÉ-REIS, 2012OCKÉ-REIS, Carlos Octávio. SUS o desafio de ser único. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2012.). O contexto de escassez de recursos produziu estratégias para direcionar o acesso, gerando políticas seletivas focalizadas em grupos populacionais vulneráveis, reduzindo-se a um universalismo básico (GIOVANELLA, 2018).

A disputa por investimentos no bem-estar social se acentuou em 2016, com a Emenda Constitucional nº 95, que estabelece um teto de gastos públicos e aplica um regime de austeridade fiscal sobre as políticas sociais. Esta emenda na constituição ressalta o conflito entre dois projetos políticos opostos, a radicalidade neoliberal em contraponto às políticas socialdemocratas (COHN, 2020COHN, Amélia. As políticas de abate social no Brasil contemporâneo. Revista Lua Nova, São Paulo, 109: 129-160, 2020.). Este movimento de ascensão neoliberal sobre as políticas sociais passou a provocar uma série de reformas, atingindo a APS, alterando diretrizes para a organização da PNAB, bem como no financiamento deste setor.

Estas alterações, trouxeram maior flexibilização para parcerias entre o Estado e prestadores de serviços, reduzindo gastos sociais e precarizando as condições de trabalho dos profissionais (MENICUCCI; GOMES, 2018), além de alterar a operação dos cuidados a saúde (GIOVANELLA, 2018). No contexto local de Porto Alegre, além das consequências das reformas no Governo Federal, o município está passando por uma fase de transição em relação ao órgão responsável pela gestão, coordenação e contratação das equipes de APS e indica uma ampliação da participação de Organizações Sociais (OS) na prestação destes serviços.

Devido à centralidade que a APS possui para a organização do SUS, esta pesquisa busca contribuir para a compreensão dessa agenda intensa de reformas que vem sendo aplicada, partindo de questionamentos importantes para aprofundar o debate: Como as mudanças políticas refletem no modelo de atenção à saúde ofertado a população? Qual a trajetória política da APS e seu contexto em Porto Alegre? Qual o papel do município na incorporação da política? Para entender essa conjuntura crítica pretendemos analisar a trajetória política da Atenção Primária à Saúde no Brasil e compreender o cenário local em Porto Alegre/RS.

1 CONSIDERAÇÕES METODOLÓGICAS

A análise de processos históricos, segundo Pierson e Sckopol (2008PIERSON, Paul, SKOCPOL, Theda. El institucionalismo histórico en la ciencia politica contemporánea. Revista Uruguaya de Ciencia Política, vol. 17, n°1, 2008.), permite compreender variações em padrões e eventos políticos, bem como analisar a trajetória deste processo durante o período de tempo em que ocorre. Neste sentido, tivemos como premissa analisar documentos significativos do arcabouço normativo que regulamenta a APS no Brasil, levando em conta a trajetória desta política. Trata-se de uma análise documental, tal como a realizada por Cavalcanti e Fernandez (2020CAVALCANTI, Paulini; FERNANDEZ, Michele. Programa de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica: uma análise das principais mudanças normativas. Physis: revista de saúde coletiva. Rio de Janeiro, v. 30(3), e300323, 2020.) para compreender as mudanças no PMAQ (Programa de Melhoria e Acesso e da Qualidade da Atenção Básica), em que as autoras reuniram os principais documentos normativos que regulamentam este programa e buscaram explicar as mudanças institucionais ocorridas nas alterações.

Partimos de uma análise qualitativa e descritiva, seguindo a linha histórica que permite analisar a trajetória desta política. Tivemos como recorte temporal o período entre 1990-2019 e todos os documentos foram encontrados na página da Secretaria de Atenção Primária à Saúde (SAPS) do Ministério da Saúde. Tendo em vista o papel fundamental da gestão municipal para compreender a implementação da APS e a maneira com que as mudanças na política nacional refletem na prática dos serviços de saúde nesse nível, buscamos aprofundar a análise contextualizando um estudo de caso desta política no município de Porto Alegre/RS. A busca por um cenário local tem como objetivo explicar de que maneira as mudanças nas diretrizes da política podem evidenciar um tensionamento existente no modelo de cuidados que é adotado na APS.

Os documentos analisados foram:

  • Portaria n° 399/2006 - Divulga o Pacto pela Saúde 2006 - Consolidação do SUS e aprova as Diretrizes Operacionais do Referido Pacto (BRASIL, 2006a);

  • Portaria nº 648/2006 - Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes e normas para a organização da Atenção Básica para o Programa Saúde da Família (PSF) e o Programa Agentes Comunitários de Saúde (PACS) (BRASIL, 2006b);

  • Portaria nº 2.488/2011 - Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes e normas para a organização da Atenção Básica, para a Estratégia Saúde da Família (ESF) e o Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS) (BRASIL, 2011);

  • Portaria nº 2.436/2017 - Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes para a organização da Atenção Básica, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS) (BRASIL, 2017);

  • Portaria nº 930/2019 - Institui o Programa "Saúde na Hora", que dispõe sobre o horário estendido de funcionamento das Unidades de Saúde da Família (BRASIL, 2019a);

  • Lei nº 13.958/2019 - Institui o Programa Médicos pelo Brasil, no âmbito da atenção primária à saúde no Sistema Único de Saúde (SUS), e autoriza o Poder Executivo federal a instituir serviço social autônomo denominado Agência para o Desenvolvimento da Atenção Primária à Saúde (ADAPS) (BRASIL, 2019b);

  • Portaria nº 2.979/2019 - Institui o Programa Previne Brasil, que estabelece novo modelo de financiamento de custeio da Atenção Primária à Saúde no âmbito do Sistema Único de Saúde (BRASIL, 2019c);

  • Plano Municipal de Saúde 2018-2021 - Secretaria Municipal de Saúde de Porto Alegre (PORTO ALEGRE, 2018);

  • Relatório Anual de Gestão 2020 - Secretaria Municipal de Saúde de Porto Alegre (PORTO ALEGRE, 2020).

Para contribuir com a integração dos dados locais foi realizada uma entrevista semiestruturada com uma gestora da coordenação municipal da APS. A realização da entrevista ocorreu mediante assinatura de Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e a identidade da entrevistada será preservada, utilizando o termo “gestora municipal” para se referir ao conteúdo da entrevista. Apesar de ser uma única entrevista, sua função na pesquisa não conduziu a um viés individual, pois o que se buscou extrair foram informações genéricas a respeito do processo atual da APS no município de Porto Alegre.

Cabe destacar que não foi objetivo deste estudo pormenorizar as inúmeras alterações encontradas nos documentos desta política, tão pouco fazer uma descrição densa sobre a gestão municipal. Mas sim, analisar como as mudanças nas diretrizes da política nacional refletem em transformações no modelo de cuidados à saúde e a maneira como isso pode ser observado no âmbito local. A análise de conteúdo foi conduzida pela perspectiva histórica de desenvolvimento da política e buscando apresentar alguns paralelos entre os dois contextos (macro e micro). Trata-se aqui de uma análise exploratória parte de um projeto de pesquisa maior 4 4 Este artigo refere-se a notas de uma pesquisa que se encontra em andamento, trazendo alguns resultados preliminares referentes à tese de doutorado que está sendo desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. , que de qualquer forma apresenta contribuições no entendimento desta política que podem ser aprofundadas.

2 DESCENTRALIZAÇÃO NA POLÍTICA E NO CUIDADO: O PERCURSO DO SUS

Para analisarmos a trajetória da APS e a conjuntura de reformas no cuidado, que vem se delineando desde 2016, é necessário fixar algumas questões importantes sobre a organização política e o modelo de cuidados adotados no Brasil. Até a criação do SUS, a ausência de financiamento e de garantias constitucionais fazia com que o cuidado à saúde não configurasse como um direito, mas que fosse determinado pela relação com o mercado de trabalho (COHN, 2020COHN, Amélia. As políticas de abate social no Brasil contemporâneo. Revista Lua Nova, São Paulo, 109: 129-160, 2020.). Um tipo de cidadania regulada (SANTOS, 1979SANTOS, Wanderley G. Cidadania e justiça: a política social na ordem brasileira. Rio de Janeiro: Campus, 1979.), em que a condição de cidadão portador de direitos se dava quando o indivíduo possuía algum vínculo com o mercado de trabalho.

Nesse período as ações em saúde pública tinham um caráter curativista, ou seja, agiam centradas na doença. A partir da década de 1970, com o surgimento do movimento sanitarista ações preventivas começaram a ser realizadas em contextos específicos, através destas experiências o modelo de atenção à saúde do SUS foi sendo constituído (FALLETI, 2010FALLETI, Túlia. Infiltrando o Estado: a evolução da reforma da saúde no Brasil, 1964-1988. Estudos de Sociologia, vol.15, n.29, p.345-368, 2010.). Em oposição àquele modelo de cuidados altamente centralizado e hierarquizado, sem acesso inclusivo à população e com grandes demandas em relação à saúde pública, as mudanças constitucionais de 1988 enfatizavam uma descentralização política. O caráter de federação descentralizada redefiniu competências das esferas de governo, distribuindo o poder político pelo território nacional (ALMEIDA, 2001ALMEIDA, Maria Hermínia Tavares. Federalismo, democracia e governo no Brasil: idéias, hipóteses e evidências. BIB, São Paulo, nº 51, PP. 13-34, 2001.).

A descentralização em políticas de saúde, inicialmente, era vista como uma estratégia de reforma administrativa para melhorar o funcionamento e a qualidade dos serviços, posteriormente, como meio para promover a democracia (BOSSERT, 1998BOSSERT, Thomas. Analyzing the decentralization of health systems in developing countries: decision space, innovation and performance. Soc. Sci. Med. Vol. 47, No. 10, pp. 1513-1527, 1998.). No caso do SUS representou “a descentralização de atividades diretas de prestação de serviços mantendo um grau elevado de coordenação das políticas no governo federal” (HOCHMAN; ARRETCHE; MARQUES, 2007HOCHMAN, Gilberto; ARRETCHE, Marta; MARQUES, Eduardo. Introdução. In: Políticas públicas no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2007., p. 19). Ao governo federal compete a formulação e condução da política nacional de saúde; aos estados, as funções de gestão, coordenação, controle e elaboração; aos municípios o planejamento, a gestão e a coordenação do plano municipal de saúde, bem como a execução de serviços e ações básicas (GERSHMAN, 2004GERSHMAN, Silvia. A democracia inconclusa: um estudo da reforma sanitária brasileira. 2ª ed. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2004.). O município passa a ser um ator central na execução dos serviços de saúde, especialmente na incorporação da APS.

Além da descentralização, o SUS é orientado pelos princípios da universalidade, da integralidade e da equidade, propondo outro modelo de cuidados. O foco na APS representa a conformidade com estes princípios, seguindo exemplos de sistemas de saúde que vinham adotando cuidados primários para qualificar o bem-estar da população, como o modelo cubano e britânico (CÔRTES, 2009CÔRTES, Soraya Vargas. Sistema Único de Saúde: Espaços decisórios e a arena política de saúde. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, 25(7):1626-1633, jul, 2009.).

Em 1978, a Conferência Internacional de cuidados primários à Saúde de Alma-Ata, no Cazaquistão, ressaltou a importância da “concepção de saúde como o estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não simplesmente a ausência de doença ou enfermidade” (OMS, 1978). No âmbito de estudos da saúde coletiva, a concepção de cuidados primários à saúde tenciona uma ampliação do conhecimento e do objeto da clínica.

A partir desta visão de saúde, ocorreu uma reforma da clínica convencional centrada no modelo biomédico, promovendo um deslocamento na maneira de pensar o cuidado, buscando algo que inclua os sujeitos em seus contextos nesse processo. Como, por exemplo, explica Campos (2002CAMPOS, Gastão Wagner de Sousa. A clínica do sujeito: por uma clínica reformulada e ampliada. Saúde Paidéia. São Paulo, Editora Hucitec, 2002, 4-5): “Clínica do Sujeito? Sim uma clínica centrada nos Sujeitos, nas pessoas reais, em sua existência concreta, inclusive considerando-se a doença como parte destas existências”. Nessa perspectiva, para além da análise sobre a doença, os cuidados primários devem incluir o sujeito e preocupar-se com as condições sociais que este terá para obter sucesso em determinado tratamento (CAMPOS, 2002CAMPOS, Gastão Wagner de Sousa. A clínica do sujeito: por uma clínica reformulada e ampliada. Saúde Paidéia. São Paulo, Editora Hucitec, 2002).

Além da ampliação no objeto da clínica, o exercício do cuidado também ganha outros sentidos, pois com base no reconhecimento dos sujeitos é possível pensar em prevenir e promover saúde. Arrouca (1975ARROUCA, Antonio Sergio da Silva. O dilema preventista: contribuição para a compreensão e crítica da medicina preventiva. 1975. 197 f. Tese (Doutorado em Ciências Médicas) Universidade Estadual de Campinas, 1975.) explica que o movimento “preventivista” parte de uma contestação à ausência de racionalidade da medicina curativista, uma vez que ao centrar-se na doença e no tratamento, sem considerar causas e contextos individuais, leva ao encarecimento da atenção médica e à redução do seu rendimento. Starfield (2002STARFIELD, Barbara. Atenção Primária: equilíbrio entre necessidades de saúde, serviços e tecnologia. UNESCO, Ministério da Saúde: Brasília, 2002.), ainda, ressalta a importância da APS para agir com equidade, uma vez que, o olhar ampliado possibilita o manejo de problemas ocasionados por determinantes sociais, difíceis de serem identificados em diagnósticos especializados.

Com base nestas questões, na figura 1 podemos observar a relação estabelecida entre o foco da atenção dos serviços e o sistema de cuidados adotado:

Figura 1:
modelos de cuidados.

Ao pensar em saúde para além da doença e em cuidados como prevenção e promoção, a APS promove uma descentralização do cuidado. Os serviços ofertados na atenção primária vão além da doença e desenvolvem estratégias para prevenir o adoecimento e promover condições saudáveis de vida e bem-estar. Os princípios que corroboram com uma medicina preventiva partem do fato de que qualquer doença evolui como resultado de causas múltiplas, podendo este processo evolutivo ser analisado, previsto e em alguns casos interrompido, impedindo o agravamento da condição de saúde (ARROUCA, 1975ARROUCA, Antonio Sergio da Silva. O dilema preventista: contribuição para a compreensão e crítica da medicina preventiva. 1975. 197 f. Tese (Doutorado em Ciências Médicas) Universidade Estadual de Campinas, 1975.).

Além de possibilitar maior resolutividade dos problemas de saúde ao agir conforme as necessidades e realidades dos indivíduos, este modelo de cuidado, também, representa uma melhor relação custo-benefício uma vez que resolvendo problemas em um serviço básico, a demanda por especialidades e procedimentos mais caros seria menor (PAIM, 2006PAIM, Jairnilson Silva. Desafios para a saúde coletiva do século XXI. EDUFBA: Salvador, 2006.). Dentre os princípios da APS, destaca-se que deve ser o primeiro contato do usuário com o sistema de saúde, deve acompanhar o cuidado à saúde das pessoas ao longo do tempo e fornecer atenção integral, inclusive, encaminhando para outros serviços (STARFIELD, 2002STARFIELD, Barbara. Atenção Primária: equilíbrio entre necessidades de saúde, serviços e tecnologia. UNESCO, Ministério da Saúde: Brasília, 2002.).

No Brasil, a operacionalização deste modelo de cuidado tem na Estratégia Saúde da Família (ESF) o serviço central para a reorientação proposta pela APS, uma vez que o “trabalho da ESF consiste em uma atenção contínua a uma população de território definido” (SANTOS; MISHIMA; MERHY, 2018SANTOS. Liliane Maria dos Santos. Educo(trans)formação: ensino, mutação e aprendizagem como componentes imateriais do trabalho, o caso da gestão local em saúde. Tese (doutorado em Educação) Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2018., p. 862). Este serviço deve ser composto por uma equipe mínima: médico/a, enfermeiro/a, auxiliar ou técnico/a de enfermagem e Agentes Comunitários de Saúde (ACS), podendo incluir equipe de saúde bucal, composta por cirurgião dentista, auxiliar e/ou técnico/a em Saúde Bucal. Cada equipe de ESF deve atender de 2.000 a 3.500 pessoas e cada ACS deve atender em torno de 750 pessoas (BRASIL, 2017). A ESF deve acompanhar as condições de saúde da população do seu território e através do ACS deve realizar o cadastro das famílias, registrar os problemas familiares e sanitários e orientar as pessoas sobre ações de cuidado à saúde.

Algumas imprecisões e ambiguidades podem ser observadas quanto a terminologia utilizada para designar o primeiro nível de atenção à saúde. Primary Health Care (PHC) é o termo internacional que congregou os princípios apontados na Conferência de Alma Ata e o que mais se enquadra com um sistema de saúde universal, integral e de modelo comunitário, semelhante ao adotado pela ESF (MELO et al, 2009MELO, Guilherme Arantes; FONTANELLA, Bruno José Barcellos; DERMAZO, Marcelo Marcos Piva. Atenção básica e atenção primária à saúde: origens e diferenças conceituais. Revista APS. v. 12, n. 2, p. 204-213, abr./jun. 2009.). Entretanto, como é explicado por Melo et al (2009MELO, Guilherme Arantes; FONTANELLA, Bruno José Barcellos; DERMAZO, Marcelo Marcos Piva. Atenção básica e atenção primária à saúde: origens e diferenças conceituais. Revista APS. v. 12, n. 2, p. 204-213, abr./jun. 2009.), alguns anos após esta Conferência o termo (PHC) passou a apresentar uma visão mais seletiva de cuidado, focalizando em populações mais pobres. Segundo os autores (MELO et al, 2019), isso pode ser visto como uma impaciência das agências financiadoras que esperavam soluções mais imediatas, de maneira oposta as mudanças estruturais pensadas para resolver os problemas de desigualdade em saúde.

Atualmente, o Brasil adota Atenção Básica (AB) como sinônimo de Atenção Primária à Saúde (APS). A escolha por AB durante a formulação desta política é referência ao projeto político apresentado pela esquerda democrática brasileira que participava da condução do movimento da reforma sanitária e buscava se distanciar da perspectiva internacional de uma APS seletiva que operaria como uma cesta básica de serviços para pobres (PAIM, 2006PAIM, Jairnilson Silva. Desafios para a saúde coletiva do século XXI. EDUFBA: Salvador, 2006.; CECILIO, REIS, 2018CECILIO, Luiz Carlos de Oliveira; REIS, Arthur Chioro dos. Apontamentos sobre os desafios (ainda) atuais da atenção básica à saúde. Cadernos de saúde pública. V.34(8):e00056917, 2018.; GIOVANELLA, 2018).

Conforme Paim (2006PAIM, Jairnilson Silva. Desafios para a saúde coletiva do século XXI. EDUFBA: Salvador, 2006.), a escolha pela AB representa a defesa desta política como primeiro nível de atenção e, também, como estratégia de reorientação do sistema de saúde. Nas palavras do autor: “Pode-se concluir que a opção política expressa no discurso institucional reconhece a atenção básica como algo fundamental, primeiro ou primordial e não no sentido de elementar, simples ou reduzido, tal como o senso comum refere-se à ‘cesta básica’ de alimentos” (PAIM, 2006PAIM, Jairnilson Silva. Desafios para a saúde coletiva do século XXI. EDUFBA: Salvador, 2006., p. 51). Isso nos permite entender que a escolha por AB no Brasil tinha claros interesses políticos relacionados ao tipo de condução que se pretendia para o SUS, buscando distanciar-se da perspectiva seletiva vinculada a APS.

O que, no fundo, se percebe é uma disputa ideológica quanto ao modelo de cuidados que os Estados devem adotar nesse nível de atenção. Prevalecem duas ideias amplas: uma, referente à atenção de primeiro contato com o usuário no sistema, compreendendo saúde indissociável do desenvolvimento econômico-social e considerando a participação popular (GIOVANELLA, 2018); a outra, como uma “cesta de serviços” composta por respostas a algumas necessidades de grupos populacionais mais pobres (LAVRAS, 2011LAVRAS, Carmen. Atenção Primária à saúde e a organização de redes regionais de atenção à saúde no Brasil. Saúde e Sociedade. São Paulo, v.20, n.4, p.867-874, 2011).

A descentralização política ampliou o poder e a responsabilidade dos municípios para executarem as políticas públicas, de modo que cada Governo municipal pode construir sua rede de Atenção Básica de acordo com seus interesses, vontades e capacidades. A descentralização no cuidado direcionou a atenção para fatores externos da doença, demandando um reconhecimento de suas causas e de seus contextos. Apesar da escolha, durante a década de 1990, de distanciar-se de uma APS seletiva, a PNAB sofreu diversas mudanças em suas diretrizes nos últimos anos. A seguir vamos percorrer os principais marcos regulatórios desta política no Brasil, para buscar entender para aonde suas reformas estão apontando.

3 DO PACS AO PROGRAMA PREVINE BRASIL: A TRAJETÓRIA DA APS

Apesar de não ter alcançado uma cobertura universal em todos os municípios brasileiros, a APS apresenta resultados importantes no que se refere à resolutividade. O número de Internações por Causas Sensíveis à Atenção Básica reduziu de 72,7% em 2001 para 55,2% em 2016, uma média de redução de 24% em internações que podem ser evitadas com a APS (PINTO; GIOVANELLA, 2018PINTO, Luiz Felipe; GIOVANELLA, Ligia. Do Programa à Estratégia Saúde da Família: expansão do acesso e redução das internações por condições sensíveis à atenção básica (ICSAB). Ciência & Saúde Coletiva, 23(6):1903-1913, 2018.). Para reconstruir sua trajetória buscamos, através de uma revisão na legislação federal e em instrumentos normativos, compreender sua formulação e implementação. Alguns fatos são determinantes para entendermos sua construção política e na figura 2 apresentamos os principais marcos dessa trajetória:

Figura 2:
A trajetória da APS no Brasil

Em 1991 foi criado o Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS), que realizava um trabalho de coleta de dados sobre as condições de vida e de saúde da população. Os ACS são burocratas de nível de rua que atuam na implementação de cuidados primários à saúde, coletando dados referentes a um território específico. Como explica Lotta, estes burocratas possuem uma peculiaridade na forma com que desenvolvem a implementação, “pelo fato de serem selecionados entre moradores da própria comunidade, os ACS acabam se tornando atores híbridos, burocratas comunitários, ou seja, têm duplo pertencimento: ao Estado e à comunidade” (2015, p. 91). O pertencimento comunitário faz do ACS um ator fundamental para a aproximação da política pública à realidade de seus usuários, e por isso, central na implementação da APS.

Em 1993, o PACS foi incorporado ao Programa Saúde da Família (PSF) e incluiu os ACS em uma equipe de saúde composta por médico/a, enfermeiro/a e técnico/a de enfermagem. Entretanto, diante do sistema federativo do Brasil e da autonomia dada às unidades subnacionais e aos municípios, a expansão deste programa dependia da capacidade política dos municípios em implementar estas equipes.

Alguns mecanismos foram necessários para garantir uma unidade nas políticas e induzir os governos locais a assumirem funções de gestão das políticas públicas (LIMA, 2005LIMA, Luciana Leite. Gestão da política de saúde no município: a questão da autonomia. 2005. 101 f. Dissertação (Mestrado em Sociologia) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2005.). O processo de implantação do SUS ocorreu de maneira gradual e ao longo da década de 1990 o Ministério da Saúde publicou Normas Operacionais Básicas (NOBs), que regulamentam a operacionalidade das políticas. A NOB-SUS/1996 foi criada buscando, entre outras coisas, fortalecer e induzir a APS e criou o Piso da Atenção Básica (PAB) estabelecendo uma transferência fixa per capita de recursos federais para os municípios implantarem serviços básicos de saúde.

Com o PAB fixo os municípios passaram a receber um valor de acordo com o número de habitantes, posteriormente com o PAB variável foram incluídas transferências de acordo com a adesão do município a determinados programas, como o PSF ou o PACS (MARQUES; MENDES, 2002MARQUE, Rosa Maria; MENDES, Áquilas. A política de incentivos do Ministério da Saúde para atenção básica: uma ameaça à autonomia dos gestores municipais e ao princípio da integralidade? Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, 18: 163-171, 2002.). A criação do PAB incentivou o aumento do número de municípios desenvolvendo programas e ações no nível primário de atenção, onde se destaca o PSF, fator determinante para a adequação do SUS ao modelo assistencial proposto em sua formulação (OCKÉ-REIS, 2012OCKÉ-REIS, Carlos Octávio. SUS o desafio de ser único. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2012.).

A expansão da ESF teve maior impacto nacionalmente a partir de 2004, quando foi criado o Programa de expansão e consolidação da saúde da família (PROESF). Através deste programa, o governo federal em parceria com o Banco Mundial passou a dispor de recursos financeiros para a habilitação e estruturação de equipes de saúde da família em municípios com mais de cem mil habitantes (SCHIMITH et al, 2017SCHIMITH, Maria Denise et al. Precarização e fragmentação do trabalho na estratégia de saúde da família: impactos em Santa Maria. Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, Fundação Oswaldo Cruz, Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, v.15, n. 1, p. 147-162, 2017.). Houve um crescimento significativo a partir do PROESF: em 2000 apenas 1.753 municípios tinham equipes de saúde da família, o que representava uma cobertura nacional de 9,20%, em 2016 havia 5.379 municípios com funcionamento da ESF, representando 63,48% de cobertura nacional (SCHIMITH, 2017; MENICUCCI E GOMES, 2018).

A portaria nº 399 de 2006 (BRASIL, 2006a) Pactua diretrizes fundamentais para a consolidação do SUS, avançando na descentralização e na municipalização da gestão em saúde. O PSF vira ESF, ganha diretrizes operacionais e maior formalização da política enquanto processo de trabalho. Ainda em 2006, foi criada a Política Nacional de Atenção Básica (PNAB), formalizando a ESF como serviço central deste nível de atenção e definindo como responsabilidade da gestão municipal o planejamento e implementação destes serviços (BRASIL, 2006b).

Em 2011, a Portaria nº 2.488 apresenta uma edição da PNAB, qualificando a política através de médicos programas como Programa de Melhoria de Acesso e da Qualidade (PMAQ) e o Programa Mais Médicos (PMM) (MELO et. al, 2018MELO, Eduardo Alves; MENDONÇA, Maria Helena Magalhães de; OLIVEIRA, Jarbas Ribeiro de; ANDRADE, Gabriella Carrilho Lins de. Mudanças na Polítiva Nacional de Atenção Básica: entre retrocessos e desafios. Saúde debate. Rio de Janeiro, V. 42. Número especial 1, 38-51, 2018.). Mesmo com impactos distintos, especialmente quando comparados municípios de pequeno e grande porte, é incontestável a importância da ESF no desenvolvimento de mudanças no modelo de cuidados (LAVRAS, 2011LAVRAS, Carmen. Atenção Primária à saúde e a organização de redes regionais de atenção à saúde no Brasil. Saúde e Sociedade. São Paulo, v.20, n.4, p.867-874, 2011).

Em 2016, após o impeachment da presidenta Dilma Roussef, uma nova agenda política passa a ser incorporada no país, representando uma quebra no seguimento das políticas sociais (COHN, 2020COHN, Amélia. As políticas de abate social no Brasil contemporâneo. Revista Lua Nova, São Paulo, 109: 129-160, 2020.). A EC nº 95, institui um regime de austeridade fiscal sobre os gastos sociais, determinando um teto de investimentos para despesas primárias e estimulando um processo acelerado de mudanças nas políticas sociais. Menicucci e Gomes (2018) explicam esse processo:

Emerge no Brasil um novo discurso que expressa uma inversão de prioridades: o ajuste das contas públicas passa a ser um fim em si mesmo, embora justificado pelo objetivo de retomada do crescimento, e palavras como diminuição das desigualdades, efetivação de direitos sociais ou equidade desaparecem do vocabulário político, substituídas por outras como incentivos ao mercado, modernização, reformas, desregulação (MENICUCCI; GOMES, 2018, p. 191).

Estas reformas chegam à ESF em 2017 com a Portaria 2.436 que revoga a PNAB de 2011 e estabelece uma revisão nas diretrizes para a organização da Atenção Básica. Dentre as mudanças estabelecidas, nota-se o fim da obrigatoriedade de 100% de cobertura do território por ACS, o que indica uma provável redução no número desses profissionais (GIOVANELLA, 2018). A portaria também cria a modalidade de equipe de Atenção Primária (EAP), que trabalha com as mesmas diretrizes da ESF, porém sem a obrigatoriedade de uma equipe mínima e com a carga horária dos profissionais mais flexível, permitindo contratos de até 10h semanais (BRASIL, 2017).

A Portaria nº 930 de maio de 2019 institui o Programa “Saúde na Hora” que tem por objetivo ampliar o acesso e a cobertura de APS, possibilitando que um maior número de usuários possa acessar o serviço e tenta reduzir o fluxo de atendimento em emergências hospitalares (BRASIL, 2019a). Este programa consiste na ampliação da carga horária de funcionamento das equipes de ESF, criando três formatos de adesão que exigem a configuração de Unidades de Saúde que concentrem de três a seis equipes de ESF, sem a obrigatoriedade de ACS e com o intuito de promover um revezamento dos profissionais para atender em turnos estendidos - 12h e 11h horas ininterruptas, possibilitando atendimento noturno e aos finais de semana.

Os municípios que aderirem ao “Saúde na Hora” recebem um incentivo financeiro do Governo Federal, de acordo com a modalidade de funcionamento que se encaixarem. Porém, existem aspectos importantes a serem ressaltados, ao passo que este programa pode ampliar a cobertura de APS nos municípios, ele também, pode criar Unidades de Saúde concentradas em um local e reduzir o número de equipes simples espalhadas pelo território. Além disso, o fato de não exigir a cobertura com ACS reduz a possibilidade de realizar um trabalho mais próximo das comunidades com busca ativa sobre os problemas de saúde da população.

Ainda em 2019, como reformulação do Programa Médicos pelo Brasil, o Governo Federal autorizou que os municípios possam instituir uma Agencia para o Desenvolvimento da Atenção Primária à Saúde (ADAPS). Que consiste em permitir que os municípios concedam a execução de políticas da atenção primária à saúde para serviços autônomos, empresas de direito privado a quem o poder público delega a prestação dos serviços de APS (BRASIL, 2019b).

Outra mudança significativa está relacionada ao financiamento de custeio da Atenção Primária a Saúde. No dia 12 de novembro de 2019, o Ministério da Saúde publicou a Portaria nº 2.979 que institui o Programa Previne Brasil, apresentando mudanças no financiamento da atenção primária. De acordo com esta portaria, o financiamento federal não seguirá mais o percentual per capita do PAB, mas sim um novo percentual definido por: I) Capitação ponderada; II) Pagamento por desempenho e; III) Incentivo para ações estratégicas (BRASIL, 2019c).

A “capitação ponderada” consiste em um critério para definição da demanda da ESF de acordo com as condições de vulnerabilidades sociais das famílias e dos territórios. Deverão ser prioridades no cadastro das famílias as condições de vulnerabilidades socioeconômicas e o perfil demográfico. O critério de vulnerabilidade socioeconômica contempla pessoas beneficiárias do Programa Bolsa Família, do Benefício de Prestação Continuada (BPC) e/ou benefício previdenciário no valor de até dois salários mínimos (BRASIL, 2019c).

O “pagamento por desempenho” consiste em um cálculo a partir do cumprimento de metas pelas equipes e condicionado ao tipo de equipe. Já o cálculo para “incentivo de ações estratégicas”, consiste em investimentos para as unidades que desempenham ou possuem algum tipo de ação específica - como Equipe de saúde bucal, Equipe de consultório na rua, Equipe de saúde da família ribeirinha, entre outras (BRASIL, 2019c). Nota-se que essa portaria altera os critérios de financiamento da ESF e, também, modifica as normas para cadastro das famílias. Com o critério de “capitação ponderada” o atendimento passa a priorizar pessoas em condições sociais mais vulneráveis, não restringe o atendimento a qualquer pessoa que procurar o serviço de saúde, mas focaliza as ações em grupos populacionais mais vulneráveis.

Percebemos nesse processo de reformas, uma dificuldade existente nos sistemas de saúde universais: como oferecer acesso universal com equidade? Esta dificuldade se acentua em contextos de alta desigualdade social, como é o caso do Brasil. O risco desse paradigma é cair na oferta seletiva de serviços focalizados nos mais pobres e, como descreve Giovanella (2018, p. 2) “expandir cobertura com seguros focalizados (privados, públicos ou subsidiados) com cesta de cuidados básicos selecionados, cristalizando iniquidades”. Uma APS mais seletiva torna as desigualdades sociais mais evidentes ao selecionar as pessoas com as piores condições de vida e saúde para serem atendidas.

É possível observar na trajetória nacional uma redução na centralidade da ESF e do ACS, principais mecanismos para a reorientação do modelo de cuidados adotado pela PNAB. Ainda, houveram mudanças no financiamento por critérios de vulnerabilidade, desempenho e ações desenvolvidas e uma flexibilização com o setor privado para a prestação dos serviços de APS. As mudanças na forma de financiamento estão em processo de incorporação, dividindo a agenda com a crise sanitária provocada pela Covid-19, de modo que ainda é difícil explicar os impactos sobre os sistemas de saúde. Porém, nestas últimas reformas é possível perceber que a autonomia municipal é, mais do que nunca, determinante, pois o Governo Federal ampliou os tipos de equipes, favoreceu a intermediação com prestadores de serviços, tornou opcional o número de ACS, deixando as escolhas para o Governo Municipal.

4 O CENÁRIO DA APS EM PORTO ALEGRE

Buscamos analisar o contexto local de Porto Alegre, caracterizando a organização da APS, suas escolhas na implementação e em relação também a política nacional. Porto Alegre é a capital do estado do Rio Grande do Sul e possui 1.481.019 habitantes (IBGE, 2018). Conforme Lima (2005LIMA, Luciana Leite. Gestão da política de saúde no município: a questão da autonomia. 2005. 101 f. Dissertação (Mestrado em Sociologia) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2005.), o município enquadrou-se em 1998 na modalidade de Gestão do Sistema de Saúde, ampliando sua rede municipal de serviços e criando novas estruturas gerenciais para desempenhar as responsabilidades recebidas pela descentralização. A gestão, planejamento e distribuição dos serviços de saúde municipais ocorrem conforme uma divisão em 17 Distritos Sanitários (DS), os quais têm os limites geográficos e a população definida de acordo com o estabelecimento dos serviços, de forma regionalizada (PORTO ALEGRE, 2018).

Cada DS apresenta uma realidade social distinta, desde características ambientais, geográficas, econômicas e de acesso a serviços públicos. A gestão municipal segue a lógica da descentralização, estabelecendo oito Gerências Distritais (GD), as quais são responsáveis pela gestão de dois ou três DS, acompanhando a operacionalização das estratégias de planejamento e prestando-se como referência política para os serviços de saúde dos DS (PORTO ALEGRE, 2018).

A configuração da rede de APS e do quadro de trabalhadores da Secretaria Municipal de Saúde é definida por diversos vínculos empregatícios: temporários, estatutários, terceirizados e contratos por convênios com instituições privadas. Sempre existiu uma empresa/órgão como “intermediária” na prestação dos serviços de APS, subordinada à gestão municipal na contratação das equipes. Em 2011, o Município decidiu criar uma fundação pública de direito privado para gerenciar estes serviços, o Instituto Municipal de Estratégia Saúde da Família (IMESF). Na época, o Conselho Municipal de Saúde e sindicatos de profissionais da saúde se posicionaram contra a Fundação e demandavam que os trabalhadores fossem contratados no regime estatutário, já que, sob a gestão do IMESF, passaram a ser contratados por meio de concurso público, porém com vínculo celetista.

Em 2013 os sindicatos contrários à modalidade de contratação de profissionais adotada pelo IMESF, instauraram um processo judicial apontando a inconstitucionalidade na Lei Municipal que transferia a uma fundação a prestação direta de serviços públicos. No dia 24 de setembro de 2019 o Supremo Tribunal Federal reconheceu a inconstitucionalidade da Lei de criação e determinou a extinção do IMESF.

Desde então, um clima de incerteza se abateu sobre as equipes, com a decisão do Supremo a expectativa é de que todos os profissionais da APS contratados pelo IMESF sejam demitidos e que uma nova forma de composição das equipes seja apresentada. No relatório de gestão do primeiro quadrimestre de 2020 consta um total de 287 afastamentos definitivos de profissionais do IMESF, sendo entre estes 90 ACS, a cobertura municipal por equipes de ESF em março de 2019 era de 54,8%, no mesmo período de 2020 foi de 52,7% (PORTO ALEGRE, 2020). Em dezembro de 2019 foram firmados Termos de Colaboração entre o Executivo municipal e três Organizações Sociais locais com a finalidade de realizar a execução de atividades de Atenção Primária à Saúde do Município, incluindo a adesão ao Programa Saúde na Hora e habilitação de EAP e ESF.

As contratações foram realizadas com três grupos hospitalares: a Irmandade Santa Casa de Misericórdia, que ficou responsável pelas GDs Centro, Noroeste/Humaitá Navegantes/Ilhas, Norte/Eixo Baltazar e Leste/Nordeste; a Sociedade Sulina Divina Providência com as GDs: Glória/Cruzeiro/Cristal e Partenon/Lomba do Pinheiro; e a Associação Hospitalar Vila Nova, responsável pelas US das GDs: Sul/Centro Sul e Restinga/Extremo Sul. No mapa a seguir podemos observar a distribuição territorial das Gerências Distritais no município, o que possibilita visualizar como ficou dividida a gestão da APS:

Mapa 1:
divisão das Gerências Distritais de Porto Alegre.

A transição das Unidades de Saúde para as Organizações Sociais encontra-se em andamento e depende da demissão dos profissionais contratados pelo IMESF. Outro ponto importante desta transição a ser destacado, refere-se a situação de ACS, profissionais que não podem ser contratados por instituições privadas, diante disso tem ocorrido uma redução razoável em sua cobertura. Em 2019, o município contava com 746 ACS, 29% de cobertura, já em 2020 o número de ACS era 606, representando uma cobertura de 23,5%, está prevista a nomeação via concurso público para estes profissionais em 2021 (PORTO ALEGRE, 2020). Entretanto, pode-se considerar este percentual pequeno tendo em vista a importância da presença deste profissional para a efetivação da ESF.

A Gestora Municipal levanta alguns questionamentos interessantes quanto as novas contratações:

Cada território vai ter a sua gestão? Vai fazer o seu desenho? Nós vamos ter uma direção única? Claro que respeitando as especificidades, mas isso vai ter uma condução? Nós vamos ter um espaço de diálogo e de construção conjunta? É isso que se desenha? É isso que tá sendo proposto? (Gestora Municipal entrevistada, março 2020).

Os pontos levantados pela gestora ressaltam a divisão do território e a capacidade da gestão municipal coordenar serviços que são delegados a prestadores de serviço, possibilitando a existência de distintos desenhos de APS dentro do município. E, também, para um antigo paradigma relacionado às consequências de uma administração pública indireta, seria esta, de fato, mais efetiva e viável?

No Relatório de Gestão do primeiro quadrimestre de 2020, consta a implantação de três Unidades de Saúde de turno estendido (Saúde na Hora), mas também, consta o fechamento de seis Unidades que atuavam como equipes simples dentro do território. A justificativa apresentada para o fechamento é de uma “reorganização” das unidades e de que a população que era assistida pelas equipes que deixaram de existir foram referenciadas para Unidades maiores (PORTO ALEGRE, 2020).

Este processo é explicado pela entrevistada:

As equipes simples que tavam no território, tipo equipe com um médico, um enfermeiro... a tendência é deixar de existir e ser as “Clínicas de Família” é o desenho que tá já em alguns locais (Gestora Municipal entrevistada, março 2020).

Percebemos que estas mudanças estão alterando a dinâmica da rede de APS, não existe uma redução significativa na cobertura, porém o desenho das equipes está se modificando. Com o fim da obrigatoriedade de ACS as ações de busca ativa nas comunidades serão reduzidas, concentrando as equipes em centros de saúde maiores, como as “Clínicas da Família” amplia-se a cobertura, porém reduzem a presença dos serviços nas comunidades.

Isto nos aproxima do, já mencionado, tensionamento presente em relação a modalidade de APS: abrangente ou seletiva? Ao reduzir equipes simples dentro do território e concentrar o serviço em “Clínicas de Família” focalizados em atendimentos ambulatoriais de um grande conjunto populacional, qual o espaço que se mantém para cuidar do sujeito e de seu contexto?

Tem questões que não tem como a gente controlar e dizer “é isso ou aquilo outro”, o que eu vejo é que a gente tem um desenho aí que eu acho que não é só nacional, brasileiro, mas de um cenário também local do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, de uma proposta que vai em uma direção que não é do movimento sanitário, não é da saúde coletiva (Gestora Municipal entrevistada, março 2020).

Este distanciamento da saúde coletiva refere-se às contradições que são expostas nessas reformas: ao passo que a APS prevê criação de vínculo, cuidado ampliado, identificação de demandas sanitárias e comunitárias (STARFIELD, 2002STARFIELD, Barbara. Atenção Primária: equilíbrio entre necessidades de saúde, serviços e tecnologia. UNESCO, Ministério da Saúde: Brasília, 2002.), percebemos um movimento de distanciamento destas estratégias, ao possibilitar desenhos de equipes com um número menor de ACS e com menor inserção comunitária.

O avanço neoliberal nas escolhas sobre o direcionamento das políticas de saúde acompanha e reflete nas escolhas tomadas pelo município, alterando o modelo de cuidados primários ofertados à população. Estas mudanças estão em curso, de forma que, ainda, é impreciso trazer explicações quanto a seus efeitos, cabendo ao momento gerar problematizações a respeito da conjuntura que se desenha para esta política.

4.1 “O QUE A GENTE PODE ESPERAR?”

Percebemos que as reformas políticas que estão ocorrendo sobre os cuidados primários à saúde, conduzem a uma modalidade mais seletiva, serviços mais concentrados a grupos populacionais específicos e com redução da atuação sobre as questões comunitárias, aproximando-se do modelo que o Brasil buscava se distanciar quando optou por adotar AB, em detrimento de APS. Tem-se por prioridade cadastrar a população mais vulnerável do território, ampliar o acesso de serviços concentrados em clínicas que agrupam até seis equipes de ESF, reduzir o fluxo nas emergências dos hospitais, mas será que essa modalidade de atendimento, que vem sendo adotada, compreende um olhar para além da doença?

A conjuntura crítica do cuidado pode ser caracterizada, conforme Cohn (2020COHN, Amélia. As políticas de abate social no Brasil contemporâneo. Revista Lua Nova, São Paulo, 109: 129-160, 2020.), não necessariamente pela “destruição” das políticas sociais, mas pela sua desconstrução, sem alterar o formato, o sistema vem sendo desidratado por uma racionalidade de mercado. Com uma restrição de recursos e contratação de profissionais, seguindo um processo acelerado de contratação de instituições públicas de direito privado, privatizando a administração pública (COHN, 2020COHN, Amélia. As políticas de abate social no Brasil contemporâneo. Revista Lua Nova, São Paulo, 109: 129-160, 2020.). É importante problematizar como as equipes de ESF estão desempenhando suas ações, analisar a capacidade de condução da gestão municipal frente à reconfiguração da rede e, especialmente, compreender qual cuidado está sendo ofertado pela APS.

Tem várias formas de tu acabar com o Sistema Único de Saúde, tu pode fazer não dar certo e daí tu tem a opinião pública que vai lá em baixo como a gente tem escutado. Se a gente tem um Presidente que com tudo que tá acontecendo, com a pandemia do coronavírus, vai nos meios de comunicação dizer que é “histeria”, o que a gente pode esperar? (Gestora Municipal entrevistada, março 2020).

A gestora se pergunta o que pode esperar de um governo que trata de uma crise sanitária como “histeria”? E no âmbito municipal emergem questões sobre o que podemos esperar de uma gestão da APS fatiada entre hospitais privados? Como estas organizações hospitalares irão conduzir os cuidados primários à saúde? Em ambos os questionamentos está atravessada a possibilidade da política de saúde olhar para indivíduos e não para doenças, para o cuidado à saúde como um direito e não como um serviço que pode ser medido pelo valor de mercado.

As respostas dessas questões e as suas consequências ainda são incertas, no caso de Porto Alegre, o processo de transição está acontecendo e representa reflexos de medidas adotadas no âmbito federal, como a possibilidade de flexibilização na contratação de prestadores de serviços para APS, a redução no número de ACS e o redesenho das equipes.. O papel do município na implementação desta política é central, uma vez que parte de escolhas da Gestão Municipal a forma como os profissionais serão contratados, os territórios que serão atendidos e o modelo de funcionamento e acesso do serviço de saúde.

A descentralização na política se mantém e até mesmo reforça a autonomia dos governos municipais para constituírem sua rede de atenção à saúde. Entretanto, o cuidado parece estar entrando em um processo acelerado de concentração sobre a doença, reduzindo ações que possibilitavam pensar nos sujeitos e em seus contextos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Desde o movimento sanitarista que deu origem ao SUS, a adoção de cuidados primários é considerada fundamental para aumentar a resolutividade do sistema de saúde. Ao analisar a trajetória da APS no Brasil percebemos um longo caminho até sua formalização enquanto política nacional, porém nos últimos quatro anos, mudanças em sua regulamentação estão flexibilizando princípios basilares de seu processo de trabalho.

A exemplo disso, a obrigatoriedade de apenas um ACS por equipe de ESF, bem como a criação de outras modalidades de equipes, fez com que ampliassem as opções para o município desenhar sua rede de APS, o que pode abrir margem para redução de profissionais neste nível de atenção. O Governo Federal ao passo que torna flexível a composição das equipes, também, proporciona maior espaço para articulação com setores privados na prestação dos serviços. Estas alterações evidenciam o tensionamento quanto ao modelo de cuidado adotado pela APS - seletivo ou abrangente - facilitando a implementação de serviços mais seletivos, focalizados aos mais vulneráveis, ao contrário da lógica constituinte da ESF, de um cuidado abrangente ao indivíduo, ao seu núcleo familiar e a sua comunidade.

Este estudo buscou contribuir com uma análise da trajetória da APS no Brasil e o contexto que pode ser observado desta política no município de Porto Alegre. Foi possível observar que algumas escolhas tomadas nos primeiros anos de formulação das políticas de saúde do SUS vem sendo flexibilizadas. Depois de três décadas de funcionamento, as disputas em torno do projeto político para condução do SUS têm resultado em reformulações da APS que, como destaca Giovanella (2018), aproximam-se a uma abordagem de “atenção primária neo-seletiva”, restringindo o alcance dos cuidados à saúde neste nível de atenção.

Por fim, apresentamos menos diagnósticos e mais sintomas para problematizar: Quais os efeitos dessas reformas sobre os princípios da universalidade, integralidade e equidade do SUS? Com a redução no número de ACS, de que maneira a ESF irá manter sua abordagem comunitária e o monitoramento das condições de saúde do seu território? Qual o planejamento que OS apresentam para trabalhar com a estratégia que conduz a promoção e prevenção da saúde? Essa análise sugere que o projeto político social-democrata da formulação da APS vem sendo impactado pela racionalidade neoliberal, o que fragiliza e a coloca a mercê de políticas de governo, tais como observamos claramente em Porto Alegre, porém sem a sustentação adequada enquanto política de Estado.

Estas mudanças na racionalidade do Estado em relação às políticas sociais têm como resultado uma organização dos cuidados dualizada: mercadorizada para quem pode pagar e privatizada para quem não pode, deixando uma “lacuna no cuidado” para as famílias dependentes do Estado (FRASER, 2020). Resta saber os efeitos dessa lacuna na reprodução social, na economia, na manutenção dos vínculos sociais, na condição de vida e sobrevivência das pessoas.

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  • 1
    Recebido em 28/9/2020, aceito em 25/8/2021.
  • 4
    Este artigo refere-se a notas de uma pesquisa que se encontra em andamento, trazendo alguns resultados preliminares referentes à tese de doutorado que está sendo desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Jan 2022
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2021

Histórico

  • Recebido
    28 Set 2020
  • Aceito
    25 Ago 2021
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