Acessibilidade / Reportar erro

Dilemas éticos e atos ilícitos na enfermagem: reflexões sobre a (des)ordem jurídica

RESUMO

Objetivos:

refletir sobre aspectos do ordenamento jurídico que envolvem situações de dilemas éticos e atos ilícitos aplicadas em processos judiciais relacionados a profissionais de enfermagem.

Métodos:

ensaio teórico-reflexivo ancorado em concepções emitidas por órgão de classe da enfermagem brasileira, embasado pelos pareceres técnicos, em articulação com exemplos extraídos de julgados do Superior Tribunal de Justiça.

Resultados:

as fontes jurídicas demonstraram a necessidade de se respaldarem as práticas de enfermagem por meio da compreensão devida e clara das noções abordadas. Com efeito, os dilemas éticos ligados à prática profissional geralmente se referem ao impacto psicológico de ter que agir diferente do que se sente moral, ética ou profissionalmente apropriado.

Considerações Finais:

a reflexão foi orientada por questões de cunho conceitual e legal que envolvem a prática de enfermagem, apontando para a necessidade de vigilância dos efeitos da desordem jurídica provocada pela legislação vigente, os quais podem trazer implicações para a segurança jurídica dos profissionais.

Descritores:
Enfermagem; Ética; Legislação de Enfermagem; Direito Penal; Jurisprudência

ABSTRACT

Objectives:

to reflect on aspects of the legal system that involve situations of ethical dilemmas and illegal acts applied in legal proceedings related to nursing professionals.

Methods:

theoretical-reflective essay anchored in conceptions issued by a Brazilian nursing class body, based on technical opinions, in articulation with examples extracted from judges of the Superior Court of Justice.

Results:

the legal sources demonstrated the need to support nursing practices through a due and clear understanding of the notions addressed. Indeed, ethical dilemmas linked to professional practice usually refer to the psychological impact of having to act differently from what feels morally, ethically, or professionally appropriate.

Final Considerations:

the reflection was guided by conceptual and legal issues involving nursing practice, pointing to the need to monitor the effects of legal disorder caused by current legislation, which may have implications for the legal security of professionals.

Descriptors:
Nursing; Ethics; Legislation, Nursing; Criminal Law; Jurisprudence

RESUMEN

Objetivos:

reflexionar sobre aspectos del ordenamiento jurídico que implican situaciones de dilemas éticos y actos ilícitos aplicadas en procesos judiciales relacionados a profesionales de enfermería.

Métodos:

ensayo teórico-reflexivo ancorado en concepciones emitidas por órgano de enfermería brasileña, basado por pareceres técnicos, en articulación con ejemplos extraídos de juzgados del Superior Tribunal de Justicia.

Resultados:

las fuentes jurídicas demostraron la necesidad de respaldar prácticas de enfermería mediante la comprensión debida y clara de las nociones abordadas. Efectivamente, los dilemas éticos relacionados a práctica profesional generalmente referidos al impacto psicológico de tener que actuar diferente del que se siente moral, ética o profesionalmente apropiado.

Consideraciones Finales:

la reflexión fue orientada por cuestiones de acuño conceptual y legal que implican la práctica de enfermería, apuntando para la necesidad de vigilancia de los efectos de la desorden jurídica provocada por legislación vigente, los cuales poden traer implicaciones para la seguridad jurídica de los profesionales.

Descriptores:
Enfermería; Ética; Legislación de Enfermería; Derecho Penal; Jurisprudencia

INTRODUÇÃO

Os preceitos éticos e legais incorporados no bojo das práticas de enfermagem (disciplina comprometida com a saúde e qualidade de vida das pessoas, famílias e comunidades) envolvem o respeito à vida, à dignidade e aos direitos humanos em todas as suas dimensões. Tais preceitos funcionam como disposições normativas e regras de códigos da profissão em causa, acrescentando se ou incluindo-se certos princípios, significados e conceitos de alçada jurídica(11 Carvalho V. Sobre a Lex-Art e a arte da enfermagem: a (inter)dependência entre verdade, necessidade e vontade de fazer, ensinar e investigar. São Caetano do Sul - SP: Editora Yendis; 2014.).

No Brasil, além de disciplina de formação profissional e regida nos termos da educação superior, a enfermagem é uma prática social legítima e regulamentada por legislação específica. Por isso, é submetida a normas regulamentares e imposições legais um tanto quanto formalizadas, segundo termos e preceitos éticos ou deontológicos, os quais, também, de pertinência lógica e jurídica às ações profissionais específicas(11 Carvalho V. Sobre a Lex-Art e a arte da enfermagem: a (inter)dependência entre verdade, necessidade e vontade de fazer, ensinar e investigar. São Caetano do Sul - SP: Editora Yendis; 2014.).

Por ser ainda uma profissão nova, em vias de se fazer e de se dar a reconhecer, nos termos da enfermeira e filósofa Vilma de Carvalho, professora emérita da Universidade Federal do Rio de Janeiro, dissonâncias conceituais e problemas envolvendo ordenamento jurídico vêm sendo observados nos textos de processos judiciais. Diante disso, a posição da reflexão aqui desenvolvida confere com exposições plausíveis, mormente no que se relaciona aos argumentos e justificativas capazes de ajudar na compreensão do agir profissional, no sentido de acrescentar mais clareza na abordagem jurídica dos atos ilícitos (negligência, imperícia e imprudência) e especialmente dos dilemas éticos relacionados às ações dos profissionais de enfermagem.

No âmbito dos problemas éticos contemporâneos, compreende-se a necessidade primaz de se discorrer sobre o emprego do termo “dilema”, especialmente no que diz respeito às particularidades e entrecruzamentos dos campos da Enfermagem e do Direito. Esse tema remete à premiada obra literária “Escolha de Sofia”, de William Styron, em 1979, na qual uma mãe, prisioneira no campo de concentração de Auschwitz durante a Segunda Guerra Mundial, recebe uma cruel opção de escolher entre seus dois filhos, um para ser executado e outro para permanecer vivo consigo(22 Styron Junior WC. Sophie’s Choice. New York: Random House; 1979. 576 p.). A obra enquadra o dilema como um problema que tem, em regra, duas soluções: uma sobre o que é permitido fazer e outra sobre aquilo que o sentimento pessoal, no momento enfrentado, indica fazer(22 Styron Junior WC. Sophie’s Choice. New York: Random House; 1979. 576 p.). As duas soluções culminam por não se apresentarem completas como um todo: eis que, entre o que se pode fazer e aquilo que se quer fazer, acabam por surgir certas dúvidas.

Já sobre a polissêmica palavra “ética”, recorre-se ao filósofo brasileiro Mário Sérgio Cortella, que a considera sinteticamente como:

o conjunto de valores e princípios que usamos para responder a três grandes questões da vida: (1) quero? (2) devo? e (3) posso? Pois, nem tudo que eu quero, eu posso; nem tudo que eu posso, eu devo; e nem tudo que eu devo, eu quero. Você tem paz de espírito quando aquilo que você quer é ao mesmo tempo o que você pode e o que você deve(33 Cunha L. O que é Ética? Mário Sergio Cortella [Internet]. Luis Cunha; 2014 May 12. [cited 2022 Aug 10]. Video: 7 min 52 seg. Available from: https://www.youtube.com/watch?v=2gVCs2fIILo
https://www.youtube.com/watch?v=2gVCs2fI...
).

Ao se articular esses dois termos, “dilemas éticos”, pode-se depreender que se referem ao impacto psicológico de ter de agir diferente do que se sente moral, ética ou profissionalmente apropriado(44 Ricciardelli R, Johnston MS, Bennett B, Stelnicki AM, Carleton RN. “It Is Difficult to Always Be an Antagonist”: ethical, professional, and moral dilemmas as potentially psychologically traumatic events among nurses in Canada. Int J Environ Res Public Health. 2022;19(3):1454. https://doi.org/10.3390/ijerph19031454
https://doi.org/10.3390/ijerph19031454...
). Os dilemas éticos fazem nexos com questões cotidianas presentes no trabalho dos profissionais de enfermagem, os quais enfrentam situações bastante sensíveis em sua práxis, no âmbito das relações interpessoais entre profissionais e pacientes-famílias-comunidades.

Com efeito, os processos éticos relacionados às práticas de enfermagem instaurados no âmbito de órgãos de fiscalização da profissão vêm revelando elevada frequência de infrações cometidas predominantemente por profissionais em início de carreira, mais comumente técnicos de enfermagem e aqueles em atividades que não são de sua competência ou que envolvem atos ilícitos de negligência, imperícia e imprudência(55 Ues LV, Pereira LH, Bastos RMAFP, Ribeiro LCM, Silva GO, Campos KO, et al. Ethics in nursing: categorization of legal processes. Rev Bras Enferm. 2022;75(3):e20210099. https://doi.org/10.1590/0034-7167-2021-0099
https://doi.org/10.1590/0034-7167-2021-0...
). Tal perspectiva demarca a necessidade de (re)conhecimento da legislação vigente, o devido emprego de certas noções e conceitos que trazem potenciais implicações no campo jurídico, mas também uma (re)visão crítica e bem ponderada sobre o ordenamento jurídico atinente às competências de profissionais de enfermagem no país.

Com base na abordagem da noção de “dilemas éticos”, vislumbra-se ainda a necessidade de aclarar por que as insatisfações com a profissão e problemas laborais em si não coadunam com o que se compreende por dilema ético. Desse modo, atrasos de rendição, acúmulo de serviço, falta de pessoal no setor e questões pessoais com outros profissionais não são compreendidos juridicamente como dilemas éticos, já que estes não colocam em vulnerabilidade a capacidade de tomada de decisão entre o que se pode e o que se deve fazer. É preciso pacificar, ainda, a ideia de que errar sem intenção (dolo) por imperícia, imprudência e/ou negligência também não deve ser caracterizado como dilemas éticos, mas infrações passíveis de punição deontológica, civil e criminal.

Tal imbróglio é constantemente observado em textos jurídicos, inclusive técnicos, os quais reportam casos envolvendo os profissionais de enfermagem, o que se mostra um aspecto sensível para este estudo. Assim, parte-se da premissa de que os profissionais de enfermagem precisam trabalhar de acordo com as leis regedoras da profissão, garantindo o bem-estar da equipe, os itens necessários para sua proteção, bem como dos pacientes assistidos, evitando prejuízos à saúde humana e coletiva. Isso demanda (re)conhecimento de sua legislação, no sentido de avançarem a consciência ética/cidadã e a responsabilidade político-social que estão imbricadas em suas práticas. Para tanto, a compreensão e reflexão sobre o emprego juridicamente acertado das noções aqui apontadas buscam ajudar na abordagem de certos aspectos ético-legais relacionados às atividades específicas ou peculiares da profissão, no complexo universo da saúde, ao tempo que demonstram a necessidade de ser ponderado o ordenamento jurídico que considera tais atividades.

OBJETIVOS

Refletir sobre aspectos do ordenamento jurídico que envolvem situações de dilemas éticos e atos ilícitos aplicados em processos judiciais relacionados a profissionais de enfermagem.

MÉTODOS

Trata-se de um ensaio teórico-reflexivo ancorado em concepções emitidas pelo Sistema Cofen/Coren responsável pela fiscalização da profissão de enfermagem no Brasil, sendo embasado pelos pareceres técnicos deste Sistema em articulação com exemplos extraídos de julgados do Superior Tribunal de Justiça (STJ).

Para o seu desenvolvimento, foram acessados casos com decisões nos últimos três anos (de 2020 a 2022), utilizando as palavras-chave “enfermagem”, “imprudência”, “imperícia” e “negligência”, no endereço eletrônico: https://www.stj.jus.br. Ao todo, foram identificados 1.059 casos, dos quais, após leitura integral, foram selecionados três que se enquadravam ao objetivo traçado para este estudo.

A discussão foi pautada pelo emprego da Teoria da Tipicidade Conglobante, de Eugenio Raúl Zaffaroni(66 Zaffaroni ER, Pierangeli JH. Manual de Direito Penal Brasileiro: Parte Geral. São Paulo: Revista dos Tribunais; 2010. 792 p.), que destaca a necessidade de se observar o ordenamento jurídico como um todo para tipificar uma conduta como antijurídica, isto é, a tipicidade conglobante demonstra aquilo que, de fato, está proibido por determinado dispositivo legal, buscando evitar, desse modo, que uma norma proíba o que outra norma ordena ou fomenta.

O texto está estruturado em um único eixo temático, a saber: dilemas éticos e atos ilícitos no campo da Enfermagem e questões de ordenamento jurídico.

RESULTADOS

Dilemas éticos e atos ilícitos no campo da Enfermagem e questões de ordenamento jurídico

Para a abordagem das noções de imprudência, imperícia e negligência, enquanto atos ilícitos, são elencadas aquelas postas no parecer técnico 03/2020, do Conselho Regional de Enfermagem do Distrito Federal - Coren-DF, com exemplos extraídos de decisões do STJ:

Imprudência é a conduta precipitada. Enquanto que, em uma situação de negligência, o erro está em ser omisso (não fazer), na imprudência o erro está justamente na ação realizada, porém sem a devida cautela e sensatez que a situação exige. O risco envolvido é conhecido, mas as medidas de segurança, ou não são tomadas ou são realizadas sem o rigor necessário. Ou seja, a equipe de enfermagem exerce suas práticas assistenciais sem o devido cuidado que a situação requer(11 Carvalho V. Sobre a Lex-Art e a arte da enfermagem: a (inter)dependência entre verdade, necessidade e vontade de fazer, ensinar e investigar. São Caetano do Sul - SP: Editora Yendis; 2014.).

A título de exemplificação da aplicação jurídica da noção de imprudência, faz-se menção a um caso de acidente ocorrido em sala de aula. Trata-se da decisão do ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, no qual uma aluna de graduação em Enfermagem se voluntaria para interpretar uma vítima durante aula prática de primeiros socorros, e acaba atingida acidentalmente por outra aluna, sofrendo graves lesões, como consta nos destaques a seguir:

É fato incontroverso nos autos que a autora-recorrente era aluna do Curso de Enfermagem na universidade-requerida, sendo que no dia 16/04/2017 sofreu o acidente na sala de aula, e durante a aula prática do referido Curso de Enfermagem.

Durante a aula prática, a aluna teve que se deitar no chão para demonstração de atendimento de primeiros socorros, e uma outra aluna, também voluntária da demonstração, acabou por cair em cima da mão da autora-apelante, o que lhe causou demasiada dor, com necessidade de prestação de auxílio médico, conforme relatado pelas partes e confirmado pelas testemunhas (p. 664-696).

A requerente também demonstra que foi diagnosticada com distrofia simpática reflexa pós-traumática, desde 16/04/17, que teria sido provocada pelo aludido acidente ocorrido em sala de aula (p. 39). A autora ficou incapacitada de trabalhar e de exercer suas atividades por longo período no ano de 2007 e 2008 em razão de problemas na mão direita (p. 35-51). Tanto que chegou a receber benefício previdenciário de auxílio-doença, tendo em vista a sua incapacitação laboral (p. 52-59).

As testemunhas relataram que, na sala, havia cerca de vinte (20) alunos no momento do acidente e que a professora dividiu a turma em grupos, mas que não tinha muita organização. Narraram que não foram advertidos para manterem uma certa distância de segurança e que também não foram advertidos sobre os cuidados necessários e eventuais riscos da simulação. Ponderaram que era difícil a professora conseguir dominar uma turma com tantos alunos, ainda mais em uma aula prática. Sustentam que a autora virou motivo de piada da turma por causa do acidente e das limitações físicas resultantes (p. 673-682 e 682-691)(77 Superior Tribunal de Justiça (BR). AREsp 1697911, AREsp1758719 e AREsp 2068116 [Internet]. 2022 [cited 2022 Aug 14]. Available from: https://www.stj.jus.br
https://www.stj.jus.br...
).

Do trecho destacado, de acordo com o relato das testemunhas, nota-se que a professora ministrou a aula prática sem que cautelas específicas às características da intervenção educativa fossem devidamente tomadas, ou seja, os alunos não foram orientados e alertados sobre os potenciais riscos envolvidos no desenvolvimento daquela atividade prática.

Acreditando que a docente em questão tinha prática profissional prévia e competência para assumir tal responsabilidade, por pressuposto, ela conhecia o risco envolvido, mas, conforme evidenciou-se, não tomou as medidas de segurança cabíveis com o rigor que a situação exigia, configurando a sua imprudência, o que acarretou o referido acidente.

Distingue-se a imprudência da imperícia, pois, nesta, observa-se a falta de qualificação para realizar determinada ação ou procedimento, conforme pode ser constatado a seguir:

Imperícia refere-se à falta de habilidade técnica. Assim como nas situações de imprudência, quando existe a imperícia, o ato condenável está na ação, e não na omissão. A imperícia é verificada quando uma atividade é realizada por um profissional sem a devida qualificação e treinamento, teórica ou prática. Sendo assim, ele assume um risco a ele e às outras pessoas. A imperícia gera responsabilidade civil e criminal ao profissional que realizou as ações(11 Carvalho V. Sobre a Lex-Art e a arte da enfermagem: a (inter)dependência entre verdade, necessidade e vontade de fazer, ensinar e investigar. São Caetano do Sul - SP: Editora Yendis; 2014.).

A decisão do ministro Humberto Martins, do STJ, traz um exemplo claro de imperícia, conforme se depreende do destaque da decisão:

[...] houve indicação médica para preservação do membro superior direito, considerando a presença de hemangioma no local. Nada obstante, a orientação médica não foi observada pela equipe de enfermagem, fato que acarretou uma lesão ulcerada no membro superior direito da autora menor, por extravasamento do soro de cloreto de cálcio, que culminou em cicatriz de 10 cm de comprimento por 2 cm de largura. No laudo complementar, o perito confirmou a determinação médica para preservação do membro superior direito, evitando punção deste segmento. (mov. 189.1).

Nada obstante, analisando o prontuário médico da menor, constata-se que houve punção em acesso venoso em membro superior direito da recém-nascida (mov. 24.13).

Desta feita, de fato, houve descumprimento da orientação médica, por parte da equipe de enfermagem do hospital, que culminou em danos físicos à menor (lesão ulcerada necrosada).

Ademais, como pontuou o expert, além da desobediência à orientação médica, houve imperícia da equipe de enfermagem do hospital, configurada pelo extravasamento de soro glicosado e destruição da fístula arteriovenosa (P. 933/934)(77 Superior Tribunal de Justiça (BR). AREsp 1697911, AREsp1758719 e AREsp 2068116 [Internet]. 2022 [cited 2022 Aug 14]. Available from: https://www.stj.jus.br
https://www.stj.jus.br...
).

Além da não observância da orientação expressa, ocorreu, conforme é possível constatar dos excertos, a infusão de fluidos venosos em uma via não própria, a fístula arteriovenosa, o que caracterizou a falta de qualificação e treinamento de membros daquela equipe de enfermagem, ou seja, sua imperícia.

No que se refere à noção de negligência, o trecho a seguir reporta aspectos a serem destacados:

Negligência é a falta da atenção devida, resultado da omissão do indivíduo (profissional), assim como a passividade em uma situação que origina determinado resultado, sendo que era esperado dele a realização de alguma ação. Algumas definições também consideram como negligência a falta de cuidado ou a desatenção na execução de determinada tarefa, assim como a indiferença(66 Zaffaroni ER, Pierangeli JH. Manual de Direito Penal Brasileiro: Parte Geral. São Paulo: Revista dos Tribunais; 2010. 792 p.).

Para exemplificar o emprego dessa noção, destaca-se o seguinte trecho da decisão do ministro Humberto Martins, também do STJ:

...Contudo, haveria a responsabilidade do corpo de enfermagem, por ter deixado a paciente “S” (mãe de “M” e “R”, e o cônjuge do autor, “J”), cair de sua própria altura durante um banho que lhe foi prescrito. Esta negligência é a grande mola da presente ação, objeto mesmo de um Boletim de Ocorrência, feito ainda em vida da paciente, onde esta, representada por sua filha, narra que foi posta para tomar banho sozinha, porque a cadeira de rodas não era própria para ser molhada, assim, a tiraram da cadeira e a puseram de pé no box, equilibrando sobre uma só perna já que a outra perdera num acidente, razão pela qual veio a cair lesando o baço e fraturando o fêmur. Nada que comprometa a conduta do médico réu, Dr. “F”. Apenas, a das enfermeiras, por quem responde o nosocômio...(77 Superior Tribunal de Justiça (BR). AREsp 1697911, AREsp1758719 e AREsp 2068116 [Internet]. 2022 [cited 2022 Aug 14]. Available from: https://www.stj.jus.br
https://www.stj.jus.br...
).

Nesse caso, o juiz foi orientado por um laudo pericial (parecer emitido por um profissional médico, nomeado para o caso), que enfaticamente frisou a falha do corpo de enfermagem: “... pois, em se tratando de paciente possuidora de um único membro inferior, não poderia ter sido deixada sozinha para tomar banho, ou outra atividade dentro do quarto. O risco de queda era previsível”(77 Superior Tribunal de Justiça (BR). AREsp 1697911, AREsp1758719 e AREsp 2068116 [Internet]. 2022 [cited 2022 Aug 14]. Available from: https://www.stj.jus.br
https://www.stj.jus.br...
).

Em que pese à surrealidade do exemplo extraído da jurisprudência, de fato, a negligência dos membros da equipe de enfermagem ficou caracterizada e, salvo melhor juízo, clara sob o ponto de vista ético-jurídico, apesar de o laudo pericial ser emitido por profissional sem a devida competência técnica de avaliar serviço de enfermagem, conforme prevê a atual lei do exercício profissional no Brasil.

Na vertente jurídica, pode-se destacar a noção de dilemas ético-legais, a título de complementação do que já fora apresentado até aqui. Para melhor exemplificação, é considerada uma situação recente de desastre socioambiental ocorrida no município de Petrópolis, localizado na região serrana do estado do Rio de Janeiro, no início do ano de 2022, em que uma vultosa precipitação pluviométrica encharcou o solo e ocasionou diversos deslizamentos, trazendo como consequência o colapso de estruturas e edificações e o soterramento de diversas pessoas. Trata-se, aqui, de uma situação extrema em que vidas podem se perder em segundos; e os profissionais prontamente empregados ou voluntários se veem imbuídos de terem que realizar certos procedimentos, de suporte avançado à vida das vítimas, muitos acreditando estarem embasados juridicamente por seu código de ética profissional, que expressamente aponta entre suas atribuições o cuidado de pacientes graves com riscos de vida.

Entretanto, isso, por vezes, se coloca em oposição à Lei 12.842/2013, que define tal procedimento como exclusivo de outra categoria profissional, e à Resolução CFM 1.718/2004. Inclusive, esse instrumento legal o impede de aprender determinadas práticas assistenciais, dispondo que: “é vedado o ensino de atos médicos privativos, sob qualquer forma de transmissão de conhecimentos, a profissionais não médicos, inclusive àqueles pertinentes ao suporte avançado de vida, exceto o atendimento de emergência à distância, até que sejam alcançados os recursos ideais”(88 Presidência da República (BR). Lei n.º 12.842, de 10 de julho de 2013. Dispõe sobre o exercício da Medicina[Internet]. Diário Oficial da União; 2013 [cited 2022 Feb 20]. Seção 1. Available from: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2013/lei/l12842.htm
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_at...
-99 Conselho Federal de Medicina (BR). Resolução n.º 1718/2004. Trata de ensino de atos privativos [Internet]. 2004 [cited 2021 Feb 20]. Available from: https://sistemas.cfm.org.br/normas/arquivos/resolucoes/BR/2004/1718_2004.pdf
https://sistemas.cfm.org.br/normas/arqui...
).

Em um total contrassenso, essa mesma resolução prevê que, nos casos de emergências, esse “ensino” é permitido na modalidade de telemedicina, até que os recursos ideais sejam alcançados. Disso se conclui que o enfermeiro não pode ter conhecimento prévio dos procedimentos avançados, mas, em caso de emergências/desastres, esse profissional pode aprendê los e realizá-los com autorização/prescrição por via virtual mediante telemedicina(1010 Rocha MW, Oliveira AB, Araújo DF, Queiroz ABA, Paes GO. Safe intra-hospital care in context of vulnerability to socio-environmental disasters: implications for nursing. Rev Bras Enferm. 2021;74(1):e20190223. https://doi.org/10.1590/0034-7167-2019-0223
https://doi.org/10.1590/0034-7167-2019-0...
).

Essa desordem jurídica coloca o profissional de enfermagem em um dilema ético-legal em que, de um lado, vai estar a Lei 12.842 de 2013, conhecida como a “lei do ato médico”, e de outro, a vida. Logo, aqui se lançam questões para reflexão, como: “É plausível aguardar a chegada dos momentos de caos, em que vidas dependem da intervenção imediata, para então serem ensinados determinados procedimentos assistenciais que possam, de fato, salvar vidas? Em um momento de desastre, no qual geralmente toda a capacidade de atendimento local se esgotou e reforços complementares precisam ser acionados, é possível aplicar técnicas assistenciais que comprovadamente façam a diferença entre a vida e a morte?” Com efeito, ao serem considerados os aspectos psíquicos envolvidos direta e indiretamente diante de tais situações extremas, acredita-se que este não seja o momento mais adequado para serem ensinadas técnicas emergenciais de salvamento e manutenção de vida(88 Presidência da República (BR). Lei n.º 12.842, de 10 de julho de 2013. Dispõe sobre o exercício da Medicina[Internet]. Diário Oficial da União; 2013 [cited 2022 Feb 20]. Seção 1. Available from: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2013/lei/l12842.htm
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_at...
).

Nesse ponto, é oportuno expor as ideias do jurista, professor e juiz da Corte Interamericana de Direitos Humanos, Eugenio Raúl Zaffaroni, que, junto com o jurista e procurador de justiça do estado de São Paulo, José Henrique Pierangelli, desenvolveu a “Teoria da Tipicidade Conglobante”(99 Conselho Federal de Medicina (BR). Resolução n.º 1718/2004. Trata de ensino de atos privativos [Internet]. 2004 [cited 2021 Feb 20]. Available from: https://sistemas.cfm.org.br/normas/arquivos/resolucoes/BR/2004/1718_2004.pdf
https://sistemas.cfm.org.br/normas/arqui...
). Essa teoria compreende que não se pode considerar como “típica” uma conduta que é prévia e expressamente permitida pelo ordenamento jurídico. Para os autores, o ordenamento jurídico é um só, global, que abrange todas as áreas do Direito (civil, penal, comercial, processual etc.); sendo assim, ninguém pode praticar um fato típico (crime), se realizar uma ação permitida pela ordem jurídica global(99 Conselho Federal de Medicina (BR). Resolução n.º 1718/2004. Trata de ensino de atos privativos [Internet]. 2004 [cited 2021 Feb 20]. Available from: https://sistemas.cfm.org.br/normas/arquivos/resolucoes/BR/2004/1718_2004.pdf
https://sistemas.cfm.org.br/normas/arqui...
).

Ao refletir sobre o exemplo apresentado acima (de um procedimento de suporte avançado à vida), e com base nele considerar os aspectos do ordenamento jurídico, pode-se compreender que a manutenção da vida está sendo contraposta ao ato normativo que proíbe o ensino de procedimentos considerados exclusivos de médicos, porém, que podem ser executados por profissionais não médicos em casos de certas situações de emergências e desastres.

Tal norma proibitiva está em contraposição a todo ordenamento jurídico, e essa situação acaba por suscitar dúvidas, verdadeiros dilemas ético-legais aos profissionais de enfermagem. Isso reforça a necessidade de se estabelecer uma maior segurança jurídica para atuações em casos de emergências e desastres, por exemplo.

Conforme pressupõe a Teoria da Tipicidade Conglobante, um ato não pode ser tipificado como crime se é permitido por outra norma constante no ordenamento jurídico de um dado país. Ademais, o juízo de tipicidade impõe, além da tipicidade legal, a tipicidade conglobante, a qual consiste na averiguação do alcance proibitivo da norma, que não pode ser tomada isoladamente, e sim conglobada na ordem jurídica(99 Conselho Federal de Medicina (BR). Resolução n.º 1718/2004. Trata de ensino de atos privativos [Internet]. 2004 [cited 2021 Feb 20]. Available from: https://sistemas.cfm.org.br/normas/arquivos/resolucoes/BR/2004/1718_2004.pdf
https://sistemas.cfm.org.br/normas/arqui...
).

Notavelmente, os dilemas éticos envolvem situações cotidianas outras em que o profissional de enfermagem precisa tomar determinada decisão, em regra optando por agir diferente do que se sente moral, ética ou profissionalmente apropriado. Com efeito, muitos desses dilemas éticos vão estar diretamente relacionados à prática profissional e serão oriundos da desordem jurídica provocada pela própria legislação, por vezes divergente, sobre o mesmo assunto. Nesses casos, há de se ter em mente que a vida é o bem jurídico que se busca preservar e, dentre os direitos fundamentais previstos na Constituição Federal brasileira, este, sem dúvida, é o mais importante, pois, sem a vida, não se pode gozar dos demais direitos previstos.

Ademais, com a consideração da Teoria da Tipicidade Conglobante, que prevê a análise de todo ordenamento jurídico para caracterizar a tipicidade de uma conduta, a desordem jurídica pode ser combatida e, por consequência, se atingir uma maior segurança jurídica nas ações dos profissionais de enfermagem. Isso porque, atualmente, não há instrumentos jurídicos no país capazes de dar sustentação legal a determinadas intervenções, como é o caso das emergências em saúde pública e desastres.

Destarte, é necessário considerar que a dogmática penal no Brasil vem sofrendo duras críticas sociológicas, acompanhando a ideia da deslegitimação do sistema penal, na compreensão de que, se este perdeu a legitimidade, não há qualquer respaldo para a dogmática penal(66 Zaffaroni ER, Pierangeli JH. Manual de Direito Penal Brasileiro: Parte Geral. São Paulo: Revista dos Tribunais; 2010. 792 p.).

Esta é uma sóbria razão para se considerar firmemente como deve vir a ser a forma segura e justa de melhor enquadrar as práticas contemporâneas de enfermagem em um ordenamento jurídico satisfatório e sob um prisma de honestidade intelectual, que devidamente apoie os seus profissionais a observarem os fundamentos regedores da profissão e os valores ético-humanistas. Para tanto, os profissionais de enfermagem precisam estar fortemente articulados com os órgãos de representação de classe, na assunção de estratégias eficazes e bem sustentadas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Para garantir direitos, é preciso (re)conhecer as leis, porquanto são elas que regulam a vida em sociedade e, também, norteiam os atos profissionais; ademais, devem ser empregadas adequadamente as noções e conceitos que tipificam, pelo espectro ético, determinadas práticas. Com base nisso, abordou-se a necessidade de serem demarcadas as especificidades das noções de dilemas éticos e casos de imperícia, imprudência e negligência, pois esses casos são infrações puníveis e não situações em que uma decisão é posta em dúvida diante da legalidade em agir de determinada maneira, como o são os dilemas éticos.

A reflexão sobre o emprego de tais noções, à luz de decisões judiciais do STJ, e especialmente a compreensão dos problemas de ordenamento jurídico no cenário nacional têm o efeito de proporcionar aos profissionais de enfermagem maior capacidade de tomada de decisão, respaldo ético-legal para exercício de suas funções sem sofrer sanções éticas, cíveis e penais inerentes ao cargo. Além disso, oportunizam a necessária revisão crítica de suas ações e previsões legais.

Por último, destaca-se a necessidade de desenvolvimento de novos estudos sobre a temática pesquisada, principalmente daquelas situações ainda não devidamente enquadradas pela legislação profissional disponível, uma vez que a profusão de políticas públicas, tecnologias, práticas e inovações assistenciais e de gestão nem sempre acompanha o movimento jurídico de (re)definição de competências em face dos novos desafios impostos à profissão de enfermagem.

  • EDITOR CHEFE: Álvaro Sousa
  • EDITOR ASSOCIADO: Rafael Silva
  • FOMENTO
    Bolsa de estudo concedida pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - CAPES.

REFERENCES

  • 1
    Carvalho V. Sobre a Lex-Art e a arte da enfermagem: a (inter)dependência entre verdade, necessidade e vontade de fazer, ensinar e investigar. São Caetano do Sul - SP: Editora Yendis; 2014.
  • 2
    Styron Junior WC. Sophie’s Choice. New York: Random House; 1979. 576 p.
  • 3
    Cunha L. O que é Ética? Mário Sergio Cortella [Internet]. Luis Cunha; 2014 May 12. [cited 2022 Aug 10]. Video: 7 min 52 seg. Available from: https://www.youtube.com/watch?v=2gVCs2fIILo
    » https://www.youtube.com/watch?v=2gVCs2fIILo
  • 4
    Ricciardelli R, Johnston MS, Bennett B, Stelnicki AM, Carleton RN. “It Is Difficult to Always Be an Antagonist”: ethical, professional, and moral dilemmas as potentially psychologically traumatic events among nurses in Canada. Int J Environ Res Public Health. 2022;19(3):1454. https://doi.org/10.3390/ijerph19031454
    » https://doi.org/10.3390/ijerph19031454
  • 5
    Ues LV, Pereira LH, Bastos RMAFP, Ribeiro LCM, Silva GO, Campos KO, et al. Ethics in nursing: categorization of legal processes. Rev Bras Enferm. 2022;75(3):e20210099. https://doi.org/10.1590/0034-7167-2021-0099
    » https://doi.org/10.1590/0034-7167-2021-0099
  • 6
    Zaffaroni ER, Pierangeli JH. Manual de Direito Penal Brasileiro: Parte Geral. São Paulo: Revista dos Tribunais; 2010. 792 p.
  • 7
    Superior Tribunal de Justiça (BR). AREsp 1697911, AREsp1758719 e AREsp 2068116 [Internet]. 2022 [cited 2022 Aug 14]. Available from: https://www.stj.jus.br
    » https://www.stj.jus.br
  • 8
    Presidência da República (BR). Lei n.º 12.842, de 10 de julho de 2013. Dispõe sobre o exercício da Medicina[Internet]. Diário Oficial da União; 2013 [cited 2022 Feb 20]. Seção 1. Available from: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2013/lei/l12842.htm
    » http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2013/lei/l12842.htm
  • 9
    Conselho Federal de Medicina (BR). Resolução n.º 1718/2004. Trata de ensino de atos privativos [Internet]. 2004 [cited 2021 Feb 20]. Available from: https://sistemas.cfm.org.br/normas/arquivos/resolucoes/BR/2004/1718_2004.pdf
    » https://sistemas.cfm.org.br/normas/arquivos/resolucoes/BR/2004/1718_2004.pdf
  • 10
    Rocha MW, Oliveira AB, Araújo DF, Queiroz ABA, Paes GO. Safe intra-hospital care in context of vulnerability to socio-environmental disasters: implications for nursing. Rev Bras Enferm. 2021;74(1):e20190223. https://doi.org/10.1590/0034-7167-2019-0223
    » https://doi.org/10.1590/0034-7167-2019-0223

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Out 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    07 Out 2022
  • Aceito
    10 Mar 2023
Associação Brasileira de Enfermagem SGA Norte Quadra 603 Conj. "B" - Av. L2 Norte 70830-102 Brasília, DF, Brasil, Tel.: (55 61) 3226-0653, Fax: (55 61) 3225-4473 - Brasília - DF - Brazil
E-mail: reben@abennacional.org.br