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Varíola de macacos: entre a saúde pública de precisão e o risco de estigma

A Organização Mundial da Saúde (OMS) está alerta devido a um surto inédito de Monkeypox, também conhecida por varíola dos macacos, em países não endêmicos, como os da Europa, que vêm sendo afetados recentemente. Apesar do baixo potencial pandêmico, a recente pandemia de SARS-CoV-2 tem contribuído para níveis elevados de preocupação na opinião pública, diante da ameaça de novas emergências sanitárias globais(11 World Health Organization (WHO). Monkeypox: key facts [Internet]. 2022[cited 2022 Jun 20]. Available from: https://www.who.int/news-room/fact-sheets/detail/monkeypox
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).

Desde 13 de maio de 2022, a Monkeypox foi notificada em 23 Estados membros das quatro regiões da OMS, em um total, à data de 1 de junho de 2022, de 257 casos confirmados laboratorialmente e 120 casos suspeitos(22 World Health Organization (WHO). Multi-country monkeypox outbreak in non-endemic countries: update[Internet]. 2022[cited 2022 Jun 20]. Available from: https://www.who.int/emergencies/disease-outbreak-news/item/2022-DON388
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).

A Monkeypox é uma zoonose viral endêmica em vários países da África Central e Ocidental. Com uma incubação média entre seis e 13 dias, caracteriza-se por um período que pode ir de zero a cinco dias de febre, cefaleias, linfadenopatia, astenia e mialgias, seguido de erupções cutâneas cerca de um a três dias após o aparecimento de febre. As erupções cutâneas tendem a ser mais localizadas nas faces e extremidades, podendo ocorrer também nas mucosas orais, genitais, conjuntivas e córneas. Normalmente autolimitada, tende à resolução em duas a quatro semanas(11 World Health Organization (WHO). Monkeypox: key facts [Internet]. 2022[cited 2022 Jun 20]. Available from: https://www.who.int/news-room/fact-sheets/detail/monkeypox
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).

A Monkeypox não é uma infecção sexualmente transmissível (IST), embora possa se espalhar através do contato íntimo durante as relações sexuais, quando existe erupção cutânea ativa. No entanto, o número desproporcional de casos entre a populacão de gays e outros homens que fazem sexo com homens (HSH) levou a OMS a emitir recomendações voltadas exclusivamente para essa população(33 World Health Organization (WHO). Monkeypox: public health advice for gay, bisexual and other men who have sex with men[Internet]. 2022[cited 2022 Jun 20]. Available from: https://www.who.int/news/item/25-05-2022-monkeypox--public-health-advice-for-gay--bisexual-and-other-men-who-have-sex-with-men
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), o que particulariza e coloca a dimensão da sexualidade - posição afetivo-sexual - dessa população em destaque e em alvo de maior vigilância, mobilizando um conjunto de repercussões desvantajosas para a vida e saúde dessas pessoas.

Cerca de 40 anos após os primeiros casos de HIV/aids, que resultaram em uma profunda estigmatização, com impactos que, ainda hoje, são sentidos, a questão que se coloca é muito mais sobre o equilíbrio entre intervenções de saúde pública de precisão vocacionadas a quem delas necessita e a ostracização, que pode resultar com este direcionamento particular, do que da preocupação ampliada do acometimento da Monkeypox para a coletividade em seus países e no âmbito planetário. Isso revela uma reatualização de mecanismos pregressos controladores dos corpos e violentadores das experiências humanas, especialmente aquelas que contrariam a cisgeneridade e heterosexualidade, que insiste em permanecer de maneira compulsória, dual, arbitrária, opressora e sexista.

A sóciohistória epidêmica, particularmente do contexto da infecção pelo HIV/aids, mas também de outras doenças (como o caso recente do surto de hepatite A em Portugal), associadas inicialmente a grupos específicos (por exemplo, HSH, migrantes, pessoas em situação de rua e prisional)(44 European Centre for Disease Prevention and Control (ECDC). Hepatitis A outbreaks in the EU/EEA mostly affecting men who have sex with men[Internet]. 2017[cited 2022 Jun 20]. Available from: https://www.ecdc.europa.eu/sites/default/files/media/en/publications/Publications/16-02-2017-RRA%20UPDATE%201-Hepatitis%20A-United%20Kingdom.pdf
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), mostrou-nos que é importante separar as intervenções em saúde pública, seja elas ao nível da promoção de estilos de vida saudáveis ou de prevenção da doença das características particulares e/ou comportamentais destes grupo, a fim de evitar a formulação de preconceito e a constituição do estigma. Ancorados nos fatos históricos cronológicos das epidemias, questionamos, assim, se o atual direcionamento da informação sobre o surto de Monkeypox para a população de HSH não poderá vir a contribuir para uma maior expressão de casos nesta população ou, por exemplo, para um protelar do diagnóstico e da procura por cuidados de saúde, diante do receio da hostilização pública e/ou das violências institucionais.

Isto posto, levantam-se ainda alguns aspectos para a reflexão: o fato de relacionar a orientação sexual com o vírus Monkeypox não faz qualquer sentido, já que existem opções de comunicação que se podem mostrar igualmente efetivas, como, por exemplo, focar na prática de relações sexuais entre indivíduos infetados, sem categorizar sexualidades ou práticas em específicos, assumindo uma posição globalizada das ações sanitárias e de controle epidemiológico. Desse modo, a retórica estigmatizante pode desativar de forma rápida e profunda a resposta baseada em evidências, alimentando ciclos de medo, que afastam grupos chaves, que possam estar em contextos sociais de vulnerabilidade, como nos serviços de saúde, o que impede esforços para identificar casos e incentiva a adoção de medidas punitivas ineficazes(55 UNAIDS. Press Release: UNAIDS warns that stigmatizing language on Monkeypox jeopardises public health[Internet]. 2022[cited 2022 Jun 20] Available from: https://www.unaids.org/en/resources/presscentre/pressreleaseandstatementarchive/2022/may/20220522_PR_Monkeypox
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) que podem estar atravessadas por formulações estereotipadas e conspiradoras, as quais fortalecem a desinformação em saúde.

É pautada na análise desse cenário que apontamos a infodemia relacionada ao novo surto de Monkeypox ao estigma sobre a doença e as suas características, uma vez que imprime uma imagem indesejada socialmente, produzindo afastamento/isolamento social, repulsa, depreciação, descrédito e menos valia para a sociedade.

Novamente, é necessário alinhar e refinar os discursos. A agência das Nações Unidas para a AIDS (UNAIDS), por exemplo, expressou preocupação de que algumas reportagens e comentários públicos sobre a Monkeypox reforcem estereótipos homofóbicos e racistas. Como consequência desvantajosa para a saúde pública global, os prejuízos dessa associação podem recrudescer os avanços sociais conquistados para a mitigação da lgbtfobia entre os países, a exemplo do Brasil, um dos países que mais mata pessoas Lésbicas, Gays, Travestis, Trassexuais/Pessoas Trans, Queers, Intersexo, Assexuais, Pansexuais e com vivências de variabilidade de gênero (LGBTQIAP+), assim como o cerceamento de direitos à atenção integral à saúde. Mais que isso, podem estimular o afastamento dos serviços, ações e programas de saúde, elevando a morbimortalidade e os impactos provocados pelas sequelas físicas, socioeconômicas e psicológicas dos HSH estigmatizados.

No caso em particular, o que se observa é a perene iniquidade social em saúde e a dívida pública do Estado, a partir da atuação de seus governantes para com as demandas e necessidades de saúde e as experiências identitárias da população LGBTQIAP+, que, mediante a tantos flagelos sociais, como ocorreu com a pandemia de COVID-19(66 Sousa AR, Cerqueira SSB, Santana TS, Suto CSS, Almeida ES, Brito LS, et al. Estigma vivenciado por homens diagnosticados com COVID-19. Rev Bras Enferm. 2022;75(Suppl 1):e20210038. https://doi.org/10.1590/0034-7167-2021-0038
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), vem experienciando uma sobreposição de vulnerabilidades que impactam a proteção social, o acesso à educação, os bons níveis de letramento em saúde, a prevenção de doenças e agravos, as possibilidades do exercício da promoção da saúde e a manutenção do bem viver e do bem-estar psicossocial.

Diante da posição de vigilância, chamamos a atenção de que o surto de Monkeypox ilustra que as comunidades continuarão a enfrentar ameaças de vírus e que a coordenação e a colaboração internacional são essenciais para a saúde pública, o que implica a convocação dos enfermeiros no gerenciamento de cenários. Para tanto, será necessário desenvolver estratégias globais, equânimes, inclusivas e coerentes, que respeitem as especificidades dos países, territórios e comunidades. Um exemplo exitoso se trata da parceria com a equipe do Grindr(77 Pinkstone J. Grindr sends monkeypox warnings to users as cases rise[Internet]. 2022[cited 2022 Jun 20]. The Telegraphy. Available from: https://www.telegraph.co.uk/news/2022/05/25/grindr-sends-monkeypox-warnings-users-cases-continue-soar/
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), o mais popular dos aplicativos de encontro entre HSH, e a Agência de Segurança da Saúde do Reino Unido, que enviou aos seus usuários (são cerca de 40 milhões em todo o mundo) avisos de varíola para aumentar a conscientização sobre risco de contágio entre os seus utilizadores, revelando possibilidades de como conduzir com as ações de educação e comunicação em saúde, as quais podem ser exploradas e lideradas pelas equipes de enfermagem em seus cenários.

O cenário epidemiológico é mais um cenário propício à liderança de enfermagem. Perante o surto de Monkeypox, compete aos profissionais da equipe de enfermagem a advocacia pela população LGBTQIAP+, assumindo uma postura de vigilância, acolhimento, responsabilidade social e científica na busca pela eliminação da discriminação em saúde, na compreensão ampliada dos processos de saúde e doença e na promoção das identidades sexuais e de gênero dissidentes. No caso em particular das doenças epidêmicas episódicas, as equipes de enfermagem devem agir de modo a garantir a segurança e a proteção coletiva. Devem também produzir cuidado culturalmente adaptado, singularmente generificado, valendo-se de sua estrutura metaparadigmática para guiar a o trabalho profissional, de modo a cientificá-lo e ser socialmente referenciado, quer seja pela aplicação de seus constructos, modelos e teorias, quer seja pelo posicionamento identitário da defesa da vida, do reconhecimento das respostas humanas e dos processos vitais de cada pessoa em seu ambiente.

Por fim, recomenda-se que as equipes de enfermagem se engajem no trabalho da equidade de gênero, construam abordagens terapêuticas não segregantes nem estigmatizadoras, desenvolvam instrumentos de educação sanitária para a comunidade, desenhem planos de ação e de cuidado focados no controle da transmissão, rastreamento, monitoramento e vigilância dos casos, apoiem no diagnóstico diferencial, desmistificando a associação com as IST, especialmente mediante ao aparecimento de lesões na região genital e perianal, bem como no empoderamento da população para a autogestão do risco e a diminuição das vulnerabilidades em saúde. No caso em particular dos HSH afetados pela Monkeypox, recomenda-se que as equipes de enfermagem se capacitem para atuar diante de uma doença com elevada carga de estigma, especialmente por afetar a autoimagem, autopercepção e os mecanismos de enfrentamento. Isso suscita maior atenção para as intervenções direcionadas ao enfrentamento ineficaz que mantenham a ética nas relações estabelecidas entre os usuários e as equipes de atuação e que construam nova epistemologia de cuidado próprio dirigido à população de HSH.

REFERENCES

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    2022
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