(Des)continuidade do cuidado ao recém-nascido pré-termo em região de fronteira

RESUMO

Objetivos:

compreender como acontece a continuidade do cuidado ao recém-nascido pré-termo na rede de atenção à saúde na fronteira.

Métodos:

a Teoria Fundamentada nos Dados foi o referencial metodológico. Os dados foram coletados por meio de 17 entrevistas semiestruturadas, entre julho de 2016 e março de 2017.

Resultados:

“Descrevendo a estrutura e o funcionamento do Centro de Nutrição Infantil representa o contexto”; “Experienciando e significando o nascimento prematuro” são as condições causais; “Identificando condições que intervêm no processo de continuidade do cuidado ao recém-nascido pré-termo” são as condições intervenientes; “Assegurando a continuidade do cuidado ao recém-nascido pré-termo” são as estratégias; “Identificando fluxos de (des)continuidade do cuidado ao recém-nascido pré-termo em região de fronteira” são as consequências e o fenômeno do estudo.

Considerações Finais:

identifica-se a necessidade de planejar fluxos de referência e contrarreferência do recém-nascido pré-termo e o comprometimento dos gestores em saúde pública para garantir a continuidade do cuidado.

Descritores:
Cuidado da Criança; Enfermagem; Recém-Nascido Prematuro; Saúde na Fronteira; Saúde Pública

ABSTRACT

Objectives:

to understand how continuation of care for the preterm newborn in the health care network at the border.

Methods:

the Grounded Theory was the methodological framework. Data were collected through 17 semi-structured interviews between July 2016 and March 2017.

Results:

“Describing the structure and functioning of the Child Nutrition Center” represents the context; “Experiencing and signifying premature birth” are the causal conditions; “Identifying conditions that intervene in the process of continuation of care for the preterm newborn” are the intervening conditions; “Ensuring continuation of care for the preterm newborn” are strategies; “Identifying (dis)continuation of care flows for the preterm newborn at the border” are the study’s consequences and phenomenon.

Final Considerations:

there is a need to plan referral and counter-referral flows of the preterm newborn and the commitment of public health managers to ensure continuation of care.

Descriptors:
Child Care; Nursing; Premature Newborn; Border Health; Public Health

RESUMEN

Objetivos:

comprender cómo ocurre la continuidad del cuidado al recién nacido prematuro en la red de atención de salud en una región de frontera.

Métodos:

la Teoría Fundamentada en los Datos fue el referencial metodológico. Los datos fueron recolectados por medio de 17 entrevistas semiestructuradas, entre julio 2016 y marzo 2017.

Resultados:

Describiendo la estructura y el funcionamiento del Centro de Nutrición Infantil representa el contexto; Experimentando y significando el nacimiento prematuro son las condiciones causales; Identificando condiciones que intervienen en el proceso de continuidad del cuidado del recién nacido prematuro son las condiciones intervinientes; Asegurando la continuidad del cuidado al recién nacido prematuro son las estrategias; Identificando flujos de (des)continuidad del cuidado al recién nacido prematuro en una región de frontera son las consecuencias e, igualmente, el fenómeno del estudio.

Consideraciones Finales:

se identifica la necesidad de planificar flujos de referencia y contrarreferencia del recién nacido prematuro y el compromiso de los gestores en salud pública para garantizar la continuidad del cuidado.

Descriptores:
Cuidado del Niño; Enfermería; Recién Nacido Prematuro; Salud Fronteriza; Salud Pública

INTRODUÇÃO

Anualmente, nascem 15 milhões de bebês pré-termos no mundo, uma incidência aproximada de um recém-nascido pré-termo (RNPT) a cada dez nascimentos, cujas taxas continuam aumentando. A prematuridade é a principal causa de morte em crianças menores de cinco anos. Salienta-se que o Brasil está entre os dez países com maior número de nascimentos prematuros⁽¹⁾.

Apesar dos avanços tecnológicos e científicos, a prematuridade ainda apresenta muitos desafios, que vão além da sobrevivência e dos cuidados assistenciais prestados no ambiente hospitalar⁽²⁾_. Um deles é a garantia de continuidade do cuidado, após a alta hospitalar, que assegure a integralidade da atenção frente à resolução de um agravo específico de saúde, sem interrupção da progressão dos acontecimentos, que transcenda a esfera individual e subjetiva do recém-nascido e de sua família⁽³⁾.

O RNPT é um ser frágil, que exige um cuidado em saúde complexo, sensível e compartilhado, e envolve as famílias e uma rede de apoio social e profissional⁽¹⁾. Corroborando com isso, em um sistema de saúde europeu, a continuidade do cuidado ao RNPT é compreendida como uma sequência das intervenções integradas de saúde e de apoio social, assegurando qualidade nos cuidados prestados, diminuindo custos; considerada uma estratégia oportuna e uma política a ser seguida pelos serviços de saúde⁽⁴⁾.

No Brasil, na região de tríplice fronteira entre Brasil, Paraguai e Argentina, a demanda de atendimento da população é além do esperado, o que pode dificultar a prestação de atendimento de qualidade, com intervenções integradas de saúde e de apoio social para a continuidade do cuidado ao recém-nascido de risco, em tempo oportuno e livre de barreiras para a atenção eficaz e acessível. Além disso, a população flutuante nos municípios de região de fronteira torna os serviços de saúde onerosos por atender um número de pessoas acima do previsto⁽⁵⁾. São incipientes as pesquisas em saúde, em região de fronteira, no que tange ao cuidado ao RNPT, justificando a pertinência deste estudo.

OBJETIVOS

Compreender como acontece a continuidade do cuidado ao RNPT na rede de atenção à saúde em região de fronteira.

MÉTODOS

Aspectos éticos

O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Universidade Estadual do Oeste do Paraná. A obtenção do consentimento dos participantes se deu por meio da assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. O anonimato foi preservado, substituindo seus nomes por letras, como CPM para Cuidador Principal Mãe, PE para Profissional Enfermeiro, PAE para Profissional Auxiliar de Enfermagem, PN para Profissional Nutricionista, PF para Profissional Fisioterapeuta, PP para Profissional Psicóloga, PM para Profissional Médico, e PG para Profissional Gestor. Todas as combinações de letras foram acompanhadas por o número sequencial da entrevista, por exemplo: CPM1 - Cuidador Principal Mãe 1.

Referencial teórico-metodológico

A Teoria Fundamentada nos Dados, segundo Strauss e Corbin, foi utilizada como método⁽⁶⁾.

Tipo de estudo

Trata-se de um estudo qualitativo.

Procedimentos metodológicos

A pesquisa foi desenvolvida entre julho de 2016 e março de 2017. Foram critérios de inclusão para participar da pesquisa: a) primeiro grupo amostral: ser cuidador principal maior de idade, responsável pelo cuidado integral de RNPT nascido em Foz do Iguaçu, em acompanhamento no Centro de Nutrição Infantil (CENNI) e residir em municípios da tríplice fronteira - Brasil, Paraguai e Argentina. b) segundo grupo amostral: ser profissional de saúde do CENNI atuante no cuidado direto e ou indireto aos RNPT. c) terceiro grupo amostral: ser gestor do CENNI.

Cenário do estudo

CENNI de Foz do Iguaçu, Paraná, Brasil.

Coleta e organização dos dados

O estudo contou com três grupos amostrais, sendo o primeiro grupo amostral formado por oito cuidadores principais (as mães), o segundo por oito profissionais de saúde (dois auxiliares de enfermagem, dois enfermeiros, nutricionista, fisioterapeuta, psicóloga e pediatra) e o terceiro foi constituído por um gestor, permitindo a comparação dos resultados, a confirmação de hipóteses levantadas e a formação da explicação teórica acerca do fenômeno investigado⁽⁶⁾. Os cuidadores principais foram selecionados e abordados pessoalmente pela pesquisadora, conforme compareciam às consultas ao RNPT no CENNI e, por indicação dos dados analisados do primeiro grupo amostral, os profissionais de saúde do serviço foram convidados a participar. As entrevistas foram audiogravadas, guiadas por roteiro semiestruturado, com duração média de uma hora e trinta minutos.

Análise dos dados

A coleta e análise dos dados foram realizadas concomitantemente, conforme as etapas de codificação aberta, axial e seletiva, propostas pelo método. Na codificação aberta, os dados foram analisados linha por linha para definir as categorias preliminares. A codificação axial permitiu relacionar as categorias às subcategorias. Por fim, a codificação seletiva configurou o tema central da pesquisa. Os dados foram analisados e discutidos segundo o modelo paradigmático, que explica o fenômeno do estudo por meio de cinco componentes, quais sejam: contexto, condição causal, condição interveniente, estratégia e consequência⁽⁶⁾. A saturação dos dados foi definida na ocorrência de repetição das informações e ausência de novos elementos para a consolidação das categorias encontradas.

RESULTADOS

O contexto é descrito pela categoria “Descrevendo a estrutura e o funcionamento do CENNI”, uma Organização Não-Governamental (ONG), fundada em 1993, por conta do elevado número de óbitos infantis decorrentes de casos de desnutrição, frequentes e recorrentes na época. À época do estudo é referência ambulatorial especializada para o RNPT em Foz do Iguaçu, Paraná. Conta com uma equipe multiprofissional composta por médica pediatra, enfermeiros, auxiliares de enfermagem, nutricionista, fonoaudióloga, psicóloga, assistente social e fisioterapeuta. Oferece atendimento ambulatorial e internação-dia. Esse último é destinado às crianças com baixo peso, que requerem suporte nutricional, administração de medicamentos, particularmente antibióticos, quando há risco de o cuidador não administrar na dose e horários corretos. A sustentabilidade depende do repasse de recursos do programa Sistemas Integrados de Saúde das Fronteiras (SIS-Fronteiras) e de doações e bazares.

É uma ONG [...] em 1993, tinha situação de desnutridos bem severa [...] muitas crianças que iam a óbito [...] e fundou aqui o Centro de Nutrição [...] (PG1).

[...] Centro de Nutrição vive através de doações... repasse do SIS-Fronteiras [...] (PE3).

Embora o CENNI seja referência para RNPT, também atende outras crianças de diferentes faixas etárias, de nacionalidade brasileira, residentes no Brasil ou em outro país da região de fronteira (Paraguai e Argentina).

[...] a gente não atende só o pré-termo... é o desnutrido, crianças que têm alergias... celíacos, alérgicos a lactose. Enfim, são vários [...] não tem outro lugar [...] (PAE1).

As condições causais são representadas pela categoria “Experienciando e significando o nascimento prematuro”. Para a maioria das mães, cuidadoras principais, o nascimento prematuro foi inesperado, mesmo para aquelas acompanhadas em um ambulatório de gestação brasileiro de alto risco, com possibilidade de acesso às informações pelos profissionais de saúde. Podem acessar esse ambulatório mulheres residentes no Brasil, Paraguai ou Argentina, desde que tenham nacionalidade brasileira.

[...] quando eu fiz a ultrassom, diz que o piá estava muito bem... ia nascer bem [...] (CPM1).

No entendimento dos profissionais do estudo, o nascimento prematuro provavelmente está relacionado à fragilidade da atenção pré-natal na região de fronteira, pois, além da insuficiência de profissionais atuantes na Rede de Atenção à Saúde (RAS), a cobertura de exames laboratoriais e de imagem estava restrita ou ausente no município de Foz do Iguaçu, à época do estudo, devido a questões de gestão em saúde. Os profissionais acrescentam que o inesperado nascimento prematuro pode, ainda, estar relacionado às insuficientes informações, advindas dos profissionais do nível especializado (ambulatório de gestação de alto risco), relativas a uma gestação de risco, que implica riscos para a mãe e para o bebê, os quais provavelmente não foram informados.

[...] estamos há oito meses sem exames, tem gestante que está tendo filho e não fez nenhum exame [...] (PE3).

[...] nasceu de oito meses... por causa da minha pressão alta. [...] foi cesariana de emergência [...] (CPM4).

O nascer prematuro da criança condicionou as mães a viver a experiência de cuidado continuado do recém-nascido no CENNI e as aproximou da socialização, da troca de múltiplas experiências e de vivências. As orientações dos profissionais de saúde do CENNI permitiram compreender o tempo de desenvolvimento neuropsicomotor diferenciado da criança pré-termo da criança a termo.

[...] a gente aprende muita coisa com as outras mães [...] (CPM4).

[...] a questão do desenvolvimento [...] é mais devagar... é uma criança normal. [...] A gente foi seguindo orientações (CPM6).

A categoria “Identificando condições que intervêm no processo de continuidade do cuidado ao RNPT”, aponta as condições intervenientes do estudo. As mães e profissionais de saúde destacaram algumas condições que comprometem a continuidade do cuidado ao RNPT, após a alta hospitalar, quais sejam: inexistência de protocolos ou fluxos definidos do RNPT na RAS, após alta hospitalar (a alta do RNPT pode acontecer da unidade de tratamento intensivo neonatal para o domicílio, sem o preparo ou aviso prévio dos cuidadores principais para o cuidado continuado); insuficiência de especialistas para o acompanhamento de RNPT; acesso comprometido aos serviços, particularmente aos exames laboratoriais e de imagem; estrutura física precária dos serviços, especialmente das unidades de Atenção Básica (AB) e do CENNI. Os profissionais asseveram que o déficit de especialistas pode ser atribuído à remuneração insatisfatória ou à sua ausência. Salienta-se que é a gestão municipal que opera a contratação de funcionários no CENNI, condições que parecem estar relacionadas a um problema de gestão municipal em saúde.

O médico [...] falou... está com um quilo e novecentos... dá para ir para casa... a receita deixou por escrito com a enfermeira (CPM3).

[...] eu esperava [...] visita na minha casa... nenhum profissional da saúde foi (CPM1).

[...] não ter os exames... laboratoriais... ultrassom, tomografia [para avaliação da saúde da criança]. Os especialistas [...], eu sou [pediatra] da prefeitura, cedida para o CENNI [...], trabalho no posto de saúde para completar meu vínculo [...] (PM8).

A amamentação não consolidada e o consequente desmame precoce também são apontadas como condições que comprometem a continuidade do cuidado ao RNPT. A dificuldade em fazer pega e sucção, condição relacionada à prematuridade, justificou a oferta de leite artificial (fórmula láctea) ao recém-nascido, por meio de seringa ou mamadeira, ainda no ambiente hospitalar.

[...] boa parcela deles [pré-termos] não tem a capacidade e força para sucção... já chegam [ao CENNI] com complemento... do hospital... com a chuquinha (PN4).

Por outro lado, identifica-se a reintrodução do aleitamento materno ou o incentivo da amamentação exclusiva em seio materno ao RNPT como uma condição que favorece a continuidade do cuidado ao RNPT, pelos profissionais do CENNI, particularmente pela nutricionista e pelo enfermeiro.

[...] nós [profissionais do CENNI] incentivamos muito a amamentação [...] fazendo o possível e o impossível para não largar o peito (PE2).

Ainda, neste estudo, outra condição que favorece a continuidade do cuidado ao RNPT, é o acolhimento dos pais de RNPT residentes em outros países da região de fronteira (Paraguai ou Argentina), por familiares residentes no Brasil. Logo, ter familiares residentes do Brasil favorece o acompanhamento multiprofissional da criança junto ao CENNI.

Teve um menino que era do Paraguai... ele tinha familiares de Foz do Iguaçu. Essa era uma vantagem (PAE5).

A categoria “Assegurando a continuidade do cuidado ao RNPT” apresenta as estratégias dos profissionais de saúde do CENNI para garantir a continuidade do cuidado ao RNPT. Esses profissionais entendem que cuidar de uma criança pré-termo requer múltiplas competências dos cuidadores principais, principalmente no domicílio. Com ênfase no cuidado materno ao recém-nascido, desenvolvem ações de educação em saúde, de estímulo ao empoderamento materno, de estabelecimento de vínculo com a família e conhecimento da realidade em que a criança vive por meio de visitas domiciliares e de suporte emocional aos cuidadores para que consigam compreender o potencial de desenvolvimento do RNPT, dentro das suas particularidades.

A minha atuação [psicóloga] é mostrar para essa mãe que essa criança tem potencial para se desenvolver [...] vai depender do cuidado dessa família [...]. Eu acredito que a gente tem uma equipe [profissionais do CENNI] ... comprometida com o trabalho [...] se precisa fazer visita domiciliar, nós vamos [...] a gente vê [...] quem está dando suporte para essa mãe [...] para acolher essa criança e ajudar... a se desenvolver (PP7).

Pelas falas dos cuidadores principais, nota-se a importância das orientações dispensadas pelos profissionais de saúde para que se sintam seguros na realização dos cuidados ao RNPT, desmitificando os medos.

Ela [enfermeira] me ensinou... dar mamá [...] E daí o banho... o remédio [...] (CPM3).

A categoria “Identificando fluxos de (des)continuidade do cuidado ao RNPT em região de fronteira” desencadeia o fenômeno, o qual aponta um fluxo desordenado de atenção à criança que nasceu prematura nos diferentes contextos de atenção à saúde na referida região de fronteira. O sistema de referência e de contrarreferência não apresenta fluxos definidos, organizados e estruturados para acontecer o acesso ao CENNI, independentemente do país de origem das famílias, cuja criança nasceu prematura em território brasileiro, já que se trata de uma região de fronteira.

Na alta hospitalar, os cuidadores principais não são orientados adequadamente sobre qual serviço irá dar continuidade aos cuidados da criança, provavelmente em decorrência da inexistência de fluxos definidos. O acesso das crianças ao CENNI pode acontecer por referência AB ou contrarreferência do hospital ou da Unidade de Pronto Atendimento (UPA), ou por procura espontânea do cuidador principal. Aos finais de semana, feriados e fora do horário de expediente do CENNI, os cuidadores principais buscam a UPA em caso de necessidade de atendimento à criança, por procura espontânea ou reencaminhados pelo hospital (o hospital atende crianças com idade inferior a 28 dias). A UPA, por sua vez, atende urgências e emergências. Evidencia-se, por fim, que a AB não participa da continuidade do cuidado à criança concomitante ao CENNI, exceto para imunização, o que compromete a formação de vínculo da criança e sua família com a AB e a articulação da RAS e dos profissionais na atenção ao RNPT.

Na realidade, essas crianças, até os dois anos, basicamente não vão na rede [básica de saúde], só vem aqui [CENNI]. Lá fazem as vacinas... (PE2).

Conforme o modelo paradigmático do estudo, representado pelas categorias anteriormente descritas e seus componentes, revela-se o fenômeno da “(des)continuidade do cuidado ao RNPT em região de fronteira”, cujo modelo de atenção à criança na RAS apresenta uma desarticulação entre os diferentes níveis de atenção à saúde. Além disso, o CENNI não é um serviço formal da RAS, mas uma ONG que busca suprimir uma demanda reprimida do município.

DISCUSSÃO

O nascimento prematuro pode ocasionar um maior risco de morbimortalidade se comparado a crianças nascidas a termo, considerando-se a imaturidade fisiológica e as possíveis intercorrências e iatrogenias decorrentes da hospitalização. Como consequência da sobrevida, podem ocorrer atrasos de ordem física, cognitiva e social, incluindo neuropatologias, deficiências auditivas e visuais, retardo no desenvolvimento motor, desordens alimentares, dificuldade de aprendizagem, dentre outros⁽⁷⁾.

No Brasil, há políticas de saúde que, apesar de importantes para os avanços e aprimoramentos no campo da Saúde Pública, não são implantadas de modo suficiente para atender à população, em específico aos RNPT⁽⁸⁾. Dessa forma, para suprir as necessidades de oferta de serviços, o Estado contrata serviços de assistência ambulatorial de média e alta complexidade⁽⁹⁾.

As ONGs são integrantes do Terceiro Setor, uma fusão entre o público e o privado, e trabalham para atender necessidades públicas e sociais, assumindo uma característica jurídica administrativa de direto privado, porém sem fins lucrativos⁽¹⁰⁾. Em Foz do Iguaçu, para atender casos de desnutrição infantil, na década de 90, criou-se o CENNI; uma ONG com a qual a prefeitura mantém parceria através de convênio para assistência ambulatorial infantil, cuja sustentabilidade ocorre por meio do repasse de verba para a ONG. Todavia, essa ONG parece precisar desenvolver ações de atenção ao RNPT de competência da AB e especializada⁽⁸⁾, evidenciando uma importante fragilidade desses serviços na RAS, nessa região de fronteira.

Na perspectiva de ampliar o direito à saúde para a população que reside em regiões de fronteira, que inclui a população infantil deste estudo, foi instituído o Sistema Integrado de Saúde das Fronteiras (SIS-Fronteiras), entre 2009 e 2011. Contudo, apesar dos esforços em descentralizar o sistema de saúde brasileiro, na tentativa de melhorar o atendimento à população fronteiriça, entraves ainda impedem a implantação de uma rede de serviços efetiva, incluindo os serviços de atenção à criança. Salienta-se que as principais dificuldades referem-se à programação de ações devido a distinções nas políticas de saúde dos países envolvidos e os procedimentos para financiamento, que ainda não foram transpostos⁽¹¹⁾.

O pré-natal é fundamental para evitar nascimentos pré-termos, devendo ser iniciado ainda no primeiro trimestre de gestação para acompanhar a saúde materna e fetal. A assistência pré-natal de qualidade implica realização de exames laboratoriais e de imagem para identificar e tratar precocemente complicações inerentes à gestação, os quais parecem restritos ou ausentes às cuidadoras participantes do estudo. Portanto, o inesperado nascimento prematuro remete a um pré-natal inadequado, seja em quantidade ou em qualidade das consultas⁽¹²⁾.

O nascimento prematuro inesperado, possivelmente consequente à desassistência em saúde, desencadeou sentimentos ambíguos e contraditórios às mães cuidadoras. Acreditar na recuperação e no pleno desenvolvimento do filho denota uma relação estreita com o vínculo e confiança depositados nos profissionais de saúde⁽¹³⁾ do CENNI.

A fragilidade da criança que nasce prematura causa impactos e gera medo por sua instabilidade clínica. A experiência da hospitalização de um filho altera o cotidiano e a dinâmica da família⁽¹⁴⁾. No entanto, a confiança depositada nos profissionais de saúde do CENNI, na continuidade dos cuidados do recém-nascido após a alta; a interação com outras mães que viviam uma experiência de cuidado de filhos pré-termos junto ao serviço e o auxílio de pessoas próximas favorecem a superação das incertezas advindas do universo incerto e inseguro da prematuridade. Essa situação, conforme demonstrada em outro estudo, é acompanhada de sofrimento, de estresse e apreensão, cujas mães/famílias gostariam de esquecer⁽¹⁴⁾. Nesse sentido, constata-se a importância de os profissionais de saúde ampliarem o olhar para o cuidado, estendido à toda à família do RNPT, seja na experiência durante o período da internação hospitalar ou na continuidade do cuidado após a alta⁽⁸⁾.

Não há razão que justifique o RNPT receber alta hospitalar sem que o cuidador tenha recebido todas as orientações fundamentais sobre o cuidado adequado e seguro no domicílio, como identificado no estudo. As orientações da equipe de saúde devem ser claras e precisas para promover saúde e transmitir conhecimentos para toda a família⁽¹⁵⁾.

Desse modo, o planejamento da alta para casa deve ser exercido de forma estratégica e individual, considerando-se as especificidades de cada família e a condição de saúde de cada bebê. Os cuidadores poderiam se sentir mais seguros e confiantes se houvesse preparo e orientação cabíveis para a alta do RNPT. Contudo, além de não terem sido preparados e orientados sobre os cuidados domiciliares, também não foram, na maioria das situações, orientados sobre o acompanhamento da saúde da criança após a alta⁽¹⁶⁾. Confirma-se, assim, que a tarefa de garantir a contrarreferência está incumbida aos cuidadores, o que torna vulnerável a continuidade do cuidado ao RNPT⁽¹⁷⁾.

No arranjo organizativo da RAS, a interconexão, a interação e a integração entre as diferentes ações e serviços se fazem necessárias para a continuidade do cuidado ao RNPT nessa região de fronteira. A insuficiente articulação entre profissionais de saúde da rede, particularmente entre os serviços da AB, especializada (neste estudo conformada pelos profissionais da ONG) e hospitalar, aponta a necessidade de os profissionais estarem em constante comunicação. É da AB e não da ONG, como se vê aqui, a competência de realizar a busca ativa, por meio de visita domiciliar, para o acompanhamento dos RNPT faltantes aos atendimentos em saúde para que não ocorram evasões do seguimento ambulatorial e se estabeleça a promoção da saúde do RNPT⁽¹⁸⁾. Para isso, faz-se necessária a comunicação eficaz entre os profissionais da rede, interconectando AB, especializada e hospitalar.

O estudo confirma que a alimentação de um RNPT envolve múltiplos fatores e podem culminar com a não consolidação da amamentação. Um RNPT tem dificuldade de sugar o seio materno comumente devido à falta de coordenação entre sucção, deglutição e respiração. A sucção pode levar à perda de peso pelo gasto de energia. Entretanto, logo que a criança apresente sinais de evolução clínica, a amamentação deve ser estimulada⁽¹⁹⁾.

A mãe de um RNPT encontra-se diante de múltiplas barreiras que tendem a limitar a amamentação e isso requer que os profissionais de saúde estejam atentos às dificuldades que podem surgir para que a torne efetiva⁽¹⁴⁾. Entende-se, assim, que os profissionais de saúde e de enfermagem podem apoiar e incentivar as mães a superar os desafios e dificuldades, desde a internação em um ambiente intensivo neonatal, a fim de consolidar a amamentação, condição não identificada no estudo.

O cenário estudado é uma região de fronteira, em que famílias migram de um país para outro para melhorar suas condições de vida em termos de acesso à saúde. As mães argentinas ou paraguaias de RNPT nascidos no Brasil, que tinham familiares residentes em território brasileiro, tiveram a continuidade do cuidado ao RNPT no CENNI favorecida, provavelmente pela fronteira seca entre os países, com proximidade das áreas urbanas, próprios dessa região fronteiriça⁽²⁰⁾.

A continuidade do cuidado ao RNPT brasileiro é favorecida pela legislação brasileira, que prevê o acesso universal e gratuito aos serviços de saúde, em todos os níveis de atenção e, ao estrangeiro, acesso aos serviços de urgência e emergência, diferentemente do Paraguai e da Argentina, cujos países possuem um sistema de seguro social baseado no emprego, o qual interfere no acesso à saúde dos cidadãos^(20-21). Além disso, destaca-se que a melhor estrutura, oferta, resolutividade e qualidade dos serviços de saúde brasileiros, em relação aos sistemas paraguaio e argentino, influenciam os fluxos migratórios, bem como a heterogeneidade nos níveis de desenvolvimento de cada país⁽²¹⁾. Isso justifica o fluxo de famílias de RNPT ao Brasil.

Serviços de saúde acolhedores e organizados em redes podem maximizar a continuidade do cuidado à criança pré-termo pelo reconhecimento de seus problemas, suas particularidades e singularidades, bem como de sua família. Para tanto, esses serviços devem amparar as famílias sempre que precisarem, independentemente do número de vezes que os busquem^(22-23). Essas atitudes caracterizam a responsabilização pelo cuidado ao outro, e, uma vez responsável pelo cuidado, podem ser propostas estratégias para fortalecer a continuidade da atenção à saúde do RNPT, particularmente quando famílias migram entre regiões fronteiriças para garantir acesso à saúde.

O grande desafio para assegurar a continuidade do cuidado ao RNPT, após a alta hospitalar, fundamenta-se no suporte adequado para essas crianças e suas famílias. Portanto, compete aos profissionais de saúde, a priori o enfermeiro, propor estratégias que auxiliem na adaptação do RNPT ao ambiente domiciliar, por uma abordagem ampliada, voltada para atender às necessidades familiares para o cuidado ao RNPT. A educação em Saúde, o uso de informações e orientações adequadas à compreensão de cada cuidador asseguram o entendimento e desenvolvem a competência para o cuidado⁽²⁾.

Confirma-se, pelo estudo, que mães que se sentem empoderadas para cuidar do filho compreendem a importância da continuidade dos cuidados em casa após a alta, o que consequentemente reduz a procura por serviços especializados, bem como diminui a procura por serviços de urgência e emergência e possíveis reinternações⁽²⁴⁾. Isso justifica o estímulo dos profissionais ao empoderamento materno para assegurar o cuidado continuado da criança.

Novamente, é por meio da visita domiciliar que os profissionais podem conhecer a dinâmica das famílias e o contexto em que vivem, abordar assuntos de seu interesse, com orientações que impulsionam escolhas e tomadas de decisão dos pais em prol do cuidado desempenhado, tendo como foco a promoção da parentalidade positiva e o potencial máximo de desenvolvimento dos RNPT⁽²⁵⁾. Além disso, a visita favorece o estabelecimento de vínculo do profissional com a família⁽²⁶⁾, uma estratégia confirmada pelos dados do estudo para assegurar a continuidade do cuidado ao RNPT.

O acesso da criança pré-termo à ONG (desenvolvedora de ações de AB e de ambulatório de atenção especializada), que ocorre de forma desordenada, desarticulada, dissociada, variando entre encaminhamentos realizados pelo hospital, pela AB, pela UPA ou por procura espontânea das famílias, gera insegurança às famílias, mas também aos profissionais de saúde. Porém, isso não impede os últimos de realizar assistência a essa população, embora a falha de comunicação entre os profissionais do hospital e da AB, no processo de referência e contrarreferência, seja um fator impeditivo para o acompanhamento e seguimento das práticas de cuidado^(17-18).

O estudo confirma a fragilidade dos serviços de saúde, particularmente da AB, decorrente de sua não participação na continuidade do cuidado à criança concomitante ao CENNI, exceto para imunização. Corrobora que o pronto-socorro e o pronto atendimento são alternativas para as famílias a fim de resolver os problemas de saúde de baixa e média complexidade de suas crianças^(23,27). Logo, a dificuldade no acesso, no acompanhamento e na resolutividade do cuidado da criança na AB, cujo foco de atenção é voltado à doença, centrado na figura do médico, mostra a necessidade de um cuidado programático ao pré-termo, não apenas à atenção a problemas agudos ocasionados por complicações advindas da prematuridade e na consulta^(23,27-28).

A articulação entre o hospital e a AB deveria configurar-se em uma linha de cuidado, iniciada no pré-natal, ainda na Unidade Básica de Saúde (UBS), com identificação do risco gestacional, seguida pela internação da mãe e do recém-nascido e continuada com o acompanhamento do recém-nascido, da mãe e da família nos diferentes contextos de cuidado, quais sejam a UBS, o serviço especializado ou o domicílio por meio da visita domiciliar⁽⁸⁾. Portanto, assevera-se que, embora a criança pré-termo precise de cuidado especializado, o acompanhamento pela AB deve acontecer. Isso em razão de a UBS estar mais próxima das famílias e ser capaz, por meio do acolhimento e vínculo, de cuidar melhor dos problemas apresentados pela prematuridade. Sendo assim, compreende-se que o serviço de AB deve ser o ordenador do cuidado ao RNPT⁽²²⁾.

Quando a população não usufrui dos vários níveis de complexidade pela falta de um fluxo coeso, tendo que se deparar com serviços burocráticos e desarticulados, significa que os serviços de saúde não são efetivos. Para resolver esse impasse é preciso que a oferta seja revista e as estratégias de atenção à saúde repensadas, através de um processo de (re)organização dos serviços⁽²⁹⁾. A promoção de saúde e o desenvolvimento dos RNPT vão depender, além do engajamento da família, da interação estabelecida entre cada um desses serviços⁽⁸⁾.

Como resposta a essa problemática, os serviços de saúde requerem uma estruturação a partir dos atributos essenciais de AB, quais sejam de acesso, longitudinalidade, integralidade e coordenação, de forma a considerar as necessidades integrais de saúde da criança, da família e do meio em que vivem⁽²⁷⁾.

A desigualdade regional, geográfica e social existente no Brasil, em particular neste estudo, desenvolvido em uma região de fronteira, é uma fragilidade que se configura em um importante problema de saúde pública, que afeta a oferta e o financiamento de serviços, bem como a distribuição de profissionais de saúde. Salienta-se que a concepção de fronteira abrange espaços compartilhados pela população fronteiriça, na dependência mútua entre os países, cuja dinâmica epidemiológica e de saúde torna-se complexa, pois compreendem uma identidade que transcende limites territoriais⁽³⁰⁾.

Por fim, para que haja melhorias no sistema de saúde brasileiro, é necessário o acesso equitativo, a efetividade e eficiência dos serviços à população, com alocação de recursos para melhorar a cobertura de saúde, principalmente em regiões e populações de maior vulnerabilidade, como a deste estudo⁽³¹⁾.

Limitações do estudo

O estudo limitou-se à coleta de dados em um único serviço da rede. Sugere-se investigação em outros serviços para uma maior compreensão do fenômeno em diferentes contextos.

Contribuições para a área da Enfermagem, Saúde ou Política Pública

O estudo apresenta uma contribuição para as políticas públicas, identificando a necessidade de planejar fluxos de referência e contrarreferência do RNPT, com articulação entre os diferentes níveis de atenção em saúde e adequada orientação às famílias, considerando que os espaços são compartilhados pela população fronteiriça.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao compreender o fenômeno da (des)continuidade do cuidado ao RNPT em região de fronteira identifica-se a necessidade de planejar fluxos de referência e contrarreferência do RNPT, com articulação entre os diferentes níveis de atenção em saúde e adequada orientação às famílias. Sugere-se que a AB seja a orientadora da continuidade do cuidado ao RNPT e à sua família, concomitante aos demais serviços da rede, considerando que são compartilhados pela população fronteiriça.

Estratégias para o enfrentamento das condições que interferem e condicionam a descontinuidade do cuidado ao RNPT são necessárias. Sobretudo, há necessidade de comprometimento dos gestores em saúde pública, visto que as principais demandas podem ser supridas se houver uma oferta adequada de serviços e de profissionais para a atenção ao RNPT, com estrutura própria dos serviços às famílias e condições de trabalho decentes para os profissionais, o que pode garantir a continuidade do cuidado.

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Editado por

EDITOR CHEFE: Antonio José de Almeida Filho

EDITOR ASSOCIADO: Hugo Fernandes

Datas de Publicação

• Publicação nesta coleção
  22 Abr 2020
• Data do Fascículo
  2020

Histórico

• Recebido
  22 Out 2018
• Aceito
  01 Mar 2019