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A experiência de famílias rurais frente ao adoecimento por câncer

RESUMO

Objetivo:

Compreender os significados do câncer presentes na experiência de famílias rurais e como esses significados influenciam a dinâmica familiar.

Método:

Estudo qualitativo orientado pelo Interacionismo Simbólico como referencial teórico e pela Teoria Fundamentada nos Dados como referencial metodológico. Participaram, por meio de entrevista, seis famílias rurais (18 participantes) que estavam vivendo a experiência de ter um familiar com câncer.

Resultados:

A análise comparativa constante dos dados permitiu a elaboração de uma teoria substantiva explicativa da experiência, definida pela categoria central Cuidando para manter o mundo da família amparado, que representa as ações e estratégias simbólicas da família visando a conciliar o cuidado do familiar doente e o cuidado da vida familiar.

Considerações finais:

Ao longo da experiência, a família rural procura preservar os elementos simbólicos que, conectados, constituem o amparo do mundo da família: a unidade familiar, a terra, o trabalho e o cuidado.

Descritores:
Família; População Rural; Neoplasias; Cuidado; Enfermagem

ABSTRACT

Objective:

To understand the meanings of cancer within the experience of rural families and how such meanings influence family dynamics.

Method:

Qualitative study guided by Symbolic Interactionism as a theoretical framework and Grounded Theory as a methodological framework. Six rural families (18 participants) undergoing the experience of having a relative with cancer participated in the interview.

Results:

Constant comparative analysis of data allowed the elaboration of an explanatory substantive theory, defined by the main category Caregiving to support the family world, which represents the family's symbolic actions and strategies to reconcile care for the patient and care for family life.

Final considerations:

Throughout the experience, rural families seek to preserve the interconnected symbolic elements that provide support for the family world: family unit, land, work and care.

Descriptors:
Family; Rural Population; Neoplasia; Care; Nursing

RESUMEN

Objetivo:

Entender los significados del padecimiento por cáncer en la experiencia de las familias campesinas, y cómo influyen en el entorno familiar.

Método:

Estudio cualitativo con base teórica en el Interaccionismo Simbólico y metodológica en la Teoría Fundamentada en los Datos. Se entrevistaron a seis familias campesinas (18 participantes) que pasaban por la experiencia de tener un familiar con cáncer.

Resultados:

El análisis comparativo constante de los datos posibilitó la elaboración de una teoría explicativa de la experiencia, con la categoría Cuidando para que se mantenga sostenido el mundo de la familia, que representa las acciones y estrategias simbólicas de la familia con el fin de conciliar el cuidado del familiar enfermo con el cuidado de la vida familiar.

Consideraciones finales:

Durante la experiencia, la familia campesina intenta preservar los elementos simbólicos que interconectados constituyen el sostenimiento del mundo de la familia: la unidad familiar, la tierra, el trabajo y el cuidado.

Descriptores:
Familia; Población Campesina; Neoplasias; Cuidado; Enfermería

INTRODUÇÃO

O adoecimento constitui-se em um dos eventos os quais ocorrem ao longo do desenvolvimento do ciclo vital da família que interferem na homeostase, causam desestabilização da dinâmica familiar e sofrimento a seus integrantes(11 Wright LM, Leahey M. Enfermeiras e famílias: um guia para avaliação e intervenção na família. 5ª ed. São Paulo: Roca; 2012.-22 Vizzachi BA, Daspett C, Cruz MGS, Horta ALM. A dinâmica familiar diante da doença de Alzheimer em um de seus membros. Rev Esc Enferm USP [Internet]. 2015 [cited 2016 May 29];49(6):933-8. Available from: http://www.scielo.br/pdf/reeusp/v49n6/pt_0080-6234-reeusp-49-06-0933.pdf
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). Porquanto a família é um sistema integrado de relações, características deste influenciarão no modo como seus membros vão se organizar e reorganizar para atender as novas demandas e conciliar suas necessidades e o bem-estar da unidade familiar(11 Wright LM, Leahey M. Enfermeiras e famílias: um guia para avaliação e intervenção na família. 5ª ed. São Paulo: Roca; 2012.).

Dinâmica familiar diz respeito à convivência familiar, ou seja, ao modo como os indivíduos se relacionam e se vinculam uns com os outros no cotidiano, permitindo se desenvolver harmonicamente o funcionamento da vida familiar (33 Henao AMG. Recuperación crítica de los conceptos de familia, dinámica familiar y sus características. Rev Virt Univ Católica Norte [Internet]. 2012 [cited 2016 May 29];35:326-45. Available from: http://revistavirtual.ucn.edu.co/index.php/RevistaUCN/article/viewFile/364/679
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). Essa dimensão inclui o domínio instrumental das atividades rotineiras da vida diária e o domínio expressivo ou afetivo, relacionado aos papéis desempenhados por cada um e a solução de problemas(11 Wright LM, Leahey M. Enfermeiras e famílias: um guia para avaliação e intervenção na família. 5ª ed. São Paulo: Roca; 2012.). Envolve relações de colaboração, trocas, poder e conflito entre os membros da família, permeadas pela abertura para comunicação, afeto e nível de coesão do grupo familiar(11 Wright LM, Leahey M. Enfermeiras e famílias: um guia para avaliação e intervenção na família. 5ª ed. São Paulo: Roca; 2012.,33 Henao AMG. Recuperación crítica de los conceptos de familia, dinámica familiar y sus características. Rev Virt Univ Católica Norte [Internet]. 2012 [cited 2016 May 29];35:326-45. Available from: http://revistavirtual.ucn.edu.co/index.php/RevistaUCN/article/viewFile/364/679
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).

Para acessar a dinâmica das famílias, é necessário conhecer os padrões interacionais sistêmicos desenvolvidos diante de eventos considerados problema, uma vez que estes correspondem ao modo comportamental com o qual o grupo familiar responde, no decorrer do tempo, aos eventos do cotidiano(11 Wright LM, Leahey M. Enfermeiras e famílias: um guia para avaliação e intervenção na família. 5ª ed. São Paulo: Roca; 2012.).

Nessa perspectiva, o adoecimento por câncer constitui-se em um evento que traz importantes alterações ao funcionamento familiar, seja pela trajetória da doença, repercussões físicas e psicológicas, percepção de finitude da vida, seja pelos mitos e fantasias em torno da pessoa doente e do seu tratamento(44 Farinhas GV, Wendling MI, Dellazzana-Zanon LL. Impacto psicológico do diagnóstico de câncer na família: um estudo de caso a partir da percepção do cuidador. Pensando Fam. [Internet]. 2013 [cited 2016 May 29];17(2):11-129. Available from: http://pepsic.bvsalud.org/pdf/penf/v17n2/v17n2a09.pdf
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). Temáticas relacionadas ao adoecimento por câncer na família têm sido amplamente exploradas na literatura(55 Li Q, Loke AY. A literature review on the mutual impact of the spousal caregiver-cancer patients dyads: 'communication', 'reciprocal influence', and 'caregiver-patient congruence'. Eur J Oncol Nurs [Internet]. 2014 [cited 2016 May 29];18(1):58-65. Available from: http://www.ejoncologynursing.com/article/S1462-3889(13)00099-9/pdf
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6 Mathias CV, Girardon-Perlini NMO, Mistura C, Jacobi CS, Stamm B. Adoecimento de adultos por câncer e a repercussão na família: uma revisão da literatura. Rev Atenção Saúde [Internet]. 2015 [cited 2016 May 29];13(45):80-6. Available from: http://seer.uscs.edu.br/index.php/revista_ciencias_saude/article/view/2818
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-77 Laidsaar-Powell R, Butow P, Bu S, Charles C, Gafni A, Fisher A, Juraskova I. Family involvement in cancer treatment decision-making: a qualitative study of patient, family, and clinician attitudes and experiences. Patient Educ Couns [Internet]. 2016 [cited 2016 May 29]; in press. Available from: http://www-sciencedirect-com.ez47.periodicos.capes.gov.br/science/article/pii/S0738399116300350
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). Uma das evidências dos estudos refere-se ao medo envolvendo o adoecer por câncer, presente nas diferentes fases da experiência, mas nem sempre explicitado e compartilhado pelos membros família(44 Farinhas GV, Wendling MI, Dellazzana-Zanon LL. Impacto psicológico do diagnóstico de câncer na família: um estudo de caso a partir da percepção do cuidador. Pensando Fam. [Internet]. 2013 [cited 2016 May 29];17(2):11-129. Available from: http://pepsic.bvsalud.org/pdf/penf/v17n2/v17n2a09.pdf
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,88 Piolli KC, Medeiros M, Sales CA. Significations of being the caregiver of the companion with cancer: an existential look. Rev Bras Enferm [Internet]. 2016 [cited 2016 May 29];69(1):99-105. Available from: http://www.scielo.br/pdf/reben/v69n1/en_0034-7167-reben-69-01-0110.pdf
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-99 Grob SE, Nitzsche A, Gloede TD, Ansmann L, Street R, Pfaff H et al. The initial clinical interview can it reduce cancer patients' fear? Support Care Cancer [Internet]. 2015 [cited 2016 May 29];23(4):977-84. Available from: http://link-springer-com.ez47.periodicos.capes.gov.br/article/10.1007/s00520-014-2450-6/fulltext.html
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).

Os medos do câncer estão associados ao contexto simbólico de incerteza, dor, sofrimento relacionados, dentre outros aspectos, à construção histórico-social dos significados da doença, que se associam à dor, à morte, à culpa, ao medo e à estigmatização social(1010 Tavares JSC, Trad LAB. Metáforas e significados do câncer de mama na perspectiva de cinco famílias afetadas. Cad Saúde Pública [Internet]. 2005 [cited 2016 May 29];21(2):426-35. Available from: http://www.scielo.br/pdf/csp/v21n2/09.pdf
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). Além disso, o discurso presente nos meios de comunicação, a alta incidência, as repercussões psicossociais e as incertezas quanto à etiologia e ao tratamento revestem o câncer de valor simbólico, pois a ele são "projetados os maiores medos e, também, os maiores males"(1010 Tavares JSC, Trad LAB. Metáforas e significados do câncer de mama na perspectiva de cinco famílias afetadas. Cad Saúde Pública [Internet]. 2005 [cited 2016 May 29];21(2):426-35. Available from: http://www.scielo.br/pdf/csp/v21n2/09.pdf
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11 Beach WA, Easter DW, Good JS, Pigeronc E. Disclosing and responding to cancer "fears" during oncology interviews. Soc Sci Med [Internet]. 2005 [cited 2016 May 29];60(4):893-910. Available from: http://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0277953604003156
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-1212 Clarke JN, Everest MM. Cancer in the mass print media: fear, uncertainty and the medical model. Soc Sci Med [Internet]. 2006 [cited 2016 May 29];62(10)2591-600. Available from: http://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0277953605006088
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).

Nesse sentido, o medo do diagnóstico, do tratamento, da recidiva, da progressão da doença e da morte(44 Farinhas GV, Wendling MI, Dellazzana-Zanon LL. Impacto psicológico do diagnóstico de câncer na família: um estudo de caso a partir da percepção do cuidador. Pensando Fam. [Internet]. 2013 [cited 2016 May 29];17(2):11-129. Available from: http://pepsic.bvsalud.org/pdf/penf/v17n2/v17n2a09.pdf
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,1313 McCarthy B, Andrews T, Hegarty J. Emotional resistance building: how family members of loved ones undergoing chemotherapy treatment process their fear of emotional collapse. J Adv Nurs [Internet]. 2015 [cited 2016 May 29];71(4):837-48. Available from: http://onlinelibrary-wiley-com.ez47.periodicos.capes.gov.br/doi/10.1111/jan.12549/epdf
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14 Dunn LB, Langford DJ, Paul SM, Berman MB, Shumay DM, Kober K, et al. Trajectories of fear of recurrence in women with breast cancer. Support Care Cancer [Internet]. 2015 [cited 2016 May 29]; 23(7):2033-43. Available from: http://link-springer-com.ez47.periodicos.capes.gov.br/article/10.1007/s00520-014-2513-8/fulltext.html
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-1515 Simard S, Thewes B, Humphris G, Dixon M, Hayden C, Mireskandari S, Ozakinci G. Fear of cancer recurrence in adult cancer survivors: a systematic review of quantitative studies. J Cancer Surviv [Internet]. 2013 [cited 2016 May 29];7(3):300-22. Available from: http://link-springer-com.ez47.periodicos.capes.gov.br/article/10.1007/s11764-013-0272-z/fulltext.html
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) é abordado como intrínseco ao processo do adoecer por câncer sem que o significado atribuído a esse sentimento e o modo pelo qual este interfere na dinâmica familiar sejam, ainda, suficientemente compreendidos.

Constata-se, também, que a maioria dos estudos realizados tem como foco a realidade das populações residentes em ambiente urbano, embora dados demográficos indiquem que aproximadamente metade da população mundial encontra-se vivendo em áreas rurais(1616 Relatório sobre a Situação da População Mundial 2011. Divisão de Informações e Relações Externas do UNFPA. Fundo de População das Nações Unidas[Internet]. 2011 [cited 2016 May 29]. Available from: http://www.un.cv/files/PT-SWOP11-WEB.pdf
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). No Brasil, 18,7% da população é caracterizada como rural pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)(1717 Brasil. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Sinopse do Censo demográfico 2010[Internet]. 2011 [cited 2016 May 29]. Available from: http://www.censo2010.ibge.gov.br/sinopse/index.php?dados=8
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).

Nesse sentido, identifica-se uma lacuna na literatura especializada relacionada a medos do câncer presentes na experiência de famílias rurais. Assim, considerando-se a necessidade de ampliar conhecimentos relativos ao contexto de vida de famílias rurais e de compreender o modo como os significados atribuídos ao medo do câncer influenciam o padrão de funcionamento familiar, procura-se, por meio desta investigação, uma aproximação à experiência dessas famílias. Portanto, o presente estudo tem como objetivos compreender os significados do câncer presentes na experiência de famílias rurais e compreender como esses significados influenciam na dinâmica familiar.

MÉTODO

Aspectos éticos

O Projeto de Pesquisa foi analisado e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo (CEP/EEUSP). Os participantes do estudo assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido após serem informados sobre os objetivos, a metodologia da pesquisa e os direitos previstos na Resolução 196/96 vigente na época. No estudo, as famílias são identificadas com a letra F seguida do número cardinal correspondente à sequência das entrevistas.

Tipo de estudo e referencial teórico-metodológico

Esta é uma investigação qualitativa orientada pelo Interacionismo Simbólico como referencial teórico(1818 Charon JM. Symbolic interacionism: an introduction an interpretation, an integration. 10ª ed. Englewood Cliffs: Prentice-Hall, 2009.). O referencial metodológico que sustenta a condução do estudo é a Teoria Fundamentada nos Dados (TFD), Grounded Theory, em inglês, a qual possibilita estudar o comportamento e a interação humana fazendo emergir uma teoria explicativa com base na categoria conceitual que emerge dos dados e dos conceitos relacionados(1919 Glaser B, Strauss A. The discovery of grounded theory. Chicago: Aldine, 1967.).

Procedimentos metodológicos

Cenário do estudo

O local eleito para captação das famílias foi um serviço especializado em oncologia, referência para os municípios da região noroeste do estado do Rio Grande do Sul: o Centro de Alta Complexidade Oncológica (CACON) que funciona junto ao Hospital de Caridade de Ijuí (HCI), na cidade de Ijuí/RS.

Fonte de dados

Os participantes do estudo foram definidos pela amostragem teórica, sendo entrevistadas seis famílias rurais, totalizando 18 pessoas e três grupos amostrais. Como critério de inclusão, definiu-se que os participantes deveriam ter idade superior a 18 anos, estar cientes do diagnóstico médico e, no momento da entrevista, estar presentes, no mínimo, duas pessoas adultas da família. Uma delas poderia ser o próprio doente. A decisão de quais membros da família participaria da entrevista foi da própria família. Com duas famílias houve mais de um contato.

Coleta e organização dos dados

No processo de coleta dos dados, efetivado entre 2007 e 2008, utilizou-se como estratégia a observação simples e a entrevista. Em diferentes setores do serviço de oncologia foi observado o comportamento e as interações dos familiares e das pessoas doentes durante a permanência no ambiente hospitalar. Os dados observados foram registrados em um diário de campo e auxiliaram a orientar a entrevista.

Esta constou de ficha com dados sociodemográficos da família e da pessoa doente, o genograma da família(11 Wright LM, Leahey M. Enfermeiras e famílias: um guia para avaliação e intervenção na família. 5ª ed. São Paulo: Roca; 2012.) e questões sobre a experiência da família, iniciadas com a seguinte pergunta: Como tem sido para a família este tempo de adoecimento?

Conforme o conteúdo das respostas e a orientação da pesquisa, outras perguntas iam sendo formuladas, sendo incluídas perguntas circulares(11 Wright LM, Leahey M. Enfermeiras e famílias: um guia para avaliação e intervenção na família. 5ª ed. São Paulo: Roca; 2012.) no decorrer da entrevista. As perguntas circulares permitiram elucidar as diferenças entre os membros da família referentes a relacionamentos, ideias, crenças, pensamentos em relação ao adoecimento e ao futuro, assim como resgatar a história de vida da família; e ajudaram a entender o movimento do sistema familiar através do tempo. As entrevistas foram realizadas de acordo com a disponibilidade das famílias, sendo duas na unidade de internação, duas no consultório do ambulatório de oncologia e duas na casa das famílias.

Análise dos dados

A análise dos dados seguiu o Método Comparativo Constante da Teoria Fundamentada nos Dados, composto de quatro estágios: comparar incidentes aplicáveis para cada categoria, integrar as categorias e suas propriedades, delimitar a teoria e escrever a teoria(1919 Glaser B, Strauss A. The discovery of grounded theory. Chicago: Aldine, 1967.). Do processo de análise proposto, organizaram-se 11 categorias: Pertencendo a um mundo rural, que apresenta o contexto de vida dos participantes do estudo e permite uma aproximação com aspectos da trajetória de vida da família rural; Percebendo o mundo ameaçado; Tendo o mundo invadido pelo câncer e Sentindo-se desamparado, que representam as percepções e definições da família em relação ao adoecimento; Buscando readquirir segurança; Mobilizando as forças da família e Sentindo-se amparada, referentes às estratégias e ações empreendidas no decorrer da experiência; Interagindo com uma realidade diferente e urbana; Construindo uma nova forma de funcionar e Aceitando os fatos, as quais apresentam as consequências das ações empreendidas; e Reorganizando o mundo da família, que permite vislumbrar a continuidade da vida da família. Essas categorias inter-relacionadas e articuladas sustentam a categoria central Cuidando para manter o mundo da família amparado, a qual permite compreender a dinâmica da família rural no decorrer da experiência de adoecimento por câncer e nomina o modelo teórico.

A validação do modelo teórico foi realizada por famílias participantes e não participantes do estudo. Na descrição dos resultados, as categorias encontram-se com a letra inicial maiúscula e em itálico.

RESULTADOS

Dentre as seis famílias entrevistadas, houve a participação de cinco pessoas doentes, quatro cônjuges, duas noras, uma irmã, três filhos, um cunhado, uma sogra e uma comadre. Todas as famílias eram proprietárias da terra onde desenvolviam atividade agrícola, sendo que quatro dedicavam-se, também, à produção leiteira. A renda familiar - da qual dependiam, em média, duas pessoas - variava de menos de um salário mínimo nacional até cinco salários. A distância das residências das famílias em relação ao CACON foi de quatro a 235 quilômetros. A idade das pessoas doentes variou de 37 a 67 anos, com média de 55 anos. Eram três homens e três mulheres. O tempo de diagnóstico foi de dois a 72 meses, numa média de 25 meses.

A análise permitiu desenvolver uma teoria substantiva fundamentada nos dados, possibilitando compreender a dinâmica das famílias rurais que experienciam o adoecimento de um de seus membros por câncer. As ações da família no decorrer do processo de adoecimento evidenciam a natureza dos significados do câncer e o modo como estes influenciam no funcionamento das famílias.

As categorias identificadas e as interligações teóricas elaboradas dizem respeito às contínuas e sucessivas definições, decisões e ações familiares para cuidar do mundo da família e mantê-lo amparado, representando, assim, o significado simbólico dessa experiência para a família. O modo como as categorias interagem e se integram tornou possível identificar a categoria central, denominada "Cuidando para manter o mundo da família amparado", que permite apreender o significado do movimento empreendido pela família rural ao longo da experiência de adoecimento.

A articulação da categoria central e as demais categorias geradas permitiu a construção do modelo teórico (Figura 1) que representa a trajetória e a dinâmica da família rural no decorrer da experiência. O modelo teórico explicita os conceitos e suas propriedades num processo que evidencia o movimento da família rural ao longo do tempo, enfatizando o contexto, as condições, as estratégias e as consequências definidoras da experiência.

Figura 1
Diagrama representativo do modelo teorico Cuidando para manter o mundo da familia amparado

Cuidando para manter o mundo da família amparado representa as ações e estratégias simbólicas da família, visando conciliar o cuidado do familiar doente e o cuidado da vida familiar e, dessa maneira, preservar os elementos que, conectados, constituem o mundo da família rural.

Pertencendo a um mundo rural explicita o contexto onde a experiência da família ocorre. É na perspectiva desse contexto - expresso por um conjunto de significados, valores e crenças, partilhados pelas pessoas dessa sociedade, gerador de uma cultura peculiar - que a família interage, age e atribui significado à vivência de ter um familiar com diagnóstico de câncer.

Nesse processo interacional, cada membro da família interage trazendo, para o presente, os significados que os objetos sociais, as experiências do passado, os grupos de referência, crenças e perspectivas do futuro têm para si. Esses significados derivam da interação social e do constante processo de socialização de cada membro da família e da família entre si. Assim, é com referência nesses elementos que a família rural interpreta, define e decide o que fazer na situação para resolver os problemas decorrentes do adoecimento vivido no presente.

Nós tínhamos bloco de agricultor, plantava e colhia tudo no bloco, nós erámos dono de terra. Temos tudo que comprova que nós éramos dono de terra. (F1 - familiar doente)

Eu tenho filhos que queriam demais que eu fosse embora. Eles são bem situados na vida. Teria tudo sem trabalhar, mas eu fui criado pra fora. [...] Se eu fosse pra um apartamento, eu me terminava logo. A gente é acostumado na lida, a estar livre, a lidar com o bicharedo... Aqui eu estou num lugar que eu gostaria de estar! [...] Eu sabia que, se eu fosse para um apartamento, não era o meu espaço. (F5 - esposo)

Percebendo o mundo ameaçado é a condição causal da experiência, derivada da percepção das alterações orgânicas do familiar, a qual conduz a suspeita do diagnóstico de câncer. A percepção da ameaça mobiliza a família a interagir com os objetos sociais, identificando os elementos simbólicos presentes na situação; e, numa atividade mental encoberta, a fazer indicações para si, atribuir significados, interpretar o que está vivendo e definir a realidade.

Começou com tosse. Primeiro, ele tomava calmante e acalmava, e nós telefonávamos. Depois, já não era a mesma coisa e quando nós vimos que não dava mais, levamos ele consultar, para ver o que tinha. (F3 - cunhado)

Eu achava que não era boa coisa. Só que eu falava pra ele e... E a gente na campanha vai aguentando até o último... Ele dizia para esperar um pouco, que ia melhorar. E agora está assim... Tudo por deixar, ir deixando, deixando... A gente vai aguentando até o último. (F4 - esposa)

A consequência desse processo simbólico, associada à confirmação do diagnóstico, leva a família rural a definir, inicialmente, a experiência como Tendo o mundo invadido pelo câncer.

Pra ele [referindo-se ao filho] foi um choque medonho, porque antes eu podia fazer, ajudar e agora está tudo em cima dele, caiu tudo em cima dele, é lenha, pasto, milho, roça, vaca... (F2 - familiar doente)

Ela se sentia... Não sei o que ela sentia. Te lembra? Uma vez, acho que uns dois anos atrás, ela comprou chocolate e deu para cada filho (choro). Ela disse que não sabia se ela poderia alcançar o outro ano. Então, o pensar dela era... Era só pensar naquilo que ela dizia... Isso foi na Páscoa. (F6 - esposo)

Na sequência da experiência, Sentindo-se desamparada é consequência da interação simbólica da família com esta definição e resulta na vivência de temores e preocupações relacionados ao familiar doente e ao mundo da família. A família sente-se desamparada, percebendo-se em um ambiente hostil, ao sentir-se desprotegida, ao reconhecer suas dificuldades, ao lidar com o próprio desconhecimento sobre a doença e/ou ao defrontar-se com as incertezas em relação ao futuro.

Como é que vai ser pra essa mulher ir para um hospital grande desses?! (F5 - esposo)

Ele disse: eu vou vir morar aqui com vocês! Eu dou as terras pra vocês e vocês me cuidam. (F3 - irmã)

A gente não tem de onde tirar, tem que aguentar, passar faltas e passar, porque, que nem uma pessoa que tem salário, ele tem. Nós não temos. Tem que saber controlar tudo, troquinho por troquinho. (F1 - esposo)

Cuidando para manter o mundo da família amparado, no início da experiência, compreende as estratégias simbólicas que a família precisa implementar para ajustar-se à ameaça imposta pelo câncer sobre a vida familiar. Nesse momento, a família orienta as ações de cuidado para resolver o problema do familiar doente e aliviar seu sentimento de desamparo.

Buscando readquirir segurança é consequência das sensações iniciais experienciadas pela família e, ao mesmo tempo, é condição causal do agir empreendido pela família rural face à ameaça do câncer, caracterizado pelo seu movimento em direção aos recursos de apoio para o manejo da doença e o manejo da vida familiar. Ao refletir sobre as alternativas possíveis, a família decide agir, deslocando-se em busca de ajuda especializada, gastando os recursos da terra, cuidando da unidade familiar, buscando explicação para a doença e acionando os serviços de saúde.

A primeira coisa que fizemos, foi procurar recurso médico. Primeira coisa é médico. E o sistema público de saúde, porque condições a gente nunca teve. Até hoje se tratando pelo SUS. (F1- esposo)

O doutor B. e o doutor C. era particular... Eles não atendiam pelo SUS. Daí nós pagamos, para conseguir mais ligeiro. Então, a gente pagou, gastou meio bastante, mas se é pra viver... (F3 - cunhado)

Paralelamente a esse conjunto de ações, a família passa a implementar também estratégias do domínio relacional, Mobilizando as forças da família a fim de ampliar o seu potencial para resolução dos problemas. As forças relacionais da família evidenciam-se em a família sentindo-se capaz de cuidar, estabelecendo conexões, conversando sobre o adoecimento e aceitando ajuda.

O milho que eu plantei este ano está lá. Um vizinho vai colher pra mim. Eu não tenho como sair daqui. (F4 - familiar doente)

Essa filha de Goiás está vindo de volta pra morar. Ela vem por causa de nós! Botaram fora todas as coisas que tinham por causa de nós. (F1- familiar doente)

(Pesquisadora: - O que vocês pensam sobre essa decisão?) - A decisão dela foi uma das melhores coisas possíveis, porque ela largou tudo, as coisas dela, a casa dela, largou tudo que tinha pra vir cuidar de nós [...]. (F1 - esposo)

Esses dois conceitos Buscando readquirir segurança e Mobilizando as forças da família, aludem, portanto, ao significado interacional presente no resultado do alinhamento das ações individuais e relacionais de seus integrantes, que mobilizam o sistema familiar no sentido de agir cooperativamente na solução do problema.

Referem-se à criação de um contexto relacional que possibilita à pessoa colocar-se no lugar do outro e, por meio da comunicação simbólica, capturar sua perspectiva, alinhando seus atos aos atos dele para, então, agir cooperativamente, articulando estratégias que ajudem no atendimento de suas atuais necessidades.

A articulação bem-sucedida dessas estratégias influencia a família a redefinir a situação e ressignificar a experiência, sentindo-se amparada. Sentindo-se amparada representa, portanto, o sentimento da família ante a redefinição do presente. Esse sentimento é consequência do modo como a família rural interpreta os contextos relacional e interpessoal vividos na unidade familiar e no ambiente dos serviços de saúde com os profissionais. O sentimento de amparo advém da percepção de estar sentindo-se protegida pela família, sentindo-se amparada pela comunidade e sentindo-se acolhida nos serviços de saúde.

Quando eu fiquei sabendo, disse: "eu te acompanho até chegar lá. Eu te acompanho em Ijuí, pra onde tu for, se for preciso ir a São Paulo, eu vou contigo. Eu sou teu parceiro.... (F5 - esposo)

Foi difícil. Mas depois, com ajuda dos vizinhos, todos ajudaram, deram uma mão. Vinham quando ela estava doente, a comadre aqui vinha, ajudava, fazia as lidas da casa. Sempre estavam fazendo os serviços pra mim também. Ajudavam a distrair e tudo. (F6 - esposo)

As estratégias da família, nesse momento da experiência, evidenciam definições construídas coletivamente pelas pessoas envolvidas (pessoa doente, familiares, vizinhos, pessoas da comunidade). Com isso, Cuidando para manter o mundo da família amparado revela o funcionamento da família condicionado pela habilidade interacional para assumir o papel do outro, pelo alinhamento das ações individuais e pela cooperação na solução dos problemas.

Interagindo com uma realidade diferente e urbana é consequência da necessidade de manejar a situação de doença do familiar, que amplia o contexto onde a experiência ocorre, evidenciado pela necessidade de interagir no contexto rural e também no urbano, onde se localizam os recursos terapêuticos.

O pior é quando precisa ficar internado no hospital. No hospital é brabo, porque a gente não mora aqui. É difícil ter que ficar dia e noite cuidando, dormir no chão, sentado ou em qualquer outro lugar. Isso sim, é que é difícil. (F2 - nora)

Na doença, com o doente, você vai aprendendo a cada dia. É a mesma coisa que está acontecendo agora. Tu vais vendo, vai ouvindo e vai aprendendo, eles vão te explicando. Então, tu já sabe, porque até hoje eu não ouvi dizer de alguém que não conseguiu lidar com a situação do doente. (F3 - irmã)

Interagir num contexto ampliado impõe à família a necessidade de redefinir uma nova realidade, tanto geográfica como de possibilidades de ação e interação; e de estabelecer um novo curso de ação, Construindo uma nova forma de funcionar, para garantir o cuidado do familiar doente, o funcionamento e o amparo da família como um todo. A família age ajustando-se às condições decorrentes da doença, às necessidades do familiar, às necessidades da família, modificando o modo de trabalhar e tomando como função cuidar da pessoa doente.

Ele dizia que não gostava de iogurte, mas até começou a gostar. Iogurte era uma coisa fina e fresquinha, ai ele comia até bastante. Pegava uma colherinha e comia, bem devagar, mesmo com a sonda. (F3 - irmã)

Tenho que levantar mais cedo e fazer as coisas, porque ela não pode ajudar. Levanto às 5 horas. Faço fogo, boto o feijão no fogo e vou para a lavoura. Aí venho ao meio-dia... Este ano tive que arrendar minhas lavouras, porque não dava mais. Em casa, tinha que cuidar dela. E não tinha quem trabalhasse... (F1 - esposo)

As definições feitas pela família em relação à situação vivida no presente estabelecem sua linha de pensamento às ações em relação ao futuro. No decorrer da experiência, a família, continuadamente, empreende uma ação mental construída pela sua interação com a situação de doença, com os contextos de tratamento e de cuidado, dos quais emergem crenças e definições acerca do processo de adoecimento como parte do ciclo de vida e do sentido da vida e da morte.

Essa ação mental, denominada Aceitando os fatos - a qual evidencia algumas crenças e pensamentos já consolidados na família e outros gerados pela nova situação -, é a condição que possibilita incorporar a experiência como um evento inerente ao ciclo vital e atingir as metas familiares. Aceitando os fatos é consequência da interação ocorrida com o self de cada membro da família, resultando na interpretação das interações e dos eventos que compõem a experiência da família rural ao longo do tempo de adoecimento de seu familiar.

Eu penso que eu tenho que esperar para ver o que vai vir pra mim. Não tenho que pensar lá na frente. Pode ser que, às vezes, há de vir uma coisa prolongada ou que seja bem rápida. Pode ser que eu piore, mas também que fique bom, que sare e eu possa me esquecer disso aí, mas, mundo é mundo, tem que viver e acho que é mais ou menos isso... (F2 - familiar doente)

O que é pra gente passar a gente vai passar, ninguém vai passar por nós essas coisas. Assim, o que é pra gente ninguém ajuda e ninguém tira da gente. Deus não manda mensagem e não avisa ninguém. (F1 - familiar doente)

Com a evolução da experiência, e conforme a família vai ampliando contextos e recursos para manejá-la e defini-la, Cuidando para manter o mundo da família amparado evidencia ações da família e estratégias de pensamento que possibilitam dar continuidade aos cuidados do familiar doente, ajustar-se à realidade dos limites do tratamento e da vida e garantir a preservação da unidade familiar.

Nesse sentido, a depender do curso da doença e de seu impacto sobre a vida da família, Reorganizando o mundo da família é estratégia que permite a continuidade da experiência pela família, seja aprendendo a conviver com o câncer e seus limites ou aprendendo a recomeçar face a ausência de um membro da família.

Eu estou aqui sozinho, agora. Estou meio perdido. De noite é pior. Não tem com quem conversar. Daí a gente sente a falta, fica pensando... (F1- esposo)

Difícil agora é o trabalho, a ligação dela com os afazeres. Ela bota na cabeça, tem que fazer isso, fazer aquilo. Ela precisa se descarregar dessas coisas. Para que tanta preocupação com o serviço? (F6- filho)

Fazia cinco anos que eu era viúvo. Ela fazia sete. Eu morava num casarão, sozinho... Tinha que arrumar uma pessoa, porque a gente... Fica uma coisa muito ruim sozinho. Quando nos encontramos... Eu, pra mim, tinha enxergado a minha falecida patroa! Eu levei um susto! (F5 - esposo)

Embora o câncer cause um grande impacto na vida da família rural, que mobiliza recursos internos e externos à família para o seu cuidado, os medos e a ameaça do câncer são por ela definidos numa perspectiva sistêmica. Como demonstrado na articulação das categorias, Cuidando para manter o mundo da família amparado evidencia o persistente movimento de cuidado da família ao longo da experiência, para preservar os elementos simbólicos que constituem o amparo do mundo da família: a unidade familiar, a terra, o trabalho e o cuidado. Assim, a experiência da família rural, frente ao adoecimento por câncer, consiste num processo que abrange cada dimensão da vida familiar e que movimenta, em decorrência, o mundo da família, embora delimitado ao período da doença. É como se todo o ciclo de vida familiar pudesse estar contido nesse pequeno recorte.

DISCUSSÃO

O modelo ora apresentado deriva-se da experiência vivida pela família rural frente ao adoecimento de um de seus membros por câncer e, assumindo a perspectiva do Interacionismo Simbólico, retrata a vivência familiar como um processo dinâmico e sistêmico no qual todos os integrantes assumem, o tempo todo, um papel ativo nesse processo, o que complementa o modelo desenvolvido em relação à experiência de adoecimento de indivíduos ao apresentar um elemento que procura explicar como a família funciona no contexto de adoecimento(2020 Morse MM, Johnson JL. The illness experience: dimensions of suffering. Newbury Park: Sage. 1991.).

Com apoio do construto interacionista de família(2121 Angelo M. Com a família em tempos difíceis: uma perspectiva de enfermagem. [Tese]. Escola de Enfermagem, Universidade de São Paulo. 1997. 117p.), defende-se a ideia de que o modo como a família age diante da situação de adoecimento é fruto de uma interação simbólica compartilhada entre as pessoas da família e as demais, em que a interpretação e definição da situação conduz a uma perspectiva comum, em cuja direção ocorre o alinhamento das ações individuais para que cooperativamente todos ajam na resolução do problema.

Essa afirmação pode ser constatada na coesão grupal que existe na maioria das comunidades rurais e nos movimentos sociais no campo. O elemento decisivo, para a aglutinação das pessoas em torno de determinada causa, é a ação coletiva simbólica, promotora do alinhamento individual das ações e do agir cooperativo(2222 Woortmann K. "Com parente não se neguceia" O campesinato como ordem moral. Anuário Antropológico/87. Brasília: Editora Universitária de Brasília/Tempo Brasileiro, 1990.).

O significado presente nessas ações de interação social cooperativa e recíproca entre as famílias rurais é promover estratégias que possibilitem à família conquistar e manter-se na terra, desenvolver seu espaço e recursos de trabalho(2323 Severo DO, Da Ros MA. The landless rural workers' movement and National Health System (SUS) social control: perspective of the national collective of health. Saude Soc. 2012; 21(supl.1):177-84.), propiciando, assim, que o mundo da família mantenha-se amparado. Nessa perspectiva, pode-se inferir que o cuidado advindo da capacidade de colocar-se no lugar do outro se constitui na cápsula protetora das famílias na comunidade rural.

O Modelo Teórico representativo da experiência da família rural torna possível compreender, a partir do contexto de vida rural, o funcionamento familiar no decorrer da trajetória do adoecimento por câncer, na busca para manter a integridade, a estabilidade e a homeostasia do sistema(33 Henao AMG. Recuperación crítica de los conceptos de familia, dinámica familiar y sus características. Rev Virt Univ Católica Norte [Internet]. 2012 [cited 2016 May 29];35:326-45. Available from: http://revistavirtual.ucn.edu.co/index.php/RevistaUCN/article/viewFile/364/679
http://revistavirtual.ucn.edu.co/index.p...
). A necessidade de a família distanciar-se de seu ambiente para manejar com a doença a conduz a um cenário no qual se explicitam dificuldades e desafios relacionados à distância e ao deslocamento, à ausência de infraestrutura e de recursos dos serviços de saúde locais para a solução de problemas. Embora estudos realizados mencionem que existam pontos comuns na experiência de adoecimento entre famílias urbanas e rurais, os aspectos relacionados à distância do local do tratamento são as principais diferenças(2424 Brazil K, Kaasalainen S, Williams A, Rodriguez C. Comparing the experiences of rural and urban family caregivers of the terminally ill. Rural Remote Health [Internet]. 2013 [cited 2016 May 29];13(1):2250. Available from: http://www.rrh.org.au/publishedarticles/article_print_2250.pdf
http://www.rrh.org.au/publishedarticles/...
).

A complexidade da trama que envolve as famílias diante do adoecimento de um de seus familiares por câncer confirma o descrito na literatura acerca dos resultados de investigações conduzidas com a finalidade de compreender a experiência e as necessidades das famílias que vivem longe dos centros de tratamento, o que pressupõe a existência de similaridades nas vivências, inerentes à vida na área rural, independentemente de nação(2424 Brazil K, Kaasalainen S, Williams A, Rodriguez C. Comparing the experiences of rural and urban family caregivers of the terminally ill. Rural Remote Health [Internet]. 2013 [cited 2016 May 29];13(1):2250. Available from: http://www.rrh.org.au/publishedarticles/article_print_2250.pdf
http://www.rrh.org.au/publishedarticles/...
-2525 Miedema B, Easley JKE, Robinson LM. Comparing urban and rural young adult cancer survivors' experiences: a qualitative study. Rural Remote Health [Internet]. 2013 [cited 2016 May 29];13:2324. Available from: http://www.rrh.org.au/publishedarticles/article_print_2324.pdf
http://www.rrh.org.au/publishedarticles/...
).

Nesse sentido, revisão de literatura que buscou conhecer a experiência e as necessidades de pessoas residentes em áreas urbanas e rurais identificou que a maioria dos estudos apresentava piores resultados para os pacientes rurais, os quais pareciam ter necessidades mais elevadas nos domínios físicos e da vida diária. A necessidade de viajar para o tratamento causou muitos problemas práticos, emocionais e financeiros para os pacientes, sobrecarregando-os com preocupação adicional sobre compromissos familiares e profissionais. Embora compartilhar experiências com outras pessoas que também permanecem longe de casa tenha sido considerado benéfico por algumas pessoas, a maioria concordou que ficar em casa era preferível(2626 Butow PN, Phillips F, Schweder J, White K, Underhill C, Goldstein D. Psychosocial well-being and supportive care needs of cancer patients living in urban and rural/regional areas: a systematic review. Support Care Cancer [Internet]. 2012 [cited 2016 May 29];20(1):1-22. Available from: http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/21956760
http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/21956...
). Esses resultados mostram-se semelhantes aos obtidos na presente investigação.

Os estudos sobre a temática descrevem as inúmeras condições adversas vividas pelas famílias que precisam se deslocar do meio rural para o urbano em função de tratamento oncológico, sugerindo que, nesse contexto de vulnerabilidade ao qual a família se submete, está o sentimento de desamparo. No entanto, esse conceito, como um significado simbólico do processo interacional em situação de adoecimento, não está claramente evidenciado na literatura.

A ideia apresentada permite compreender o sentimento de desamparo como estando relacionado a uma perspectiva familiar muito mais complexa que a desestabilização da família ante as mudanças na organização da vida familiar, decorrentes da necessidade de afastamento para o tratamento e o desenvolvimento de habilidades específicas para o manejo da doença.

Limitações do estudo

Considera-se como limitação do estudo o quantitativo de famílias participantes e o fato de serem famílias oriundas de pequenas propriedades rurais, o que restringe a possibilidade de generalização dos resultados a esse contingente sociocultural.

Contribuições para a área da enfermagem

No que se refere às implicações do Modelo Teórico Cuidando para manter o mundo da família amparado para a área da enfermagem, entende-se que este pode contribuir para direcionar o ensino e a ação dos enfermeiros frente ao fenômeno família, permitindo aproximar-se de suas experiências, compreender seus medos e, em consequência, propor estratégias de cuidado as quais se alinhem à criação de um contexto relacional cooperativo que tenha como perspectiva o amparo da família.

No âmbito da pesquisa, considerando que os modelos teóricos não se esgotam em si, estes precisam ser validados e ampliados e também experimentados no ensino, na prática clínica e na pesquisa. A compreensão a respeito de problemas e das dimensões que envolvem o funcionamento das famílias rurais frente ao adoecimento em outras situações e em outros contextos geográficos pode contribuir para o avanço teórico e prático da enfermagem de família.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A experiência de adoecimento por câncer para as famílias rurais configura-se uma situação a qual compromete os elementos simbólicos que conferem significado à vida rural. A doença põe em risco a família como unidade, interfere na dinâmica do trabalho familiar, aumenta as exigências de cuidado e ameaça a terra. Na composição que se configura, a família, pela ação coletiva simbólica, define a situação e sente-se desamparada ao perceber seu mundo ameaçado. Assim, a percepção de ameaça a um desses elementos simbólicos da família resulta no sentimento de desamparo.

O modelo elaborado representa um avanço nos conhecimentos relativos à temática família por explicitar o modo como os elementos simbólicos, presentes na experiência da família rural frente ao adoecimento por câncer, influenciam a dinâmica familiar. A compreensão da experiência revela, no movimento das famílias, elementos relacionados à cultura, às crenças e aos valores que dão sentido à vida familiar no contexto rural. Apreende-se que, na experiência da família rural, o adoecimento de um de seus membros por câncer evidencia que o significado atribuído a tal doença é de ameaça, e o medo presente é o desamparo.

Embora se constate a complexidade que envolve o mundo da família e suas conexões e as repercussões causadas pelo adoecimento no contexto familiar, pode-se afirmar que a perspectiva interacionista, utilizada para olhar na direção da família, e a Teoria Fundamentada nos Dados permitiram a elaboração do Modelo Teórico, o qual possibilita a compreensão dos movimentos familiares como um processo que resulta integrado e uníssono, dirigido a um objetivo comum. As ações desenvolvidas por cada membro da família, na particularidade, e dirigidas a um aspecto específico são partes de uma ação mais ampla, cujo sentido nem sempre pode ser percebido e que se constitui no verdadeiro significado da ação.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Jun 2017

Histórico

  • Recebido
    13 Jul 2016
  • Aceito
    02 Dez 2016
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