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A interseção entre ser enfermeiro e ser terapeuta em saúde mental

RESUMO

Objetivo:

discutir a interseção do ser enfermeiro/ser terapeuta no campo da saúde mental.

Método:

pesquisa exploratória, qualitativa, pautada na entrevista de autorrelato desenvolvida com dez enfermeiras de um hospital psiquiátrico do Rio de Janeiro entre junho e julho de 2017. Os dados foram analisados à luz da teoria de Travelbee.

Resultados:

As enfermeiras se consideram terapeutas em função das ações desenvolvidas na prática de cuidados em Saúde Mental, apesar da fragmentação teórica do relacionamento interpessoal identificada no distanciamento da promoção de autoconhecimento, que é elemento imprescindível no processo psicoterapêutico.

Considerações finais:

A forte relação entre ser e fazer da enfermagem se destaca e favorece o desenvolvimento de relações terapêuticas satisfatórias com a pessoa internada.

Descritores:
Papel do Profissional de Enfermagem; Saúde Mental; Terapêutica; Enfermagem Psiquiátrica; Hospitais Psiquiátricos

ABSTRACT

Objective:

to discuss the intersection between being a nurse/being a therapist in the mental health field.

Method:

exploratory, qualitative study based on a self-report interview conducted with ten nurses from a psychiatric hospital in Rio de Janeiro between June and July 2017. Data were analyzed in the light of Travelbee’s theory.

Results:

Nurses consider themselves therapists because of actions performed in mental health care practice, despite the theoretical fragmentation of interpersonal relationships identified in the distance from the promotion of self-knowledge, which is an essential element in the psychotherapeutic process.

Final considerations:

the strong relationship between being and doing in nursing stands out and favors the development of satisfactory therapeutic relationships with the hospitalized person.

Descriptors:
Nurse’s Role; Mental Health; Therapeutics; Psychiatric Nursing; Psychiatric Hospitals

RESUMEN

Objetivo:

discutir la intersección entre ser un enfermero/ser un terapeuta en el campo de la salud mental.

Método:

investigación exploratoria y cualitativa, basada en una entrevista de autoevaluación realizada con diez enfermeras de un hospital psiquiátrico en Rio de Janeiro entre junio y julio de 2017. Los datos se analizaron a la luz de la Teoría de Travelbee.

Resultados:

Los enfermeros se consideran terapeutas por las acciones desarrolladas en la práctica de la atención de salud mental, a pesar de la fragmentación teórica de la relación interpersonal identificada en la distancia de la promoción del autoconocimiento, que es un elemento esencial en el proceso psicoterapéutico.

Consideraciones finales:

sobresale la fuerte relación entre el ser y el hacer de enfermería, la cual favorece el desarrollo de relaciones terapéuticas satisfactorias con la persona hospitalizada.

Descriptores:
Rol del Profesional de Enfermería; Salud Mental; Terapéutica; Enfermería Psiquiátrica; Hospitales Psiquiátricos

INTRODUÇÃO

Quem é o terapeuta no campo de atuação em saúde mental (SM)? É possível ser enfermeiro de saúde mental sem ser terapeuta? Dados históricos apontam que a etimologia do termo terapia provém do grego, therapeia, primeiramente utilizado por Hipócrates com o significado de prestar cuidados médicos. Com o tempo, haveria passado para o latim e sucessivamente para línguas mais modernas, com seu sentido ampliado para qualquer meio ou procedimento usado no tratamento dos enfermos(11 Rezende JM. Terapia, terapêutica, tratamento. Rev Patol Tropic [Internet]. 2010 [cited 2017 Sep 16];39(2):149-50. Available from: https://revista.iptsp.ufg.br/up/63/o/2010_39_2_149_150.pdf
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). Terapeuta é o profissional que aplica técnicas reconhecidas para restabelecer a saúde e qualidade de vida de uma pessoa(22 Ferreira ABH. Dicionário Aurélio [Internet]. 2017 [cited 2017 Sep 29]. Available from: https://dicionariodoaurelio.com/
https://dicionariodoaurelio.com/...
). Na atuação terapêutica, há diversas possibilidades no campo do cuidado. Aqui, o foco é na perspectiva do cuidado em saúde mental.

A psicoterapia é uma atividade aberta a várias categorias profissionais, incluindo enfermeiros. A restrição a essa ou àquela profissão é absolutamente contrária à ciência, ilegal e inconstitucional(33 COFEN. Parecer normativo nº 002/2012. Dispõe sobre a competência do enfermeiro psicoterapeuta de base analítica.). Tal perspectiva apontada no parecer normativo do Conselho Federal de Enfermagem (COFEN) origina-se de uma solicitação do Conselho Regional de Enfermagem de Sergipe (COREN-SE) acerca de esclarecimentos sobre a competência do enfermeiro na psicoterapia – definida como processo de autoconhecimento capaz de melhorar a vida do indivíduo.

O presente estudo se debruça sobre o tema da terapêutica em Saúde Mental, considerando a perspectiva de enfermeiros atuantes neste campo, com relação aos elementos necessários para a ocorrência da terapia enquanto atividade desenvolvida pelo enfermeiro. Para isto, a teoria de Joyce Travelbee(44 Travelbee J. Intervención en enfermeria psiquiatrica. Carvejal: Cali, 1979.) foi utilizada para nortear a pesquisa.

Joyce Travelbee se inspirou em Hildegar Peplau, que construiu a teoria das Relações Interpessoais. A teoria de Travelbee é subsidiada por doze pressupostos e apresenta o enfermeiro terapeuta como aquele capaz de ancorar o cuidado no relacionamento humano, possível à medida que se sustenta pela empatia, sintonia, confiança, respeito e autenticidade(44 Travelbee J. Intervención en enfermeria psiquiatrica. Carvejal: Cali, 1979.).

Compilando sua teoria, apreende-se que o imprescindível seja o compromisso. De acordo com sua sugestão, o compromisso fica evidente quando é ultrapassado o simples papel atribuído e há verdadeiro interesse pelo bem-estar do outro. A escolha dessa teórica para nortear a discussão dos dados se deu pelo conceito de terapeuta apreendido a partir de seus pressupostos(44 Travelbee J. Intervención en enfermeria psiquiatrica. Carvejal: Cali, 1979.): o enfermeiro terapeuta é aquele que utiliza o próprio corpo, detém recurso filosófico (científico, artístico, sensível e criativo) para encontrar o outro e despertar/potencializar o bem estar de ambos, profissional e da pessoa cuidada. A enfermagem é comumente atrelada à execução de procedimentos concretos, como aferição de pressão arterial, administração de medicamentos e realização de curativos. Apresente investigação trata do enfermeiro atuante na Saúde Mental, onde o cuidado se dá, sobretudo, por meio da escuta e palavra, o que inferimos incitar outro estereótipo, do enfermeiro com perfil de psicólogo.

Ao proporem maior abertura para o diálogo e expressão das emoções das pessoas cuidadas, algumas enfermeiras referem ser tidas por essas, e até pelos colegas, como psicólogas. Os enfermeiros devem construir novas concepções e perspectivas, encontrar o deslocamento, alguma dialética entre o cuidado feito no corpo e o cuidado norteado pela palavra(55 Kurimoto TCS, Penna CMM, Nitkin DIRK. Knowledge and practice in mental health nursing care. Rev Bras Enferm [Internet]. 2017 [cited 2017 Oct 02];70(5):973-80. Available from: http://dx.doi.org/10.1590/0034-7167-2016-0343
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), entretanto, sem serem estereotipados como psicólogos, pois o cuidado subjetivo deve ser compreendido como atribuição do enfermeiro.

Esses atravessamentos nos incitaram a pesquisar, e consequentemente, direcionar o artigo para a seguinte questão norteadora: o enfermeiro que atua na SM e Psiquiatria pode ser considerado um terapeuta?

OBJETIVO

Discutir a interseção entre ser enfermeiro e ser terapeuta em saúde mental à luz da perspectiva teórica de Travelbee(44 Travelbee J. Intervención en enfermeria psiquiatrica. Carvejal: Cali, 1979.).

MÉTODO

Aspectos éticos

Por se tratar de pesquisa com seres humanos, o projeto foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital Universitário Antônio Pedro da Universidade Federal Fluminense. Foram respeitados os princípios dispostos na Resolução nº 466/2012(66 Conselho Nacional de Saúde (BR). Resolução nº 466 de 12 de dezembro de 2012. Dispõe sobre aspectos éticos em pesquisas com seres humanos.) do Conselho Nacional de Saúde. Para preservar a identidade das participantes, seus nomes foram substituídos pelos códigos E1, E2...E10.

Desenho e período do estudo

Foi realizada uma pesquisa de abordagem qualitativa, que permite desvelar processos sociais pouco conhecidos referentes a grupos particulares, além de propiciar a construção de novos conceitos(77 Medeiros SLA, Araújo ABP, Valença CN, Germano RM. Metodologia da pesquisa qualitativa na saúde. Interface (Botucatu) [Internet]. 2012 [cited 2017 Oct 05];16(41):579-81. Available from: http://dx.doi.org/10.1590/S1414-32832012000200022
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). A coleta de dados ocorreu nos meses de junho e julho de 2017, feita por meio de entrevista semiestruturada e orientada pela técnica de autorrelato. Os autorrelatos são as respostas dos participantes às perguntas colocadas pelo entrevistador e tendem a apresentar uma natureza de conversação(88 Santos JLG, Erdmann AL. Governance of professional nursing practice in a hospital setting: a mixed methods study. Rev Latino-Am Enfermagem [Internet]. 2015 [cited 2017 Oct 09];23(6):1024-32. Available from http://dx.doi.org/10.1590/0104-1169.0482.2645
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).

Cenário do estudo

O cenário do estudo foi um hospital público especializado em psiquiatria localizado na cidade do Rio de Janeiro. O hospital tem características que dificultam a implementação dos princípios da Reforma Psiquiátrica Brasileira (RPB), como os direitos dos portadores de sofrimento psíquico dispostos na lei 10.216/2001(99 Ministério da Saúde (BR). Lei nº 10.216 de 6 de abril de 2001. Dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental.). O espaço é comum aos internados em uma primeira crise e aos reinternados de forma recorrente, muitas vezes com pouco ou quase nenhum tempo de convívio familiar e comunitário entre uma internação e outra(1010 Silveira LHC, Rocha CMF, Rocha KB, Zanardo GLP. The other side of the revolving door: community support and mental health. Psicol Estud [Internet]. 2016 [cited 2017 Sep 18];21(2):325-35. Available from: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=287147424014
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).

Fonte, critérios e coleta de dados

Os participantes do estudo foram dez enfermeiras do hospital psiquiátrico (fonte de dados da pesquisa). O critério de inclusão para a amostra foi atuar diretamente na assistência a pessoas internadas e o de exclusão, estar em férias ou de licença.

O roteiro semiestruturado continha os seguintes itens sociodemográficos: idade, gênero, tempo de formação, tempo de atuação e realização de cursos na área da SM. Também as seguintes questões: você se considera terapeuta? Por quê?

Organização e análise dos dados

Inspiração na hermenêutica dialética, que apresenta três etapas a serem seguidas: ordenação, classificação e análise final dos dados(1111 Polit DF, Beck CT. Fundamentos de pesquisa em enfermagem: avaliação de evidências para a prática da enfermagem. 7.ed. Porto Alegre: ARTMED, 2011.). Nessa pesquisa, a ordenação se deu através da organização minuciosa das falas e caracterização dos sujeitos entrevistados. A classificação, no agrupamento dos resultados por unidades, buscando compreender o que foi dito com maior representatividade, e de onde emergiram as categorias a saber: 1- Sentidos atribuídos pelas enfermeiras de Saúde Mental à prática terapêutica; 2- Enfermeira terapeuta: a potência. A análise final dos dados é um movimento circular, que vai do empírico para o teórico e vice-versa(1111 Polit DF, Beck CT. Fundamentos de pesquisa em enfermagem: avaliação de evidências para a prática da enfermagem. 7.ed. Porto Alegre: ARTMED, 2011.). Nesta fase, olhamos para os dados e entramos em contato com a Teoria da Relação Interpessoal de Travelbee(44 Travelbee J. Intervención en enfermeria psiquiatrica. Carvejal: Cali, 1979.).

RESULTADOS

A coleta de dados demonstrou o seguinte perfil das participantes do estudo: 100% do sexo feminino, idade entre 32 a 53 anos, entre nove e 29 anos de formação em enfermagem e atuação em SM.

Com relação aos cursos de aprimoramento, seis enfermeiras realizaram cursos de pós-graduação lato senso no formato de residência na área específica de saúde mental, além de cursos sobre temas dessa área: aprimoramento sobre emergências psiquiátricas, política de álcool e outras drogas e psicofarmacologia. Duas entrevistadas não possuem nenhum curso de aprimoramento em saúde mental, embora atuem há mais de dez anos na área. As demais especializações foram pediatria e gestão. Três enfermeiras são mestras, três são mestrandas e uma é doutoranda.

Sentidos atribuídos pelas enfermeiras de Saúde Mental à prática terapêutica

Na coleta de dados com os autorrelatos voltada para o tema do terapeuta em saúde mental, os depoimentos revelaram que as enfermeiras promovem encontros e estão constantemente predispostas a agirem com ações terapêuticas junto às pessoas internadas. Os dados evidenciam perspectivas das enfermeiras de que é pela via da entrega ao outro que se torna possível a prática de cuidar. Demonstraram que o cuidado em Saúde Mental é algo obrigatoriamente engendrado pelo profissional colocar-se disponível ao outro.

Enfermeira terapeuta: a potência

A respeito da terapia na Enfermagem em Saúde Mental, os relatos das enfermeiras apontaram como elas percebem este aspecto. Os autorrelatos estão distribuídos na Figura 1.

Figura 1
Depoimentos das participantes do estudo, Niterói, Rio de Janeiro, Brasil, 2017

DISCUSSÃO

Frente à indagação de se considerarem terapeutas ou não, as razões para tal e as práticas exercidas que justificassem tal consideração, todas as enfermeiras participantes deste estudo (sem hesitar) afirmaram se considerarem terapeutas em função da sua prática profissional junto às pessoas internadas em um hospital psiquiátrico. O depoimento de E8 demonstra que este papel oscila entre o ser e o fazer.

O autorrelato de E8 é corroborado por dados históricos, onde mulheres enfermeiras não são conhecidas como mulheres que exercem uma profissão, mas toda sua pessoa desaparece atrás da personagem enfermeira(1212 Ramos DKR, Mesquita SKC, Galvão MCB, Enders BC. Paradigmas da saúde e a (des)valorização do cuidado em enfermagem. Enferm Foco [Internet]. 2013[cited 2017 Sep 18];4(1):41-4. Available from: http://revista.portalcofen.gov.br/index.php/enfermagem/article/view/501/0
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) e elas são aquilo que fazem.

As enfermeiras entrevistadas trouxeram uma fusão de sentidos valiosa, ao referirem que em sua prática, não há diferenciação entre o que dizem fazer e o que dizem ser. A partir do fazer, supostamente terapêutico, as enfermeiras se veem como terapeutas, ainda que algumas, como E5 e E6, nunca tenham realizado quaisquer cursos formativos em SM ou psiquiatria. Este aspecto pode ser entendido pelos fatos históricos do trabalho de enfermagem em SM, o qual é marcado pelo modelo médico disciplinador de sujeitos, com práticas de enfermagem subordinadas e coadjuvantes do processo médico-político disciplinador. Na atualidade, o enfermeiro é potencialmente, um importante agente de mudança, e essa potencialidade está diretamente relacionada ao grau de consciência desses trabalhadores(1313 Souza MC, Afonso MLM. Saberes e práticas de enfermeiros na saúde mental: desafios diante da Reforma Psiquiátrica. Rev Interinst Psicol[Internet]. 2015[cited 2017 Sep 18];8(2):332-47. Available from: http://pepsic.bvsalud.org/pdf/gerais/v8n2/v8n2a04.pdf
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).

Inferimos que os aprofundamentos teóricos são imprescindíveis para essa tomada de consciência. Quanto mais consciente for o profissional sobre sua condição pessoal e social, de seu papel de trabalhador inserido num contexto social e de cidadão num sistema político, mais apto estará para eleger instrumentos de trabalho que resgate mais pessoas com transtornos mentais dessa mesma condição de sujeito-cidadão(1313 Souza MC, Afonso MLM. Saberes e práticas de enfermeiros na saúde mental: desafios diante da Reforma Psiquiátrica. Rev Interinst Psicol[Internet]. 2015[cited 2017 Sep 18];8(2):332-47. Available from: http://pepsic.bvsalud.org/pdf/gerais/v8n2/v8n2a04.pdf
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).

E5 faz menção ao cuidado como terapêutico por essência, sem abordar o estabelecimento da relação pessoa-a-pessoa como a finalidade do cuidado, conforme preconizado por Travelbee(44 Travelbee J. Intervención en enfermeria psiquiatrica. Carvejal: Cali, 1979.) em seu primeiro pressuposto. Nesse sentido, E10 enumerou algumas de suas atribuições para justificar o ser terapeuta.

O quinto pressuposto de Travelbee refere que a qualidade e quantidade de cuidados oferecidos são influenciados pela percepção de dois sujeitos, o enfermeiro e o paciente(44 Travelbee J. Intervención en enfermeria psiquiatrica. Carvejal: Cali, 1979.), e o relato de E10 se restringe à enfermeira. Há um ‘fazer por’ e não o ‘fazer com’, fazer pela pessoa cuidada e não fazer com ela, o que pode subliminarmente se afastar da identificação do problema, de acordo com Travelbee(44 Travelbee J. Intervención en enfermeria psiquiatrica. Carvejal: Cali, 1979.), como etapa a ser cumprida no encontro entre esses sujeitos, e da condição de terapeuta sustentada pela comunicação estabelecida em uma relação terapêutica.

Desse modo, embora afirmem ser terapeutas, o elemento manifesto nas falas é o acolhimento, como exposto no relato de E3. O acolhimento se revela condição necessária para estabelecer uma relação terapêutica. Embora não apareça com tal nomenclatura na teoria de Travelbee(44 Travelbee J. Intervención en enfermeria psiquiatrica. Carvejal: Cali, 1979.), os elementos trazidos, como a sintonia para criar um sentimento harmônico baseado no conhecimento e unicidade dos indivíduos, a capacidade de ficar parado e vivenciar o outro como ser humano e a capacidade verdadeira de se importar com o outro, guardam relações com o acolhimento atualmente referido pelas enfermeiras.

Apesar de imprescindível, o acolhimento precisa ser aplicado em sintonia com outros elementos, como empatia, confiança e respeito. Apenas o emprego do acolhimento isolado das outras ferramentas relacionais, não configuraria a terapia propriamente dita para o alcance de uma relação psicoterapêutica(1010 Silveira LHC, Rocha CMF, Rocha KB, Zanardo GLP. The other side of the revolving door: community support and mental health. Psicol Estud [Internet]. 2016 [cited 2017 Sep 18];21(2):325-35. Available from: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=287147424014
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). Tal pensamento pode ser confirmado com E2, que nos remeteu a um questionamento sobre o que fazer com a escuta. Ancoramos nossa indagação no conceito de enfermeiro terapeuta como aquele que utiliza o próprio corpo e detém recurso filosófico (científico, artístico, sensível e criativo) para encontrar o outro e despertar/potencializar o bem-estar de ambos, do profissional e da pessoa cuidada.

Colocar-se à disposição do outro e ouvir suas súplicas e lamentações, conquistas e derrotas, amores e desamores, ideias delirantes e devaneios, decerto não parece tarefa fácil. No entanto, isto é substrato de trabalho para fabricar o lugar de terapia. Eis a provocação que convocamos à reflexão. Esta conceituação é sustentada pelo debate encontrado na literatura sobre a ação terapêutica para o sujeito e sua forma de sofrer, tratando a ação terapêutica de:

Cada uma ganhar uma aparência mais individualizada [...]. Se, a despeito da padronização imposta pelos uniformes, fazem-se flores, pequenas marcas impressas que atestam a singularidade, isso é terapêutico. São, enfim, formas de esvaziar ou esburacar o discurso universal e generalizante da instituição(88 Santos JLG, Erdmann AL. Governance of professional nursing practice in a hospital setting: a mixed methods study. Rev Latino-Am Enfermagem [Internet]. 2015 [cited 2017 Oct 09];23(6):1024-32. Available from http://dx.doi.org/10.1590/0104-1169.0482.2645
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).

As práticas descritas acima certamente traduzem um cuidado e entendemos que o enfermeiro o represente. O acolhimento da pessoa cuidada talvez seja suficiente ao realizar um procedimento, como a passagem de um cateter vesical em situação pré-operatória. Uma vez acolhido, mesmo que submetido a um procedimento invasivo, existe a possibilidade de um procedimento terapêutico. No entanto, um procedimento terapêutico de intervenção manual, ainda que tecnicamente eficaz, não determina uma relação terapêutica em todos os aspectos do cuidado, nem garante que o enfermeiro seja um terapeuta sob o ponto de vista da SM.

As falas das enfermeiras E1, E2 e E6 atendem aos componentes básicos para estabelecer uma comunicação terapêutica, como empatia, confiança e respeito mútuo(1414 Stefanelli MC, Carvalho EC. A comunicação nos diferentes contextos da enfermagem. 2ed. São Paulo: Manole, 2012.).

A expressão relacionamento terapêutico nasceu no âmbito da Saúde Mental, cuja assistência valoriza a relação de ajuda, os atendimentos grupais e o relacionamento interpessoal, e é utilizada de maneira compreensiva e individualizada para evidenciar as potencialidades e recuperar a autonomia do indivíduo em sofrimento psíquico(1515 Elias ADS, Oliveira FA, Tavares CMM, Muniz MP, Abrahão AL, Silva LSAH. Sociopoética: laços entre arte e educação. Rev Pró-UniverSUS [Internet]. 2016 [cited 2017 Oct 02];7(2):39-42. Available from: http://editorauss.uss.br/index.php/RPU/article/download/350/528
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). Mas, o ser terapeuta não se limita a essa relação.

A enfermeira deve assumir a condução clínica biopsicossocial do atendimento ao sujeito em sofrimento psíquico, auxiliá-lo no seu percurso e na construção de vínculos com o tratamento(1616 Cavalcanti PCS, Oliveira RMP, Caccavo PV, Porto IS. Nursing care centers in psychosocial care. Cienc Cuid Saude[Internet]. 2014[cited 2017 Sep 23];13(1):111-9. Available from: www.periodicos.uem.br/ojs/index.php/CiencCuidSaude/article/viewFile/.../pdf_120
www.periodicos.uem.br/ojs/index.php/Cien...
). Com isto, vem a compreensão de que as atuações autorrelatadas nas entrevistas se ancoram com mais profundidade no encontro com os sujeitos do que na terapia, como exposto na fala de E4, disponível na figura dos resultados do estudo.

A diferença entre terapeuta e psicoterapeuta é extremamente relativa. Apesar da regulamentação do COFEN 002/2012(33 COFEN. Parecer normativo nº 002/2012. Dispõe sobre a competência do enfermeiro psicoterapeuta de base analítica.) mencionar a exigência de um curso de psicanálise para o enfermeiro ser reconhecido como terapeuta, na verdade, o enfermeiro tem a possibilidade de exercer um papel psicoterapêutico. Fazemos tal afirmação porque a formação generalista inclui o estudo das teorias de Enfermagem, dentre as quais, teorias com norteadores para o enfermeiro no que diz respeito ao relacionamento interpessoal terapêutico enfermeiro-paciente. Tanto Peplau quanto Travelbee oferecem o arsenal que pode ser empregado pelos enfermeiros.

Assim como dito por E4, os que se propõem a realizar mudanças no cuidado em saúde, invertendo as tecnologias de trabalho para tornar as tecnologias relacionais o centro da sua prática, devem primeiro, formar um entendimento preciso de como se dá o cuidado e o que acontece entre profissional e usuário durante seu encontro(1717 Vianna D. Terapia Expressiva: a arte do afeto colorindo um hospital. Niterói: Editora UFF, 2014.). Ainda explicando esse encontro:

Quando encontramos um corpo exterior que não convém ao nosso (isto é, cuja relação não se compõe com a nossa), tudo ocorre como se a potência desse corpo se opusesse à nossa potência, operando uma subtração, uma fixação: dizemos nesse caso, que a nossa potência de agir é diminuída ou impedida, e que as paixões correspondentes são de tristeza. Mas, ao contrário, quando encontramos um corpo que convém à nossa natureza e cuja relação se compõe com a nossa, diríamos que sua potência se adiciona à nossa: as paixões que nos afetam são de alegria, nossa potência de agir é ampliada ou favorecida(1818 Deleuze G. Espinosa, filosofia prática. São Paulo: Escuta, 2002.).

No cotidiano da assistência em saúde, são construídos encontros disparadores de cuidado em uma demanda ora percebida, ora anunciada. Cuidados que poderão se tornar terapêuticos conforme produzam uma afetação de alegria, e não de tristeza(1919 Espinoza, B. Ética: Tradução de Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009.). Isto inclui afetações advindas do simples, do cotidiano, mas elementares e necessárias.

É necessário atentar que não se pode garantir que uma conduta padronizada seja terapêutica para as pessoas cuidadas. A potência de cada encontro não pode ser dimensionada previamente. A composição e consequência de uma conduta em que o profissional tenha intenção de ser terapêutico dependerão de seu poder de ser afetado no instante do encontro dos corpos, isto é, da produção de afetos(1919 Espinoza, B. Ética: Tradução de Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009.).

O fato é que ninguém determinou, até agora, o que pode o corpo, isto é, a experiência a ninguém ensinou, até agora, o que o corpo – exclusivamente pelas leis da natureza enquanto considerada apenas corporalmente, sem que seja determinado pela mente – pode e o que não pode fazer(1919 Espinoza, B. Ética: Tradução de Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009.).

O encontro dos corpos, enquanto produção de afetos, não pode ser normatizado. O afeto, isto é, a desconstrução de indiferença, se dá durante o processo de cuidado. A multiplicidade está presente em cada sujeito e, ainda, nas singularidades dos diferentes encontros(1919 Espinoza, B. Ética: Tradução de Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009.).

A psicoterapia é uma intervenção de cuidado e não profissão, considerada uma atividade aberta a várias categorias profissionais, como Psicólogos, Pedagogos, Médicos, Enfermeiros, Professores, Engenheiros, Odontólogos, Advogados, Assistentes Sociais, Teólogos, Pastores, Padres, Contadores, e outros, desde que concluída uma pós-graduação em psicanálise(33 COFEN. Parecer normativo nº 002/2012. Dispõe sobre a competência do enfermeiro psicoterapeuta de base analítica.). Embora essa formação específica possa representar qualificação, tornar-se terapeuta transcende este fato. Da mesma forma, nem todos que realizam formação específica em psicanálise se tornam terapeutas, posto que isso exige disponibilidade interna, autoconhecimento e capacidade para lançar mão de outros recursos pessoais como a sensibilidade, a intuição, a criatividade e a arte.

Consideramos os relatos que mencionam a intensificação das atividades terapêuticas próximos dos pressupostos de Travelbee como um ensaio ao ser terapeuta(44 Travelbee J. Intervención en enfermeria psiquiatrica. Carvejal: Cali, 1979.). De acordo com o sétimo princípio, para estabelecer o relacionamento terapêutico é necessário ir além dos papéis enfermeiro e paciente, pois antes de tudo, ambos são pessoas com história de vida, medos e anseios individualizados e singulares. O nono princípio diz que o relacionamento se dá pela comunicação(44 Travelbee J. Intervención en enfermeria psiquiatrica. Carvejal: Cali, 1979.) e exige do enfermeiro exercícios para obter recursos para esta prática. A comunicação é entendida como aquilo que permite estabelecer a expressão do cuidado e a vinculação psicossocial. Ela se nutre na mistura de interfaces cognitivas e afetivas.

Quanto ao apontamento de E8 sobre sua atitude enquanto terapeuta ser algo que estaria na geração de bem-estar do ser cuidado, compreendemos que essa busca pode ir além dos papéis enfermeiro e paciente(44 Travelbee J. Intervención en enfermeria psiquiatrica. Carvejal: Cali, 1979.). O enfermeiro deve exercer suas funções profissionais vinculadas aos programas construídos dentro do processo da RPB, o que implica criar novos espaços para assistência de enfermagem(2020 Maftum MA, Pagliace AGS, Borba LO, Brusamarello T,Czarnobay J. Changes in professional practice in the mental health area against Brazilian psychiatric reform in the vision of the nursing team. Rev Pesqui: Cuid Fundam[Internet] 2017 [cited 2017 Oct 22];9(2):309-14. Available from: http://www.seer.unirio.br/index.php/cuidadofundamental/article/view/3626/pdf
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), e desse modo, desprender-se para novas atuações que superem a formatação de papéis. A criação de novos espaços de cuidar e interagir constitui estratégia para ampliar as possibilidades do enfermeiro agir como um terapeuta integral.

Um aspecto importante do papel do terapeuta é ajudar o outro a se tornar consciente de padrões inconscientes expressados na sua conduta não verbal, para que, ao final, possa ganhar um senso de domínio e entendimento do que está sendo repetido num relacionamento após outro(2121 Carvalho C, Godinho LR, Ramires VRR. Child Psychotherapeutic Process: Analysis Based on the Child Psychotherapy. Q-Set Q-Set. Temas Psicol[Internet] 2016 [cited 2017 Jul 24];24(3):1153-67. Available from: http://dx.doi.org/10.9788/TP2016.3-19
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).

No autorrelato das entrevistadas, não é percebido esse aspecto de ajudar o outro a tornar-se consciente, embora alguns ensaios se aproximem do conceito por nós depreendido. Por exemplo, na afirmação de E9 a respeito do terapeuta ser aquele que desenvolve um cuidado com o olhar sobre o corpo e o psíquico. A perspectiva interdisciplinar é indispensável para o enfermeiro produzir o cuidado que contemple a relação e inseparabilidade do binômio corpo-mente. Possuir uma formação com saberes interdisciplinares também é algo indispensável para qualquer profissional desempenhar o papel psicoterapêutico, isto é, a visão integral do sujeito, juntamente com os demais fundamentos que norteiam o relacionamento terapêutico.

Frente à disponibilidade de exercer um trabalho com o outro, E9 se aproxima do décimo pressuposto de Travelbee: “a enfermeira pode ajudar as pessoas a encontrarem um significado na sua doença e lidar com a mesma”(44 Travelbee J. Intervención en enfermeria psiquiatrica. Carvejal: Cali, 1979.). Na mesma direção, E7 se considera terapeuta por oferecer alternativas de tratamento e o acompanhamento do progresso do estado de saúde do sujeito. Esse acompanhamento deve se associar às diretrizes da atenção psicossocial, independente da formação do enfermeiro, que incluem as atividades de acolhimento, oficinas terapêuticas e atenção individualizada(2222 Pessoa JMJ, Sales CF, Santos RCF, Fortes VA, Miranda FAN. Nursing and the deinstitutionalization process in the mental health scope: integrative review. Rev Pesqui: Cuid Fundam [Internet] 2017. [cited 2017 Out 02];9(3):893-8. Available from: http://www.seer.unirio.br/index.php/cuidadofundamental/article/view/4475/pdf
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).

Almeja-se ainda, que os enfermeiros acolham, observem, ofertem cuidados e afetos, e minimizem o sofrimento das pessoas internadas, mas algo ainda nos escapa para considerá-los terapeutas, pois a psicoterapia é um processo de autoconhecimento. Durante esse processo de autodescoberta, a pessoa passará a se conhecer, percebendo suas características pessoais, aprenderá a lidar com suas dificuldades, conflitos e limitações e também perceberá seus pensamentos, sentimentos e comportamentos, podendo atuar sobre eles de forma mais amena ou positiva(33 COFEN. Parecer normativo nº 002/2012. Dispõe sobre a competência do enfermeiro psicoterapeuta de base analítica.).

O que escapa pode ser clarificado pela formação contínua do enfermeiro. O ensinamento favorece o estabelecimento de relações terapêuticas, já que quanto mais a pessoa se conhece e se deixa conhecer pelos outros, mais consciente de seus atos e mais relações interpessoais satisfatórias alcançará(2323 Silva AA, Terra MG, Gonçalves MO, Souto VT. Self-care among Nursing Professionals: an integrative review of Brazilian dissertations and theses. Rev Bras Ciênc Saúde [Internet]. 2014[cited 2017 Sep 23];18(4):345-52. Available from: https://periodicos.ufpb.br/index.php/rbcs/article/view/15263
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).

Nesse artigo, esta é uma das questões que nos autoriza a divergir dos entrevistados e dizer-lhes que embora apreciável e eficaz, o acolhimento não confere ao enfermeiro o título de terapeuta. O cerne da terapia está no autoconhecimento, que não se restringe ao acolhimento, o qual trata de um modelo que prioriza a escuta e o cuidado do sujeito com demandas que extrapolam o corpo e se amplificam em nuances psicológicas, sociais, familiares, comunitárias(2424 Ministério da Saúde (BR). Acolhimento na gestão e o trabalho em saúde. 2016.).

Há, então, a possibilidade e potencialidade do enfermeiro se colocar em uma relação de igualdade, pessoa-a-pessoa(55 Kurimoto TCS, Penna CMM, Nitkin DIRK. Knowledge and practice in mental health nursing care. Rev Bras Enferm [Internet]. 2017 [cited 2017 Oct 02];70(5):973-80. Available from: http://dx.doi.org/10.1590/0034-7167-2016-0343
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) e, nessa unicidade, descobrir, com instrumentos como a poesia, música, bordado, aquilo que o enfermeiro traz consigo de potente, e assim, afetar-se e afetar o outro. Eis o enfermeiro sendo terapeuta.

Para contemplar uma intervenção psicoterapêutica em Enfermagem, são necessários: parâmetros teórico-práticos abrangentes, de forma a atender as particularidades dos diferentes campos de cuidado; não se condicionar a uma vertente específica; perceber e estar disponível para as diferentes necessidades das pessoas; utilizar a relação terapêutica como veículo para efetivar a relação de ajuda(2525 Sampaio F, Sequeira C, Lluch-Canut T. A intervenção psicoterapêutica em enfermagem de saúde mental: Conceitos e desafios. Rev Port Enferm Saúde Mental [Internet]. 2014, n.spe1 [cited 2017 Sep 30];(no.spe1)103-108. Available from: http://www.scielo.mec.pt/pdf/rpesm/nspe1/nspe1a17.pdf
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).

Ao defenderem o fato de serem terapeutas, as enfermeiras entrevistadas evidenciam o quão terapêuticas são suas atitudes, mesmo em um cenário de hospitalização que destoa dos serviços de portas abertas à luz da RPB. Como dito na descrição do cenário, o hospital em estudo não favorece o estabelecimento de relações terapêuticas, nem o exercício da função de terapeuta pelos enfermeiros. Estes dados desvelam elementos indicativos da disponibilidade e capacidade de entrega ao outro. Um ensaio.

Como é (e deve ser) inviável prever os modos de afetação dos corpos, ao se colocar disponível para um relacionamento interpessoal sem julgamentos, o profissional estará diante de suas próprias singularidades e das singularidades das pessoas internadas. Existem ainda as singularidades produzidas no próprio encontro, no ato: o permanente ensaio dos encontros que não se repetem em suas subjetividades.

Desta forma, o enfermeiro que intenta estabelecer um relacionamento pessoa-a-pessoa, ainda que com a melhor das intenções, não possui nenhuma certeza de antemão de que será ali produzida uma afetação de alegria. Uma intencionalidade não determina o resultado da afetação dos corpos(1919 Espinoza, B. Ética: Tradução de Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009.). A intenção interfere, mas não o determina. Problematizamos que, ao buscar a posição psicoterapêutica, o enfermeiro não irá sempre produzir afetações alegres.

É preciso ter em mente que o relacionamento terapêutico gera linhas de vida, mas também inclui encontros que diminuem a vontade de potência, que reduzem a potência de vida, isto é, podem produzir o que Espinoza(1919 Espinoza, B. Ética: Tradução de Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009.) chamou de linhas de morte (“morte da potência de vida”). Utilizar exemplos é sempre arriscado, mas ousemos: uma enfermeira pode silenciar o desejo de vida, a vontade de potência da pessoa internada em hospital psiquiátrico pela razão de que sua presença já é para ele um inegável e fatídico anúncio de que está doente, ou de que as pessoas o consideraram psiquicamente adoecido. Este é um exemplo, e não uma regra. Assim como este, outros exemplos podem surgir tendo em mente que produzir afetos de alegria ou tristeza, produzir linhas de vida e de morte, produzir cuidado e diminuição da vontade de vida, não são coisas dualísticas. Por melhores que sejam as intenções do enfermeiro, a afetação dos corpos se dá de modo espontâneo e vaza às expectativas do psicoterapeuta.

Para Travelbee, o enfermeiro usa a si próprio, faz o uso terapêutico do eu, pois é afetado e afeta o comportamento, sentimento e pensamento do outro, e para tal, precisa estar ciente de seus valores, crenças e sentimentos. Realiza uma combinação de intelecto e emoção, busca encontrar um significado para as experiências humanas, e traz a capacidade de amar como possibilidade de enfrentar a realidade e descobrir o propósito da vida(44 Travelbee J. Intervención en enfermeria psiquiatrica. Carvejal: Cali, 1979.).

Se o lugar de terapeuta envolve tantas nuances concretas e subjetivas e se dá no exato momento do encontro, então, o profissional deve conhecer cada vez mais a si, suas potencialidades, suas limitações, seus atravessamentos, seus medos, seus sonhos, sua história, seu sensível específico, para produzir subjetividades livres quando da afetação dos corpos.

Assim, como aspectos do psicoterapeuta, do paciente e da qualidade da relação entre ambos estão entre os fatores que contribuem para a efetivação das psicoterapias(2626 Peixoto EM. Vera case: psychotherapist interventions and therapeutic alliance. Trends Psychol [Internet] 2016[cited 2017 Jul 24];24(4):1205-15. Available from: http://dx.doi.org/10.9788/TP2016.4-02Pt
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), os enfermeiros que desejam se tornar terapeutas devem investir em si próprios. Ou ainda, os que desejam atuar de forma terapêutica, devem se enveredar pelo acolhimento que envolve ética/estética/política: ética no que se refere ao compromisso com o reconhecimento do outro, na atitude de acolhê-lo em suas diferenças; estética, porque traz para as relações e os encontros do dia a dia, a invenção de estratégias que contribuem para dignificar a vida e o viver; e política, porque implica o compromisso coletivo de se envolver no estar com e potencializar protagonismos e vida nos diferentes encontros(2424 Ministério da Saúde (BR). Acolhimento na gestão e o trabalho em saúde. 2016.).

Como o encontro na produção de afetos é algo intrínseco ao relacionamento psicoterapêutico, e com base na teórica de Enfermagem Travelbee, é indispensável que o enfermeiro desenvolva seu autoconhecimento. Este aspecto é uma condição para qualquer profissional desempenhar esta função e o processo psicoterapêutico em um caminho anunciado. Travelbee reforça sobre a necessidade do enfermeiro desenvolver seu autoconhecimento e a percepção de sua relação com cada pessoa permanentemente. Por esta razão, a partir dos autorrelatos das enfermeiras, que apontam o desenvolvimento de etapas importantes para a relação psicoterapêutica, e com base nos pressupostos da teoria de Enfermagem em voga, afirmamos que as enfermeiras estudadas não desempenham ou não têm clareza a respeito do papel do enfermeiro enquanto psicoterapeuta, pois não incluem o autoconhecimento como aspecto indispensável.

Esta discussão a respeito das enfermeiras não desenvolverem todos os aspectos necessários à atuação psicoterapêutica se deu a partir de uma reflexão embasada na própria teoria de Enfermagem de Travelbee. Ou seja, os resultados da pesquisa não foram avaliados com o uso de parâmetros externos à Enfermagem. Por isso, a sugestão de aumentar a ênfase nessa teoria nos espaços de ensino e formação do profissional enfermeiro, pois tal arsenal teórico compõe o eixo dos principais norteadores para a atuação psicoterapêutica dos enfermeiros.

Consideramos que a especialização em psicanálise pode ser tanto produtiva quanto impeditiva. Se ela for um pré-requisito para nomear o enfermeiro como psicoterapeuta, minimizará a função psicoterapêutica dada na própria formação da enfermagem, o que traria consequências negativas. Em contrapartida, a supervisão clínico-institucional e algum tipo de processo psicoterapêutico devem corroborar essa formação, pois, as possibilidades de autoconhecimento ofertadas por esses processos não têm sido valorizadas no cotidiano de trabalho de enfermeiros atuantes na saúde mental.

Uma razão para as enfermeiras não relatarem na entrevista o seu próprio processo terapêutico ou seu autoconhecimento como condição para desempenhar o papel psicoterapêutico, pode ser a negligência de todos os envolvidos, por não enxergarem que suas ações tangenciam a psicoterapia junto às pessoas cuidadas. Assumir o papel psicoterapêutico do enfermeiro requer investimento próprio e da equipe multiprofissional, que precisa compreender o lugar do enfermeiro na saúde mental. Ambos devem considerar a equivalência de demandas por supervisão clínico-institucional e o processo terapêutico do enfermeiro que qualquer membro da equipe de saúde mental possui.

Além do embasamento da teoria de enfermagem, da supervisão clínico-institucional e do processo terapêutico do enfermeiro, há também tecnologias que contemplam abordagens psicoterapêuticas pelo enfermeiro: o emprego da técnica de Grupo Operativa criada por Pichon-Rivière; o psicodrama; os grupos de empoderamento; a mediação dos grupos de suporte mútuo; o sociodrama e demais técnicas grupais, que provocam, sobretudo, a revisão dos papéis, sentidos e emoções presentes nas relações sociais(2727 Stefanelli MC, Fukuda IMK, Arantes EC. Estratégias de Comunicação Terapêutica. En-fermagem Psiquiátrica em suas dimensões assistenciais. Barueri: Manole, 2008. p.267-280.). O enfermeiro estuda e implementa grupos terapêuticos em todas as suas áreas de atuação e tem relevante formação para isto. Utilizando os conhecimentos sistematizados a respeito dos diversos tipos de grupos criados por estudiosos de psiquiatria e saúde mental que envolvem as funções psíquicas, sociais e emocionais das pessoas cuidadas, o enfermeiro possui mais uma ferramenta de cuidado que, se utilizada com propriedade, inevitavelmente, pode se tornar uma ação psicoterapêutica.

Limitações do estudo

Uma das limitações do estudo foi ter entrevistado apenas as enfermeiras, sem investigar o que as pessoas cuidadas por elas consideram sobre a questão que lhes afeta diretamente. Recomenda-se que este aspecto seja contemplado em futuras pesquisas científicas. Outra limitação foi o cenário da pesquisa, o hospital psiquiátrico, pois sua estrutura dificulta o estabelecimento das relações terapêuticas.

Contribuições para a área da enfermagem, saúde ou política pública

Como contribuição para a prática do cuidado em saúde, o estudo permite refletir que para estabelecer uma relação terapêutica, é necessário ampliar as fontes de alimentação de cada ser, transcender o espaço acadêmico e atravessar em plenitude e com sensibilidade, a despeito dos acontecimentos políticos e das mazelas diárias, a concretização e o reconhecimento de ser enfermeiro terapeuta.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O estudo permitiu saber que “o ser” e “o fazer” são elementos uníssonos nas práxis dos enfermeiros de saúde mental e o acolhimento é elemento de sustentação da assistência de enfermagem.

O estudo mostrou não haver demérito no fato de enfermeiros de saúde mental não serem considerados terapeutas por força da regulamentação que defende a necessidade de uma especialização em Psicanálise para o exercício desta prática. Para ser de fato terapeuta, os enfermeiros necessitam ampliar o autoconhecimento e possuir competência humana, artística e sensibilidade, que permitam estarem à disposição do outro de forma que o afetem e afetem a si próprios.

Na atuação em saúde mental, o terapeuta não está em um papel dado previamente, ele só existe no ato. O terapeuta nasce no encontro. Ele acontece no instante da produção de subjetividades que ocorre na afetação dos corpos, na alteridade fruto do ser sensível.

A perspectiva de que a atuação psicoterapêutica reside na formação em Psicanálise é reducionista. Os dados evidenciaram que a terapia permeia nuances múltiplas, não restritas ao modo operante de tal especialização, como mostraram as perspectivas diversas apontadas pelas enfermeiras a respeito de suas práxis terapêuticas.

Compreendemos que a formação do enfermeiro para o efetivo exercício da prática terapêutica exige mais do que um título de formação especializada em psicanálise. Requer uma formação humana e ampliada que contemple não apenas os componentes racionais, mas sobretudo, os aspectos sensíveis, intuitivos e artísticos presentes em toda relação de ajuda.

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Editado por

EDITOR CHEFE: Antonio José de Almeida Filho

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Fev 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    30 Abr 2018
  • Aceito
    21 Jun 2018
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