Acessibilidade / Reportar erro

A politicidade do cuidado na crítica aos estereótipos de gênero

La politicidad del cuidado en la crítica a los estereotipos de género

RESUMO

Objetivos:

analisar as desigualdades de gênero entre mulheres brasileiras em Portugal e na enfermagem moderna, a partir da politicidade do cuidado na perspectiva do gênero; explicitar a opressão sobre o feminino reproduzida pelos estereótipos que essencializam a mulher como cuidadora natural; apontar politicidades para a desconstrução dos estereótipos de gênero.

Método:

reflexão teórica com revisão narrativa de literatura com o propósito de analisar as referências clássicas da epistemologia feminista na articulação com a tese da politicidade do cuidado.

Resultados:

as similitudes entre os estereótipos das Evas-brasileiras e das Marias-portuguesas com a enfermeira sexualizada ou santificada se inscrevem na genealogia da moral judaico-cristã que reitera a subserviência do feminino ao masculino.

Conclusão:

ao priorizar um cuidado que precisa do descuidado para ampliar as possibilidades cuidativas, a premissa teórica da politicidade do cuidado pode contribuir para subverter as imagens essencializadas das brasileiras em solo lusitano e na enfermagem contemporânea.

Descritores:
Gênero; Enfermagem; Violência Contra as Mulheres; Feminismo; Epistemologia

RESUMEN

Objetivos:

analizar desigualdades de género entre mujeres brasileñas en Portugal y en enfermería moderna, partiendo de la politicidad del cuidado en la perspectiva del género; explicitar la opresión sobre el género femenino reproducida por los estereotipos que esencializan a la mujer como cuidadora natural; sugerir politicidades para deconstruir estereotipos de género.

Método:

reflexión teórica con revisión narrativa de literatura, a fin de analizar las referencias clásicas de la epistemología feminista en articulación con la tesis de politicidad del cuidado.

Resultados:

las similitudes entre los estereotipos de Evas-brasileñas y Marías-portuguesas con la enfermera sexualizada o santificada reproducen la moral judaico-cristiana que replica la sumisión de lo femenino a lo masculino.

Conclusión:

al priorizar un cuidado que necesita de un descuidado para ampliar posibilidades de cuidar, la premisa teórica de politicidad del cuidado contribuye a subvertir las imágenes de esencialización de las brasileñas en suelo lusitano y en la enfermería contemporánea.

Descriptores:
Identidad de Género; Enfermería; Violencia contra la Mujer; Feminismo; Conocimiento

ABSTRACT

Objectives:

analyze gender inequalities among Brazilian women in Portugal and in contemporary nursing based on care politicity in the light of gender; disclose oppression of the female produced by the stereotypes that look upon women as natural caregivers; point out politicity to deconstruct gender stereotypes.

Method:

theoretical reflection with narrative review of literature to analyze classic references in the feminist epistemology combined with the care politicity thesis.

Results:

the similarities between the stereotypes of the Brazilian Eves and the Portuguese Maries as either the sexualized or sanctified nurse are inserted in the Jewish-Christian moral genealogy that reaffirms the subservience of the female to the male.

Conclusion:

by attaching priority to care that needs non-care to expand the possibilities of care giving, the theoretical assumption of politicy of care can contribute to subvert the stereotypical images of Brazilian women in Portuguese lands and in contemporary nursing.

Descriptors:
Gender; Nursing; Violence against women; Feminism; Epistemology

INTRODUÇÃO

A perspectiva de gênero na área da saúde pressupõe um debate sobre a formação para a cidadania, em especial para o enfrentamento da violência contra a mulher. A invisibilidade do fenômeno, o silêncio das vítimas, a impotência dos profissionais da rede de enfrentamento e a tendência à medicalização dos problemas sociais figuram entre os principais resultados de pesquisas sobre o tema(11 Gutmanis IA, Tutty LM, Wathen CN, MacMillan HL, Beynon CE. Why physicians and nurses ask (or dont) about partner violence: a qualitative analysis. BMC Public Health [Internet]. 2012 [cited 2016 Aug 9];21(12):473. Available from: http://bmcpublichealth.biomedcentral.com/articles/10.1186/1471-2458-12-473
http://bmcpublichealth.biomedcentral.com...
-22 Silva EB, Padoin SMM, Vianna LMC. [Women in situations of violence: limits of assistance]. Ciênc Saúde Colet [Internet]. 2015 [cited 2016 Aug 9];20(1):249-58. Available from: http://www.scielosp.org/pdf/csc/v20n1/pt_1413-8123-csc-20-01-00249.pdf Portuguese
http://www.scielosp.org/pdf/csc/v20n1/pt...
).

Na literatura sobre a imigração das mulheres brasileiras para Portugal(33 Padilla B. Migraciones y Cambio: trayectorias, identidades y transformaciones de inmigrantes brasileños en Portugal. PerCursos [Internet]. 2014 [cited 2016 Aug 9];15(18):6-41. Available from: http://www.periodicos.udesc.br/index.php/percursos/article/view/1984724215282014006
http://www.periodicos.udesc.br/index.php...
-44 Gomes MS. O imaginário social. Mulher Brasileira em Portugal: uma análise da construção de saberes, das relações de poder e dos modos de subjetivação. Dados. Rev Ciênc Soc [Internet]. 2013 [cited 2016 Aug 9];56(4):807-900. Available from: http://www.scielo.br/pdf/dados/v56n4/v56n4a05.pdf
http://www.scielo.br/pdf/dados/v56n4/v56...
), a violência se expressa sob a forma de estereótipos em torno da hipersexualização do corpo da "mulata" (no imaginário social português, todo migrante é um mestiço), que, em geral, estaria sempre disponível para o homem colonizador, branco e europeu. Os estereótipos de gênero são influenciados pela moral cristã conservadora que, em geral, classifica as portuguesas como Marias (mães de famílias dedicadas, puras, honestas, brancas, decentes) e as brasileiras como Evas (pecadoras, lascivas, sedutoras, prostitutas, destruidoras de lares e da família), reforçando visões distorcidas da realidade.

Esse preconceito se cristaliza em muitas profissões consideradas femininas, como a enfermagem, traduzindo-se em iniquidade de gênero. Assim, os estereótipos da enfermeira santa - Maria (religiosa) - ou prostituta - Evas (pecadora) - permeiam o imaginário em relação à profissão desde sua origem até os dias atuais(55 Hoeve YT, Jancen G, Roodbol P. The nursing profession: public image, self-concept and professional identity. A discussion paper. J Adv Nurs [Internet]. 2014 [cited 2016 Aug 9]; 70(2):295-309. Available from: http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1111/jan.12177/abstract;jsessionid=DE82B96AADE0F6CBCDB8A6915BC51EE9.f01t01
http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.11...
). O imaginário social permeado por padrões sexistas de comportamento essencializa a imagem da mulher brasileira em Portugal e na enfermagem moderna, constituindo uma violência simbólica que restringe a cidadania(33 Padilla B. Migraciones y Cambio: trayectorias, identidades y transformaciones de inmigrantes brasileños en Portugal. PerCursos [Internet]. 2014 [cited 2016 Aug 9];15(18):6-41. Available from: http://www.periodicos.udesc.br/index.php/percursos/article/view/1984724215282014006
http://www.periodicos.udesc.br/index.php...

4 Gomes MS. O imaginário social. Mulher Brasileira em Portugal: uma análise da construção de saberes, das relações de poder e dos modos de subjetivação. Dados. Rev Ciênc Soc [Internet]. 2013 [cited 2016 Aug 9];56(4):807-900. Available from: http://www.scielo.br/pdf/dados/v56n4/v56n4a05.pdf
http://www.scielo.br/pdf/dados/v56n4/v56...

5 Hoeve YT, Jancen G, Roodbol P. The nursing profession: public image, self-concept and professional identity. A discussion paper. J Adv Nurs [Internet]. 2014 [cited 2016 Aug 9]; 70(2):295-309. Available from: http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1111/jan.12177/abstract;jsessionid=DE82B96AADE0F6CBCDB8A6915BC51EE9.f01t01
http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.11...

6 Machado IJR. Brasileiros no exterior e cidadania 1980-2005. Tomo (UFS) [Internet]. 2015 [cited 2016 Aug 9];26:211-45. Available from: http://www.seer.ufs.br/index.php/tomo/article/v
http://www.seer.ufs.br/index.php/tomo/ar...
-77 Padilla B. A imigrante brasileira em Portugal: considerando o gênero em análise. In: Malheiros, JM(org.). Imigração brasileira em Portugal. Lisboa: ACDI, 2007).

O desvelamento de padrões discursivos que se apresentam como naturais e imutáveis é pré-requisito para uma educação crítica que privilegia a cidadania. Diante dessa realidade, este artigo questiona: que desconstruções críticas podem ser feitas acerca das similitudes entre os estereótipos de gênero das brasileiras em Portugal com aqueles da enfermagem moderna, a partir da tese da politicidade do cuidado, na perspectiva de gênero? O argumento é que os estereótipos das Evas-brasileiras e das Marias-portuguesas, semelhantes às imagens sexualizadas ou sacralizadas da enfermagem moderna, reproduzem práticas discursivas opressoras que essencializam a mulher como cuidadora natural, perpetuando a iniquidade de gênero e limitando o potencial disruptivo da politicidade do cuidado em prol da cidadania. Sob a ambiência da epistemologia feminista, a politicidade do cuidado, como uma gestão intersubjetiva da ajuda e do poder capaz de manter ou de subverter domínios, pode contribuir para a crítica da violência de gênero, ao desvelar visões estereotipadas sobre as mulheres em distintos contextos(88 Pires MRGM. Politicidade do cuidado como referência emancipatória para a enfermagem: conhecer para cuidar melhor, cuidar para confrontar, cuidar para emancipar. Rev Latino-Am Enfermagem [Internet]. 2005 [cited 2016 Aug 9];13(5):729-36. Available from: http://www.scielo.br/pdf/rlae/v13n5/v13n5a18.pdf
http://www.scielo.br/pdf/rlae/v13n5/v13n...

9 Pires MRGM, Gomes LBD, Matos DG. No descaminho da arte rumo à educação crítica: a gestão, o cuidado e o trabalho em saúde no catálogo didáticos-para-recriar-se. In: Spagnol CA, Veloso ISC, (Org). Administração em enfermagem: estratégias de ensino. Belo Horizonte: Coopmed, 2014. p.145-61.
-1010 Pires MRGM. Reconstructing myths of nursing through the emancipatory quality of care. Rev Esc Enferm USP [Internet]. 2007 [cited 2016 Aug 9];41(4):717-23. Available from: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0080-62342007000400025
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
).

Assim, este artigo tem o objetivo de analisar as desigualdades de gênero entre as brasileiras em Portugal e na enfermagem moderna, a partir da politicidade do cuidado na perspectiva do gênero; explicitar a opressão sobre o feminino reproduzida pelos estereótipos que essencializam a mulher como cuidadora natural; apontar politicidades para a desconstrução dos estereótipos de gênero entre as brasileiras em Portugal e na enfermagem moderna.

METODOLOGIA

Trata-se de uma reflexão teórica com base em revisão narrativa de literatura com o propósito de analisar as referências clássicas da epistemologia feminista na articulação com a tese da politicidade do cuidado. Foram utilizados livros, artigos e as demais produções científicas de autores reconhecidos no âmbito da discussão de gênero para a sustentação conceitual. Acerca do diagnóstico situacional das violências advindas dos estereótipos de gênero sobre as brasileiras em Portugal e na enfermagem, foram priorizados resultados de pesquisas recentes ou revisões sistemáticas de literatura, sempre que possível.

RESULTADOS

Com base nos dados encontrados, inicialmente, é feita uma discussão das abordagens feministas sobre o cuidado e sua relação com a politicidade do cuidado. Evidenciam-se os estereótipos das Evas e das Marias na presença das brasileiras em Portugal e na profissão de enfermagem.

DISCUSSÃO

Abordagens feministas do cuidado: em busca de politicidades subversivas

Sob o crivo das abordagens feministas, denuncia-se a exploração da responsabilidade exclusiva do cuidado pelas mulheres. Essas críticas são feitas com base em dois aspectos: a dualidade entre o público e o privado nas teorias clássicas da democracia e a atomização do político no contexto neoliberal capitalista(1111 Miguel LF; Biroli F.(orgs.). Teoria política feminista: textos centrais. Belo Horizonte: Vinhedo, 2013.-1212 Hirata H, Guimaraes NA, (orgs). Cuidado e cuidadoras: várias faces do trabalho do Care. São Paulo: Atlas, 2012.). Sobre a desigualdade de gênero no cuidado, estudos destacam que o tempo e as posições no mundo do trabalho se tornam desiguais, se levarmos em conta o tempo médio dedicado às tarefas domésticas e ao cuidado com os filhos realizado pelos homens e pelas mulheres(1313 Biroli F. Responsabilidades, cuidado e democracia. Rev Bras Ciênc Polít [Internet]. 2015 [cited 2016 Aug 9];(18):81-117 Available from: http://www.scielo.br/pdf/rbcpol/n18/2178-4884-rbcpol-18-00081.pdf
http://www.scielo.br/pdf/rbcpol/n18/2178...
).

Perspectivas feministas sobre o care, também chamado trabalho do cuidado, inserem-se na corrente teórica da sociologia das emoções, cujo interesse é desvelar as iniquidades advindas da exploração do trabalho emotivo na acumulação capitalista. A concepção de care ou trabalho do cuidado é vista como uma atenção constante que visa melhorar o bem-estar do outro. Nessa concepção de cuidado, concebido apenas como trabalho, cabem múltiplos formatos, desde a enfermagem que nasceu sob a égide da sua subvalorização até os subempregos e a prostituição, uma vez que todos servem a outrem, como objeto a ser explorado e descartado(1212 Hirata H, Guimaraes NA, (orgs). Cuidado e cuidadoras: várias faces do trabalho do Care. São Paulo: Atlas, 2012.). A corrente feminista da ética do cuidado, também conhecida como o pensamento maternal, é considerada central para o debate sobre o cuidado na epistemologia feminista, a despeito de receber reiteradas críticas por suscitar o reforço das aproximações essencialistas entre o cuidado e a feminilidade(1313 Biroli F. Responsabilidades, cuidado e democracia. Rev Bras Ciênc Polít [Internet]. 2015 [cited 2016 Aug 9];(18):81-117 Available from: http://www.scielo.br/pdf/rbcpol/n18/2178-4884-rbcpol-18-00081.pdf
http://www.scielo.br/pdf/rbcpol/n18/2178...
). Porém, há autoras que ampliam a discussão ao considerarem o cuidado uma questão prioritária para a democracia(1414 Tronto JC. Assistência democrática e democracias assistenciais. Soc. Estado [Internet]. 2007 [cited 2016 Aug 9];22(2)285-308. Available from: http://www.scielo.br/pdf/se/v22n2/03.pdf
http://www.scielo.br/pdf/se/v22n2/03.pdf...
-1515 Tronto JC. Creating caring institutions: politics, plurality and purpose: ethics and social welfare. 2010 [cited 2016 Aug 9];4(10):158-71. Available from: http://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/17496535.2010.484259
http://www.tandfonline.com/doi/abs/10.10...
).

Para compreender isso, seria preciso avançar no confronto direto das desigualdades (de gênero, de classe e de raça) e da mercantilização que configuram o cuidado nas sociedades contemporâneas. Alguns conceitos de cuidado seriam problemáticos por encobrirem profundas iniquidades geradas pela exploração mercantil da atividade do cuidar, às custas da sua privatização e do distanciamento das discussões políticas. Uma dessas concepções é aquela que acentua a dualidade entre quem oferta e quem recebe cuidado, inerente às concepções de care, que tendem a anular as relações de poder constitutivas da subjetividade. Outra concepção limitante é o cuidar visto como trabalho do amor, realizado às custas da mais valia do trabalho emocional de mulheres, imigrantes e negras, em geral(1414 Tronto JC. Assistência democrática e democracias assistenciais. Soc. Estado [Internet]. 2007 [cited 2016 Aug 9];22(2)285-308. Available from: http://www.scielo.br/pdf/se/v22n2/03.pdf
http://www.scielo.br/pdf/se/v22n2/03.pdf...
-1515 Tronto JC. Creating caring institutions: politics, plurality and purpose: ethics and social welfare. 2010 [cited 2016 Aug 9];4(10):158-71. Available from: http://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/17496535.2010.484259
http://www.tandfonline.com/doi/abs/10.10...
).

Uma das principais repercussões ideológicas dos conceitos dualistas ou moralistas do cuidado é que neles se exclui o mau cuidado. Ao deixar o cuidado atrás do muro da rígida separação entre o público e o privado, as sociedades modernas perpetuam a antiga exclusão da democracia grega, na qual as mulheres e os escravos eram excluídos da ágora discursiva da cidade. Em contraponto, o conceito do cuidado na perspectiva democrática é visto como "uma atividade da própria espécie que inclui tudo o que nós podemos fazer para manter, continuar e reparar nosso mundo, de forma que possamos viver nele da melhor maneira possível"(1414 Tronto JC. Assistência democrática e democracias assistenciais. Soc. Estado [Internet]. 2007 [cited 2016 Aug 9];22(2)285-308. Available from: http://www.scielo.br/pdf/se/v22n2/03.pdf
http://www.scielo.br/pdf/se/v22n2/03.pdf...
). Ou seja, o cuidado seria um elemento central da vida humana, relacional, imerso em disputas de poder e não apenas algo bom(1616 Mota FF, Tronto JC. Caring democracy: markets, equality, and justice. Rev Bras Ciênc Polít [Internet]. 2015 [cited 2016 Aug 9];(18):317-22. Available from: http://www.scielo.br/pdf/rbcpol/n18/2178-4884-rbcpol-18-00317.pdf
http://www.scielo.br/pdf/rbcpol/n18/2178...
).

Segundo essa teoria, três situações geram as desigualdades no cuidado(1414 Tronto JC. Assistência democrática e democracias assistenciais. Soc. Estado [Internet]. 2007 [cited 2016 Aug 9];22(2)285-308. Available from: http://www.scielo.br/pdf/se/v22n2/03.pdf
http://www.scielo.br/pdf/se/v22n2/03.pdf...
-1515 Tronto JC. Creating caring institutions: politics, plurality and purpose: ethics and social welfare. 2010 [cited 2016 Aug 9];4(10):158-71. Available from: http://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/17496535.2010.484259
http://www.tandfonline.com/doi/abs/10.10...
): a- quando a diferença política entre o cuidado necessário (quando a pessoa não pode fazer por si e precisa de ajuda, como crianças, doentes e idosos) e o de serviços (aquele que a pessoa pode fazer, mas escolhe não fazê-lo, como as tarefas domésticas, higiene, limpeza) não é considerada; b- quando o cuidado é visto como uma mercadoria global, na qual imigrantes, mulheres e negras prestam serviços em condições de subcidadania tanto nos seus países quanto nos escolhidos para emigrar; c- quando existem dualismos entre quem oferta e quem recebe cuidados, encobrindo a vulnerabilidade daqueles que ofertam os trabalhos de cuidado.

Para a teoria democrática do cuidado, a alternativa do modelo neoliberal para a sua redistribuição é a mercantilização, segmentando as mulheres sob o viés do gênero, da classe e da etnia. Com o crescimento dos fluxos migratórios na globalização, as mulheres pobres, imigrantes, negras ou latinas constituem as servas do capital. Em oposição, a democratização do cuidado propõe(1515 Tronto JC. Creating caring institutions: politics, plurality and purpose: ethics and social welfare. 2010 [cited 2016 Aug 9];4(10):158-71. Available from: http://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/17496535.2010.484259
http://www.tandfonline.com/doi/abs/10.10...
): todos são vulneráveis e precisam de cuidado; cuidados com a igualdade e a igualdade do cuidado (acesso a cuidados de qualidade para ampliar as oportunidades); cuidado com a pluralidade (o cuidado com as diferenças e sua expressão democrática).

Em síntese, na relação entre o cuidado e a democracia urge redistribuir as atividades do cuidar nas sociedades capitalistas, para torná-las mais justas. A teoria democrática do cuidado tem semelhança com a tese da politicidade do cuidado. A inclusão das relações de poder como constitutivas do cuidar, assim como o aspecto complexo das redes hierárquicas nos âmbitos privado e público, coincidem com a tensão entre as formas de interação e de rupturas presentes na politicidade do cuidado. As desigualdades sociais advindas da não observância do político nas relações do cuidado coadunam com a ambivalência entre a ajuda e o poder, na sua vertente reprodutora de assimetrias de poder da politicidade do cuidado.

As diferenças, porém, começam pela própria definição de cuidado. Embora a teoria democrática do cuidado amplie a perspectiva política do cuidar, ela permanece restrita ao âmbito das práticas quando afirma que o cuidado é uma atividade própria da espécie. Diferente disso, a politicidade do cuidado não se restringe às relações humanas, mas é inerente ao próprio pulsar da vida, em distintas abordagens, seja biológica, social, ética, política, seja filosófica(88 Pires MRGM. Politicidade do cuidado como referência emancipatória para a enfermagem: conhecer para cuidar melhor, cuidar para confrontar, cuidar para emancipar. Rev Latino-Am Enfermagem [Internet]. 2005 [cited 2016 Aug 9];13(5):729-36. Available from: http://www.scielo.br/pdf/rlae/v13n5/v13n5a18.pdf
http://www.scielo.br/pdf/rlae/v13n5/v13n...

9 Pires MRGM, Gomes LBD, Matos DG. No descaminho da arte rumo à educação crítica: a gestão, o cuidado e o trabalho em saúde no catálogo didáticos-para-recriar-se. In: Spagnol CA, Veloso ISC, (Org). Administração em enfermagem: estratégias de ensino. Belo Horizonte: Coopmed, 2014. p.145-61.
-1010 Pires MRGM. Reconstructing myths of nursing through the emancipatory quality of care. Rev Esc Enferm USP [Internet]. 2007 [cited 2016 Aug 9];41(4):717-23. Available from: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0080-62342007000400025
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
). Quer dizer, a politicidade do cuidado se baseia na noção de autopoiese como um movimento de reconstrução autônoma de tudo que é vivo(1717 Maturana HR, Varela FJG. De máquinas e seres vivos: autopoiese, a organização do vivo. 3ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997); no conceito de biopoder das sociedades do controle que produz a vida social a partir de processos políticos internos(1818 Hardt M, Negri A. Império. 4. Ed. Rio de Janeiro. São Paulo: Record; 2002-1919 Deleuze G, Guattari F. O que é a Filosofia? Prado Jr B, Alonso-Muñuz A.(trads). Rio de Janeiro: Editora 34, 1997.); ou na perspectiva da ajuda a partir da trilogia da dádiva, inscrita na obrigação de dar, de receber e de retribuir, como elemento fomentador da cultura(2020 Mauss M. Ensaio sobre a dádiva. Lisboa: Edições 70, 1950.). A epistemologia crítica da politicidade do cuidado se forja no diálogo entre a ciência, a arte e a filosofia, como um descaminho lúdico e crítico necessário para interpretar, desvelar e reinventar realidades(99 Pires MRGM, Gomes LBD, Matos DG. No descaminho da arte rumo à educação crítica: a gestão, o cuidado e o trabalho em saúde no catálogo didáticos-para-recriar-se. In: Spagnol CA, Veloso ISC, (Org). Administração em enfermagem: estratégias de ensino. Belo Horizonte: Coopmed, 2014. p.145-61.).

Nesse sentido, a abordagem inspirada em correntes feministas da politicidade do cuidado, como forma expressiva, afirmativa e disruptiva das muitas faces do poder e da ajuda nas relações intersubjetivas, contrapõe-se às alternativas da teoria democrática do cuidado. A hipervalorização do cuidado como uma saída para a profunda desigualdade de gênero é insuficiente para a ampliação da cidadania das mulheres, se considerarmos os antagonismos do poder que conformam as iniquidades sociais. Tronto parece se render às concepções românticas da ética do cuidado, que se esquecem de dizer como o cuidado seria capaz de enfrentar as profundas desigualdades estruturais da sociedade calcada em complexas redes e expressões de poder na cultura, na sociedade, na economia e na política(1313 Biroli F. Responsabilidades, cuidado e democracia. Rev Bras Ciênc Polít [Internet]. 2015 [cited 2016 Aug 9];(18):81-117 Available from: http://www.scielo.br/pdf/rbcpol/n18/2178-4884-rbcpol-18-00081.pdf
http://www.scielo.br/pdf/rbcpol/n18/2178...
,1616 Mota FF, Tronto JC. Caring democracy: markets, equality, and justice. Rev Bras Ciênc Polít [Internet]. 2015 [cited 2016 Aug 9];(18):317-22. Available from: http://www.scielo.br/pdf/rbcpol/n18/2178-4884-rbcpol-18-00317.pdf
http://www.scielo.br/pdf/rbcpol/n18/2178...
).

A saída que se defende por meio da politicidade do cuidado é que um poder precisa ser contido por um outro poder, ou contrapoder, que seja forte o suficiente para gerar rupturas e inovações nas relações sociais. Os consensos cuidativos calcados na ajuda, cuja fortaleza reside na invisibilidade e na negação do poder pelos próprios subordinados, são as mais virulentas formas de violência, pois sua bondade expressiva impede críticas e resistências. O ambiente propício à democracia é aquele que permite a crítica, em viva politicidade.

Entre as Evas-brasileiras, as Marias-portuguesas e a enfermagem moderna: estereótipos da cuidadora natural na opressão do feminino

Mas qual é a imagem estereotipada que a sociedade lusitana tem das brasileiras? Como esse imaginário se forjou no âmbito dos saberes-discursos-poderes daquela cultura? Como essa imagem se transforma em preconceito? O que são as Evas-brasileiras, as Marias-portuguesas e quais as semelhanças com a enfermagem moderna? De que forma as Evas, as Marias e a enfermagem moderna coincidem com o estereótipo da cuidadora natural? O que é propriamente uma cuidadora natural e quais as suas repercussões para a opressão do feminino? Este tópico tratará dessas questões, num esforço para desconstruir a violência naturalizada na noção da mulher como uma cuidadora natural que unifica os estereótipos de gênero das brasileiras em Portugal e na enfermagem.

A começar pelos estereótipos das mulheres brasileiras em Portugal, parte das perguntas apresentadas foi investigada por Gomes(44 Gomes MS. O imaginário social. Mulher Brasileira em Portugal: uma análise da construção de saberes, das relações de poder e dos modos de subjetivação. Dados. Rev Ciênc Soc [Internet]. 2013 [cited 2016 Aug 9];56(4):807-900. Available from: http://www.scielo.br/pdf/dados/v56n4/v56n4a05.pdf
http://www.scielo.br/pdf/dados/v56n4/v56...
), que realizou uma crítica sobre a violência simbólica que as mulheres brasileiras sofrem e as formas com que a enfrentam no contexto português. Em linhas gerais, pode-se dizer que, a despeito das diferenças de classe entre as Mulheres Brasileiras (a autora grafa o termo em letras maiúscula, para chamar atenção ao estereótipo) em Portugal, a interseção de gênero entre elas aponta para o imaginário social europeu circunscrito à hipersexualidade como uma construção social discursiva, performática e estigmatizadora(55 Hoeve YT, Jancen G, Roodbol P. The nursing profession: public image, self-concept and professional identity. A discussion paper. J Adv Nurs [Internet]. 2014 [cited 2016 Aug 9]; 70(2):295-309. Available from: http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1111/jan.12177/abstract;jsessionid=DE82B96AADE0F6CBCDB8A6915BC51EE9.f01t01
http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.11...
,88 Pires MRGM. Politicidade do cuidado como referência emancipatória para a enfermagem: conhecer para cuidar melhor, cuidar para confrontar, cuidar para emancipar. Rev Latino-Am Enfermagem [Internet]. 2005 [cited 2016 Aug 9];13(5):729-36. Available from: http://www.scielo.br/pdf/rlae/v13n5/v13n5a18.pdf
http://www.scielo.br/pdf/rlae/v13n5/v13n...
).

A articulação entre colonialismo, raça e gênero, reproduzida na violência sexual e estigmatizada que a sexualidade das mulheres negras e índias sofreu no período da colonização brasileira, respinga para um imaginário social que reinventa um corpo colonial sempre disponível e alvo de exploração escravizante do colonizador. Em consequência, o estigma da mulher brasileira como mulata, sensual, exótica e sexual continua a ser reproduzido tanto pela mídia brasileira (em especial nas propagandas e novelas brasileiras) como pela estrangeira(44 Gomes MS. O imaginário social. Mulher Brasileira em Portugal: uma análise da construção de saberes, das relações de poder e dos modos de subjetivação. Dados. Rev Ciênc Soc [Internet]. 2013 [cited 2016 Aug 9];56(4):807-900. Available from: http://www.scielo.br/pdf/dados/v56n4/v56n4a05.pdf
http://www.scielo.br/pdf/dados/v56n4/v56...
). Há de se destacar que, se no Brasil as discriminações raciais ocorrem entre os brancos e não brancos, em Portugal essa diferenciação ocorre entre o europeu e o não europeu. Desta feita, o próprio termo imigrante já carrega um preconceito racial que é reservado apenas para os latinos e africanos, e não aos estrangeiros de outras nacionalidades europeias(44 Gomes MS. O imaginário social. Mulher Brasileira em Portugal: uma análise da construção de saberes, das relações de poder e dos modos de subjetivação. Dados. Rev Ciênc Soc [Internet]. 2013 [cited 2016 Aug 9];56(4):807-900. Available from: http://www.scielo.br/pdf/dados/v56n4/v56n4a05.pdf
http://www.scielo.br/pdf/dados/v56n4/v56...
,66 Machado IJR. Brasileiros no exterior e cidadania 1980-2005. Tomo (UFS) [Internet]. 2015 [cited 2016 Aug 9];26:211-45. Available from: http://www.seer.ufs.br/index.php/tomo/article/v
http://www.seer.ufs.br/index.php/tomo/ar...
). Acoplada a esse preconceito, existe uma essencialização do discurso oriundo da moral cristã burguesa que associa as mulheres brancas europeias às Marias-mães-esposas e as índias, negras e mestiças às Evas-pecadoras-prostitutas.

Essa bipolaridade opressiva entre as Mães-santas-portuguesas e as Evas-pecadoras-brasileiras ganhou expressivo vigor no episódio autodenominado Mães de Bragança. O caso ganhou repercussão internacional e aconteceu na pequena cidade de Bragança, interior português, quando um grupo de quatro lusitanas organizou um abaixo-assinado contra as Mulheres Brasileiras (imigrantes que trabalhavam naquela cidade como prostitutas) que estariam roubando os maridos das mães de família. O episódio resultou na expulsão de imigrantes brasileiras ilegais que trabalhavam em casas de prostituição da referida cidade, assim como o fechamento temporário de vários desses estabelecimentos(2121 Pais JM. Mães de Bragança e feitiços: enredos luso-brasileiros em torno da sexualidade. Rev Ciênc Soc [Internet]. 2010 [cited 2016 Aug 9];41(2):9-23. Available from: http://www.periodicos.ufc.br/index.php/revcienso/article/view/455/437
http://www.periodicos.ufc.br/index.php/r...
).

Esse fato parece sintetizar a principal crítica a ser feita acerca dos estereótipos de gênero associados à mulher brasileira em Portugal, em geral relacionada à Eva-pecadora-sexualizada-prostituta, em oposição à Maria-mãe-assexuada-santa, portuguesa. Esse imaginário social sobre as mulheres, construído ao longo de séculos na cultura judaico-cristã, evidencia a dicotomia associada ao gênero (frágil e forte; vítima ou culpada; santa ou pecadora) e às imagens misóginas produzidas hegemonicamente pelos homens (em especial os padres da igreja católica) sobre as mulheres nas sociedades ocidentais(2222 Duby G. Evas e os Padres. In: Duby G. As damas do século XII. Neves P, Machado ML(trads). São Paulo: Companhia das Letras, 2013.).

Historicamente, a figura de Eva, diabolizada, decaída, sedutora, carnal, pecadora, e a da Maria, santificada, pura, virgem, são utilizadas para legitimar práticas discursivas a serviço da dominação masculina. Segundo Duby(2222 Duby G. Evas e os Padres. In: Duby G. As damas do século XII. Neves P, Machado ML(trads). São Paulo: Companhia das Letras, 2013.), que investigou como as mulheres eram tratadas no século XII, a igreja católica considerava a mulher, pela sua própria constituição, uma encarnação do pecado e da sexualidade sedutora. Para contê-la e salvá-la, ela deveria ser controlada, pelos padres ou pelos maridos. Enquanto os primeiros as subjugariam pela alma, por meio da fé, os segundos teriam a posse delas pelo corpo, consumada pelo casamento. Uma vez domada pelo matrimônio e convertida a face de Eva à versão santificada de Maria, a mulher deveria renunciar à sua sexualidade e copular tão somente para reproduzir a espécie.

Nesse contexto, é clara a influência da cultura e da moral religiosa de Portugal sobre o Brasil, típica da imposição do colonizador sobre o colonizado, embora saibamos do multiculturalismo que nos originou, expresso em amplas formas de resistências e de ressignificações imagéticas. Isso posto, identificam-se similitudes entre os estereótipos das brasileiras em Portugal com aqueles vivenciados pela enfermagem moderna, uma vez que essa profissão sofre influência da moral cristã. A exemplo de outras profissões imbricadas com os cuidados domésticos e com os filhos, a enfermagem brasileira nasce como uma profissão marcada pela influência das desigualdades de gênero, sob o modelo nightingaleano.

Florence Nightingale, aristocrata inglesa da era vitoriana do século XIX, instituiu um modelo de formação, de qualificação e de moralização para lidar com os muitos preconceitos existentes sobre as mulheres que cuidavam dos doentes da época. Como se sabe, a chamada enfermagem laica (anterior à profissionalização da enfermagem moderna) era composta por mulheres dos estratos mais baixos da população, sem escolaridade, com moral tida como duvidosa ou por prostitutas, portanto com uma carga secular de preconceitos de classe, de raça, de etnia e de gênero. O modelo de formação implementado por Florence cindiu a profissão entre as nurses, categoria destinada às mulheres dos estratos sociais mais baixos, de menor escolaridade e responsáveis pelo cuidado direto, e as lady nurses, senhoras da alta aristocracia inglesa, de maior escolaridade e nível cultural, responsáveis pela coordenação do cuidado e pela formação da equipe.

Se bem reparado, o modelo nightingaleano que mais se consolidou na formação da profissão no ocidente colocou um manto protetor pouco refletido nas imagens estereotipadas das nurses-Evas e das lady-nurses-Marias, mantendo essas contradições latentes e ideologizadas sob o discurso moralista da benevolência, da caridade e da nobreza da enfermagem moderna. As repercussões, as contradições históricas e as críticas desse modelo de formação para a prática social e para a autonomia da profissão foram bem estudadas no Brasil, em especial na década de 1980(2323 Germano RM. Educação e ideologia da enfermagem no brasil. São Paulo: Cortez, 1985.-2424 Silva GB. Enfermagem profissional: análise crítica. São Paulo: Cortez , 1989.).

As principais repercussões do modelo nightingaleano da enfermagem moderna para a autonomia da profissão são as seguintes(2323 Germano RM. Educação e ideologia da enfermagem no brasil. São Paulo: Cortez, 1985.-2424 Silva GB. Enfermagem profissional: análise crítica. São Paulo: Cortez , 1989.): a) o caráter passivo da sua origem, atrelado aos interesses da elite ou do Estado e não aos agentes sociais que a realizavam, é desafio à cidadania ativa; b) a formação da enfermeira mascarou ideologicamente a realidade que conformava o cuidado de enfermagem no século XIX (realizado por leigas, religiosas, prostitutas, escravas) por meio de práticas discursivas moralistas incapazes de vencer as contradições da prática profissional; c) a tentativa de elevação do status da enfermeira (lady-nurse), a divisão social, sexual e técnica do trabalho, a negação da prática social dos seus agentes, o cientificismo, a ideologia em torno de mitos fundadores - de imagens sacralizadas, assexuadas e vocacionais - conformam o arquétipo da profissão.

O mascaramento ideológico dos mitos da Eva-pecadora e da Maria-santificada, latentes na profissionalização das atuais técnicas de enfermagem e enfermeiras brasileiras, além de não ter sido capaz de apagar as associações da enfermeira sexy, se reproduz de maneira pouco crítica tanto na formação quanto na prática profissional. No imaginário social prevalecem as imagens sacralizadas ou sexualizadas da profissão, ao lado da submissão histórica da enfermagem ao profissional médico. Essas visões estão em desacordo com conceitos ilusórios que a profissão cria para si, para se justificar ou se valorizar internamente, dissociadas de uma realidade estereotipada e imersa em desigualdades de gênero que urgem por enfrentamentos(55 Hoeve YT, Jancen G, Roodbol P. The nursing profession: public image, self-concept and professional identity. A discussion paper. J Adv Nurs [Internet]. 2014 [cited 2016 Aug 9]; 70(2):295-309. Available from: http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1111/jan.12177/abstract;jsessionid=DE82B96AADE0F6CBCDB8A6915BC51EE9.f01t01
http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.11...
).

Sobre a imagem da profissão no mundo, uma revisão sistemática de literatura recente analisou 1.216 estudos e chegou à síntese integrativa de 18 pesquisas, relacionadas a Austrália, Brasil, Noruega, Suécia, EUA, Taiwan, Hong Kong, Israel, Japão e Noruega. Dentre os principais resultados, destacam-se(55 Hoeve YT, Jancen G, Roodbol P. The nursing profession: public image, self-concept and professional identity. A discussion paper. J Adv Nurs [Internet]. 2014 [cited 2016 Aug 9]; 70(2):295-309. Available from: http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1111/jan.12177/abstract;jsessionid=DE82B96AADE0F6CBCDB8A6915BC51EE9.f01t01
http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.11...
): a) os valores culturais e sociais tradicionais de gênero influenciam a forma com que o público percebe a profissão de enfermagem; b) o autoconceito das(os) enfermeiras(os) está em desacordo com o imaginário social; c) na mídia, os enfermeiros dificilmente são vistos como profissionais consultores ou especialistas; d) o público é alheio aos diversos níveis de ensino, de pesquisa e dos vários campos de atuação da enfermagem; e- persistem na sociedade muitos estereótipos relacionados à profissão, a maioria com conotação bastante negativa. Acerca da imagem das(os) enfermeiras(os) na mídia, as pesquisas confirmam as ambiguidades sobre a profissão, ora associadas a uma profissional qualificada e competente, ora como objeto sexual. Com um quadro diversificado, persistem os estereótipos de gênero concomitantemente à valorização das enfermeiras pelas suas virtudes e não pelo conhecimento, estereótipos de gênero influenciados por Evas e Marias.

No contexto brasileiro, investigações sobre a imagem da enfermagem para o jornalismo ratificam a invisibilidade e o desconhecimento da atuação profissional para além do imaginário social de uma atividade subsidiária à medicina(2525 Kemmer LF, Silva MJP. Nurses' visibility according to the perceptions of the communication professionals. Rev Latino-Am Enfermagem [Internet]. 2007 [cited 2016 Aug 9];15(2):191-98. Available from: http://www.scielo.br/pdf/rlae/v15n2/v15n2a02.pdf
http://www.scielo.br/pdf/rlae/v15n2/v15n...
). As produções da enfermagem que investigam a violência contra a mulher, mesmo detendo-se a uma temática claramente influenciada pelo gênero, ressentem-se de epistemologias críticas do feminismo nas suas análises(2626 Duarte MC, Fonseca RMG, Souza V, Pena ED. Gender and violence against women in nursing literature: a review. Rev Bras Enferm [Internet]. 2015 [cited 2016 Aug 9];68(2):325-32. Available from: http://www.scielo.br/pdf/reben/v68n2/en_0034-7167-reben-68-02-0325.pdf
http://www.scielo.br/pdf/reben/v68n2/en_...
). No âmbito da educação, constata-se a progressiva cristalização dos estereótipos de gênero na formação dos futuros profissionais de enfermagem. Estudos identificam que os estudantes de semestres iniciais do curso de graduação têm visões mais ampliadas sobre o que seja ser mulher, ser homem e ser enfermeira do que aqueles que estão prestes a se formar(2727 Souza LL, Araujo DB, Silva DS, Menezes VC. Representações de gênero na prática de enfermagem na perspectiva dos estudantes. Ciênc Cognição [Internet]. 2014 [cited 2016 Aug 9];19(2):218-32. Available from: http://www.cienciasecognicao.org/revista/index.php/cec/article/view/908/pdf_13
http://www.cienciasecognicao.org/revista...
).

Noutra pesquisa, a representação social do que é ser enfermeiro, realizada com 430 discentes, ratifica as noções de cuidar e de responsabilidade associadas ao conhecimento e ao amor. Atreladas a isso, as visões do masculino e do feminino na profissão se relacionam aos papéis sexuais destinados à racionalidade no homem e à emotividade na mulher(2828 Brito AMR, Brito MJM, Gazzinelli MFC, Montenegro LC. Representações sociais discentes de graduação em enfermagem sobre "ser enfermeiro". Rev Bras Enferm [Internet]. 2011 [cited 2016 Aug 9];64(3):527-35. Available from: http://www.scielo.br/pdf/reben/v64n3/v64n3a17.pdf
http://www.scielo.br/pdf/reben/v64n3/v64...
). Estudos constatam que a introjeção do modelo da mulher bem comportada, construído na família, facilita a aceitação das normas impostas durante a formação da enfermeira(2929 Costa LHR, Coelho EAC. Ideologies of gender and sexuality: the interface between family upbringing and nursing education. Texto Contexto Enferm [Internet]. 2013 [cited 2016 Aug 9];22(2):485-92. Available from: http://www.scielo.br/pdf/tce/v22n2/en_v22n2a26.pdf
http://www.scielo.br/pdf/tce/v22n2/en_v2...
).

Acerca da inserção dos homens na enfermagem, a situação é marcada por profundas desigualdades de gênero, em favor deles. Um estudo de revisão sistemática que objetivou identificar os fatores que influenciam a entrada dos homens na profissão selecionou 34 investigações sobre o tema, oriundas dos EUA, Canadá, Austrália, Reino Unido, China, Irã e Taiwan. A insuficiência da crítica acerca das questões de gênero está presente inclusive na revisão de literatura que justifica o estudo, pois os autores destacam como vantagem da entrada de homens na profissão a elevação da valorização profissional(3030 Zamanzadeh V, Valizadeh L, Negarandeh R, Monadi M, Azadi A. Factors influencing men entering the nursing profession, and understanding the challenges faced by them: Iranian and developed countries' perspectives. Nurs Mid Stud [Internet]. 2013 [cited 2016 Aug 9];2(4):49-56. Available from: http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC4228905/pdf/nms-02-49.pdf
http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles...
). Como se sabe, delegar ao universo masculino, que historicamente sempre produziu discursos a serviço de sua supremacia sobre as mulheres, a emancipação feminina na enfermagem, além de permanecer no campo ilusório, ratifica o patriarcado e a tutela das mulheres pelos homens(1111 Miguel LF; Biroli F.(orgs.). Teoria política feminista: textos centrais. Belo Horizonte: Vinhedo, 2013.

12 Hirata H, Guimaraes NA, (orgs). Cuidado e cuidadoras: várias faces do trabalho do Care. São Paulo: Atlas, 2012.

13 Biroli F. Responsabilidades, cuidado e democracia. Rev Bras Ciênc Polít [Internet]. 2015 [cited 2016 Aug 9];(18):81-117 Available from: http://www.scielo.br/pdf/rbcpol/n18/2178-4884-rbcpol-18-00081.pdf
http://www.scielo.br/pdf/rbcpol/n18/2178...

14 Tronto JC. Assistência democrática e democracias assistenciais. Soc. Estado [Internet]. 2007 [cited 2016 Aug 9];22(2)285-308. Available from: http://www.scielo.br/pdf/se/v22n2/03.pdf
http://www.scielo.br/pdf/se/v22n2/03.pdf...

15 Tronto JC. Creating caring institutions: politics, plurality and purpose: ethics and social welfare. 2010 [cited 2016 Aug 9];4(10):158-71. Available from: http://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/17496535.2010.484259
http://www.tandfonline.com/doi/abs/10.10...
-1616 Mota FF, Tronto JC. Caring democracy: markets, equality, and justice. Rev Bras Ciênc Polít [Internet]. 2015 [cited 2016 Aug 9];(18):317-22. Available from: http://www.scielo.br/pdf/rbcpol/n18/2178-4884-rbcpol-18-00317.pdf
http://www.scielo.br/pdf/rbcpol/n18/2178...
).

Quanto aos elementos que influenciam a entrada masculina na profissão, são igualmente sexistas e incluem(3030 Zamanzadeh V, Valizadeh L, Negarandeh R, Monadi M, Azadi A. Factors influencing men entering the nursing profession, and understanding the challenges faced by them: Iranian and developed countries' perspectives. Nurs Mid Stud [Internet]. 2013 [cited 2016 Aug 9];2(4):49-56. Available from: http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC4228905/pdf/nms-02-49.pdf
http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles...
): a) a despeito dos incômodos sentidos pela imersão numa profissão feminina, eles se sentem confortáveis quando assumem estratégias de diferenciação em relação às colegas; b) os motivos de entrada dos homens na enfermagem são pela escassez de emprego, pessoais ou como segunda opção; c) os desafios encontrados por eles na enfermagem se referem ao contato com a natureza feminina, subalterna e socialmente desvalorizada do cuidado; d) o estereótipo imagético da profissão põe em dúvida a habilidade masculina para o cuidado; e) a despeito das contradições de gênero, os homens assumem cargos de liderança, progridem mais rápido e ganham melhor que as mulheres; f) eles são mais bem tratados no cotidiano da profissão, seja pelas colegas, seja por outros homens.

Nessa ambiência discursiva, vê-se que o processo de profissionalização da enfermagem moderna é marcado por desigualdades de gênero semelhantes aos estereótipos da moral cristã que as mulheres brasileiras sofrem em Portugal, se levarmos em conta a divisão polarizada e discriminatória entre as Evas-pecadoras versus as Marias-virtuosas. Esse imaginário social é pouco refletido pela categoria profissional e pelas brasileiras em geral, o que impede discursos e práticas democratizantes, capazes de ampliar o reconhecimento social da profissão e a cidadania das mulheres.

Se concebermos as artimanhas do poder, inclusive na sua vertente biopolítica mais eficaz(1818 Hardt M, Negri A. Império. 4. Ed. Rio de Janeiro. São Paulo: Record; 2002-1919 Deleuze G, Guattari F. O que é a Filosofia? Prado Jr B, Alonso-Muñuz A.(trads). Rio de Janeiro: Editora 34, 1997.), percebem-se alguns discursos sobre o cuidado que reproduzem de maneira naturalizada muitas formas de opressão do feminino, em especial nos estereótipos de gênero que perfazem a imagem da mulher brasileira e da enfermagem moderna. Um desses estereótipos que cristalizam o imaginário da mulher sob os rótulos das Evas e das Marias é aquele que insiste em designá-la como uma cuidadora natural que, por sua natureza feminina, estaria destinada a se responsabilizar integralmente pelas atividades de cuidado. Sob esse rótulo os afazeres domésticos, o cuidado das crianças, dos idosos, os serviços gerais e todas as formas em que uma pessoa se utiliza dos serviços de outra em benefício próprio seriam atributos essencialmente femininos - portanto, de responsabilidade das mulheres. A esse respeito, as repercussões dessa opressão para as brasileiras em Portugal e na enfermagem também se assemelham nas iniquidades sociais, embora em contextos distintos.

No caso das imigrantes em terras lusitanas, observa-se uma tendência à feminização do fluxo migratório, além de uma diminuição na entrada de pessoas com alta qualificação. O perfil atual é menos qualificado, oriundo de estratos mais baixos da população e com escolaridade mediana, o que compromete uma inserção mais valorizada no mercado de trabalho. Os serviços destinados aos estratos médios das imigrantes em Portugal são aqueles próprios da cuidadora natural, quais sejam: de consertos, de serviços gerais do setor de limpeza e de estética (empregadas domésticas, manicures, depiladoras, etc.)(33 Padilla B. Migraciones y Cambio: trayectorias, identidades y transformaciones de inmigrantes brasileños en Portugal. PerCursos [Internet]. 2014 [cited 2016 Aug 9];15(18):6-41. Available from: http://www.periodicos.udesc.br/index.php/percursos/article/view/1984724215282014006
http://www.periodicos.udesc.br/index.php...
,77 Padilla B. A imigrante brasileira em Portugal: considerando o gênero em análise. In: Malheiros, JM(org.). Imigração brasileira em Portugal. Lisboa: ACDI, 2007). No caso da enfermagem brasileira, recente pesquisa nacional sobre o perfil de seus profissionais aponta resultados preocupantes, em que as situações de precariedade no trabalho convivem com os problemas de saúde e situações de violência social sobre seus agentes(3131 Fiocruz. Rio de Janeiro-RJ; Pesquisa aprofunda fatores de insatisfação profissional na enfermagem [Internet]. 2015 [cited 2016 Aug 9]. Available from: http://www.ensp.fiocruz.br/portal-ensp/informe/site/materia/detalhe/37711
http://www.ensp.fiocruz.br/portal-ensp/i...
).

As semelhanças entre a marginalidade das imigrantes em Portugal e a vulnerabilidade social da enfermagem ratificam a condição de subcidadania das mulheres brasileiras, em ambos os contextos, embora com especificidades. Outra face dessa violência simbólica é o rótulo da mulher como cuidadora natural, que reproduz concepções opressoras dos mitos de Eva e Maria, naturalizados pela moral cristã.

De cuidadora natural à dimensão política do cuidar: politicidades

A politicidade do cuidado pode indicar possibilidades para o reordenamento dos estereótipos que subjugam as mulheres. Para isso, serão analisadas as duas realidades que podem favorecer os enfrentamentos das brasileiras nos distintos contextos para, em seguida, serem apontadas as politicidades para o cenário apresentado.

Quanto às brasileiras em Portugal, como elas lidam, resistem e ressignificam os estereótipos de gênero perfazem pelo menos três diferentes formas de subjetivação ou politicidades(44 Gomes MS. O imaginário social. Mulher Brasileira em Portugal: uma análise da construção de saberes, das relações de poder e dos modos de subjetivação. Dados. Rev Ciênc Soc [Internet]. 2013 [cited 2016 Aug 9];56(4):807-900. Available from: http://www.scielo.br/pdf/dados/v56n4/v56n4a05.pdf
http://www.scielo.br/pdf/dados/v56n4/v56...
): a) resistência passiva: mulheres de alta escolaridade procuram se distanciar da identidade brasileira; b) resistência afirmativa: comum no chamado mercado da alegria de bailarinas e profissionais do entretenimento, em que as mulheres afirmam exuberância, beleza e simpatia como marcas afirmativas da cultura brasileira; c) resistência combativa: mulheres intelectualizadas e do movimento de mulheres enfrentam ativamente esses estereótipos.

No caso das enfermeiras brasileiras, a despeito de a atuação da enfermagem ter se modificado ao longo dos anos, há aspectos da profissão que permanecem não visíveis para o grande público e são pouco apropriados pelas enfermeiras. Referimo-nos à ampliação da capacidade de pesquisa, de gestão de políticas públicas, de sistemas e de serviços de saúde; da educação de nível médio, de graduação e de pós-graduação da saúde e de outras áreas; da consultoria e das mais diversas formas de atuação do terceiro setor. Além disso, os processos de subjetivação acerca do que é ser homem, ser mulher e ser enfermeira, permeados pelas estereotipias de gênero, impedem uma apropriação crítica da prática social.

A riqueza política da enfermagem reside justamente no que as enfermeiras menos identificam, ou seja, na multiplicidade de sujeitos, ações, inserções e atuações em inúmeros cenários. As enfermeiras brasileiras assumem cargos de pesquisadoras, gestoras, secretárias de saúde, empreendedoras, educadoras, além da atuação no terceiro setor, em distintos movimentos sociais e de políticas públicas, em variadas inserções. A despeito disso, o imaginário da cuidadora natural, cristalizado nos discursos e nas práticas da profissão, fixa-se numa ilusão de identidade restrita ao anjo de branco que, se bem reparado, não corresponde sequer ao mito Nightingale. Afinal, Florence se notabilizou pela sua atuação em pesquisa, gestão, empreendedorismo, tudo isso na posição de aristocrata.

O essencialismo ilusório da cuidadora natural na enfermagem, além de não contribuir para o enfrentamento das iniquidades de gênero, reforça a desvalorização da profissão e fragmenta a força de coesão das enfermeiras que não se identificam com esse ideal assistencial. Muitas enfermeiras ocupam espaços estratégicos de poder e de prestígio em instituições diversas, para além da assistência e mesmo da saúde. Se a identidade da profissão não se ampliar o suficiente para conter as distintas possibilidades de atuação e de conhecimentos das enfermeiras na atualidade, em ricas coalizões agonistas por espaços democráticos na profissão, nas políticas públicas e na sociedade, perde-se a riqueza do político capaz de enfrentar as iniquidades de gênero na profissão.

Em busca de reordenamentos dos estereótipos de gênero das brasileiras, seja na situação de imigração, seja na profissão da enfermagem, a politicidade do cuidado na perspectiva de gênero indica algumas dinâmicas disruptivas, quais sejam:

  1. Epistemologia feminista para cuidar melhor: compreender o contexto sócio-histórico em que se originam as práticas discursivas dos estereótipos de gênero, em distintos contextos, ampliando a multiplicidade de olhares epistêmicos. Implica ampliar os paradigmas formativos das mulheres e dos homens a partir da epistemologia feminista, nos diversos cenários educativos, de informação, das instituições e das práticas sociais, fomentando pensamentos críticos capazes de articular discursos para o enfrentamento dos estereótipos de gênero.

  2. Cuidar para confrontar: uma vez ampliados os entendimentos genealógicos das relações entre gênero e poder nas instituições, nas sociedades, nas práticas e nos discursos, em distintos contextos em que as mulheres são secundarizadas como sujeitos, cabe mobilizá-las para os enfrentamentos. No caso das brasileiras em Portugal, significa ampliar as formas de resistências discursivas, articulando-as em redes de interesses convergentes na luta por ampliação da cidadania global. Para as enfermeiras, urge repensar as identidades profissionais, tornando-as diversas o suficiente para desconstruir os estereótipos da cuidadora natural na profissão.

  3. Cuidar para ser questionada(o): a partir da compreensão crítica do contexto gerador dos estereótipos de gênero, com a identificação das relações de poder envolvidas, as intervenções precisam evitar os dogmatismos. Significa manter o caráter antagônico e aberto do cuidado para permitir resistências, primando pela pluralidade de enfoques em disputa.

CONCLUSÃO

As similitudes entre os estereótipos das Evas-brasileiras e das Marias-portuguesas com a enfermeira sexualizada ou santificada se inscrevem na genealogia da moral judaico-cristã que reitera a subserviência do feminino ao masculino, com violências para as mulheres. Os rótulos de Eva e de Maria essencializam a mulher como cuidadora natural, destinada a prover os cuidados domésticos, de filhos, idosos, doentes, esposos e outros. Ao priorizar um cuidado que precisa do descuidado para ampliar as possibilidades cuidativas, a premissa teórica da politicidade do cuidado sob o enfoque de gênero pode contribuir para subverter as imagens essencializadas das brasileiras em solos lusitanos e na enfermagem contemporânea, ambas imersas nos estereótipos das Evas e das Marias. Ou, na linguagem mitológica, entre as Evas e as Marias, a politicidade do cuidado evoca o mito de Lilith, nas suas múltiplas subjetividades que personificam a irreverência e a não submissão do feminino, para subverter as ordens dos outros sobre quem ou como nós, mulheres brasileiras no plural, devemos ser.

REFERÊNCIAS

  • 1
    Gutmanis IA, Tutty LM, Wathen CN, MacMillan HL, Beynon CE. Why physicians and nurses ask (or dont) about partner violence: a qualitative analysis. BMC Public Health [Internet]. 2012 [cited 2016 Aug 9];21(12):473. Available from: http://bmcpublichealth.biomedcentral.com/articles/10.1186/1471-2458-12-473
    » http://bmcpublichealth.biomedcentral.com/articles/10.1186/1471-2458-12-473
  • 2
    Silva EB, Padoin SMM, Vianna LMC. [Women in situations of violence: limits of assistance]. Ciênc Saúde Colet [Internet]. 2015 [cited 2016 Aug 9];20(1):249-58. Available from: http://www.scielosp.org/pdf/csc/v20n1/pt_1413-8123-csc-20-01-00249.pdf Portuguese
    » http://www.scielosp.org/pdf/csc/v20n1/pt_1413-8123-csc-20-01-00249.pdf Portuguese
  • 3
    Padilla B. Migraciones y Cambio: trayectorias, identidades y transformaciones de inmigrantes brasileños en Portugal. PerCursos [Internet]. 2014 [cited 2016 Aug 9];15(18):6-41. Available from: http://www.periodicos.udesc.br/index.php/percursos/article/view/1984724215282014006
    » http://www.periodicos.udesc.br/index.php/percursos/article/view/1984724215282014006
  • 4
    Gomes MS. O imaginário social. Mulher Brasileira em Portugal: uma análise da construção de saberes, das relações de poder e dos modos de subjetivação. Dados. Rev Ciênc Soc [Internet]. 2013 [cited 2016 Aug 9];56(4):807-900. Available from: http://www.scielo.br/pdf/dados/v56n4/v56n4a05.pdf
    » http://www.scielo.br/pdf/dados/v56n4/v56n4a05.pdf
  • 5
    Hoeve YT, Jancen G, Roodbol P. The nursing profession: public image, self-concept and professional identity. A discussion paper. J Adv Nurs [Internet]. 2014 [cited 2016 Aug 9]; 70(2):295-309. Available from: http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1111/jan.12177/abstract;jsessionid=DE82B96AADE0F6CBCDB8A6915BC51EE9.f01t01
    » http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1111/jan.12177/abstract;jsessionid=DE82B96AADE0F6CBCDB8A6915BC51EE9.f01t01
  • 6
    Machado IJR. Brasileiros no exterior e cidadania 1980-2005. Tomo (UFS) [Internet]. 2015 [cited 2016 Aug 9];26:211-45. Available from: http://www.seer.ufs.br/index.php/tomo/article/v
    » http://www.seer.ufs.br/index.php/tomo/article/v
  • 7
    Padilla B. A imigrante brasileira em Portugal: considerando o gênero em análise. In: Malheiros, JM(org.). Imigração brasileira em Portugal. Lisboa: ACDI, 2007
  • 8
    Pires MRGM. Politicidade do cuidado como referência emancipatória para a enfermagem: conhecer para cuidar melhor, cuidar para confrontar, cuidar para emancipar. Rev Latino-Am Enfermagem [Internet]. 2005 [cited 2016 Aug 9];13(5):729-36. Available from: http://www.scielo.br/pdf/rlae/v13n5/v13n5a18.pdf
    » http://www.scielo.br/pdf/rlae/v13n5/v13n5a18.pdf
  • 9
    Pires MRGM, Gomes LBD, Matos DG. No descaminho da arte rumo à educação crítica: a gestão, o cuidado e o trabalho em saúde no catálogo didáticos-para-recriar-se. In: Spagnol CA, Veloso ISC, (Org). Administração em enfermagem: estratégias de ensino. Belo Horizonte: Coopmed, 2014. p.145-61.
  • 10
    Pires MRGM. Reconstructing myths of nursing through the emancipatory quality of care. Rev Esc Enferm USP [Internet]. 2007 [cited 2016 Aug 9];41(4):717-23. Available from: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0080-62342007000400025
    » http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0080-62342007000400025
  • 11
    Miguel LF; Biroli F.(orgs.). Teoria política feminista: textos centrais. Belo Horizonte: Vinhedo, 2013.
  • 12
    Hirata H, Guimaraes NA, (orgs). Cuidado e cuidadoras: várias faces do trabalho do Care. São Paulo: Atlas, 2012.
  • 13
    Biroli F. Responsabilidades, cuidado e democracia. Rev Bras Ciênc Polít [Internet]. 2015 [cited 2016 Aug 9];(18):81-117 Available from: http://www.scielo.br/pdf/rbcpol/n18/2178-4884-rbcpol-18-00081.pdf
    » http://www.scielo.br/pdf/rbcpol/n18/2178-4884-rbcpol-18-00081.pdf
  • 14
    Tronto JC. Assistência democrática e democracias assistenciais. Soc. Estado [Internet]. 2007 [cited 2016 Aug 9];22(2)285-308. Available from: http://www.scielo.br/pdf/se/v22n2/03.pdf
    » http://www.scielo.br/pdf/se/v22n2/03.pdf
  • 15
    Tronto JC. Creating caring institutions: politics, plurality and purpose: ethics and social welfare. 2010 [cited 2016 Aug 9];4(10):158-71. Available from: http://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/17496535.2010.484259
    » http://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/17496535.2010.484259
  • 16
    Mota FF, Tronto JC. Caring democracy: markets, equality, and justice. Rev Bras Ciênc Polít [Internet]. 2015 [cited 2016 Aug 9];(18):317-22. Available from: http://www.scielo.br/pdf/rbcpol/n18/2178-4884-rbcpol-18-00317.pdf
    » http://www.scielo.br/pdf/rbcpol/n18/2178-4884-rbcpol-18-00317.pdf
  • 17
    Maturana HR, Varela FJG. De máquinas e seres vivos: autopoiese, a organização do vivo. 3ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997
  • 18
    Hardt M, Negri A. Império. 4. Ed. Rio de Janeiro. São Paulo: Record; 2002
  • 19
    Deleuze G, Guattari F. O que é a Filosofia? Prado Jr B, Alonso-Muñuz A.(trads). Rio de Janeiro: Editora 34, 1997.
  • 20
    Mauss M. Ensaio sobre a dádiva. Lisboa: Edições 70, 1950.
  • 21
    Pais JM. Mães de Bragança e feitiços: enredos luso-brasileiros em torno da sexualidade. Rev Ciênc Soc [Internet]. 2010 [cited 2016 Aug 9];41(2):9-23. Available from: http://www.periodicos.ufc.br/index.php/revcienso/article/view/455/437
    » http://www.periodicos.ufc.br/index.php/revcienso/article/view/455/437
  • 22
    Duby G. Evas e os Padres. In: Duby G. As damas do século XII. Neves P, Machado ML(trads). São Paulo: Companhia das Letras, 2013.
  • 23
    Germano RM. Educação e ideologia da enfermagem no brasil. São Paulo: Cortez, 1985.
  • 24
    Silva GB. Enfermagem profissional: análise crítica. São Paulo: Cortez , 1989.
  • 25
    Kemmer LF, Silva MJP. Nurses' visibility according to the perceptions of the communication professionals. Rev Latino-Am Enfermagem [Internet]. 2007 [cited 2016 Aug 9];15(2):191-98. Available from: http://www.scielo.br/pdf/rlae/v15n2/v15n2a02.pdf
    » http://www.scielo.br/pdf/rlae/v15n2/v15n2a02.pdf
  • 26
    Duarte MC, Fonseca RMG, Souza V, Pena ED. Gender and violence against women in nursing literature: a review. Rev Bras Enferm [Internet]. 2015 [cited 2016 Aug 9];68(2):325-32. Available from: http://www.scielo.br/pdf/reben/v68n2/en_0034-7167-reben-68-02-0325.pdf
    » http://www.scielo.br/pdf/reben/v68n2/en_0034-7167-reben-68-02-0325.pdf
  • 27
    Souza LL, Araujo DB, Silva DS, Menezes VC. Representações de gênero na prática de enfermagem na perspectiva dos estudantes. Ciênc Cognição [Internet]. 2014 [cited 2016 Aug 9];19(2):218-32. Available from: http://www.cienciasecognicao.org/revista/index.php/cec/article/view/908/pdf_13
    » http://www.cienciasecognicao.org/revista/index.php/cec/article/view/908/pdf_13
  • 28
    Brito AMR, Brito MJM, Gazzinelli MFC, Montenegro LC. Representações sociais discentes de graduação em enfermagem sobre "ser enfermeiro". Rev Bras Enferm [Internet]. 2011 [cited 2016 Aug 9];64(3):527-35. Available from: http://www.scielo.br/pdf/reben/v64n3/v64n3a17.pdf
    » http://www.scielo.br/pdf/reben/v64n3/v64n3a17.pdf
  • 29
    Costa LHR, Coelho EAC. Ideologies of gender and sexuality: the interface between family upbringing and nursing education. Texto Contexto Enferm [Internet]. 2013 [cited 2016 Aug 9];22(2):485-92. Available from: http://www.scielo.br/pdf/tce/v22n2/en_v22n2a26.pdf
    » http://www.scielo.br/pdf/tce/v22n2/en_v22n2a26.pdf
  • 30
    Zamanzadeh V, Valizadeh L, Negarandeh R, Monadi M, Azadi A. Factors influencing men entering the nursing profession, and understanding the challenges faced by them: Iranian and developed countries' perspectives. Nurs Mid Stud [Internet]. 2013 [cited 2016 Aug 9];2(4):49-56. Available from: http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC4228905/pdf/nms-02-49.pdf
    » http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC4228905/pdf/nms-02-49.pdf
  • 31
    Fiocruz. Rio de Janeiro-RJ; Pesquisa aprofunda fatores de insatisfação profissional na enfermagem [Internet]. 2015 [cited 2016 Aug 9]. Available from: http://www.ensp.fiocruz.br/portal-ensp/informe/site/materia/detalhe/37711
    » http://www.ensp.fiocruz.br/portal-ensp/informe/site/materia/detalhe/37711

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Nov-Dec 2016

Histórico

  • Recebido
    23 Jul 2016
  • Aceito
    10 Ago 2016
Associação Brasileira de Enfermagem SGA Norte Quadra 603 Conj. "B" - Av. L2 Norte 70830-102 Brasília, DF, Brasil, Tel.: (55 61) 3226-0653, Fax: (55 61) 3225-4473 - Brasília - DF - Brazil
E-mail: reben@abennacional.org.br