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A enfermagem e os direitos das pessoas no campo da saúde mental

Vislumbrar o ser humano como sujeito detentor de dignidade é trazer à tona discussões que impactam a vida e as suas relações. Nesse aspecto, refletir acerca da saúde mental à luz dos direitos humanos nos leva a contextualizar a emergência da garantia dos direitos das pessoas, em especial aquelas invisibilizadas pela condição de saúde, que se tornam vítimas de um sistema organizacional predador e precário. Assim, documentos internacionais e organizações, que legitimam os pilares dos direitos fundamentais, tornam-se diretrizes para as condutas profissionais no campo da saúde mental.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) reconhece que a violação dos direitos humanos das pessoas com problemas de saúde mental é uma realidade ainda hoje presente no cenário mundial, assinalando que a discriminação se expressa em diferentes dimensões da vida das pessoas com problemas de saúde mental e desabilidades psicossociais, impedindo-as de viver de forma independente e plena na comunidade e sendo negados a elas direitos básicos(11 World Health Organization (WHO). Quality Rights guidance and training tools [Internet]. 2012[cited 2020 Jan 04]. Available from: http://who.int/mental_health/policy/quality_rights/guidance_training_tools/en
http://who.int/mental_health/policy/qual...
).

Relatos de organizações de saúde e de direito humanos, bem como de estudiosos, trabalhadores de serviços e pessoas usuárias de serviços de saúde mental, denunciam que a discriminação, o estigma e o preconceito geram violências, exclusão social, negação ou restrição do direito ao trabalho, à educação, ao lazer e, por vezes, à vida, evidenciado por uma institucionalização arbitrária, entre outras coisas. Destacam-se como vítimas de tais abusos as pessoas que utilizam os serviços de saúde mental.

Tal problemática determinou que o Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas, em Resolução de 29 de junho de 2016, fundamentada na Declaração Universal do Direito dos Homens, de 1948, entre outros tratados internacionais, como a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD), da qual o Brasil é país signatário, expressasse que “Todas as pessoas têm direito à vida, à liberdade, à segurança pessoal, a viver de forma independente e a ser incluído na comunidade, e que ninguém será submetido a torturas, nem a penas ou tratamentos cruéis, desumanos e degradantes”(22 United Nations (UN). Human Rights Council. Resolution on Mental Health and Human Rights[Internet]. 2016[cited 2021 Jul 19]. Available from: https://documents-dds-ny.un.org/doc/UNDOC/LTD/G16/135/78/PDF/G1613578.pdf?OpenElement
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).

O processo da Reforma Psiquiátrica no Brasil, iniciado na década de 1970, produziu uma política de saúde mental, álcool e outras drogas nos últimos quarenta anos, que tem como tema central o direito das pessoas com problemas de saúde mental, definindo como horizontes a defesa e a promoção destes direitos para o exercício da cidadania. Assim, esteve afinada com as convenções internacionais sobre os direitos das pessoas com problemas de saúde mental, direitos esses assegurados no Brasil pela Lei 10.216/2001 que, fundamentada nos marcos da desinstitucionalização e da atenção psicossocial, possibilitou o cuidado em liberdade no território, em serviços comunitários e a inclusão social de milhares de cidadãos por meio de programas e incentivos financeiros (Volta pra Casa, serviços residenciais, incentivos a geração de trabalho e renda e promoção de intervenções na cultura)(33 Conselho Nacional dos Direitos Humanos (BR). Resolução nº 8, de 14 de agosto de 2019. Dispõe sobre soluções preventivas de violação e garantidoras de direitos aos portadores de transtornos mentais e usuários problemáticos de álcool e outras drogas[Internet]. Diário Oficial da União 23/08/2019 [cited 2021 Jul 19];163(Seção:1):55. Available from: https://www.in.gov.br/web/dou/-/resolucao-n-8-de-14-de-agosto-de-2019-212175346
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).

No Brasil atual, atravessamos um cenário de ameaças aos direitos humanos no campo da saúde mental, quando a política de saúde mental enfatiza o Paradigma Psiquiátrico Hospitalocêntrico Medicalizador e privilegia o financiamento e os encaminhamentos para serviços de lógica prioritariamente excludente e de isolamento, como as denominadas comunidades terapêuticas, que violam esses direitos. Estamos situados em um momento de contra reforma psiquiátrica cuja indução política e financeira enviesa para um modelo de atenção que profana os direitos das pessoas, deturpa o cuidado territorial e desinstitucionalizante. Além disso, o trabalho em saúde vive um momento de maior sobrecarga agravada pelo desmonte dos serviços públicos de saúde e pela desvalorização do lugar de cuidado em saúde mental.

Para enfrentamento dessa situação, o Conselho Nacional dos Direitos Humanos em Resolução nº 8, de 14 de agosto de 2019, recomenda no seu Artigo 2º que

A política de saúde mental deve se guiar pelos princípios dos direitos humanos conquistados e consensuados em convenções emanadas pela maioria absoluta das nações do planeta, e devidamente assinadas pelo Brasil, como padrão mais elevado do processo civilizatório humano, bem como pelas organizações filiadas às Nações Unidas, que orientam as diversas políticas públicas e sociais em suas áreas específicas, como a Organização Mundial de Saúde e Organização Panamericana de Saúde.

Nesse contexto, a enfermagem enquanto prática social e como um trabalho constitutivo do trabalho em saúde é uma categoria profissional que tem intensa aproximação com as pessoas com problemas de saúde mental em todas as linhas e redes de cuidado à saúde, e, portanto, coloca-se na defesa intransigente pela garantia dos direitos das pessoas. A enfermagem brasileira, especialmente a enfermagem em saúde mental, tem transformado sua prática assistencial e de ensino incorporando estratégias libertadoras que focam no acolhimento e continência do sujeito e seu sofrimento, em todos os momentos, e no exercício da cidadania ativa das pessoas com problemas de saúde mental. Nesta perspectiva, o ensino e a prática em enfermagem em saúde mental consideram o usuário de serviços de saúde mental como sujeito de direitos e produtores de sentidos, o tratamento, em uma concepção ampliada que inclui possibilidades terapêuticas diversas e complexas, como um processo, em que as palavras autonomia e cidadania têm significado.

Para concluir, a formação, a atuação e qualificação profissional, a produção e divulgação do conhecimento devem estar pautados em uma práxis civilizatória, cuja leitura crítica de realidade permita a formulação de projetos com engajamento político e científico, e que promova a democracia antimanicomial, a dignidade humana e os direitos humanos sob a égide da cidadania e da participação social.

REFERENCES

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Nov 2021
  • Data do Fascículo
    2022
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