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Atitudes, conhecimentos e habilidades para o trabalho do enfermeiro no Parque Indígena do Xingu

RESUMO

Objetivo:

analisar as atitudes, conhecimentos e habilidades que compõem a competência profissional dos enfermeiros para o trabalho nos territórios indígenas.

Método:

estudo exploratório-descritivo com abordagem qualitativa realizado com enfermeiros atuantes no Parque Indígena do Xingu em 2016. Os dados foram obtidos por meio de entrevistas semiestruturadas e tratados conforme método da análise temático-categorial.

Resultados:

a atuação do enfermeiro no Parque Indígena do Xingu é definida pela interculturalidade e pelas especificidades do território e da organização do serviço. O trabalho tem caráter multifacetado. Habilidades técnicas, conhecimentos da antropologia e atitudes facilitadoras de uma interlocução respeitosa com a diferença cultural compõem a competência profissional para atuação neste contexto.

Considerações finais:

o trabalho da saúde nos territórios indígenas abriga especificidades e demanda dos enfermeiros uma prática profissional singular marcada pela aquisição de novos conhecimentos, atitudes e desenvolvimento de habilidades orientadas para a dimensão intercultural do trabalho em saúde.

Descritores:
Enfermagem; Trabalho; Saúde de Populações Indígenas; Competência Profissional; Atenção Primária à Saúde

ABSTRACT

Objective:

to analyze the attitudes, knowledge and skills that make up the professional competencies of nurses working in indigenous territories.

Method:

this is an exploratory-descriptive study with a qualitative approach, conducted with nurses working in the Xingu Indigenous Park in 2016. Data were obtained in semi-structured interviews and treated according to the thematic-categorical analysis method.

Results:

the nurse’s performance in the Xingu Indigenous Park has a multifaceted character, being defined by the territory’s interculturality and specificities and by how the service is organized. Technical skills, concepts from anthropology and attitudes that facilitate a respectful dialogue with cultural difference are required for a professional to act in this context.

Final considerations:

the performance of health professionals in indigenous territories requires specificities associated with the acquisition of new knowledge, attitudes and skills geared to the intercultural dimension of the work developed.

Descriptors:
Nursing; Work; Health Services, Indigenous; Professional Competence; Primary Health Care

RESUMEN

Objetivo:

analizar las actitudes, conocimientos y habilidades que conforman la competencia profesional de los enfermeros para trabajar en territorios indígenas.

Método:

estudio exploratorio descriptivo con enfoque cualitativo, en el cual participaron enfermeros que trabajaban en el Parque Indígena de Xingú en 2016. Los datos se obtuvieron mediante entrevistas semiestructuradas y se sometieron al análisis temático categórico.

Resultados:

la actuación del enfermero en el Parque Indígena de Xingú se caracteriza por la interculturalidad y las especificidades del territorio y de la organización de servicio. El trabajo tiene un carácter de múltiples facetas. Las habilidades técnicas, los conocimientos en antropología y las actitudes que facilitan una interlocución respetuosa con la diferencia cultural constituyen la competencia profesional para actuar en este contexto.

Consideraciones finales:

el trabajo con la salud en los territorios indígenas presenta especificidades y exige de los enfermeros una práctica profesional única marcada por la adquisición de nuevos conocimientos, actitudes y desarrollo de habilidades orientadas a la dimensión intercultural del trabajo en salud.

Descriptores:
Enfermería; Trabajo; Salud de Poblaciones Indígenas; Competencia Profesional; Atención Primaria de Salud

INTRODUÇÃO

Nos territórios indígenas, a atenção básica é garantida a partir da atuação das Equipes Multidisciplinares de Saúde Indígena (Emsi), que funcionam como um dispositivo para a efetivação de uma atenção à saúde com base na vigilância em saúde e territorialidade. Tal configuração se distancia muito das iniciativas e modelos assistenciais anteriores ofertados a essa população, de caráter imediatista e emergencial(11 Cardoso MD. Políticas de saúde indígena no Brasil: do modelo assistencial à representação política. In: Langdon EJ, Cardoso MD, organizadores. Saúde Indígena: políticas comparadas na América Latina. Florianópolis: UFSC; 2015. p.83-106.).

A atual configuração do modelo assistencial se efetivou a partir da implantação do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena do Sistema Único de Saúde (Sasi-SUS) no final da década de 1990, um marco político na história da atenção à saúde dos povos indígenas. Orientado pela Política Nacional da Atenção à Saúde dos Povos Indígenas (Pnaspi), política afirmativa de direitos publicada em 2002, cabe ao Sasi garantir uma atenção à saúde de acordo com os princípios doutrinários do SUS e pautada no respeito às práticas e costumes tradicionais. Além disso, todas as especificidades relacionadas aos povos indígenas devem ser consideradas no planejamento e execução das ações de saúde, de forma a garantir uma diferenciação na qualidade dos serviços por meio do princípio da atenção diferenciada(11 Cardoso MD. Políticas de saúde indígena no Brasil: do modelo assistencial à representação política. In: Langdon EJ, Cardoso MD, organizadores. Saúde Indígena: políticas comparadas na América Latina. Florianópolis: UFSC; 2015. p.83-106.

2 Rodrigues D. Proteção e assistência à saúde dos povos indígenas isolados e de recente contato no Brasil. São Paulo: OTCA; 2014.

3 Ministério da Saúde (BR). Fundação Nacional de Saúde. Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas. 2a ed [Internet]. Brasília; 2002 [cited 2015 Jun 12]. Available from: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/politica_saude_indigena.pdf
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-44 Mendonça SBM, Rodrigues D, Pereira PPG. Modelo de atenção à saúde indígena: o caso do DSEI Xingu. Cad Saúde Pública 2019; 35(3):e00008119. doi: 10.1590/0102-311x00008119
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).

A organização do Sasi-SUS se dá a partir de 34 Distritos Sanitários Especiais Indígenas (Dsei), distribuídos em todo o território nacional. Trata-se de unidades gestoras de um espaço territorial, definido a partir de critérios geográficos, populacionais e etnoculturais, dotadas de autonomia política e financeira e responsáveis pelas atividades de promoção, prevenção e controle de agravos com base no perfil epidemiológico e especificidades culturais locais(33 Ministério da Saúde (BR). Fundação Nacional de Saúde. Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas. 2a ed [Internet]. Brasília; 2002 [cited 2015 Jun 12]. Available from: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/politica_saude_indigena.pdf
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).

No tocante ao trabalho da enfermagem, sua presença e atuação na saúde indígena do século XXI no Brasil guarda uma relação com a história política, econômica e social do país e com as políticas públicas de saúde voltadas aos povos indígenas. Pode também ser entendida como um desdobramento das mudanças ocorridas na profissão em nosso país, no que diz respeito à oferta de formação, inserção no campo de trabalho e remuneração(55 Machado MH, Oliveira E, Lemos W, Lacerda WF, Aguiar Filho W, Wermelinger M, et al. Mercado de trabalho da enfermagem: aspectos gerais. Enferm Foco. 2016;7(n.esp):35-53. doi: 10.21675/2357-707X.2016.v7.nESP.691
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). Do ponto de vista teórico, está inserida no arcabouço da enfermagem transcultural, proposta pela enfermeira norte-americana Madeleine Leininger nos anos 1950, que vincula a cultura ao cuidado, buscando uma congruência dessas práticas(66 Monticelli M, Boehs AE, Guesser JC, Gehrmann T, Martins M, Manfrini GC. Aplicações da Teoria Transcultural na prática de enfermagem a partir de dissertações de mestrado. Texto Contexto Enferm. 2010; 19(2):220-8. doi: 10.1590/S0104-07072010000200002
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).

Espelhando o que ocorre no setor saúde como um todo, os profissionais de enfermagem vêm se consolidando como a maior força de trabalho na composição das Emsi que atuam nos Dsei(77 Silva CD. De improvisos e cuidados: a saúde indígena e o campo da enfermagem. In: Teixeira CC, Garnelo L, (Orgs.). Saúde indígena em perspectiva: explorando suas matrizes históricas e ideológicas. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2014. p.181-212.).

Nesse contexto, como integrante das Emsi, o enfermeiro contribui com o trabalho coletivo e colaborativo desenvolvido em conjunto com outros profissionais de saúde, incluindo os profissionais indígenas. A partir do modelo assistencial proposto, deduz-se que a atuação do profissional enfermeiro deva ser pautada em um perfil semelhante à atuação na atenção básica. Contudo, outras características importantes do contexto de trabalho contribuem para a definição da atuação profissional. Dispersão e isolamento geográfico, estrutura insuficiente para o trabalho e escassez de profissionais médicos são fatores que se somam e colaboram para o desenho do perfil de atuação desse profissional. A autonomia e tomada de decisões clínicas fazem parte do contexto de trabalho.

Considerando o ambiente de trabalho dentro do território indígena, o profissional de saúde está em contato direto e constante com distintas concepções sobre a vida e o mundo, o que inclui a interpretação sobre saúde e o processo de adoecimento e cura. O território é o espaço de encontro entre dois sistemas de cura com concepções e práticas diferentes: o sistema médico ocidental com seus saberes e práticas ancoradas no paradigma da racionalidade científica, e os sistemas indígenas de saúde com suas práticas de cuidado e cura representantes de um saber não validado e inscritas num universo cultural distinto. Tal cenário exige que os profissionais aprendam a dialogar e atuar com diferentes concepções e práticas de saúde, reconhecendo sua legitimidade(88 Silva CB. Profissionais de saúde em contexto indígena: os desafios para uma atuação intercultural e dialógica. Rev Antropol [Internet]; 2013 [cited 2016 Nov 25] 6:3-36. Available from: http://revista.antropos.com.br/downloads/dez2013/Artigo-1-Profissionais-de-saude-em-contexto-indigena-Cleonice-Barbosa-da-Silva.pdf
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).

A especificidade desse trabalho impõe ainda a necessidade de preparação dos profissionais de saúde de forma a alcançar a competência profissional necessária para uma atuação congruente com o contexto.

A necessidade de formação para o trabalho na saúde indígena é uma das diretrizes da Pnaspi, apontada como fundamental para a adequação das práticas sanitárias, e contempla formação no nível acadêmico e preparação para os profissionais já inseridos no trabalho(33 Ministério da Saúde (BR). Fundação Nacional de Saúde. Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas. 2a ed [Internet]. Brasília; 2002 [cited 2015 Jun 12]. Available from: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/politica_saude_indigena.pdf
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). Contudo, historicamente, as ações de formação e capacitação na saúde indígena não têm priorizado os trabalhadores não indígenas. Quando presentes, essas ações se caracterizaram pela descontinuidade, pelo foco na biomedicina e nos programas de saúde e desconsideração da diversidade sociocultural(99 Diehl EE, Pellegrini MA. Saúde e povos indígenas no Brasil: o desafio da formação e educação permanente de trabalhadores para atuação em contextos interculturais. Cad Saúde Pública. 2014; 30(4):867-74. doi: 10.1590/0102-311X00030014
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). Além disso, o perfil de atuação dos profissionais não está definido na Pnaspi, deixando uma lacuna no direcionamento da formação profissional.

Conhecer o trabalho que vem sendo desenvolvido pelos enfermeiros nos territórios indígenas é um caminho possível para compreender as dimensões que compõem a competência profissional para a atuação em contextos interculturais.

A competência profissional é um conceito multifacetado e pode ser definida a partir de diversos enfoques teóricos em diferentes campos de atuação. A perspectiva dialógica considera que a competência se dá a partir da combinação de capacidades e atributos de forma individual, para a realização de ações na prática profissional. Considera também a influência do contexto, da cultura e dos valores éticos na construção do conhecimento. No campo da educação, tal perspectiva é defendida por diversos teóricos, entre eles Philippe Perrenoud. De acordo com ele, a competência é definida como a capacidade de mobilizar de forma eficaz recursos diante de situações que exigem tomada de decisões no trabalho(1010 Lima VV. Competência: distintas abordagens e implicações na formação de profissionais de saúde. Interface. 2005; 9(17):369-79. doi: 10.1590/S1414-32832005000200012
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). A competência profissional pode ser definida como a capacidade do profissional de mobilizar recursos (cognitivos, psicomotores, afetivos) de forma individual com o objetivo de solucionar situações concretas impostas no cotidiano do trabalho. A competência profissional é composta por três elementos: “habilidades (saber fazer), atitudes (saber ser) e conhecimento (saber)”(1111 Saupe R, Benito GAV, Wendhausen ALP, Cutolo LRA. Conceito de competência: validação por profissionais de saúde. Saúde Rev [Internet]; 2006 [cited 2017 Jan 15] 8(18):31-7. Available from: http://189.28.128.100/nutricao/docs/Enpacs/pesquisaArtigos/conceito_de_competencia_validacao_por_prof_saude_2006.pdf
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). No Brasil, a noção de competência profissional tornou-se um conceito nucleador de políticas e programas com vistas à formação de profissionais para uma atuação eficaz, compromissada com os princípios do SUS e com a modificação da realidade de saúde(1212 Siqueira-Batista R, Gomes AP, Albuquerque VS, Cavalcanti FOL, Cotta RMM. Educação e competências para o SUS: é possível pensar alternativas à(s) lógica(s) do capitalismo tardio?. Cien Saúde Colet. 2013; 18(1):159-70. doi: 10.1590/S1413-81232013000100017
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), no sentido de aplicação de uma inteligência prática no trabalho, noção essa pertinente à realidade da saúde indígena.

OBJETIVO

Caracterizar as atitudes, conhecimentos e habilidades que compõem a competência profissional dos enfermeiros para o trabalho no território indígena, a partir de pesquisa realizada no Parque Indígena do Xingu.

MÉTODO

Aspectos éticos

O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (Coep) da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo em 2016. Foram seguidas as recomendações presentes na resolução nº 466/2012, do Conselho Nacional de Saúde (CNS). O anonimato dos participantes foi garantido pela sua identificação com a letra “P”, de profissional, seguida do numeral, de acordo com a ordem cronológica crescente da realização das entrevistas.

Tipo de estudo

Estudo exploratório-descritivo de abordagem qualitativa do tipo estudo de caso.

Cenário do estudo

Este estudo foi realizado com enfermeiros atuantes no Parque Indígena do Xingu (PIX). Criado em 1961, o PIX foi a primeira terra indígena reconhecida no Brasil e hoje corresponde ao território geográfico do Dsei Xingu. Localizado na região nordeste do Mato Grosso, com uma extensão de 2.825.470 hectares, o PIX é um território pluriétnico que abriga indígenas pertencentes a dezesseis etnias(1313 Instituto Socioambiental. Almanaque socioambiental: Parque Indígena do Xingu: 50 anos. São Paulo: Instituto Socioambiental; 2011.). Segundo censo populacional do Dsei, a população em 2018 era de cerca de 6.800 indígenas. O histórico da assistência à saúde no PIX é marcado pela presença e atuação da Escola Paulista de Medicina (EPM), hoje Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), que desenvolve ações de atenção à saúde nessa terra indígena desde a década de 1960 por meio de um projeto de extensão universitária: o Projeto Xingu. Assistência, ensino e pesquisa são os eixos norteadores desse projeto que se estende até os dias atuais. Um dos frutos desse trabalho é a experiência acumulada pela Unifesp na formação de profissionais (indígenas e não indígenas) para atuação na saúde indígena e construção de um sistema local de saúde congruente com as especificidades locais(55 Machado MH, Oliveira E, Lemos W, Lacerda WF, Aguiar Filho W, Wermelinger M, et al. Mercado de trabalho da enfermagem: aspectos gerais. Enferm Foco. 2016;7(n.esp):35-53. doi: 10.21675/2357-707X.2016.v7.nESP.691
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).

Fonte de dados

Um levantamento prévio à atividade de campo indicou a presença de 38 enfermeiros atuando no Dsei Xingu à época da pesquisa. Para a escolha dos participantes, foram adotados os seguintes critérios: tempo mínimo de um ano de trabalho no território indígena e não participação em nenhum processo sistemático de inserção e acompanhamento no trabalho desenvolvido pela Unifesp. A partir de informações fornecidas pelo Dsei, foram identificados dezessete profissionais que atenderam aos critérios da pesquisa; ao final, o grupo de participantes foi composto por onze enfermeiros com experiência de atuação nas quatro regiões de saúde e com diferentes histórias de inserção e trajetórias no trabalho, podendo ser considerado satisfatório quanto à abrangência e diversidade. O número de participantes foi determinado pela logística de deslocamento dentro da terra indígena e pela escala de trabalho dos profissionais. Assim, não participaram seis profissionais que estavam de folga ou se desencontraram da pesquisadora durante o trabalho de campo. O número de participantes foi suficiente para satisfazer o critério de saturação, uma vez que as informações obtidas nas entrevistas foram se tornando reincidentes e complementares, atendendo às demandas da pesquisa. Informações fornecidas pelo Dsei Xingu e pelo Projeto Xingu/Unifesp foram utilizadas em caráter complementar.

Coleta e organização dos dados

Todos os dezessete profissionais que se enquadravam nos critérios da pesquisa foram contatados previamente por via eletrônica e telefone. Os dados primários foram coletados pela primeira autora em 2016 durante viagem de trabalho ao campo do estudo. Como método, foram realizadas entrevistas semiestruturadas individuais abordando a prática profissional e o processo de aprender, tendo como referência o trabalho dentro da área indígena. O roteiro utilizado foi elaborado pelas pesquisadoras e abordou: a escolha pelo trabalho na saúde indígena; estranhamentos e conflitos vivenciados no trabalho; o que é preciso para desenvolver o trabalho e como a vivência no trabalho pode colaborar com a qualificação da prática profissional. Não foi realizado teste piloto. As entrevistas, com exceção de uma que ocorreu no Dsei, foram realizadas dentro do território indígena nos espaços de trabalho de cada participante sem a presença de terceiros. Tiveram duração média de duas horas e foram gravadas em áudio. As transcrições não foram devolvidas aos participantes para possíveis correções. Também foram realizadas anotações de campo após cada entrevista.

Análise dos dados

A análise dos dados primários foi realizada por meio do método de análise de conteúdo e da técnica de análise temático-categorial segundo Bardin(1414 Bardin L. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70; 2016.), sem a utilização de software para gerenciamento dos dados.

Da exploração inicial do material, foram extraídas unidades de registro com temas comuns nas falas de todos os participantes. Tais unidades foram reagrupadas analogicamente, dando origem a temas de análise primários, que foram novamente reagrupados e trabalhados, resultando em cinco categorias finais, das quais três são objeto de análise neste artigo.

A análise também foi apoiada em conceitos do campo da antropologia e da educação, entre eles o conceito de competência profissional.

RESULTADOS

Os enfermeiros participantes do estudo têm entre 26 e 39 anos e não há predominância relevante entre os sexos, sendo cinco enfermeiras e seis enfermeiros. Três deles residem no mesmo município onde se localiza o Dsei, e apenas um participante reside fora do estado do Mato Grosso. O tempo de formação varia entre três e sete anos. Dois são graduados em instituições públicas e seis são graduados em uma mesma instituição particular. Apenas dois não tem especialização, enquanto outros dois possuem especialização em Saúde Indígena. Para cinco deles a saúde indígena foi o primeiro emprego. A mediana do tempo de trabalho no Dsei é de 2٧ meses e meio. Os participantes apresentam distintas histórias de inserção, trajetórias no trabalho e experiência de atuação no território indígena deste estudo.

Primeira categoria: um sentido para o trabalho na saúde indígena

Os motivos que levaram os participantes a trabalhar na saúde indígena são diversos. Interesse e curiosidade, motivações comuns entre todos, são bastante mencionados pelos participantes. Essas motivações tiveram suas origens no contato prévio com a temática indígena durante a formação acadêmica, experiência pessoal ou através de relatos de profissionais que já tinham experiência com o trabalho.

Tinha vários amigos, colegas que trabalhavam na saúde indígena, e eles sempre falavam, mas eles falavam bem. Falavam das dificuldades, mas, no contexto geral, eles gostavam muito. (P4)

Oportunidade de trabalho e remuneração também figuraram como motivações, embora não tenham sido colocados de forma explícita por todos os participantes. Expectativas de realização pessoal e profissional e até mesmo o atrativo das belezas do PIX também foram citados como motivadores para o ingresso no trabalho na saúde indígena.

Junto com suas motivações e expectativas, os participantes carregavam uma construção imaginária sobre o espaço de trabalho, os indígenas e a atuação profissional. Um imaginário composto de poucas certezas, muitas fantasias e permeado de representações sociais.

[…] nem pensava esta questão do dinheiro. Mais mesmo o desejo pessoal de cuidar de pessoas mais humildes, de mato, sei lá… A minha expectativa era ainda encontrar pessoas que usam a natureza para viver mesmo. (P٨)

Eu tinha vontade porque eu via que são pessoas que precisam mesmo, realmente, que estavam sempre agradecidas por você estar ali ajudando. (P2)

Isolamento geográfico, falta de estrutura e um cenário típico de aventuras compunham o imaginário sobre o ambiente e o contexto do trabalho.

Eu imaginava que ia ser no meio de uma mata mesmo, que não tinha a estrutura de uma UBS, que não tinha nada disso aqui, que a gente ia ficar acampada […]. (P3)

[…] porque eu vim com um pensamento de que as condições eram piores. Mas, na verdade, eu me deparei com uma estrutura muito melhor do que eu pensava. (P4)

Sobre o trabalho, os enfermeiros descreveram a expectativa de uma atuação profissional muito próxima às suas práticas anteriores e um processo de trabalho próprio do modelo clínico de atenção assinalado pela hierarquia, subordinação e dependência do saber médico. Benevolência e doação vocacional também permearam as falas.

Eu imaginava o meu trabalho, eu, enfermeiro, um técnico de enfermagem, um médico, e que você estaria ali executando demanda que o médico te passasse. Não você estar tomando a frente, tomando conta de tudo aquilo. (P2)

Segunda categoria: estranhamentos, surpresas e conflitos na imersão no contexto de trabalho

Uma vez inseridos no trabalho dentro do território, cada participante vivenciou uma experiência profissional e pessoal cuja trajetória é bastante singular, todas unidas por um ponto comum: a vivência de estranhamentos, surpresas e conflitos.

Em suas narrativas, os enfermeiros descreveram uma experiência que se inicia com o choque entre o imaginário preconcebido por cada um deles e a realidade do contexto de trabalho. O primeiro contato com o território indígena foi caracterizado pelos participantes como uma experiência impactante, que tem como marco o primeiro dia de trabalho, guardado com riquezas de detalhes na memória de cada um deles.

O início do trabalho foi definido como uma fase difícil, marcada por conflitos e dificuldades. Nesse encontro entre o imaginário e a realidade, os hábitos culturais, as condições de moradia, a atuação dos profissionais indígenas de saúde e até mesmo o comportamento acolhedor dos indígenas se destacam como fontes de surpresa e estranhamento.

Os indígenas foram retratados a partir de uma visão equivocada sobre seus modos e costumes, em especial os hábitos alimentares, de higiene e moradia, que pareceram ser logo captados pelo olhar explorador e etnocêntrico dos profissionais no início do trabalho.

A questão que mais impactou para mim foi a questão da alimentação, a forma como eles comiam, o que eles comiam, a questão da própria higiene do ambiente e você já começa a pensar: isso tudo aqui é propício ao adoecimento, tecnicamente pensando. (P11)

Acho que foi mesmo a questão da família deles, dentro das casas, da alimentação. A primeira coisa que eles me ofereceram foi tracajá, e eu não como tracajá. Então foi mais essa coisa mesmo, dos bichinhos que eu cuido, que eu cuidava e eles estavam comendo. (P6)

Como integrantes das equipes multidisciplinares, os profissionais indígenas de saúde destacam-se pela qualidade do desempenho técnico e pela participação ativa no processo de trabalho.

Foi bem diferente, porque quando eu cheguei aqui me falaram que tinha o auxiliar de enfermagem, tinha a formação dos AIS, que eu não sabia que eles já estavam nessa… como posso dizer… nesse nível de instrução. De ser um AIS, um auxiliar de enfermagem. Porque aqui o auxiliar de enfermagem faz coisas que até eu mesma não fazia, e ele tinha o conhecimento. Isso também eu achei bem interessante deles. Também chamou muita atenção. (P2)

Na verdade, eu fiquei foi admirada com os AIS, principalmente a capacidade que eles têm, a experiência que eles têm também aqui dentro. (P3)

O trabalho do enfermeiro se destacou como uma grande surpresa. Caracterizado inicialmente pelos participantes como “diferente de tudo e difícil”, a atuação do enfermeiro dentro do território indígena surpreendeu a todos, especialmente pelo seu caráter multifacetado, pela posição do profissional à frente do trabalho da equipe realizando diversas atividades, muitas vezes sozinho.

Eu sabia que eu tinha que seguir uma rotina no trabalho, mas as atribuições do enfermeiro na saúde indígena eu fui aprendendo com a rotina, vindo mesmo, pegando no grosso. Ainda é muito confuso. Se faz muitas coisas, muitas coisas mesmo, ao mesmo tempo. (P٨)

[…] Aqui são várias questões. […] aqui são três coisas fundamentais: você ser bom tecnicamente, claro, você saber trabalhar em equipe e você saber trabalhar com indígena. (P10)

Aos poucos, o estranhamento inicial perde espaço, permanecendo apenas como uma forte lembrança do impacto do início do trabalho. De igual maneira, os conflitos também tornam-se menos frequentes. Pouco a pouco, e de forma bastante particular, os profissionais vão se apropriando do contexto de trabalho e das demandas, sugerindo um sucesso no processo de adaptação.

Terceira categoria: habilidades, atitudes e conhecimentos necessários para a atuação profissional

O trabalho do enfermeiro no PIX foi caracterizado pelos participantes como uma prática diferente, solitária, difícil e que exige do profissional uma diversidade de habilidades, conhecimentos e atitudes de caráter técnico e pessoal indispensáveis para uma atuação profissional competente. Conhecimentos técnicos, dinamismo, proatividade, autonomia, responsabilidade, abdicação, trabalho em equipe e disponibilidade para aprender foram termos que se destacaram nas narrativas dos participantes, compondo um conjunto de características que compreendem o “saber”, o “saber ser” e o “saber fazer” nesse espaço de trabalho.

Os profissionais foram unânimes ao apontar a habilidade técnica (“saber fazer”) como uma exigência para o trabalho, associada a uma rotina de desempenho de atividades técnico-assistenciais que, frequentemente, não estão associadas ao trabalho do enfermeiro em outros espaços, em especial o ambiente hospitalar, constantemente utilizado por esses profissionais como referência para comparação. Atividades e procedimentos relacionados à assistência à saúde materno-infantil e urgências em saúde – como assistir a partos com intercorrência, realizar sutura, diagnósticos médicos e instituir tratamentos medicamentosos – foram bastante citados. De acordo com os participantes, tais atividades e procedimentos são os que mais exigem esforços dos profissionais no início do trabalho.

Foi possível inferir que, para os participantes, o desempenho de atividades normalmente não realizadas pelos enfermeiros, fugindo dos limites legais da profissão, é entendido como autonomia.

A autonomia do enfermeiro em área é bem diferente da cidade. Como eu te falei, prescrever medicamento é uma coisa que a gente não faz na cidade. Sutura, parto, essas coisas assim. (P3)

A responsabilidade foi associada ao papel de destaque do enfermeiro, estando à frente do trabalho da equipe e assumindo um vasto repertório de atividades assistenciais e gerenciais. Por outro lado, os participantes reconheceram que nem sempre estão preparados tecnicamente para o desempenho de tais atividades, o que gera desconforto e insegurança, além de contribuir para uma perda da identidade profissional.

Porque eu cheguei lá e me vi como enfermeira, como dentista, como médica, e isso eu não imaginava. […] Foi onde eu me peguei várias vezes em apuros. Putz, eu tô fazendo papel de médico aqui, era uma coisa que eu não podia estar fazendo. (P6)

Porque se você tem um médico em área, você pode atuar mais como enfermeiro e deixar toda aquela demanda clínica para ele. Eu acho que o enfermeiro se ocupa muito com clínica lá dentro, clínica, clínica, clínica e clínica! E ele esquece do trabalho dele como profissional de enfermagem. (P11)

O trabalho em equipe também foi apontado como uma condição essencial para a atuação nesse contexto. Contudo, o conteúdo de algumas falas sugere que o que, muitas vezes, foi mencionado como trabalho em equipe, se referia, na verdade, à convivência em grupo.

Primeiro, o trabalho em equipe é tudo. Se você não estiver trabalhando em equipe o serviço não flui, o serviço não anda. Se não trabalhar em equipe não vai, não anda, não flui. A gente fica aqui o tempo todo, praticamente, a casa nossa é aqui. A primeira aqui e a segunda lá com sua família. Então, o fator primordial é a equipe, união, um ouvir o outro. Vai ter aqueles momentos que pode acontecer alguma coisa, mas trabalho em equipe é tudo. (P9)

Apesar da relevância dada à dimensão técnica do trabalho no início da experiência, aos poucos outras necessidades vão sendo identificadas, emergindo a partir do cotidiano, deixando mais claras as características do contexto de trabalho.

A capacidade de se relacionar de forma apropriada com o outro (indígena ou não) e com a diferença foi apontada como a principal atitude necessária para o trabalho. Disposição para escuta e diálogo, postura relativista e respeito estão entre as atitudes (“saber ser”) necessárias para o enfrentamento de demandas advindas da interculturalidade, indispensáveis para uma relação dialógica e respeitosa com os indígenas e suas culturas.

Sobre os conhecimentos (“saber”) que compõem a competência para o trabalho, os enfermeiros apontaram a insuficiência e fragilidade do repertório oferecido durante a formação acadêmica e a necessidade de oferta de um aporte teórico que permita um melhor entendimento sobre o contexto do trabalho, subsidiando o desenvolvimento de habilidades e atitudes.

Noções e conceitos do campo da antropologia, como cultura, relativismo cultural, diálogo intercultural e cuidado cultural, figuraram como imprescindíveis para uma melhor compreensão sobre o universo sociocultural e garantia de uma relação menos conflituosa com a diferença. Conteúdos sobre políticas de saúde, epidemiologia e conceitos do campo da atenção básica também foram apontados como necessários para uma atuação profissional mais qualificada, contribuindo para a qualidade da atenção à saúde no território.

DISCUSSÃO

A saúde indígena tem se configurado como um campo de atuação atrativo por oferecer uma oportunidade de emprego com salários diferenciados. Os salários pagos aos enfermeiros que atuam na saúde indígena estão acima dos praticados no setor público em algumas regiões do país, entre elas a região Centro-Oeste. A dificuldade de inserção no mercado de trabalho também é uma realidade em consequência da expansão desordenada da oferta de cursos de graduação no Brasil nas duas últimas décadas, e mais tardiamente no estado do Mato Grosso a partir de 2006(1515 Corrêa LZM, Santos NC, Kobi MCB. Expansão dos cursos de graduação em enfermagem em Mato Grosso: implicações e desafios. Rev Eletr Enf. 2014; 16(4):744-53. doi: 10.5216/ree.v16i4.22581
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). Nesse caminho, Dsei Xingu atua como um espaço concreto de absorção de profissionais na região. Há que se considerar também a influência do processo seletivo do Dsei, cujas etapas eliminatórias são presenciais, o que favorece os candidatos que residem na região.

Foi possível inferir que o contato prévio com a temática indígena, mesmo que incipiente, funciona como um convite à vivência da interculturalidade e do cuidado cultural, situação que estimula nos enfermeiros uma construção imaginária sobre todo o contexto de trabalho. Um imaginário de poucas certezas, muitas expectativas e fortemente influenciado pelas representações sociais acerca da profissão, do trabalho e dos indígenas.

No contato com a diferença, a partir da inserção no trabalho, os enfermeiros experimentam um choque entre o real e o imaginário, o que gera não só estranhamento como suscita sentimentos e impressões. Isso porque tudo o que é vivenciado passa a ser analisado, julgado e interpretado sob seus próprios referenciais, explicitando uma postura etnocêntrica.

Tal postura pode ser interpretada como um processo natural vivenciado pelo profissional, muitas vezes despreparado, e sua urgência em traduzir o que está vivenciando(1616 Pereira PPG. Limites, traduções e afetos: profissionais de saúde em contextos indígenas. Mana. 2012; 18(3):511-38. doi: 10.1590/S0104-93132012000300004
https://doi.org/10.1590/S0104-9313201200...
).

A surpresa causada pela atuação dos profissionais indígenas de saúde parece ser advinda de uma visão subestimada sobre a capacidade dos indígenas. Ao contrário do que se observa em outros territórios indígenas, no PIX a atuação dos profissionais indígenas integrantes das Emsi sempre foi bastante expressiva. Isso se deve ao processo de formação desenvolvido pela Unifesp, que teve, entre outras características, a valorização do protagonismo indígena e a preocupação com a formação de profissionais indígenas de saúde capazes de intervir de forma competente sobre os problemas de saúde do território.

A realidade do contexto de trabalho e da atuação do enfermeiro no PIX surpreenderam pelo caráter singular muito distante das experiências prévias dos participantes. Algumas das características da prática profissional foram compreendidas de maneira equivocada e suscitaram sentimentos diversos, por vezes contraditórios.

O cotidiano da saúde indígena no PIX possibilita a autonomia do profissional enfermeiro no que diz respeito a tomadas de decisões clínicas, orientadas por protocolos de atuação, situação que embora encontre amparo legal é ainda pouco difundida no SUS. Em parte, tal cenário guarda relação com a dificuldade no provimento e fixação de profissionais médicos nos territórios indígenas, ainda não superada na implementação do Sasi-SUS. A ausência do profissional médico contribui para a sobrecarga de trabalho do enfermeiro, que se mantém à frente do trabalho da equipe. Nessa posição, o enfermeiro é exigido em sua competência clínica para o manejo dos principais problemas de saúde que acometem as populações indígenas, em especial aqueles que se sobressaem no perfil de morbimortalidade dessas populações, como as doenças diarreicas e infecções respiratórias em crianças. O entendimento da autonomia como a simples realização de um repertório de procedimentos técnicos é um equívoco(1717 Przenyczka RA, Lenardt MH, Mazza VA, Lacerda MR. The paradox of freedom and autonomy in nurses’ actions. Texto Contexto Enferm. 2012; 21(2):427-31. doi: 10.1590/S0104-07072012000200022
https://doi.org/10.1590/S0104-0707201200...
). É preocupante observar que a noção equivocada sobre autonomia é amparada pelo desempenho de um conjunto de práticas sem os conhecimentos e as habilidades necessárias para tal, ou situadas, muitas vezes, fora dos limites legais da profissão. A relação dos profissionais de enfermagem com a autonomia de decisões de caráter clínico carece de mais estudos e discussões.

Outro equívoco observado foi o entendimento de trabalho em equipe. Essa concepção de senso comum e simplificada, que reduz o trabalho em equipe a uma simples convivência entre profissionais, está muito distante de uma perspectiva mais abrangente, na qual o trabalho em equipe se dá a partir de integração de saberes, interação entre profissionais, comunicação e articulação(1818 Ciampone MHT, Peduzzi M. Trabalho em equipe e trabalho em grupo no Programa de Saúde da Família. Rev Bras Enferm. 2000;53(n.esp):143-7. doi: 10.1590/S0034-71672000000700024
https://doi.org/10.1590/S0034-7167200000...
).

Uma particularidade importante que caracteriza o trabalho no PIX é a imersão do profissional no contexto de trabalho, ocasionada pelas longas permanências no território (em torno de 28 dias) a partir das escalas de trabalho. A imersão intensifica a experiência da interculturalidade e também os convoca a experimentar novas relações interpessoais e sociais, novos padrões de vida, sendo fonte de cansaço físico e emocional. Com a imersão, o espaço de trabalho passa a ser também o espaço de vida, não sendo possível determinar os limites espaciais e temporais da atuação laboral.

O “saber ser”, parte da competência profissional, tangencia todo o trabalho. Isso porque na interculturalidade, mesmo a realização de procedimentos estritamente técnicos se dá no contexto de outra cultura, permeado por noções e interpretações muito diferentes da biomedicina. Diálogo, ponderação e negociação são atitudes que também contribuem para uma melhor convivência entre o grupo e a equipe profissional, minimizando conflitos advindos da intensidade das relações interpessoais estabelecidas no trabalho. O componente “saber ser” da competência profissional corresponde à dimensão relacional presente no trabalho da saúde, onde vínculos e relações positivas entre os trabalhadores e entre estes e os usuários são imprescindíveis à produção de cuidado. Essa dimensão relacional inclui a ética. Na saúde indígena, ética do trabalho se traduz no respeito aos indígenas e às concepções sobre o processo saúde-doença, atitude fundamental para a efetivação do princípio da atenção diferenciada.

Apesar da simples aquisição de um conjunto de conhecimentos não ser suficiente para sustentar o desenvolvimento de competências, o componente “saber” tem grande importância como matriz sustentadora dos demais componentes, “saber fazer” e “saber ser”. Assim como as ações técnicas estão ancoradas em conhecimentos teóricos trabalhados no espaço acadêmico, o desenvolvimento de atitudes também demanda uma sensibilização por parte dos profissionais, que pode ser despertada a partir de conhecimentos teóricos oriundos do campo da antropologia.

Limitações do estudo

O estudo foi realizado na Terra Indígena Xingu, e embora o processo de trabalho seja bastante semelhante aos demais territórios indígenas da região amazônica e Centro-Oeste, algumas especificidades locais limitam o seu alcance, principalmente em áreas indígenas mais próximas de grandes centros. Há que considerar também a diversidade encontrada entre os 34 Dsei, o que também produz implicações para as características deste estudo. Outros espaços de trabalho relevantes na saúde indígena, como as Casas de Saúde do Índio (Casai) e ambulatórios especializados, não foram incluídos, e devem ser objeto de futuras pesquisas. Uma outra limitação do estudo é a não participação dos profissionais indígenas de saúde, restringindo a visão sobre as questões trabalhadas apenas aos referenciais não indígenas. Podemos afirmar que este trabalho traz parte de um olhar sobre a saúde indígena; um olhar materialista ocidental e que de modo nenhum contempla a visão indígena, que é fundamental para a compreensão totalizante dessa realidade.

Contribuições para a área

Este estudo contribui para a produção científica da área de enfermagem no que diz respeito à formação e preparação dos enfermeiros para a atuação em contextos interculturais, em especial no campo da saúde indígena, notadamente nos serviços de atenção básica, mas que são aplicáveis aos serviços de maior complexidade. A descrição e análise do perfil e modos de trabalho da enfermagem em saúde indígena ainda são incipientes e se fazem necessárias para aprimorar a competência profissional da enfermagem.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A caracterização das competências, habilidades e atitudes que conformam a prática profissional dos enfermeiros em territórios indígenas se dá a partir da combinação de conhecimentos, novas práticas e novos cenários de trabalho que atendam às demandas advindas da realidade intercultural e conduzam a uma atuação profissional proativa, que colabore com uma atenção à saúde capaz de impactar o quadro sanitário do território e congruente com os princípios e diretrizes da Pnaspi.

A prática profissional também é impactada pelas particularidades do território indígena e da organização do trabalho. Assim, características geográficas, questões logísticas, perfil epidemiológico local, composição das equipes, atuação dos profissionais indígenas de saúde, pluralidade étnica e, especialmente, a imersão no espaço de trabalho se somam na definição do perfil de atuação do enfermeiro em uma realidade de trabalho singular e particular em cada Distrito Sanitário Especial Indígena.

No PIX o enfermeiro ocupa um papel central no trabalho das Emsi, o que intensifica a dimensão técnica, o “saber fazer” de sua atuação profissional, exigindo habilidades que, em geral, extrapolam o domínio da profissão. Assumindo tal posição, os profissionais experimentam um conjunto de sentimentos que inclui autonomia, responsabilidade e também insegurança. O agir clínico e novas traduções sobre o corpo, bem como um trabalho que se efetiva através do uso de tecnologias leves, que incluem o diálogo, o respeito, a união e a prestação de contas, são essenciais para a geração de processos relacionais positivos e produtivos com os indígenas e entre a equipe, e necessários para exercer o cuidado intercultural em saúde.

Nesse caminho, a dimensão das atitudes que compõem a competência profissional se destaca como um conjunto de atitudes necessárias para interlocução com a diferença, com o outro, num contexto em que a interculturalidade permeia toda a atuação profissional. A dimensão do “saber” dos conhecimentos é sustentadora das demais, “saber ser” e “saber fazer”, e a que mais explicita as lacunas do processo formativo dos profissionais.

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Editado por

EDITOR CHEFE: Antonio José de Almeida Filho
EDITOR ASSOCIADO: Fátima Helena Espírito Santo

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Set 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    07 Nov 2018
  • Aceito
    03 Jan 2020
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