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REVISITANDO O DEBATE NURKSE-FURTADO NA DÉCADA DE 1950

REVISITING NURKSE-FURTADO’S DEBATE IN THE 1950s

RESUMO

A teoria do desenvolvimento apresenta um conjunto de elementos analíticos que são centrais e comuns a grande parte dos seus autores. Apesar de características que conformam este campo do conhecimento econômico há, entretanto, pontos sobre os quais um menor consenso se observa; este é o pano de fundo da releitura crítica do debate Nurkse-Furtado da década de 1950. Destaca-se, como ponto de convergência, a importância para ambos do trade-off entre consumo de luxo e investimento. Por outro lado, Furtado diverge de Nurkse ao enfatizar a existência de uma restrição externa ao crescimento/desenvolvimento, cuja superação exigiria a internalização de indústrias com maior elasticidade-renda através de medidas protecionistas. Busca-se também rever tal debate incorporando o princípio da demanda efetiva, com ênfase no “problema do consumo de luxo” e no esclarecimento sobre as divergências acerca dos modelos de substituição de importações e promoção de exportações.

PALAVRAS-CHAVE:
teoria do desenvolvimento; debate Nurkse-Furtado; desenvolvimento

ABSTRACT

The majority of Development Theory economists share several common and crucial elements. However, some points command a much more limited consensus. Against this backdrop, we perform a critical review of Nurkse-Furtado´s debate in the 1950s. They both agree on the trade-off between investment and luxury consumption. However, they diverge as to whether an external constraint to growth exists or not. Furtado emphasizes that the latter can only be overcome by industrialization, which demands some level of protectionism. The paper also explores a new theoretical approach for this debate following the effective demand principle and also discusses the alleged controversy between two development models: export-oriented vs import substitution.

KEYWORDS:
development theory; Nurkse-Furtado’s debate; development

INTRODUÇÃO

A teoria do desenvolvimento se estabelece como um campo da ciência econômica na segunda metade do século XX. Suas origens e principais elementos já são bem definidos pela literatura.1 1 Ver Bastos e Britto (2010) e Arndt (1987). Entretanto, assim como ocorre em qualquer grande vertente da teoria econômica, e certamente não exclusivamente neste campo do conhecimento humano, registram-se divergências e debates que podem envolver autores específicos ou mesmo grupos de teóricos reunidos em torno de algumas ideias centrais.

Na teoria do desenvolvimento, pode-se dizer que ambas as facetas estão presentes: há tanto divergências pontuais entre autores - ou ainda, ênfases específicas em aspectos comuns -, quanto, também, a formação de subgrupos com elementos marcantes e específicos que se situam dentro deste subcampo da ciência econômica.

No primeiro caso podemos citar, por exemplo, o debate entre crescimento equilibrado/big push e desequilibrado/teoria dos linkages defendidas por Rosenstein-Rodan e Albert Hirschman, respectivamente. Ambas tratam da relevância central das externalidades na teoria do desenvolvimento, mas a primeira tem como foco as externalidades horizontais ou de demanda, enquanto a segunda enfoca as externalidades verticais entre produtores.2 2 As externalidades pecuniárias são um conceito central na teoria do desenvolvimento (ver BASTOS e BRITO, 2010, p. 26-29). Esse conceito decorre da existência de falhas de mercado que impedem que as firmas incorporem os sinais do sistema de preços nas suas decisões de investimento. Justifica-se, assim, uma intervenção estatal, garantindo certos investimentos que proporcionem um lucro social ou benefícios para o conjunto da economia que sejam superiores ao lucro privado de uma firma. A particularidade das externalidades pecuniárias frente às externalidades tecnológicas (ver TONER, 1999, p. 15) é que as primeiras se transmitem através de relações de compra e venda, ou seja, através das interações no mercado. Tais externalidades podem ser divididas em dois tipos: verticais, nas quais algum novo investimento gera um insumo mais barato ou de qualidade superior, ou horizontais, que se referem à interdependência dos consumidores através da elevação da renda dos mesmos (TONER, 1999, p. 18). O primeiro tipo de externalidade está presente nas ideias de crescimento desequilibrado de Hirschman, enquanto as externalidades horizontais são fundamentais como fundamento de políticas de big push ou crescimento equilibrado de Rosenstein-Rodan, sendo também defendidas por Nurkse. Já no segundo caso, um exemplo notável é a vertente latino-americana da teoria do desenvolvimento, cujos autores conseguiram estabelecer elementos comuns de análise que levaram a uma identificação particular dentro da trajetória mais ampla deste campo.

O debate Nurkse-Furtado registrado pela Revista Brasileira de Economia no início de 1950 é uma excelente ocorrência para analisar esses dois aspectos presentes na teoria do desenvolvimento, além de, é claro, se oferecer como uma oportunidade de revisitar contribuições fundamentais de dois dos maiores expoentes dessa tradição. As convergências e divergências entre os autores, mais além do interesse da contribuição individual de cada um, permitem mapear a participação da vertente cepalina no avanço do debate sobre desenvolvimento econômico entre os anos 1950 e 1960.

Outra questão interessante que pode ser estudada a partir de tal debate é a atualidade das ideias aí abordadas frente tanto aos avanços teóricos da ciência econômica, bem como da própria experiência histórica, passados mais de 60 anos que testemunharam mudanças dramáticas nas condições sociais, geopolíticas, tecnológicas e ideológicas a nível mundial.

Para tentar contemplar toda essa gama de questões, o presente artigo se organiza da seguinte forma. Depois desta introdução, na primeira seção apresentaremos um breve resumo dos elementos centrais da teoria do desenvolvimento, os quais, por sua vez, serão cruciais para o exame detalhado, que se seguirá na segunda seção, do debate Nurkse-Furtado e para o cotejamento das convergências e divergências aí existentes. Na terceira seção procurar-se-á, de forma resumida, situar esse debate dentro de um espectro mais amplo dos principais elementos da vertente da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal) na teoria do desenvolvimento, bem como tratar de sua atualidade, ou seja, como tal debate pode iluminar as questões atuais e em que pontos dialoga com os avanços teóricos que lhe seguiram. Segue-se uma breve conclusão.

1. TEORIA DO DESENVOLVIMENTO E SEUS ELEMENTOS ANALÍTICOS CENTRAIS

A questão do desenvolvimento econômico passa a ocupar papel central e autônomo dentro da teoria econômica a partir do pós-Segunda Guerra Mundial. A relevância desse tema no debate acadêmico surge como reflexo do contexto histórico daquele período. Num cenário de descolonização e de Guerra Fria, as ideias desenvolvimentistas respondiam a uma necessidade sociopolítica de se estimular o crescimento e possibilitar o catching-up de países atrasados aos desenvolvidos. Esses condicionantes acabam por criar um campo fértil para o nascimento da teoria do desenvolvimento no final da década de 1940 e início da de 1950. Observa-se, com isso, uma mudança de paradigma, com a emergência nesse período de um “consenso do desenvolvimento”, ilustrado pelo apoio dos órgãos internacionais oficiais a políticas pró-desenvolvimento, sendo a criação da Cepal em 1948 um dos maiores exemplos dessa mudança.

A estrutura teórica geral da teoria do desenvolvimento então nascida se caracteriza pelo reconhecimento da existência de oferta ilimitada de mão de obra em diversos países ao redor do mundo. Tal ideia, formalizada no clássico trabalho de Lewis (1954), se contrapõe ao princípio da escassez sobre o qual se fundamenta a teoria neoclássica. A premissa de oferta ilimitada de mão de obra, acrescida de outras hipóteses teóricas como a relevância de retornos crescentes de escala, aproxima a teoria de desenvolvimento, de modo geral, da tradição clássica do pensamento econômico.

Lewis, por exemplo, segue a estrutura dos economistas clássicos, ao partir da constatação empírica de oferta ilimitada de mão de obra (particularmente nos países atrasados), do conceito associado de salário de subsistência e da hipótese de que a produção aumenta com o decorrer do tempo através da crescente acumulação de capital. Considerando a Lei de Say como princípio de determinação da renda no longo prazo, assim como na tradição clássica, o autor define um modelo para as economias em desenvolvimento em que coexistem dois setores, um de subsistência, o qual não utiliza capital reproduzível e cujo objetivo principal é a manutenção do consumo de subsistência, e outro capitalista, com capital reproduzível e trabalho assalariado e cujo fim repousa na obtenção de lucro (LEWIS, 1954). O salário é determinado pelo nível de subsistência, isto é, o setor de subsistência estabelece um mínimo, porém nos setores capitalistas o salário será maior.3 3 Rompe-se, assim, com o princípio da escassez fundamental ao arcabouço teórico neoclássico. Conforme aumenta a quantidade de capital (dada determinada técnica), mais trabalho poderá ser transferido do setor de subsistência para o capitalista (até o ponto em que o salário se iguale à produtividade marginal do trabalho), elevando o produto per capita.

À medida que o emprego em setores modernos, com maior produtividade, avança nas economias atrasadas, os montantes de lucro e consequentemente a poupança potencial se elevam, tendo em vista que os salários são determinados basicamente pelo nível de subsistência e logo não acompanham os ganhos de produtividade. Criam-se, então, as condições necessárias (dentro do arcabouço teórico adotado, o qual pressupõe a validade da Lei de Say) para se aumentar o investimento no setor moderno e acelerar o crescimento. Segundo esse modelo, mais otimista, esse processo terminaria por eliminar o mercado dual de trabalho (ou o próprio excedente estrutural de mão de obra), levando ao desenvolvimento.4 4 Lewis (1954) alerta, no entanto, que esse processo pode ser detido antes de a acumulação de capital ter atingido a população, ou seja, ter absorvido o excedente de mão de obra no setor moderno da economia. Isso se daria - descartando-se outros motivos que estariam além do sistema de análise do autor, como movimentos sísmicos, pandemias ou revoluções sociais - no caso em que, a despeito da existência de mão de obra excedente, os salários reais se elevassem a tal ponto que a totalidade do lucros, reduzidos, fosse consumida, inviabilizando-se o investimento líquido. O autor aponta como razões para isso (LEWIS, 1954, p. 444-445) basicamente o aumento do preço dos bens de subsistência, o fato de este não diminuir tão rapidamente quanto exigiria o aumento da produtividade per capita no setor de subsistência ou, ainda, a elevação do nível de subsistência dos trabalhadores capitalistas.

Embora haja claras diferenças entre os diversos autores que se incluem na teoria do desenvolvimento, há alguns elementos analíticos que suscitam pouca divergência e que, por isso, acabaram se tornando centrais à teoria como um todo. Um deles é o dualismo mencionado no modelo de Lewis (1954), com a presença nas economias em desenvolvimento de um setor atrasado e outro moderno. Outro ponto, de pouquíssima divergência, é a questão da poupança, refletindo a influência do pensamento clássico e, por conseguinte, a ideia de que a velocidade de acumulação na economia se relaciona diretamente com a capacidade de poupar ou com a parcela do excedente que não é consumida (BASTOS e BRITTO, 2010BASTOS, C. P.; BRITTO, G. Introdução. In: AGARWALA, A. N.; SINGH, S. P. (Orgs.) A economia do subdesenvolvimento. Rio de Janeiro: Contraponto, Centro Internacional Celso Furtado, 2010.). Conforme veremos, essa é uma questão crucial na análise dos teóricos do desenvolvimento, motivo pelo qual será discutida em maior detalhe na seção 2, a partir do debate entre Nurkse e Furtado. Por fim, um terceiro elemento, que representaria um dos principais pontos de ruptura com a análise marginalista da teoria neoclássica, seria o papel atribuído pela teoria do desenvolvimento às externalidades. Ainda que a teoria do desenvolvimento comungue com a teoria marginalista a ideia de que falhas de mercado geram externalidades que justificam a intervenção na economia, sua existência generalizada e relevância acabam por fazer das externalidades um vetor explícito, ou de formulação sistemática de política econômica. Dessa forma, a teoria do desenvolvimento acaba por se aproximar da teoria clássica ao enfatizar os impactos positivos que determinada atividade econômica gera para o conjunto da economia (os chamados efeitos spill-over) e especificamente a existência de retornos crescentes de escala que dão origem a mecanismos de causação cumulativa. Assim, diferentemente da teoria neoclássica, que tem como dois de seus elementos centrais o princípio da substituição e a ideia de concorrência perfeita, haveria, nesse caso, a presença de indivisibilidades estruturais/tecnológicas e institucionais, além da ideia de complementariedade como muito mais importante que da substitutibilidade, sendo esses elementos centrais para o avanço do processo de acumulação de capital com a intervenção estatal direta plenamente justificada pelas condições estruturais das economias subdesenvolvidas.

Esses três pontos figuram como fatores centrais e comuns a grande parte dos autores da teoria do desenvolvimento. Outros pontos, entretanto, não encontram a mesma convergência e de uma forma ou de outra acabam por caracterizar e distinguir algumas abordagens inseridas nesse campo teórico. A heterodoxia latino-americana, por exemplo, nascida com o trabalho seminal Prebisch (1949), segue a estrutura teórica geral de Lewis e da teoria do desenvolvimento, porém apresenta elementos originais que acabam por conferir certa singularidade à sua análise. A forma como a Cepal aborda a questão do comércio exterior, através de sua teoria da dependência centro-periférica, representa um ponto notável de originalidade em relação a outros teóricos do desenvolvimento.

Resumidamente, segundo essa visão, a forma como os países atrasados (periféricos) se inseriram historicamente no comércio internacional, mais especificamente pela especialização em produtos primários, colocou-os em uma situação de dependência em relação aos países onde a absorção dos fatores de produção a altos níveis de produtividade permitiu a consolidação de um núcleo industrial dinâmico e o desenvolvimento econômico e social de amplas parcelas da população e não apenas de uma fração restrita - o que caracteriza o dualismo e, logo, o subdesenvolvimento. A ideia por trás da mencionada dependência, que nessa abordagem se constitui num empecilho central ao desenvolvimento dos países atrasados, é a de que, além de os produtos primários possuírem uma elasticidade-renda da demanda menor que os manufaturados, seus preços tendem a se deteriorar em relação aos daqueles últimos e a estarem mais sujeitos às oscilações associadas à conjuntura internacional. O resultado seria uma forte tendência a crises no balanço de pagamentos e a preservação de uma relação de dependência tecnológica e financeira (para financiar os saldos negativos em transações correntes) em relação ao centro. De forma geral, a solução para os problemas acima passaria, segundo a visão cepalina, por um processo de industrialização por substituição de importações liderado pelo Estado, que permitisse superar a tendência ao deficit estrutural em transações correntes - via redução da dependência de importações de manufaturados e o aumento de exportações de produtos de maior elasticidade-renda, menos vulneráveis ao cenário externo - e levar ao desenvolvimento.

De um modo geral, essa não parece ser uma preocupação central nas análises dos principais autores dentro da teoria do desenvolvimento. Lewis (1954) se mostra ciente da possibilidade de deterioração dos termos de troca, porém não atribui a ela e, especificamente, à questão de distintas inserções dentro da estrutura do comércio internacional - principalmente no que tange a dinâmica de apropriação tecnológica - uma importância central como entrave ao desenvolvimento dos países atrasados. Entretanto, apesar de certa limitação em sua análise do comércio exterior, aí incluindo a relação entre a dinâmica tecnológica e a de formação do salário nos distintos países, reconhece que nos países onde existe excedente de mão de obra deveriam ser adotadas práticas protecionistas.5 5 “A Lei dos Custos Comparativos é tão válida para os países com excedente de trabalho como para os demais. Mas enquanto nos últimos representa um fundamento válido dos argumentos a favor do livre comércio, nos primeiros representa um fundamento igualmente válido dos argumentos protecionistas” (LEWIS, 1954, p. 462, nota número 15 do resumo apresentado ao final).

Nurkse (1953a, 1953b), por outro lado, defende abertamente a validade do princípio das vantagens comparativas, renegando as medidas protecionistas como forma de estímulo à internalização de setores industriais nos países atrasados. A forma como Nurkse chega a tal conclusão sobre políticas de desenvolvimento ficará mais clara na seção seguinte, quando elas serão analisadas à luz do seu debate com Furtado.

2. DEBATE NURKSE-FURTADO

O debate entre Ragnar Nurkse e Celso Furtado tem grande interesse para o estudioso da teoria do desenvolvimento dominante no pós-Segunda Guerra Mundial. Alguns de seus tópicos ultrapassam o simples interesse de história do pensamento econômico e são bastante atuais, tanto por tratar de temas relevantes contemporâneos, como o impacto do financiamento externo nos países em desenvolvimento, quanto por, ao apresentar de forma muito clara vários princípios da teoria do desenvolvimento do período, permitir um contraste com as importantes contribuições feitas a essa teoria nos anos recentes.

Esse debate tem como ponto de partida seis palestras sobre a formação de capitais em países subdesenvolvidos proferidas por Nurkse no Rio de Janeiro, em 1951 (NURSKE, 1951). Furtado responderia no ano seguinte (FURTADO, 1952) refutando algumas das ideias, porém concordando com outras, o que renderia ainda uma tréplica de Nurkse (1953b) no ano de 1953.6 6 Esse debate foi publicado originalmente, pela Revista Brasileira de Economia no início dos anos 1950 e, depois, republicado pelo Centro Celso Furtado, em 2007. Não se procura aqui apresentar um resumo detalhado das palestras de Nurkse (1951), mas apenas ressaltar seus pontos mais relevantes para, inclusive, poder contrastá-los com as posições de Furtado.

Nurkse inicia seu conjunto de palestras com um tema que poderia ser chamado de complementar à questão central da poupança na interpretação clássico/desenvolvimentista do período para a acumulação de capital. Segundo o autor, como o mercado só poderia se ampliar com o crescimento da produtividade e, como esta só ocorre com o processo de capitalização, os países mais pobres estariam presos num círculo vicioso de estagnação e equilíbrio de subemprego. A solução para esse “impasse” estaria na introdução em bloco de várias empresas ou num conjunto de investimentos simultâneos.

Uma consequência direta desse tipo de interpretação é realçar o papel central do Estado como coordenador do processo de desenvolvimento. Para Nurkse, esse tipo de política econômica intervencionista se justificaria pela ineficiência nos países mais atrasados dos mecanismos ortodoxos de preços. O lento crescimento do estoque de capital mais produtivo, resultado de tais falhas na sinalização do sistema de preços para a alocação eficiente de recursos (aí incluindo a taxa de investimento de plena capacidade, que levaria a uma pequena dimensão do mercado e à manutenção da baixa produtividade), demandaria uma intervenção tanto ampla quanto profunda sob o comando do Estado.

Entretanto, mais além da questão da dimensão do mercado - e as falhas do sistema de preços daí decorrentes - como limitador das possibilidades de investimento, Nurkse relaciona-a diretamente à problemática clássica por excelência da teoria do desenvolvimento da deficiência de poupança. Segundo o autor:

A principal dificuldade nesses países é, naturalmente, o fato de que o volume da poupança interna é pequeno, por causa do baixo nível da renda. Ainda há, porém, a dificuldade adicional de que tais poupanças, assim feitas, tendem a ser usadas improdutivamente. Geralmente, encaminham-se para inversões em propriedades imobiliárias, ouro, jóias, ou para o entesouramento em moedas nacionais de metais preciosos ou em moeda estrangeira e outros haveres semelhantes. (NURKSE, 1951, p. 34)

Não deixa de ser interessante observar que, nas palavras finais de uma palestra dedicada aos problemas da dimensão de mercado como fator limitante ao processo de desenvolvimento, ou seja, na qual a questão central deveria ser as externalidades, Nurkse acaba por reforçar a ideia de que a principal dificuldade desse processo é a poupança, tanto pelo lado de sua dimensão quanto pelo efeito negativo do consumo de luxo. Esse “gasto de luxo”, entretanto, seria menos uma perversão institucional ou sociológica das classes proprietárias e mais uma consequência do pouco incentivo ao investimento pelas limitações da dimensão do mercado.

Um pouco mais à frente em suas palestras, Nurkse aborda a questão do consumo de luxo de forma mais detalhada. A visão exposta na citação anterior ganhará outra leitura, bem mais rica, relacionando-se com a evolução dos padrões de consumo capitalistas depois da Primeira Guerra Mundial. Nurkse vai buscar no trabalho de Duesenberry (1949DUESENBERRY, J. S. Income, saving and the theory of consumer behavior. Cambridge, M.A.: Harvard University Press, 1949.) a inspiração para estender ao contexto da economia internacional, ou ao estudo comparado das economias nacionais, a ideia do “efeito demonstração” sobre o consumo. Esse debate decorria dos resultados “surpreendentes” dos estudos de Kuznets (1942KUZNETS, S. Uses of National Income in Peace and War. Occasional Paper 6, National Bureau of Economic Research, March 1942., 1946) sobre a propensão a poupar no pós-guerra, nos quais a hipótese keynesiana de elevação da propensão a poupar com a elevação da renda da sociedade não se confirmava. Ainda que a renda dos mais pobres se elevasse, como esses emulavam os padrões de consumo dos mais ricos, não estariam poupando mais, não elevando, então, a propensão a poupar agregada da economia. No plano internacional, Nurkse remete a uma tendência quase inevitável à emulação do American way of life, ou seja, dos padrões de consumo americanos.

Esse processo acabaria por criar um mecanismo perverso que se retroalimenta, já que o padrão de consumo exige uma tecnologia intensiva em capital num contexto em que tal padrão limita a oferta de poupança.7 7 Talvez esta seja uma das maiores limitações da teoria clássica do desenvolvimento: uma insistência com a questão da adequação da tecnologia, a ser adotada nos países em desenvolvimento, à dotação de fatores. Sem entrar no mérito de essa reflexão revelar uma forte influência marginalista, seu maior problema é, no fundo, negar a própria essência do processo de desenvolvimento econômico que é a de se buscar trajetórias tecnológicas contrárias àquelas que seriam “naturais” de acordo com a escassez relativa dos fatores de produção. Perseguir o desenvolvimento industrial é buscar implementar setores industriais capital intensivos, tecnologicamente mais dinâmicos, como bem relata Chang (2010) para os casos do Japão e Coreia, por exemplo. Nurkse (1951, p. 59) incorre nesse equívoco de forma muito clara, associando excesso de consumo e tecnologia inadequada como duas faces de uma mesma moeda.

Dessa forma, ao reforçar o problema do consumo de luxo como emulação dos padrões dos países ricos, ou mais especificamente os EUA, Nurkse qualifica a análise usual dos desenvolvimentistas sobre o tema. Segundo o autor, mais importante do que o baixo nível de renda absoluto para explicar a baixa poupança, tem-se o nível relativo, já que, quanto maior o distanciamento vis-à-vis os EUA, pior o impacto do consumo de luxo sobre a propensão a poupar.

A pergunta, então, é como resolver essa verdadeira contradição, já que num plano mais amplo sociológico e mesmo geopolítico esse padrão de consumo era exatamente um ponto central de atratividade das populações ao campo capitalista dentro de um contexto de Guerra Fria. Nurkse utiliza-se da expressão “cortina de ferro” como metáfora para uma forma de esconder os padrões de consumo americanos ou não os deixar serem “vistos” pelas populações pobres da União Soviética e dos países do Leste Europeu, mas afirma: “[q]ue isto seja uma solução possível, e talvez necessária, é um pensamento assustador” (NURKSE, 1951, p. 68).

Uma solução poderia estar nas transferências internacionais governamentais; porém, como para o autor a poupança doméstica é o principal problema da acumulação, tais transferências só teriam impacto positivo sobre a acumulação caso não reforçassem padrões de consumo indesejados. Aliás, a falta de distinção entre restrição de poupança e restrição externa, diretamente relacionada às transferências externas, presente na contribuição de Nurkse nesse debate com Furtado, será um dos pontos de divergência entre ambos, a ser mais bem explorado adiante.

A partir desse ponto, Nurkse passa a tratar especificamente da questão da formação de poupança nos países não industrializados ou com excedente estrutural de mão de obra. Em relação à poupança interna, sua palestra explicita a importância do mecanismo de poupança forçada. Sua discussão é bastante tradicional em relação ao debate do tema no período. O ponto central é que a obtenção de poupança forçada via inflação pode resultar em várias ineficiências, como, por exemplo, desviar recursos (poupança) para acumulação em setores de bens de luxo ao invés de serem utilizados em setores “corretos” como infraestrutura.

A melhor forma de extração dessa poupança forçada seria através da carga tributária. Esta também é uma solução razoavelmente “consensual” entre os desenvolvimentistas do período, com a ressalva, de caráter político, da dificuldade de se implementar reformas tributárias que taxassem as classes proprietárias e/ou a parcela da população não proprietária, mas com rendas mais elevadas. Particularmente, Nurkse discute a possibilidade de a taxação da renda poder gerar, no longo prazo, um efeito negativo sobre a oferta de poupança, sugerindo, então, a cobrança de impostos indiretos ou sobre o consumo. É claro que uma opção como essa iria de encontro à dificuldade de taxação da renda em países mais pobres.

Uma vez discutidas as fontes de poupança interna, Nurkse passa a abordar as fontes de poupança externa. Nessa sua palestra ele se dedica diretamente à análise do investimento direto estrangeiro (IDE) e das formas de apropriação do excedente dos exportadores.

Em primeiro lugar, Nurkse não acredita que o IDE tenha capacidade de romper “o círculo vicioso” interno de acumulação, produtividade e limitação dos mercados. Os investidores externos não teriam nem incentivo nem capacidade de romper esse verdadeiro impasse econômico.

Ao comentar a guerra da Coréia, Nurkse afirma que a melhor forma de financiamento externo é a melhoria das relações de troca. Ainda assim, lembra que nada garantiria que esse maior afluxo de dólares iria se transformar em poupança; poderia ocorrer a tão indesejada expansão do consumo de luxo (em parte importado) e da inflação.

Novamente, o caminho mais eficiente para se absorver produtivamente essa elevação da poupança potencial seria a taxação, ou seja, o aumento da poupança pública. Esquemas de confisco cambial poderiam ter efeito semelhante, mas no longo prazo correriam o risco de desestimular a produção de commodities com impactos negativos sobre a balança comercial. Dessa forma, uma elevação da carga tributária geral, e não apenas sobre os exportadores na forma de confisco cambial, seria a melhor opção para a elevação da poupança/acumulação no caso de uma melhoria dos termos de troca. Esse último debate e a necessidade da utilização da ampliação dos recursos externos para a compra de bens de capitais, e não bens de luxo, levam ao tema da sua palestra seguinte, a política de comércio exterior, que é, sem dúvida, a mais polêmica e divergente dos cânones cepalinos professados por Furtado.

Logo no início de sua quinta palestra, Nurkse (1951, p. 148) afirma que a “proteção aduaneira às indústrias nascentes falhou na promoção do desenvolvimento industrial porque fez muito pouco, ou quase nada, para a criação do capital necessário a esse desenvolvimento”.

Na citação fica claro que o autor procura ser consistente com seu argumento desenvolvido anteriormente - a centralidade da poupança no processo de acumulação - e não entrar em uma discussão sobre vantagens comparativas.8 8 Se bem que essa discussão é retomada na palestra seguinte dentro do contexto da análise do IDE. Dentro da lógica desenvolvida nas palestras anteriores, Nurkse também não vê no protecionismo uma forma eficiente de resolver o ponto central que emperra o processo de desenvolvimento: a limitada dimensão do mercado. Nesse caso, o protecionismo não seria capaz de resolver o problema da dimensão do mercado, porque a demanda reprimida pelas importações que seriam produzidas internamente seria muito pequena, ou não grande o suficiente para justificar o investimento privado.9 9 Dentro desse raciocínio, para Nurkse, o IDE apenas favoreceria o mais forte, como no caso do Canada e EUA. A concentração do IDE norte-americano no Canadá, então, se explicaria pelas dimensões de mercados já expressivas neste país. Obviamente que Nurkse está pensando de forma estática e não dá conta da própria dinâmica de crescimento agregado e de surgimento de novos mercados específicos que o processo de desenvolvimento propicia; como o caso brasileiro do mercado automobilístico no final dos anos 1950.

Nessa mesma direção, Nurkse afirma que a proteção seria desfavorável ao fluxo de IDE, pois este só se dirigiria para mercados já existentes, ou seja, impedir a importação de certo bem em um país não implicaria na transferência do produtor de tal bem para produzi-lo internamente no país. Estaria estabelecido, assim, um paradoxo no qual o protecionismo favoreceria o mais forte.

É curioso ressaltar que, refletindo o ambiente político intelectual da época, Nurkse encerra essa parte de sua palestra com um curioso quase pedido de desculpas, que, de certa forma, não é muito consistente com sua argumentação anterior: “[e]spero não ser mal compreendido. Não sou contrário de nenhum modo à proteção às indústrias nascentes. Estou apenas dirigindo a atenção para a necessidade prévia da criação dessas indústrias” (NURKSE, 1951, p. 152).

A argumentação de Nurkse anti-protecionismo, ou seguindo a citação anterior, a argumentação que priorizaria a relação poupança-acumulação em detrimento da questão do protecionismo, fica mais clara e logicamente consistente dentro de seus supostos teóricos, quando o autor começa a discutir o nexo entre comércio e poupança externa.

Nurkse levanta, em relação às possíveis consequências de medidas protecionistas, dúvidas quanto ao impacto na elevação da demanda por bens de capital. Esse seria, aliás, o caso em que o protecionismo, dentro da abordagem de Nurkse, se justificaria. Num segundo caso polar, prejudicial à acumulação de capital, os bens de luxo que deixariam de ser importados seriam produzidos internamente, e dado que, seguindo a Lei de Say, a economia se encontraria na plena utilização da capacidade produtiva, haveria inflação de demanda e deslocamento da produção interna de bens de capital.

Haveria, ainda, um caso misto no qual o resultado do aumento da importação de bens de capital não seria compensado pela queda de produção interna. Seria um caso normal de poupança forçada, com uma mudança da distribuição de renda a favor dos ricos. O problema para Nurkse, nesse caso, estaria exatamente nos malefícios trazidos pela inflação, como alocação ineficiente de recursos, incluindo aí a valorização especulativa de propriedades imobiliárias.

Em suma:

Não podemos extrair mais capital do comércio externo, simplesmente obtendo mais importações de bens de produção. O problema verdadeiro é extrair mais poupança da renda nacional. É somente com uma política complementar de aumento da poupança interna, quer voluntária, quer compulsória, que as restrições à importação podem ser usadas eficientemente, e com êxito, para obter maiores importações de bens de produção no comércio exterior. (NURKSE, 1951, p. 158-159)

Mais uma vez a centralidade da poupança se impõe na discussão da aceleração da acumulação. Enquanto isso, é possível que o esforço de acumulação prejudique o dispêndio em “facilidades básicas de capital público” (1951, p. 160). Há que se reduzir o consumo de luxo, mas o caminho não deve ser a proteção e sim o estabelecimento de “(...) poupança compulsória através das finanças públicas” (p. 161). As passagens aqui mencionadas deixam claro também que a questão da falta de poupança é uma contraface da adoção da Lei de Say como princípio definidor do nível de produto doméstico.

Em relação à questão do fluxo internacional de capital, Nurkse trata dos efeitos dos dividendos pagos pelos países que recebem tais fluxos. Haveria inicialmente que se distinguir duas questões: o problema orçamentário e o problema de divisas. Os problemas do pagamento de juros sobre créditos externos estão, como de resto consistentemente em todas as palestras de Nurkse, ligados à questão da poupança. Se o governo não tiver uma receita idêntica ao pagamento de juros incorrerá em deficit, com as naturais consequências inflacionárias de tal política. Esse caso do setor público é estendido mutatis mutandis ao setor privado.

O segundo ponto se relaciona com a obtenção de divisas para pagar o serviço dos fluxos de capital externo. Em relação a essa segunda condição, Nurkse defende que os investimentos estrangeiros não devem necessariamente se dirigir a setores ligados diretamente ao comércio exterior. A explicação para isso é que, para Nurkse, desequilíbrios só ocorrem quando há uma deficiência de poupança, ou seja, quando os gastos agregados, aí incluindo o consumo, superam a oferta de plena capacidade. A ocorrência de desequilíbrios externos também só pode ser resultado de excesso de demanda interna. Para Nurkse, não há complementaridade entre bens importados e produzidos internamente, ou seja, não existiriam coeficientes fixos de importação envolvendo bens de capital e/ou insumos que exigiriam para sua aquisição um certo montante de divisas. Caso a hipótese de Nurkse seja relaxada, parte da demanda por importações seria incompressível e, independentemente da maior ou menor poupança doméstica, exigiria certo valor de moeda estrangeira para que o crescimento/investimento pudesse ocorrer, como prescrito na formulação original dos modelos de dois hiatos (SERRANO e WILLCOX, 2000SERRANO, F.; WILLCOX, L. D. O modelo de dois hiatos e o supermultiplicador. Revista de Economia Contemporânea, Rio de Janeiro, v. 4, n. 2, p. 37-64, jul./dez. 2000.).

Em suma, em Nurkse não há qualquer referência à questão da restrição ao crescimento por conta de um desequilíbrio externo causado por padrões de inserção no comércio exterior e/ou complementariedades técnicas que demandariam a importação de bens de capital e intermediários, específicos. Todo o problema de desenvolvimento, além da questão das externalidades, estaria centrado na restrição de poupança doméstica.

O debate entre Furtado e Nurkse que se segue contém divergências, concordâncias e, a nosso ver, incompreensões analíticas. É importante lembrar que ambos eram autores desenvolvimentistas que comungavam da mesma base analítica clássica.

Dentro dessa perspectiva mais ampla, cabe destacar a grande convergência de Furtado e Nurkse no tocante à relação entre consumo de luxo e deficiência de poupança. Esse “problema do consumo de luxo” já estava presente nos textos seminais de Prebisch no final dos anos 1940; entretanto, na obra furtadiana vai ganhando, com o tempo, posição de maior destaque ao correlacionar um padrão de consumo elevado com concentração de renda e uma eventual tendência ao “entorpecimento” do crescimento econômico. Essa relação está presente no cerne da tese do “subdesenvolvimento” proposta no início dos anos 1960 (FURTADO, 1961), na posterior inviabilidade da generalização dos padrões de consumo dos países desenvolvidos, que é central na sua obra “O mito do desenvolvimento econômico” (FURTADO, 1974), e mesmo na importância de profundas mudanças culturais para que tal padrão seja superado, como pode ser visto em suas obras da maturidade.

Particularmente, em relação ao seu debate do início de 1950 com Nurkse, Furtado (1952, p. 210) concorda que “[a]ssim como os grupos sociais de baixas rendas tendem a imitar, em seus padrões de consumo, aqueles que lhes estão por cima na escala social, os países pobres tendem a copiar as formas de vida dos ricos”, criando um problema de redução da propensão a poupar e, logo, de desaceleração do crescimento.

Dentro de uma perspectiva histórica de mais longa duração, Furtado credita esse fenômeno aos tempos modernos, resultado da enorme força dos “meios de propaganda e de comunicação”. Historicamente, na Europa, os hábitos de consumo teriam tido uma evolução mais modesta devido à influência de “tradições religiosas e culturais”. Vale notar que, naquele momento, esse autor ainda supunha uma relação capital-produto fixa, o que implicava uma desaceleração do crescimento diretamente proporcional à redução da propensão a poupar da economia.

Outro ponto de concordância entre ambos os autores é uma descrença no funcionamento eficiente do sistema de preços como indutor do crescimento, ou seja, a rejeição da ortodoxia neoclássica bem como a inadequação da teoria schumpeteriana de desenvolvimento para o caso dos países pobres e não industrializados.

O ponto que entendemos como de certa incompreensão neste debate diz respeito à troca de argumentos entre Furtado e Nurkse sobre a importância da dimensão do mercado levantada pelo último na sua primeira palestra. Furtado levanta algumas objeções aos argumentos de Nurkse, iniciando por sublinhar o papel do comércio exterior como criador de demanda:

Sempre que os países subdesenvolvidos tivessem oportunidade de realizar suas inversões com vista ao mercado externo, o problema não existiria. Portanto, a questão fundamental está é na inexistência de um mercado externo em expansão. Haveria, assim, que distinguir entre desenvolvimento com comércio externo em expansão e desenvolvimento com estancamento ou contração do intercâmbio exterior. (FURTADO, 1952, p. 200)

Nesse momento, início dos anos 1950, Furtado parece acreditar que a expansão do mercado externo seria capaz de puxar a economia na direção do desenvolvimento econômico e que a quebra do dinamismo da economia internacional seria responsável pela desaceleração no crescimento dos países periféricos. O problema para Furtado nessa linha de causalidade é novamente a propensão a poupar e o excessivo consumo de luxo interrompendo a trajetória da economia na direção de uma aceleração da acumulação: “[s]e os aumentos da renda se concentram totalmente em mãos de pequenos grupos fechados, o processo de desenvolvimento, iniciado por pressão externa, não criará dentro da economia reações que tendam a intensificá-la” (FURTADO, 1952, p. 209).

Finalmente, chega-se à questão da tendência ao desequilíbrio externo, um dos pontos centrais da contribuição cepalina na teoria desenvolvimentista do período e que, como visto anteriormente, não é incorporada - por razões ligadas ao processo de acumulação, e não de alocação ótima da teoria convencional de comércio - na análise de Nurkse.

Furtado desde o início levanta um ponto central para a formulação centro/periferia cepalina: a questão das diferentes elasticidades de demanda entre os distintos tipos de bens de comércio exterior e que não encontram espaço analítico relevante na reflexão de Nurkse:

A demanda de objetos de consumo que esses países importam apresentam elevados coeficientes de elasticidade-renda. É o caso dos artigos manufaturados em geral e em particular dos artigos de consumo durável (...) [também] os países em etapas iniciais de desenvolvimento dependem em grande parte das importações para o suprimento de bens de capital. A procura destes últimos bens, conforme vimos anteriormente, tende a crescer mais que a renda nacional quando é intenso o desenvolvimento econômico. (...)

Como conciliar essa tendência a aumentar as importações, resultante do próprio desenvolvimento, com a impossibilidade de aumentar a capacidade para importar? (...)

(...) A causa última do desequilíbrio está na disparidade entre o crescimento da renda e o da capacidade para importar. É, portanto, indispensável, se se quer corrigir o desequilíbrio, que se modifique a estrutura da produção no sentido de aumentar as exportações ou de substituir importações. (FURTADO, 1952, p. 221-222)

Furtado faz questão de ao mesmo tempo refutar a tese de Nurkse sobre excesso de demanda (ou deficiência de poupança) para explicar o desequilíbrio externo e afirmar a necessidade de uma programação no processo de industrialização para se evitar que a restrição externa inviabilize o desenvolvimento. Agora, ao invés de restringir a demanda doméstica de consumo, seria necessário aumentar a capacidade de geração de dólares (via exportação, contração seletiva de importações ou financiamento externo) para suprir as demandas incompressíveis de bens importados.

A tréplica de Nurkse (1953b) a Furtado (1952) é curiosa no sentido de demonstrar tanto uma certa incompreensão da parte de Nurkse quanto sua louvável fidelidade teórica à Lei de Say clássica. Nurkse afirma que Furtado o acusa de não achar que o problema principal está do lado da falta de poupança. Em sua defesa, este autor afirma que tal não é de todo verdadeiro e que apenas ele dividiu em “duas partes” sua argumentação: lado da oferta e lado da demanda. Coerente com sua filiação clássica, Nurkse considera a escassez de poupança o elemento central para explicar as limitações ao desenvolvimento, mas por outro lado faz questão de sublinhar as questões de indivisibilidade técnica e escala que, por sua vez, se ligam à existência de um mercado potencial suficientemente grande para permitir a produção com mecanização e elevados níveis de produtividade. De qualquer forma, em relação às dimensões de mercado, Nurkse concede, talvez, que a falta de mercado fosse um problema da Índia e Egito e não do Brasil. Este seria, então, um ponto teórico cuja aplicação dependeria de cada caso histórico particular.

Se nesse ponto, a despeito de eventuais divergências de ênfase, podemos ver em Nurkse e Furtado uma concordância em aspectos fundamentais, o mesmo não se pode dizer em relação à questão de uma eventual tendência ao desequilíbrio externo - tão cara à tradição cepalina e, consequentemente, a Furtado - cuja relevância não é compartilhada por Nurkse.

Assim coerente com sua posição, em relação à política comercial, Nurkse, apesar de conceder que a ideia da proteção da indústria nascente não é incorreta, continua a insistir, em sua tréplica, que por si só essa medida não garante uma industrialização acelerada:

(...) é sumamente duvidoso que esse procedimento por si só [protecionismo e PSI], possa dar início a um processo de crescimento equilibrado da Economia. Sem crescimento geral desse tipo, o incentivo à inversão em determinada indústria protegida não irá além do ponto em que todas as importações tenham sido substituídas pela produção nacional. (...) Em resumo, a política comercial será provavelmente um meio inadequado de curar a possível deficiência do lado da procura no problema da formação de capitais em países menos desenvolvidos. (NURKSE, 1953b, p. 240)

Esse tipo de afirmação parece mais uma incompreensão da verdadeira natureza do modelo de substituição de importações, ou melhor, da própria inadequação do termo para descrever o processo de industrialização empreendido em alguns países da América Latina na segunda metade do século XX. Na verdade, o que ocorreu foi um processo de acumulação acelerada puxada pela industrialização e comandado pelo Estado. Nesse arranjo de política econômica, o protecionismo é um elemento fundamental para que a combinação de crescimento acelerado e elasticidades de demanda do comércio exterior não inviabilizasse o primeiro, através de deficits no balanço de pagamentos, como exposto claramente na citação de Furtado acima.

A tendência ao desequilíbrio externo estrutural é explicitamente rechaçada por Nurkse. As consequências desse tipo de leitura extrapolam as considerações sobre processos de desenvolvimento, determinando de modo unicausal a interpretação de fenômenos macroeconômicos como a inflação, por exemplo. Esta, seguindo-se a lógica de Nurkse, não pode surgir de algum mecanismo de desequilíbrio externo, gerando desvalorização cambial, e sendo apenas resultado de um processo de poupança forçada via excesso de gasto acima da capacidade de poupança voluntária da economia.

3. UMA RELEITURA CONTEMPORÂNEA DE ALGUNS ASPECTOS DO DEBATE NURKSE-FURTADO

Revisitar o debate Nurkse-Furtado, além de evidenciar os pontos de convergência e divergência entre dois autores fundamentais na teoria do desenvolvimento, permite explicitar suas importantes rupturas com a ortodoxia então dominante e também suas limitações frente aos avanços da pesquisa econômica das décadas posteriores.

O ponto inicial que merece atenção é o de convergência entre Nurkse e Furtado sobre a questão da poupança, o que reflete uma aceitação, relativamente generalizada na teoria do desenvolvimento, da crítica ao consumo conspícuo como prejudicial ao crescimento através de uma utilização inadequada - ou seu impacto negativo na acumulação de capital - do excedente social.

Um parêntese que aqui se deve fazer é que, em relação a Furtado, tal questão encontra na literatura distintas leituras. Alguns autores como Salm (2011SALM, C. O debate sobre a tendência à estagnação. In: MALTA, M. M. (Coord.) Ecos do desenvolvimento. Rio de Janeiro: IPEA, Centro Internacional Celso Furtado de Políticas para o Desenvolvimento, 2011.) e Leite e Vianna (2009LEITE, M. V. C.; VIANNA, S. T. W. Celso Furtado e a Teoria do Subdesenvolvimento: uma análise sem lei de Say. In: ENCONTRO NACIONAL DE ECONOMIA, 37, Foz do Iguaçu, 2009.) preferem ver na posição sobre acumulação de Furtado uma discussão mais ampla, sobre “questões que extrapolam os limites das teorias do crescimento econômico” (SALM, 2011SALM, C. O debate sobre a tendência à estagnação. In: MALTA, M. M. (Coord.) Ecos do desenvolvimento. Rio de Janeiro: IPEA, Centro Internacional Celso Furtado de Políticas para o Desenvolvimento, 2011., p. 176).10 10 Ainda segundo o mesmo autor “[a] importância que, nos textos aqui referidos, Furtado confere à poupança tem mais a ver com o longo prazo, com sua denúncia do consumismo de nossa elite endinheirada e alienada e com suas consequências em termos de orientação de investimentos. Querer enquadrá-lo numa determinada corrente é um exercício de lana caprina” (SALM, 2011, p. 188).

Entretanto, pode-se seguir uma abordagem alternativa a tal orientação e buscar enquadrar a análise de Furtado dentro de modelos teóricos específicos de determinação da renda e crescimento econômico. Dentro dessa perspectiva, pode-se destacar que na obra de Celso Furtado é possível encontrar passagens nas quais o autor defende explicitamente uma interpretação seguindo o princípio da demanda efetiva (PDE) keynesiano para explicar as flutuações do nível de produto no curto prazo. Um exemplo emblemático está em sua análise das políticas contracíclicas aplicadas pelo governo Vargas nos anos 1930, no capítulo 31 de Formação Econômica Brasileira, o que é exposto de forma explícita na tabela da p. 270 (FURTADO, 1959), na qual o autor desenvolve uma análise de um multiplicador keynesiano para a determinação do nível de renda, supondo um investimento público autônomo.

Em outras obras, porém, que tratam especificamente de acumulação de longo prazo nos países periféricos, o autor descreve a economia como restrita pela oferta, e não pela demanda, como se caracterizam os modelos que aplicam o PDE à análise de longo prazo/crescimento econômico. Uma vez que a falta de poupança limita persistentemente o crescimento econômico, a consequência lógica de tal posição é seguir um modelo de crescimento determinado pela oferta e não pela demanda efetiva no longo prazo.11 11 Rugitsky (2016, p. 270) apresenta análise semelhante sobre a obra de Furtado: “[h]is view of the growth process, though nuanced, is a supply-led one, in contrast to Kalecki’s and Steindl’s demand-led view. So the first question regards the availability of savings. An increasing inequality could be expected to give rise to larger savings, accelerating growth, since the rich tend to have lower propensities to consume than the poor. According to him, this did not happen in Latin America, however, especially because the elites tended to imitate the consumption pattern of the elites of the rich countries”. Vale anotar que o autor acrescenta à restrição de poupança, resultante do excessivo consumo de luxo, a questão da elevação da relação capital-produto, o que reduziria ainda mais a taxa de crescimento econômico (BASTOS e D’AVILA, 2009BASTOS, C. P.; D’AVILA, J. G. O debate do desenvolvimento na tradição heterodoxa brasileira. Revista de Economia Contemporânea, v. 13, n. 2, p. 173-199, 2009., p. 179-185).

Serrano (2001SERRANO, F. Acumulação e gasto improdutivo na economia do desenvolvimento. In: FIORI, J. L.; MEDEIROS, C. A. (Orgs.) Polarização mundial e crescimento. Rio de Janeiro: Vozes, 2001.) busca entender como autores que claramente tinham conhecimento da abordagem keynesiana, já tendo inclusive a utilizado para a análise da história do Brasil, como mostramos no parágrafo acima, acabam adotando uma perspectiva de crescimento determinado pela oferta em suas análises do processo de desenvolvimento na América Latina:

Dado que a crítica Keynesiana à “Lei de Say” era bastante conhecida pelos técnicos da CEPAL, nos parece que o apego à idéia de insuficiência de poupança e a crítica ao gasto improdutivo só podem ser resultado de um viés normativo no qual não se analisava o processo de acumulação do capitalismo latino americano em si e sim se discutia como planejar racionalmente este processo com fins de desenvolvimento. Neste caso, se o governo controla diretamente os níveis agregados de consumo e investimento evidentemente o consumo de luxo ou capitalista se torna apenas um “desperdício” a ser evitado em nome da acumulação. (SERRANO, 2001SERRANO, F. Acumulação e gasto improdutivo na economia do desenvolvimento. In: FIORI, J. L.; MEDEIROS, C. A. (Orgs.) Polarização mundial e crescimento. Rio de Janeiro: Vozes, 2001., p. 142)

O ponto a se ressaltar, portanto, é que, tanto em Nurkse quanto em Furtado, a questão da relação entre consumo de luxo e limitação do crescimento, dada pela falta de poupança, pressupõe a validade da Lei de Say. Se, alternativamente, se considera o PDE como válido, essa proposição já não faz sentido. Nas economias capitalistas em desenvolvimento, as quais são capazes de produzir um excedente significativo acima dos padrões de subsistência normais,12 12 Tal como admitiam os cepalinos para o caso da América Latina (SERRANO e MEDEIROS, 2004). a produção normalmente se limita pelo nível de demanda efetiva, seja no curto ou no longo prazo. Pela operação do PDE, as decisões de investir geram poupança agregada por variações na renda e no produto; a acumulação de capital, portanto, depende não das decisões de poupar, mas do crescimento do investimento, o qual, por sua vez, depende do nível e da taxa de crescimento da demanda final (SERRANO e MEDEIROS, 2004SERRANO, F.; MEDEIROS, C. O Desenvolvimento econômico e a retomada da abordagem clássica do excedente. Revista de Economia Política, v. 24, n. 2 (94), abr./jun. 2004.). Não há por que se esperar, desse modo, que uma redução do consumo com aumento da poupança leve automaticamente a uma elevação no investimento. Aliás, coeteris paribus, ocorreria o inverso: uma queda do consumo suntuário levaria a uma redução da demanda agregada com impacto negativo sobre a indução do investimento e, consequentemente, sobre a própria trajetória de acumulação de capital. Ou seja, o suposto remédio para o processo de acumulação seria, ao cabo, uma razão para sua redução.13 13 É fundamental que haja uma consistência entre análises históricas mais amplas e princípios macroeconômicos básicos. Tal falta de consistência e desconhecimento de avanços no campo teórico, como a aplicação do PDE ao processo de acumulação de capital, reforça visões convencionais, nas quais, por exemplo, existiria uma relação inversa entre consumo e investimento, com importantes consequências de política econômica, daninhas ao próprio crescimento.

Uma questão que não pareceu preocupar os autores tradicionais do desenvolvimento, mas que ao menos merece ser aqui citada, é uma falta de preocupação explícita com a provisão pelo Estado de bens e serviços públicos de caráter básico, que tanto aumentaria o bem-estar direto das classes trabalhadoras, quanto poderia elevar seu rendimento real através da provisão de bens antes consumidos no setor privado. Essa frente de ação do Estado contribui e é essencial, nesse sentido, para a homogeneização dos padrões de consumo e para a redução das desigualdades sociais. A despeito de ser uma questão de extrema importância, esse é um ponto pouco explorado na literatura da teoria do desenvolvimento.14 14 Para uma análise mais detalhada sobre a questão dos bens e serviços públicos dentro da teoria do desenvolvimento, ver Oliveira e Bastos (2016) e Oliveira (2015). É razoável especular que o motivo para tal novamente esteja relacionado à suposta limitada poupança dos países em desenvolvimento e à necessidade decorrente de canalizá-la prioritariamente ao investimento produtivo.

Assim como no caso do consumo de luxo, esse argumento baseia-se na validade da Lei de Say, na medida em que o aumento nos serviços do Estado também comprometeria a poupança potencial - ou parcela da renda não consumida - disponível.

Vale notar, ademais, que a oferta pública desses bens e serviços sociais é importante, também, pela característica mão de obra intensiva destes, contribuindo para aumentar o emprego e a renda e, por conseguinte, reduzir o excedente estrutural de mão de obra, problema central para os autores citados acima. Tanto Nurkse quanto principalmente Furtado afirmavam que um dos principais problemas para o desenvolvimento, como já mencionado, consistia na incorporação nos países periféricos de padrões de consumo sofisticados associados a técnicas do mundo desenvolvido intensivas em capital, o que impediria a absorção do excedente estrutural de mão de obra e, logo, o aumento do nível de salários dos trabalhadores. O aumento na oferta pública de serviços como educação e saúde deveria, por essa lógica, ser estimulado, uma vez que são intensivos em mão de obra.

Outro ponto, agora controverso entre os autores, ao contrário do consensual “falso problema” - segundo o PDE - da poupança, diz respeito às distintas perspectivas sobre comércio internacional. Como mostrado na seção anterior, Nurkse é bastante crítico a intervenções protecionistas que alterem a trajetória do comércio exterior, ao contrário de Furtado que, fiel à tradição cepalina, é pessimista quanto à capacidade desse mesmo livre comércio exterior permitir a convergência entre países.

A curiosidade na abordagem de Nurkse, como apontado na seção anterior, é que a argumentação para rebater as medidas de cunho protecionista no comércio exterior tem como base eventuais distorções causadas nos padrões de consumo e que poderiam levar à diminuição da poupança e, dada a adoção da Lei de Say, do processo de acumulação de capital. Já mostramos que tal argumentação desconhece as tendências de longo prazo das trajetórias de exportação e importação da periferia bem como questões cruciais como a não substitutibilidade de bens de capitais e intermediários que são essenciais à produção/crescimento doméstico.

Entretanto, aproveitando o ponto levantado anteriormente na discussão entre padrões de consumo e poupança, podemos explorar um aspecto relacionado com o comércio exterior que é pouco abordado no debate desenvolvimentista tradicional. Um dos eixos centrais para a adoção de políticas de industrialização guiadas pelo Estado reside exatamente na constatação da validade da Lei de Engel, ou seja, a elasticidade-renda mais elevada de bens tecnologicamente mais sofisticados.

A discussão sobre comércio exterior e acumulação na abordagem de Prebisch e Singer (HO, 2012HO, P. S. Revisiting Prebisch and Singer: beyond the declining terms of trade thesis and on to technological capability development. Cambridge Journal of Economics, v. 36, p. 869-893, 2012.) apresenta dois mecanismos econômicos para explicar a impossibilidade do catching-up, dados os padrões de especialização vigentes na teoria centro-periferia, que seria a produção de bens primários pela periferia e industrializados pelo centro. Esses dois mecanismos seriam: as diferentes elasticidades-renda de bens primários e industrializados e a deterioração dos termos de troca. No primeiro caso, se os bens exportados pela periferia têm elasticidade-renda menor que os importados, abrir-se-ia com o tempo, mesmo que as taxas de crescimento do centro e periferia fossem iguais, um deficit no balanço de pagamentos. No segundo, o valor dos bens exportados pela periferia cairia em relação ao dos importados e mesmo que não houvesse o problema das elasticidades, novamente, com o tempo, surgiria um deficit na balança comercial.

Assim, se as exportações, em valor, da periferia não crescerem a taxas iguais ou maiores que as importações, num contexto em que a renda da periferia tem que crescer mais que a do centro para que haja o catching-up, mais cedo ou mais tarde o crescimento da periferia será limitado pela restrição externa.

Mesmo que não ocorresse nenhum tipo de deterioração dos termos de troca, a especialização das exportações dos países periféricos em bens com menor elasticidade-renda já seria suficiente para abortar tentativas de catch up, posto que a restrição externa impediria um crescimento da periferia superior ao do centro.15 15 Parece desafortunado que a vertente da deterioração dos termos de troca tenha tido uma repercussão não só acadêmica, mas também sociopolítica maior que o mecanismo das elasticidades-renda. A primeira, para existir, depende de uma série de fatores específicos e da existência não trivial relacionando elevação dos salários e incorporação do progresso técnico. Já o mecanismo das elasticidades decorre de uma das observações empíricas mais sólidas e não controversas da ciência econômica: a Lei de Engel. Vale anotar, também, que Furtado no debate aqui abordado e, como mencionado em citação na seção 2, corretamente aponta para a relevância da questão das elasticidades na tendência ao desequilíbrio externo.

Logo, para que possam entrar nos mercados mais dinâmicos internacionais, os países em desenvolvimento, por uma questão lógica, simplesmente não podem abrir mão de instalar setores produtores de bens de elasticidade-renda mais elevada. Esse fato, por si só, é suficiente para superar a crítica à implantação de setores industriais modernos nos países em desenvolvimento, ainda que o acesso a tais bens de consumo, num primeiro momento, não fosse extensivo a parte de suas populações. Esse acesso estaria relacionado a considerações específicas estruturais sobre cada país (como a variável populacional e a distribuição de renda), mas o importante é destacar a necessidade lógica do estabelecimento de indústrias de bens sofisticados, cuja demanda tenha maior elasticidade-renda.16 16 Pode-se colocar nesse caso tanto bens de consumo duráveis quanto bens de capital. Entretanto, historicamente, o acesso a mercados externos de bens de capital tem sido mais difícil para empresas de países que ainda avançam no seu processo de industrialização. Vide, por exemplo, o caso de Coréia e Japão (MEDEIROS, 1998, p. 300-303) e sua integração virtuosa, principalmente a partir de 1985. Recentemente, vale notar que a China vem alcançando sucesso em setores específicos como transportes (bens de capital ferroviário) e energia (placas de energia solar). O próprio caso brasileiro é curioso, uma vez que nosso maior sucesso de penetração nos mercados exteriores é de aeronaves. Apesar de se poder encontrar certos padrões de inserção externa, seria precipitado tomar tais padrões históricos como estanques e determinísticos.

É claro que num país de pequeno mercado doméstico a importância das exportações é ampliada. Ainda assim, dados os problemas de competitividade que um entrante em mercados de maior sofisticação tecnológica enfrenta, seria economicamente irracional não contar com o mercado interno para se alcançar escalas eficientes de produção. Em países com maior potencial de mercado interno, como certamente seria o caso do Brasil, uma restrição de consumo doméstico criaria uma irracional redução da demanda e, assim, um empecilho ao estabelecimento de plantas com escalas eficientes de produção.

Aliás, o próprio Prebisch percebeu com clareza tal questão ao explorar a ideia da formação de áreas de comércio regionais. Tais áreas permitiriam a países com pequeno potencial de consumo doméstico, ou incapazes de garantir escalas mínimas eficientes para implantar indústrias tecnologicamente mais sofisticadas, superar tal barreira, credenciando-se a vencer a difícil disputa por mercados internacionais.

O abandono da restrição de oferta, ou da falta de poupança pela ampliação do consumo conspícuo,17 17 Referimo-nos aqui especificamente ao consumo de bens de maior valor unitário, que refletem os padrões de consumo dos países industrializados e cuja tecnologia é dominada pelas empresas desses países. Outra forma de demanda “suntuária” seria a imobiliária pelas classes de alta renda, que, uma vez implicando em construção, teria um aspecto positivo sobre a demanda agregada, o mesmo não ocorrendo para o caso de simples especulação com terras ou aquisição de joias e outros bens não reprodutíveis. ao abrir espaço para a análise do avanço das exportações de industrializados pelos países que perseguem estratégias industrializantes, é relevante para a superação de algumas questões cruciais da teoria do desenvolvimento.

A primeira diz respeito à crítica liberal que procura contrapor as estratégias de substituição de importações a políticas orientadas para as exportações. Sem querer entrar num terreno que em si é bastante complexo, vale lembrar que a ideia de que um país que avança no seu processo de industrialização em algum momento terá que expandir suas exportações não tradicionais estava presente na reflexão dos autores que perceberam na divisão internacional, tradicional, de trabalho uma restrição ao catching-up da periferia. Prebisch defende a estratégia de substituição de importação como um instrumento que permita o avanço da exportação de bens industrializados:

[t]here is no conflict between import substitution and export promotion. Industries that begin by catering to the domestic market may, as they gain experience and efficiency, branch out into export markets. (PREBISCH, 1964PREBISCH, R. Towards a New Trade Policy for Development. Report by the Secretary-General of the UNCTAD. New York: United Nations, 1964., p. 76 apudHO, 2012HO, P. S. Revisiting Prebisch and Singer: beyond the declining terms of trade thesis and on to technological capability development. Cambridge Journal of Economics, v. 36, p. 869-893, 2012., p. 876)

De modo que:

(…) the development of the domestic market and the promotion of exports are not two alternative or mutually exclusive propositions. The two processes must take place simultaneously and in a co-ordinated manner. (PREBISCH, 1964PREBISCH, R. Towards a New Trade Policy for Development. Report by the Secretary-General of the UNCTAD. New York: United Nations, 1964., p. 115 apudHO, 2012HO, P. S. Revisiting Prebisch and Singer: beyond the declining terms of trade thesis and on to technological capability development. Cambridge Journal of Economics, v. 36, p. 869-893, 2012., p. 876)

Em verdade, a própria lógica da industrialização aponta para essa necessidade, uma vez que haveria um ponto a partir do qual a compressão do coeficiente de importação levaria à ineficiência do aparato produtivo e a superação da restrição externa passaria a depender diretamente de um bom desempenho de exportações com alta elasticidade-renda.

Como também observado inicialmente pelos mesmos autores - Prebisch e Singer - que viam na inserção centro-periferia uma restrição via Balanço de Pagamentos ao processo de catching-up, mais importante do que a capacidade produtiva em si é a formação de um núcleo tecnológico endógeno que permita ao país participar ativamente nos mercados externos de forma dinâmica e independente. Caso esse tipo de capacitação não seja alcançado, a existência de tais exportações só seria sustentável graças a diferenciais de salários contra os trabalhadores da periferia. Ademais, se os setores industriais mais dinâmicos forem de propriedade multinacional é impossível que tal capacidade de geração tecnológica endógena se estabeleça e, consequentemente, que haja um catching-up bem-sucedido, eliminando a possibilidade da convergência em consequência da reposição - apesar do avanço de um processo de industrialização - de uma restrição externa estrutural.18 18 Furtado nos anos 1970 percebeu a importante (ver BORJA, 2011) questão da propriedade das empresas dos setores dinâmicos e o catch up tecnológico. Esse problema só se tornou mais complexo com o surgimento das cadeias de valor internacional e a transformação de países, como o México, em maquilas exportadoras (ver GEREFFI, HUMPHREY e KAPLINSKY, 2001).

CONCLUSÃO

A pesquisa no campo da história do pensamento econômico pode ter como objetivo tanto fazer a análise/exegese de temas e polêmicas específicas dentro de um contorno temporal restrito ao período no qual essas ocorreram, quanto buscar, a partir de tais polêmicas, esclarecer pontos relevantes de debates atuais. Esse artigo perseguiu este duplo objetivo: sem abrir mão de considerar os pontos específicos de um debate muito importante à sua época entre Nurkse e Furtado, pretendeu, partindo de tal debate, iluminar pontos importantes para a discussão que se seguiu, e segue, sobre o desenvolvimento econômico.

Nunca é demais lembrar que a teoria do desenvolvimento, em maior ou menor grau, nasceu com a marca de “desafio” à abordagem mainstream e as políticas econômicas que inspirou podem ser classificadas como mais intervencionistas e “heterodoxas”.19 19 A dimensão de ruptura com a ortodoxia marginalista certamente variou de autor para autor, mas, em geral, pode-se defender (SERRANO e MEDEIROS, 2004) que a teoria do desenvolvimento foi, até certo ponto, uma abordagem imperfeccionista, ou seja, sublinhou aspectos de falhas de mercado no sentido convencional do termo - que gerariam externalidades fortes e justificariam uma intervenção direta do Estado - ou especificidades empíricas como a ausência histórica de escassez de mão de obra. A limitação de tal proposição é que, não havendo uma ruptura radical com os fundamentos teóricos marginalistas, sempre os autores dessa abordagem podem propor medidas para diminuir as imperfeições, mais market friendly, e caracterizarem a abordagem, em princípio alternativa, como um “caso particular”. Certamente este “pecado de origem” da teoria do desenvolvimento acabou cobrando um preço alto quando da reação conservadora já a partir dos anos 1960. Logo, suas limitações e inconsistências seriam, naturalmente, alvos diretos dos ataques da ortodoxia, no caso, não só no âmbito da academia mas também pelas instituições internacionais de fomento ao desenvolvimento, dominadas pelas ideologias e financiamentos das potências centrais.

Retomar os debates ocorridos no âmbito da teoria do desenvolvimento tem, assim, um interesse contemporâneo de ajudar a pensar estratégias alternativas de desenvolvimento, livres de eventuais incompreensões do passado. Ademais, entre as formulações dos pioneiros e a primeira década do século XXI, registraram-se substanciais avanços teóricos em áreas afins como na macroeconomia do crescimento, na microeconomia da organização industrial e na teoria do comércio exterior. Retomar uma análise do debate na década de 1950 sem considerar os avanços teóricos que lhe sucederam seria um desserviço à própria integridade intelectual dos mencionados autores, como também um motivo de enfraquecimento do debate com a tradição desenvolvimentista frente à crítica ortodoxa.

Nesse sentido, há que se voltar ao debate do “problema do consumo”, especificamente do consumo conspícuo, sob a ótica dos modelos de crescimento segundo o PDE. Sendo o gasto autônomo em consumo um componente de demanda efetiva no longo prazo, sua restrição poderia representar uma restrição à própria taxa de crescimento de longo prazo. Ademais, ao analisar a economia como restrita pelo lado da oferta no longo prazo, os autores clássicos do desenvolvimento se aproximaram, desnecessariamente, de formulações convencionais modernas marginalistas da Lei de Say, subscrevendo a existência de relações de oposição entre consumo e investimento. Não apenas teoricamente tal relação vai contra a aplicação do PDE no longo prazo, como historicamente não corresponde à experiência de países bem-sucedidos na trajetória do desenvolvimento. Nesse ponto, a convergência teórica de autores clássicos como Nurkse e Furtado deve ser relida, à luz dos avanços posteriores da teoria macroeconômica, como inadequada a formulações de políticas de crescimento acelerado/desenvolvimento econômico.

Ficou claro, também, que a posição de Furtado, coerente com sua formação cepalina quanto à questão do comércio exterior e à separação do problema de restrição externa ao crescimento da questão da “falta” de poupança doméstica, é superior na discussão de desenvolvimento econômico à visão convencional adotada por Nurkse, que levou aos limites da lógica sua fidelidade à Lei de Say clássica. Suas conclusões decorrem muito mais desse fundamento teórico (altamente problemático, como mencionado no parágrafo anterior), do que de uma adesão teórica ao princípio do livro comércio.

O insight original da Cepal, e especificamente do seu fundador Raul Prebisch, seguido por Furtado, mostrou-se historicamente mais profícuo, além de teoricamente mais próximo da crítica radical à teoria convencional do comércio exterior e também da ênfase heterodoxa na existência de uma forte restrição externa, e não de poupança, ao desenvolvimento da periferia.

Procurou-se mostrar aqui que a preocupação excessiva com certo tipo de consumo conspícuo, ou seja, o consumo de bens industriais de maior elasticidade-renda e conteúdo tecnológico, é incompatível com uma trajetória de inserção internacional sustentável. Ainda que brevemente, mostrou-se como é falsa a dicotomia entre estratégia de industrialização por substituição de importação e incentivo à exportação ou, mais precisamente, como ambas se complementam e seus pesos relativos dependem das condições estruturais/históricas de cada país.

Assim que, para obter sucesso numa inserção virtuosa do ponto de vista tecnológico, os países em desenvolvimento não podem abrir mão de desenvolver indústrias sofisticadas, sob pena de se alijarem das correntes mais dinâmicas de comércio e com maiores elasticidades-renda. Para tal, a dimensão do mercado doméstico é fundamental, como vem provando de forma irrefutável o processo de catching-up da China a partir dos anos 1980.

Se, em relação à crítica de certo tipo de consumo conspícuo (que certamente não se aplica ao caso de joias e/ou propriedades imobiliárias), a teoria do desenvolvimento tradicional incorreu em um problema de consistência interna, o mesmo não se pode dizer da relação direta entre a capacidade de produzir tais bens e o domínio de tecnologias mais sofisticadas a eles relacionadas. Os autores cepalinos perceberam desde muito cedo que a simples reprodução de alguns bens antes importados não seria suficiente para garantir o verdadeiro desenvolvimento e que o domínio das tecnologias associados a eles seria fundamental. Assim, a noção de dependência tecnológica relacionada à questão da restrição do balanço de pagamentos ao crescimento é uma das ideias de tais autores que sobrevive ao teste do tempo e às mudanças históricas e geoeconômicas a partir do último quartel do século XX. Sua observação deve, ou deveria, continuar a nortear os esforços de desenvolvimento via uma inserção internacional minimamente autônoma, em contraste com versões de vantagens comparativas e abertura irrestrita comercial, que, ao fim e ao cabo, continuam orientando tanto as leituras teóricas tanto tradicionais quanto as prescrições de política econômica de instituições internacionais de fomento.

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  • TONER, P. Main currents in cumulative causation: the dynamics of growth and development. London: Palgrave Macmillan, 1999.
  • CLASSIFICAÇÃO JEL:

    B2; E140; F130.
  • 1
    Ver Bastos e Britto (2010) e Arndt (1987).
  • 2
    As externalidades pecuniárias são um conceito central na teoria do desenvolvimento (ver BASTOS e BRITO, 2010, p. 26-29). Esse conceito decorre da existência de falhas de mercado que impedem que as firmas incorporem os sinais do sistema de preços nas suas decisões de investimento. Justifica-se, assim, uma intervenção estatal, garantindo certos investimentos que proporcionem um lucro social ou benefícios para o conjunto da economia que sejam superiores ao lucro privado de uma firma. A particularidade das externalidades pecuniárias frente às externalidades tecnológicas (ver TONER, 1999, p. 15) é que as primeiras se transmitem através de relações de compra e venda, ou seja, através das interações no mercado. Tais externalidades podem ser divididas em dois tipos: verticais, nas quais algum novo investimento gera um insumo mais barato ou de qualidade superior, ou horizontais, que se referem à interdependência dos consumidores através da elevação da renda dos mesmos (TONER, 1999, p. 18). O primeiro tipo de externalidade está presente nas ideias de crescimento desequilibrado de Hirschman, enquanto as externalidades horizontais são fundamentais como fundamento de políticas de big push ou crescimento equilibrado de Rosenstein-Rodan, sendo também defendidas por Nurkse.
  • 3
    Rompe-se, assim, com o princípio da escassez fundamental ao arcabouço teórico neoclássico.
  • 4
    Lewis (1954) alerta, no entanto, que esse processo pode ser detido antes de a acumulação de capital ter atingido a população, ou seja, ter absorvido o excedente de mão de obra no setor moderno da economia. Isso se daria - descartando-se outros motivos que estariam além do sistema de análise do autor, como movimentos sísmicos, pandemias ou revoluções sociais - no caso em que, a despeito da existência de mão de obra excedente, os salários reais se elevassem a tal ponto que a totalidade do lucros, reduzidos, fosse consumida, inviabilizando-se o investimento líquido. O autor aponta como razões para isso (LEWIS, 1954, p. 444-445) basicamente o aumento do preço dos bens de subsistência, o fato de este não diminuir tão rapidamente quanto exigiria o aumento da produtividade per capita no setor de subsistência ou, ainda, a elevação do nível de subsistência dos trabalhadores capitalistas.
  • 5
    “A Lei dos Custos Comparativos é tão válida para os países com excedente de trabalho como para os demais. Mas enquanto nos últimos representa um fundamento válido dos argumentos a favor do livre comércio, nos primeiros representa um fundamento igualmente válido dos argumentos protecionistas” (LEWIS, 1954, p. 462, nota número 15 do resumo apresentado ao final).
  • 6
    Esse debate foi publicado originalmente, pela Revista Brasileira de Economia no início dos anos 1950 e, depois, republicado pelo Centro Celso Furtado, em 2007.
  • 7
    Talvez esta seja uma das maiores limitações da teoria clássica do desenvolvimento: uma insistência com a questão da adequação da tecnologia, a ser adotada nos países em desenvolvimento, à dotação de fatores. Sem entrar no mérito de essa reflexão revelar uma forte influência marginalista, seu maior problema é, no fundo, negar a própria essência do processo de desenvolvimento econômico que é a de se buscar trajetórias tecnológicas contrárias àquelas que seriam “naturais” de acordo com a escassez relativa dos fatores de produção. Perseguir o desenvolvimento industrial é buscar implementar setores industriais capital intensivos, tecnologicamente mais dinâmicos, como bem relata Chang (2010) para os casos do Japão e Coreia, por exemplo. Nurkse (1951, p. 59) incorre nesse equívoco de forma muito clara, associando excesso de consumo e tecnologia inadequada como duas faces de uma mesma moeda.
  • 8
    Se bem que essa discussão é retomada na palestra seguinte dentro do contexto da análise do IDE.
  • 9
    Dentro desse raciocínio, para Nurkse, o IDE apenas favoreceria o mais forte, como no caso do Canada e EUA. A concentração do IDE norte-americano no Canadá, então, se explicaria pelas dimensões de mercados já expressivas neste país. Obviamente que Nurkse está pensando de forma estática e não dá conta da própria dinâmica de crescimento agregado e de surgimento de novos mercados específicos que o processo de desenvolvimento propicia; como o caso brasileiro do mercado automobilístico no final dos anos 1950.
  • 10
    Ainda segundo o mesmo autor “[a] importância que, nos textos aqui referidos, Furtado confere à poupança tem mais a ver com o longo prazo, com sua denúncia do consumismo de nossa elite endinheirada e alienada e com suas consequências em termos de orientação de investimentos. Querer enquadrá-lo numa determinada corrente é um exercício de lana caprina” (SALM, 2011, p. 188).
  • 11
    Rugitsky (2016, p. 270) apresenta análise semelhante sobre a obra de Furtado: “[h]is view of the growth process, though nuanced, is a supply-led one, in contrast to Kalecki’s and Steindl’s demand-led view. So the first question regards the availability of savings. An increasing inequality could be expected to give rise to larger savings, accelerating growth, since the rich tend to have lower propensities to consume than the poor. According to him, this did not happen in Latin America, however, especially because the elites tended to imitate the consumption pattern of the elites of the rich countries”.
  • 12
    Tal como admitiam os cepalinos para o caso da América Latina (SERRANO e MEDEIROS, 2004).
  • 13
    É fundamental que haja uma consistência entre análises históricas mais amplas e princípios macroeconômicos básicos. Tal falta de consistência e desconhecimento de avanços no campo teórico, como a aplicação do PDE ao processo de acumulação de capital, reforça visões convencionais, nas quais, por exemplo, existiria uma relação inversa entre consumo e investimento, com importantes consequências de política econômica, daninhas ao próprio crescimento.
  • 14
    Para uma análise mais detalhada sobre a questão dos bens e serviços públicos dentro da teoria do desenvolvimento, ver Oliveira e Bastos (2016) e Oliveira (2015).
  • 15
    Parece desafortunado que a vertente da deterioração dos termos de troca tenha tido uma repercussão não só acadêmica, mas também sociopolítica maior que o mecanismo das elasticidades-renda. A primeira, para existir, depende de uma série de fatores específicos e da existência não trivial relacionando elevação dos salários e incorporação do progresso técnico. Já o mecanismo das elasticidades decorre de uma das observações empíricas mais sólidas e não controversas da ciência econômica: a Lei de Engel. Vale anotar, também, que Furtado no debate aqui abordado e, como mencionado em citação na seção 2, corretamente aponta para a relevância da questão das elasticidades na tendência ao desequilíbrio externo.
  • 16
    Pode-se colocar nesse caso tanto bens de consumo duráveis quanto bens de capital. Entretanto, historicamente, o acesso a mercados externos de bens de capital tem sido mais difícil para empresas de países que ainda avançam no seu processo de industrialização. Vide, por exemplo, o caso de Coréia e Japão (MEDEIROS, 1998, p. 300-303) e sua integração virtuosa, principalmente a partir de 1985. Recentemente, vale notar que a China vem alcançando sucesso em setores específicos como transportes (bens de capital ferroviário) e energia (placas de energia solar). O próprio caso brasileiro é curioso, uma vez que nosso maior sucesso de penetração nos mercados exteriores é de aeronaves. Apesar de se poder encontrar certos padrões de inserção externa, seria precipitado tomar tais padrões históricos como estanques e determinísticos.
  • 17
    Referimo-nos aqui especificamente ao consumo de bens de maior valor unitário, que refletem os padrões de consumo dos países industrializados e cuja tecnologia é dominada pelas empresas desses países. Outra forma de demanda “suntuária” seria a imobiliária pelas classes de alta renda, que, uma vez implicando em construção, teria um aspecto positivo sobre a demanda agregada, o mesmo não ocorrendo para o caso de simples especulação com terras ou aquisição de joias e outros bens não reprodutíveis.
  • 18
    Furtado nos anos 1970 percebeu a importante (ver BORJA, 2011) questão da propriedade das empresas dos setores dinâmicos e o catch up tecnológico. Esse problema só se tornou mais complexo com o surgimento das cadeias de valor internacional e a transformação de países, como o México, em maquilas exportadoras (ver GEREFFI, HUMPHREY e KAPLINSKY, 2001).
  • 19
    A dimensão de ruptura com a ortodoxia marginalista certamente variou de autor para autor, mas, em geral, pode-se defender (SERRANO e MEDEIROS, 2004) que a teoria do desenvolvimento foi, até certo ponto, uma abordagem imperfeccionista, ou seja, sublinhou aspectos de falhas de mercado no sentido convencional do termo - que gerariam externalidades fortes e justificariam uma intervenção direta do Estado - ou especificidades empíricas como a ausência histórica de escassez de mão de obra. A limitação de tal proposição é que, não havendo uma ruptura radical com os fundamentos teóricos marginalistas, sempre os autores dessa abordagem podem propor medidas para diminuir as imperfeições, mais market friendly, e caracterizarem a abordagem, em princípio alternativa, como um “caso particular”. Certamente este “pecado de origem” da teoria do desenvolvimento acabou cobrando um preço alto quando da reação conservadora já a partir dos anos 1960.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Dez 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    24 Jan 2019
  • Aceito
    26 Ago 2019
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