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Limites e possibilidades vivenciados por enfermeiras no tratamento de mulheres 
com úlcera venosa crônica* * Extraído do trabalho “Adesão ao tratamento da úlcera venosa crônica: perspectiva da mulher”, 1ª Mostra de Trabalhos do Programa de Pós-Graduação em Enfermagem, Escola de Enfermagem, Universidade de São Paulo, 2013

Resumos

Objetivo

Compreender as experiências e expectativas de enfermeiras no tratamento de mulheres com úlcera venosa crônica na Atenção Primária à Saúde.

Método

Pesquisa fundamentada na fenomenologia social de Alfred Schütz, com depoimentos obtidos em janeiro de 2012, por meio de entrevista semiestruturada com sete enfermeiras.

Resultados

As enfermeiras revelam dificuldades apresentadas pelas mulheres com úlcera venosa crônica para realizar o autocuidado, percebem limitações na terapêutica ancoradas na desmotivação e nos valores e crenças das mulheres. Referem frustração profissional em razão da recidiva da lesão, falta de insumos e tecnologia, de trabalho interdisciplinar e da capacitação da equipe de enfermagem. Esperam a adesão das mulheres ao tratamento e ressaltam a necessidade do cuidado contínuo, do autocuidado apoiado e da padronização de condutas no tratamento.

Conclusão

O tratamento da úlcera venosa crônica constitui-se em um desafio que requer investimento coletivo, envolvendo a mulher, os profissionais, os gestores e as instituições de saúde.

Mulheres; Úlcera varicosa; Cuidados de enfermagem; Adesão ao tratamento; Atenção Primária à Saúde; Pesquisa qualitativa


Objective

To understand the experiences and expectations of nurses in the treatment of women with chronic venous ulcers.

Method

Phenomenological research was based on Alfred Schütz, whose statements were obtained in January, 2012, through semi-structured interviews with seven nurses.

Results

The nurse reveals the difficulties presented by the woman in performing self-care, the perceived limitations in the treatment anchored in motivation, and the values and beliefs of women. It showed professional frustration because venous leg ulcer recurrence, lack of inputs, interdisciplinary work and training of nursing staff. There was an expected adherence to the treatment of women, and it emphasized the need for ongoing care, supported self-care and standard practices in treatment.

Conclusion

That treatment of chronic venous leg ulcers constitutes a challenge that requires collective investment, involving women, professionals, managers and health institutions.

Women; Varicose ulcer; Nursing care; Adherence to treatment; Primary Health Care; Qualitative research


Objetivo

Comprender las experiencias y expectativas de enfermeras en el tratamiento de mujeres con úlcera venosa crónica.

Método

Investigación fenomenológica fundamentada en Alfred Schutz, que buscó Se realizó entrevista semiestructurada con siete enfermeras, en enero del 2012.

Resultados

La enfermera revela dificultades presentadas por la mujer para realizar el autocuidado, percibe limitaciones en el tratamiento relacionadas con la desmotivación, los valores y las creencias de las mujeres. Refiere frustración profesional debido a la recidiva de la lesión, a la falta de insumos, al deficiente trabajo interdisciplinar y a la limitada capacitación del equipo de enfermeras. Espera la adhesión de la mujer al tratamiento y resalta la necesidad del cuidado continuo, del autocuidado apoyado y de estandarizar conductas de tratamiento.

Conclusión

El tratamiento de la úlcera venosa crónica es un desafío que requiere contribución colectiva, involucrando a las mujeres, a los profesionales, a los gestores y a las instituciones de salud.

Mujeres; Úlcera varicosa; Atención de enfermería; Adherencia al tratamiento; Atención Primaria de Salud; Investigación cualitativa


Introdução

A A úlcera venosa crônica (UVC) constitui o maior problema terapêutico das lesões de membros inferiores(101 Lazarus G, Valle MF, Malas M, Qazi U, Maruthur NM, Doggett D, et al. Chronic venous leg ulcer treatment: future research needs. Wound Repair Regen. 2014;22(1):34-42), sendo mais prevalente em mulheres acima dos 65 anos de idade(202 Souza EM, Yoshida WB, Melo VA, Aragão JA, de Oliveira LA. Ulcer due to chronic venous disease: a sociodemographic study in northeastern Brazil. Ann Vasc Surg. 2013;27(5):571-6). A ocorrência desse tipo de lesão pode desencadear várias mudanças na rotina da mulher, que, a partir da doença, tem necessidade de alterar seus padrões e estilo de vida. Além da dor e da inabilidade para desempenhar determinadas funções, ocorre um déficit na autoestima, agravado pela vaidade feminina e pelos padrões de beleza estabelecidos pela sociedade(303 Waidman MAP, Rocha SC, Correa JL, Brischiliari A, Marcon SS. O cotidiano do indivíduo com ferida crônica e sua saúde mental. Texto Contexto Enferm. 2011;20(4):691-9).

Essas considerações mostram que a questão do gênero deve ser considerada no cuidado à pessoa com UVC, merecendo a mulher uma atenção específica por parte do profissional que a assiste. Nesse contexto, insere-se a enfermeira, cuja formação valoriza o cuidado à pessoa com feridas, situando-o de modo diferenciado em relação aos demais profissionais de saúde(404 Dutton M, Chiarella M, Curtis K. The role of the wound care nurse: an integrative review. Br J Community Nurs. 2014;19 Suppl:S39-47).

A Atenção Primária à Saúde (APS) é um cenário em que o cuidado com feridas crônicas faz parte do cotidiano das enfermeiras, sendo diariamente dispensado um tempo considerável para a assistência às pessoas com UVC(505 Gardner S. The use of a new two-in-one treatment (K Two Start) in a venous leg ulcer. Br J Community Nurs. 2009;14(12):S24-5). Estudos realizados na Suécia mostram a experiência da enfermeira no tratamento de feridas no contexto da APS e ressaltam quanto o cuidado com essas lesões se constitui desafiador, considerando-se os fatores dificultadores nele imbricados(606 Friman A, Klang B, Ebbeskog B. Wound care in primary health care: district nurses’ needs for co-operation and well-functioning organization. J Interprof Care. 2010;24(1):90-9-707 Friman A, Klang B, Ebbeskog B. Wound care by district nurses at primary healthcare centres: a challenging task without authority or resources. Scand J Caring Sci. 2011;25(3):426-34).

Um estudo realizado com profissionais de saúde do Reino Unido e dos Estados Unidos revelou que o cuidado às pessoas com UVC é, muitas vezes, acompanhado de frustração e insatisfação, devido aos resultados incertos do tratamento. Os profissionais daquele estudo atribuíram a não adesão das pessoas ao tratamento da UVC a fatores como não cooperação e desmotivação à terapêutica. Além disso, evidenciaram-se limitações de tempo e/ou conhecimento por parte da enfermeira, o que a impede de elaborar estratégias efetivas de adesão ao tratamento(808 Cullen GH, Phillips TJ. Clinician’s perspectives on the treatment of venous leg ulceration. Int Wound J. 2009;6(5):367-78).

A adesão ao estilo de vida requerido para a pessoa com UVC pode ser influenciada pela relação de confiança estabelecida entre ela e a enfermeira(909 Van Hecke A, Grypdonck M, Defloor T. Review of why patients with leg ulcers do not adhere to treatment. J Clin Nurs. 2009;18(3):337-49-1010 Van Hecke A, Verhaeghe S, Grypdonck M, Beele H, Defloor T. Processes underlying adherence to leg ulcer treatment: a qualitative field study. Int J Nurs Stud. 2011;48(2):145-55). Portanto, pressupõe-se que a relação de cuidado, mediada pela confiança entre os sujeitos nela envolvidos, inscreve-se como importante instrumento de adesão da mulher ao tratamento proposto pela enfermeira.

A partir dessas considerações, as seguintes questões nortearam este estudo: como a enfermeira cuida das mulheres com úlcera venosa crônica? Quais as expectativas da enfermeira ao cuidar das mulheres com UVC? Objetivou-se, desse modo, compreender as experiências e expectativas da enfermeira no cuidado à mulher com UVC na APS.

A reflexão acerca da realidade vivenciada por enfermeiras no cuidado às mulheres com UVC poderá contribuir para o conhecimento em enfermagem no que se refere ao trabalho desempenhado pela profissão, visando à qualidade da assistência a essa clientela.

Método

Esta pesquisa qualitativa foi fundamentada no referencial teórico-metodológico da fenomenologia social de Alfred Schütz. Os pressupostos teóricos (mundo social, situação biográfica, bagagem de conhecimentos, intersubjetividade, ação e tipificação) guiaram a análise e discussão dos resultados(1111 Schutz A, Luckmann T. Las estructuras del mundo de la vida. Buenos Aires: Amorrortu; 2009). Esse referencial tem como cerne a teoria da ação social entendida como precursora das mudanças ocorridas no mundo cotidiano. A ação acontece baseada em motivos existenciais ligados ao passado e ao presente vivido (motivos por que) e às projeções que se constituem na possibilidade da ação propriamente dita (motivos para). Tem a tipificação como matriz conceitual de sentido comum que traduz a ação de um determinado grupo social.

Trata-se de um estudo realizado nos serviços de APS, de um município de Minas Gerais, Brasil, que incluiu sete enfermeiras que cuidavam diretamente dos usuários com UVC. Quinze enfermeiros foram contatados via telefone e convidados a participar da pesquisa; entretanto, seis recusaram ser entrevistados e dois foram excluídos, já que seus depoimentos foram insuficientes para responder às questões de pesquisa e ao objetivo da investigação.

Os depoimentos foram obtidos em fevereiro de 2012, por meio de uma entrevista gravada, contendo as seguintes questões abertas: como é para você cuidar de mulheres com úlcera venosa crônica? Fale-me das suas expectativas quando cuida de uma mulher com úlcera venosa crônica.

As entrevistas foram realizadas em dias e horários definidos pelas enfermeiras nas unidades de saúde onde desenvolviam suas atividades profissionais, tendo sido encerradas quando as inquietações foram respondidas e os objetivos do estudo, alcançados.

As enfermeiras que concordaram em participar receberam todas as informações sobre a pesquisa e assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Para garantir o anonimato, as participantes foram identificadas com a letra E, seguida de números arábicos de 1 a 7.

Procedeu-se à organização e categorização do material, de acordo com pesquisadores da fenomenologia social de Alfred Schütz(1212 Jesus MCP, Capalbo C, Merighi MAB, Oliveira DM, Tocantins FR, Rodrigues BMRD, et al. The social phenomenology of Alfred Schütz and its contribution for nursing. Rev Esc Enferm USP [Internet]. 2013 [cited 2014 Mar 25];47(3):736-41. Available from: http://www.scielo.br/pdf/reeusp/v47n3/en_0080-6234-reeusp-47-3-00736.pdf
http://www.scielo.br/pdf/reeusp/v45n1/en...
). Com vistas à identificação e apreensão do sentido global da experiência do enfermeiro no que tange ao cuidado da mulher com UVC, cada depoimento foi lido na íntegra. Em seguida realizou-se o agrupamento do conteúdo significativo extraído dos discursos para composição das categorias concretas do vivido – síntese objetiva dos diferentes significados da ação que emergiram da vivência das participantes do estudo. Posteriormente, passou-se à discussão das categorias à luz da Fenomenologia Social de Alfred Schütz e da literatura relacionada ao tema.

Este estudo foi submetido à apreciação do Comitê de Ética e Pesquisa da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo, com Parecer favorável nº 1.109/2011.

Resultados

As características biográficas dos sujeitos incluíram: idade entre 35 e 50 anos, sexo feminino, todas especialistas (seis em Saúde da Família e duas Estomaterapeutas). O tempo de trabalho na APS variou de cinco a 20 anos. Todas receberam capacitação para o cuidado de feridas em curso oferecido pela Secretaria de Saúde do município.

Os motivos por que revelam o contexto de experiências da enfermeira no cuidado à mulher que convive com UVC, sendo traduzido pela categoria Tratamento limitado.

Ao refletir sobre o cuidado necessário à mulher com UVC, a enfermeira descreve os fatores dificultadores que devem ser considerados no planejamento e na efetivação da terapêutica. A profissional considera que a mulher prioriza o cuidado doméstico e com os familiares – papéis socialmente a ela conferidos – em detrimento do seu autocuidado:

(...) muitas vezes, elas se submetem às atividades domésticas e a ferida fica como uma coisa secundária. Elas cuidam dos outros e não cuidam delas mesmas (E4).

A profissional aponta que as crenças e mitos da mulher constituem fatores limitadores para o tratamento da UVC. Tais limites repercutem principalmente na dificuldade de adesão à terapêutica necessária:

(...) uma senhora tem a úlcera há mais de 15 anos (...) Quando a úlcera começa a cicatrizar, ela interrompe o tratamento. (...) tem toda uma questão de crença nisso. Ela tem medo de morrer se a ferida fechar (E2).

O caráter recidivo da UVC e as diversas tentativas frustradas de tratamento foram evidenciados como fatores que desmotivam a adesão à terapêutica:

(...) quando a gente começa a falar de um tratamento diferenciado, elas não levam muita fé. Talvez porque já passaram por diversos profissionais, já tiveram vários tratamentos diferentes (E3).

Ao referir sobre a frustração diante da constante recidiva da ferida, as entrevistadas ressaltam a importância do envolvimento da mulher no tratamento:

(...) quando a paciente retorna com a ferida aberta, eu fico frustrada. Essa recidiva está ligada com o comprometimento dela com o tratamento, com o nível de conhecimento daquilo que está acontecendo com ela (...) (E5).

Foi também salientada a falta de infraestrutura para o cuidado de feridas nos serviços de APS:

(...) a cliente está aqui há anos e nada foi feito para melhorar a oferta de insumos para o tratamento (E1).

As participantes salientam limites relacionados ao trabalho interdisciplinar no cuidado à mulher com UVC. Entre eles, a maior credibilidade que esta confere ao cuidado médico, a falta de parceria entre esse profissional e a enfermeira, além da divergência de condutas entre os diferentes profissionais:

(...) a paciente ainda acredita muito no médico (...) (E3).

(...) uma mulher tinha resistência ao que a gente falava com ela (...) um dia eu tive uma conversa com ela e disse que não faria um procedimento com uma prescrição que eu não concordava. (...) Só continuaria assumindo o curativo dela se aceitasse minha conduta (E5).

A enfermeira demonstra preocupação com a qualificação da equipe de enfermagem para o tratamento de pessoas com UVC. Reconhece que muitos profissionais delegam essa atividade aos membros da equipe de enfermagem, na maioria das vezes, sem capacitação para tal:

(...) a equipe de enfermagem não tem um treinamento, e muitos enfermeiros deixam o cuidado da úlcera venosa à mercê dos técnicos de enfermagem (E6).

Tendo em vista os limites evidenciados no tratamento da mulher com UVC, a enfermeira lança expectativas relacionadas ao cuidado a essa clientela (motivos para), traduzidas pela categoria Adesão ao tratamento.

A adesão ao tratamento almejada pela enfermeira se refere não somente ao momento em que a mulher está com a ferida aberta, mas também ao cuidado contínuo que ela deve ter ao longo da vida para prevenir recidivas:

(...) espero que a mulher seja mais adepta ao tratamento (...) se conscientize da doença, já que é uma doença crônica, que vai ter que ser controlada (...) (E2).

As profissionais acreditam que a orientação bem conduzida pode se desdobrar na efetividade do autocuidado e da adesão ao tratamento:

(...) percebo que, para cuidar de uma mulher com úlcera venosa, é preciso ter persistência (...) se desistir na primeira dificuldade, ela nunca vai aderir. (...) parar, explicar para a paciente o que está acontecendo e as consequências de ficar com a ferida (E4).

As participantes do estudo desejam ter um serviço de referência como suporte, a fim de mais bem desenvolverem o cuidado. Além disso, referem-se à padronização de condutas no tratamento de feridas, bem como à oferta de materiais e insumos necessários para amparar o trabalho a ser realizado:

(...) o município precisa ter um centro especializado em tratamento de feridas (E1).

(...) a gente percebe a necessidade de padronizar o tratamento, como as coberturas, as botas de Unna (E3).

As enfermeiras consideram que a adesão ao tratamento resultará em cicatrização da UVC sem recidivas, o que permitirá à mulher retomar suas atividades cotidianas, antes afetadas pela ferida, conferindo-lhe maior qualidade de vida:

(...) minha expectativa é ver a ferida bem fechada e a paciente se sentindo bem (...) elas ficam presas àquela ferida, e, quando a ferida fecha, elas se sentem mais livres, elas voltam aos afazeres (...) (E4).

O conjunto de categorias deste estudo que congregam os motivos por que e os motivos para do grupo de enfermeiras que cuidam da mulher com UVC permitiu a tipificação dessa profissional como sendo aquela que percebe as dificuldades da mulher para realizar o autocuidado e que aponta as limitações da terapêutica, muitas vezes prejudicada por valores e crenças relacionadas à ferida, desmotivação da mulher e a própria frustração, principalmente em razão da recidiva da lesão. Tais limitações incluem ainda a falta de insumos e tecnologia, do trabalho interdisciplinar e capacitação da equipe de enfermagem. A enfermeira tem como expectativa a adesão da mulher ao tratamento da UVC, ressaltando a necessidade do cuidado contínuo, do autocuidado apoiado e da padronização de condutas no tratamento de feridas para evitar as recidivas da lesão, o que propiciaria à mulher maior qualidade de vida.

Discussão

Foram evidenciadas características típicas na ação da enfermeira que cuida da mulher com UVC, que incluem a valorização do autocuidado para o êxito do tratamento e o reconhecimento das limitações para a implementação da terapêutica necessária.

A experiência dessa profissional no tratamento da UVC evidencia limitações decorrentes de crenças e valores de pessoas com essa afecção, interferindo em como a mulher percebe a ferida e nas expectativas em relação a seu tratamento e cura. A ideia de que a cura da ferida não aconteça permeia constantemente as crenças do paciente. Essa dúvida ou descrença está fortemente ligada à duração da ferida, assim como aos métodos e tentativas de terapêutica ineficazes(303 Waidman MAP, Rocha SC, Correa JL, Brischiliari A, Marcon SS. O cotidiano do indivíduo com ferida crônica e sua saúde mental. Texto Contexto Enferm. 2011;20(4):691-9). Isso traz desdobramentos importantes, à medida que a descrença do usuário gera uma perspectiva também desencantada da enfermeira, ao cuidar desse público(303 Waidman MAP, Rocha SC, Correa JL, Brischiliari A, Marcon SS. O cotidiano do indivíduo com ferida crônica e sua saúde mental. Texto Contexto Enferm. 2011;20(4):691-9,1313 Reis DB, Peres GA, Zuffi FB, Ferreira LA, Dal Poggetto MT. Cuidados aos portadores de úlcera venosa: percepção dos enfermeiros da Estratégia de Saúde da Família. REME Rev Min Enferm. 2013;17(1):101-6).

Tal descrença profissional foi evidenciada no presente estudo. O fato de não alcançar, com o usuário, a cicatrização da UVC lhe provoca sentimentos de frustração. Quando as ações de cuidado da enfermeira não alcançam o objetivo proposto – a cicatrização da ferida –, a frustração é inevitável(909 Van Hecke A, Grypdonck M, Defloor T. Review of why patients with leg ulcers do not adhere to treatment. J Clin Nurs. 2009;18(3):337-49). Esta é um tema emergente de um estudo que retratou experiências de profissionais de saúde envolvidos no cuidado da UVC. Em geral, estes se esforçam para prestar um cuidado efetivo ao usuário, mas reconhecem que há muitos fatores relacionados à adesão ao tratamento que transcendem o domínio do profissional(808 Cullen GH, Phillips TJ. Clinician’s perspectives on the treatment of venous leg ulceration. Int Wound J. 2009;6(5):367-78).

Os conhecimentos adquiridos ao longo da vida, somados às experiências profissionais, subsidiam a enfermeira a compreender as questões relacionadas ao tratamento da UVC e a elaborar propostas para a melhoria desse tratamento.

A bagagem de conhecimentos constitui um esquema de referência para compreensão do mundo e planejamento de atividades futuras. A situação biográfica parte do ponto de vista do sujeito sobre as coisas desse mundo. Contudo, seus projetos e sistemas de escolhas, embora distintos, mostram-se comuns na vida prática, a partir da intersubjetividade – relações de uns com os outros no mundo social, de forma consciente e intencional(1111 Schutz A, Luckmann T. Las estructuras del mundo de la vida. Buenos Aires: Amorrortu; 2009).

As enfermeiras evidenciam que, na prática, existe um limite importante estabelecido que repercute em maior credibilidade das mulheres nas condutas médicas e na relação interdisciplinar, fragilizada pela ausência de confiança e respeito do médico no seu trabalho. Isso culmina em divergências de condutas que implicam o cuidado às mulheres com UVC. A assistência à pessoa com feridas deve ser conduzida por um trabalho interdisciplinar. Isso pressupõe a participação de todos, tendo em vista que cada um assume um papel de relevância para a efetividade do cuidado(1414 Health Quality Ontario. Community-based care for chronic wound management: an evidence-based analysis. Ont Health Technol Assess Ser. 2009;9(18):1-24).

É importante destacar que o trabalho interdisciplinar, quando de fato envolve a participação e comunicação efetiva de todos os profissionais, diminui a possibilidade de que sejam tomadas condutas diferenciadas em uma mesma situação de cuidado. A esse respeito, um estudo mostrou que o trabalho multidisciplinar, com comunicação efetiva entre os membros da equipe, aumentou a possibilidade de cicatrização e reduziu a severidade dos desconfortos relacionados à presença das lesões(1414 Health Quality Ontario. Community-based care for chronic wound management: an evidence-based analysis. Ont Health Technol Assess Ser. 2009;9(18):1-24).

As entrevistadas ressaltam ainda a falta de um serviço de saúde que forneça à mulher uma estrutura que lhe permita realizar o tratamento da UVC com os insumos adequados. O cuidado à saúde das pessoas com feridas se apresenta como um desafio a ser enfrentado cotidianamente, tanto por quem vivencia o problema quanto pelos profissionais de saúde(1515 Silva MH, Jesus MCP, Merighi MAP, Oliveira DM, Santos SMR, Viente EJD. Clinical management of venous ulcers in primary health care. Acta Paul Enferm. 2012;25(3):329-33).

Existe uma vasta gama de produtos e instrumentos disponíveis no mercado, porém não necessariamente ao alcance dos profissionais de saúde, o que pode trazer implicações à qualidade do cuidado direcionado às pessoas com feridas. O acesso a recursos materiais adequados, a treinamentos específicos e ao desenvolvimento de um trabalho interdisciplinar é um fator indispensável aos profissionais, para que viabilizem as condições necessárias ao estabelecimento de condutas terapêuticas eficazes(1515 Silva MH, Jesus MCP, Merighi MAP, Oliveira DM, Santos SMR, Viente EJD. Clinical management of venous ulcers in primary health care. Acta Paul Enferm. 2012;25(3):329-33).

Outra limitação importante diz respeito à falta de conhecimento e capacitação da equipe de enfermagem para o cuidado às mulheres com UVC. Não só o pessoal de nível médio, mas também enfermeiros graduados necessitam de capacitação para realizar esse cuidado. A enfermeira generalista comumente tem dificuldade em proceder à avaliação, ao diagnóstico e tratamento da UVC. Isso está atrelado à falta de experiência e de treinamento específico, confirmando-se a possível insuficiência de conhecimentos nessa área(909 Van Hecke A, Grypdonck M, Defloor T. Review of why patients with leg ulcers do not adhere to treatment. J Clin Nurs. 2009;18(3):337-49).

O tratamento da UVC demanda tempo e investimento da enfermeira, a qual tem como expectativa a adesão da usuária, incluindo o tratamento da ferida e da doença subjacente para se obter a cicatrização. Essa expectativa está diretamente relacionada às suas motivações existenciais, que a impulsionam a realizá-lo. A partir da referência inicial e de elementos constitutivos da vivência cotidiana, a pessoa se situa no mundo social e tem por fundamento motivações existenciais para realizar ou não uma dada ação(1111 Schutz A, Luckmann T. Las estructuras del mundo de la vida. Buenos Aires: Amorrortu; 2009). A ação definida como a conduta humana projetada de maneira autoconsciente é dotada de propósito, podendo ser manifesta ou latente, positiva ou negativa(1111 Schutz A, Luckmann T. Las estructuras del mundo de la vida. Buenos Aires: Amorrortu; 2009).

Para que a enfermeira possa dar continuidade ao propósito de adesão da mulher ao tratamento, é necessário que os fatores que apontou como limites do cuidar se transformem em possibilidades. Nesse contexto, demarca-se a importância do seu comprometimento na educação do usuário(1616 Moffatt C, Kommala D, Dourdin N, Choe Y. Venous leg ulcers: patient concordance therapy and its impact on healing and prevention of recurrence. Int Wound J. 2009;6(5):386-93), a fim de que possa se corresponsabilizar no cuidado da ferida.

Um estudo realizado na Austrália apontou uma compreensão deficitária dos pacientes com UVC no tocante ao autocuidado, o que sugere a necessidade de educação desse público para sua condição de saúde. Essa sugestão decorre do fato de que a maioria dos participantes desconhecia a insuficiência venosa crônica como causa da sua ferida, atribuindo a ocorrência a problemas locais ou sistêmicos da pele e a traumas de membro inferior não relacionados ao aparecimento da lesão(1717 Finlayson K, Edwards H, Courtney M. The impact of psychosocial factors on adherence to compression therapy to prevent recurrence of venous leg ulcers. J Clin Nurs. 2010;19(9-10):1289-97).

Entretanto, para se tornarem autocuidadoras, as pessoas necessitam ter uma compreensão da condição crônica que querem prevenir ou melhorar e automotivação para aderirem a comportamentos saudáveis. Ou seja, bons autocuidadores são pessoas informadas e proativas. Para isso, devem ser apoiados por meio de atividades que objetivam prover informações sobre a prevenção e o manejo da condição crônica. Para que o autocuidado se dê com efetividade, o portador da condição crônica deve ter o apoio da família, dos amigos, das organizações comunitárias e, especialmente, da equipe multiprofissional da APS(1818 Mendes EV. O cuidado das condições crônicas na atenção primária à saúde: o imperativo da consolidação da estratégia da saúde da família. Brasília: Organização Pan-Americana da Saúde; 2012).

Ao ter como expectativa a adesão ao plano de cuidados proposto, a enfermeira também espera que a mulher, ao conseguir a cicatrização da ferida, possa melhorar sua qualidade de vida. Tal projeto tem como fundamento o fato de as feridas afetarem a vida da pessoa em todas as suas esferas, com impacto negativo sobre a qualidade de vida(1919 Yamada BFA, Santos VLCG. Development and validation of Ferrans & Powers Quality of Life Index - Wound version. Rev Esc Enferm USP [Internet]. 2009 [cited 2014 Mar 25];43(n.spe):1105-13. Available from: http://www.scielo.br/pdf/reeusp/v43nspe/en_a15v43ns.pdf
http://www.scielo.br/pdf/reeusp/v43nspe/...
).

Entretanto, para que suas expectativas possam ser concretizadas, a enfermeira propõe a criação de um serviço que a apoie, oferecendo-lhe a estrutura física e organizacional, além de insumos necessários para que o cuidado seja efetivado. O apoio do serviço baseia-se, fundamentalmente, na promoção de um ambiente de trabalho que tenha como uma de suas prioridades a criação de políticas voltadas para as pessoas com feridas crônicas. Isso deverá acontecer da esfera municipal à federal, tendo em vista que a cada uma delas cabe a gestão de aspectos primordiais na área da prestação de cuidados(505 Gardner S. The use of a new two-in-one treatment (K Two Start) in a venous leg ulcer. Br J Community Nurs. 2009;14(12):S24-5).

Insere-se nesse sentido a criação de serviços especializados e integrados à APS, tendo como premissa assumir os casos que transcendem a resolutividade desse nível de atenção. Um acompanhamento individualizado e especializado, como o que se realiza em centros de referência, poderá ser de grande valia(101 Lazarus G, Valle MF, Malas M, Qazi U, Maruthur NM, Doggett D, et al. Chronic venous leg ulcer treatment: future research needs. Wound Repair Regen. 2014;22(1):34-42).

De acordo com a enfermeira da APS, serviços especializados para o tratamento de feridas crônicas incluem a adoção de protocolos que possam padronizar as condutas dos profissionais para qualificar o tratamento das pessoas com UVC. Esse protocolo deve nortear o cuidado aos clientes com feridas, com a educação permanente dos profissionais que atuam na APS, tornando o trabalho destes mais produtivo e econômico, com direcionamento das práticas clínicas voltadas para o tratamento da UVC(2020 Dantas DV, Torres GV, Dantas RAN. Assistência aos portadores de feridas: caracterização dos protocolos existentes no Brasil. Ciênc Cuid Saúde. 2011;10(2):366-72).

As contribuições deste estudo acontecem, fundamentalmente, pela dimensão da abordagem não reducionista circunscrita ao cuidado da mulher com UVC pela enfermeira, emersa a partir da fenomenologia social de Alfred Schütz. Sob esse prisma se evidenciou que os limites e as possibilidades que permeiam o cuidado se relacionam aos diversos sujeitos, instituições e políticas de saúde nele envolvidos.

A mulher é mais acometida pela UVC e está expressivamente presente nos serviços de APS, fato que reitera a importância de estudos que esclareçam como o cuidado a essa clientela tem sido realizado pelos profissionais de saúde que atuam nesse nível de atenção, com destaque para a enfermeira.

Este estudo apresenta como limitação o fato de ter sido desenvolvido com um grupo de enfermeiras que atuavam na APS em cenários e realidades específicos. Nesse sentido, seus achados podem divergir de outras realidades que não retratam a experiência vivenciada pelas enfermeiras desta investigação, inviabilizando, portanto, a generalização dos resultados.

Conclusão

O presente estudo reforçou a necessidade de a enfermeira considerar as especificidades da mulher no planejamento e realização do cuidado, buscando adequar as prescrições ao cotidiano feminino, com vistas à adesão ao tratamento da UVC.

A enfermeira se vê muitas vezes limitada para cuidar da UVC, e tais limites se encontram instalados em aspectos relacionados à cronicidade da lesão, às especificidades da mulher e ao serviço, incluindo a equipe multiprofissional envolvida nesse cuidado. Diante disso, observa-se a necessidade de considerar e trabalhar os meandros referentes à desmotivação da mulher e da enfermeira no tratamento da UVC, a fim de que possam superar esses limites e, de modo recíproco, se voltar para as reais possibilidades de cuidar da lesão.

A não congruência observada entre o serviço e a equipe de saúde leva a considerar a premente urgência de uma política de saúde voltada para o atendimento de pessoas com lesões crônicas na APS. Um serviço organizado, com infraestrutura adequada, profissionais qualificados e integrados, pode trazer desdobramentos positivos na assistência a essa clientela.

A expectativa da enfermeira quanto à adesão da mulher ao tratamento da UVC deve se constituir em um investimento coletivo dos profissionais de saúde, gestores e instituições responsáveis por seu atendimento. Isso poderá trazer reflexos positivos para a qualidade de vida desse público.

Espera-se que esta pesquisa possibilite reflexões e ações no âmbito assistencial, do ensino e da pesquisa no que tange ao cuidado da mulher com UVC. Essas ações devem fundamentar a aplicação do conhecimento deste estudo nos referidos âmbitos, valorizando os diversos aspectos objetivos e subjetivos entremeados no cuidado a essa mulher.

  • *
    Extraído do trabalho “Adesão ao tratamento da úlcera venosa crônica: perspectiva da mulher”, 1ª Mostra de Trabalhos do Programa de Pós-Graduação em Enfermagem, Escola de Enfermagem, Universidade de São Paulo, 2013

References

  • 01
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  • 02
    Souza EM, Yoshida WB, Melo VA, Aragão JA, de Oliveira LA. Ulcer due to chronic venous disease: a sociodemographic study in northeastern Brazil. Ann Vasc Surg. 2013;27(5):571-6
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    Dutton M, Chiarella M, Curtis K. The role of the wound care nurse: an integrative review. Br J Community Nurs. 2014;19 Suppl:S39-47
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Ago 2014

Histórico

  • Recebido
    20 Mar 2014
  • Aceito
    06 Jul 2014
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