Vulnerabilidade e promoção da saúde de imigrantes haitianos: reflexões pela práxis dialógica de Paulo Freire

RESUMO

Objetivo:

Compreender as percepções dos imigrantes haitianos sobre as possibilidades para promover a saúde, diante das vulnerabilidades que vivenciam.

Método:

Estudo qualitativo, do tipo ação-participante, fundamentado no Itinerário de Pesquisa de Paulo Freire, que possui três fases: investigação temática; codificação e descodificação; desvelamento crítico. Participaram do Círculo de Cultura dez imigrantes haitianos, estudantes de uma universidade pública do Brasil.

Resultados:

Diante das vulnerabilidades, os imigrantes haitianos revelaram a necessidade de participar dos grupos sociais universitários, ter momentos de integração com brasileiros, conhecer seus direitos, ter domínio da língua portuguesa, adaptar-se aos aspectos socioculturais e à culinária, promover a saúde mental e qualidade de vida por meio de atividades físicas e lazer.

Conclusão:

As discussões possibilitaram o processo de ação-reflexão-ação, em que os imigrantes ressignificaram sua realidade, buscando estratégias para promover saúde e empoderando-se para a busca de uma vida mais saudável.

DESCRITORES
Imigração; Vulnerabilidade; Promoção da Saúde; Equidade em Saúde; Qualidade de Vida; Enfermagem em Saúde Pública

ABSTRACT

Objective:

To understand the perceptions of Haitian immigrants about the possibilities to promote health, in the face of the vulnerabilities they experience.

Method:

This is a qualitative, participatory action study, based on Paulo Freire's Research Itinerary, which has three phases: thematic investigation; encoding and decoding; critical unveiling. Ten Haitian immigrants, students of a public university in Brazil, participated in the Culture Circle.

Results:

In the face of vulnerabilities, Haitian immigrants expressed the need to participate in university social groups, to have moments of integration with Brazilians, to know their rights, to master the Portuguese language, to adapt socially and culturally and to the food, to engage in the promotion of mental health and quality of life through physical activities and leisure.

Conclusion:

The discussions led to a process of action-reflection-action, in which immigrants reframed their reality, looking for strategies to promote health and empowering themselves in the search for a healthier life.

DESCRIPTORS
Immigration; Vulnerability; Health Promotion; Health Equity; Quality of Life; Public Health Nursing

RESUMEN

Objetivo:

Comprender las percepciones de los inmigrantes haitianos sobre las posibilidades de promover la salud, frente a las vulnerabilidades que enfrentan.

Método:

Estudio cualitativo, de tipo acción-participante, fundamentado en el Itinerario de Investigación de Paulo Freire, que comprende tres fases: investigación temática; codificación y descodificación; y exposición crítica. Participaron en el Círculo de Cultura diez inmigrantes haitianos, estudiantes en una universidad pública de Brasil.

Resultados:

Frente a las vulnerabilidades, los inmigrantes haitianos revelaron la necesidad de participar en los grupos sociales universitarios, de tener momentos de integración con los brasileños, de conocer sus derechos, de dominar la lengua portuguesa, de adaptación sociocultural y culinaria, de promoción de la salud mental y de calidad de vida a través de actividades físicas y de ocio.

Conclusión:

Las discusiones permitieron el proceso de acción-reflexión-acción, en el cual los inmigrantes resignificaron su realidad, buscando estrategias para promover la salud y empoderándose para la búsqueda de una vida más sana.

DESCRIPTORES
Inmigración; Vulnerabilidad; Promoción de la Salud; Equidad en Salud; Calidad de Vida; Enfermería en Salud Pública

INTRODUÇÃO

Os fluxos migratórios no mundo passaram a integrar as políticas internacionais de proteção aos direitos humanos. No Brasil, eles estão presentes há décadas, acompanhando o processo de civilização política e econômica. O tema vem sendo debatido nas políticas brasileiras, principalmente com o número significativo de imigrantes haitianos que se deslocam ao país, intensificado após o governo brasileiro selar um acordo com o Haiti, nação mais pobre da América Latina, concedendo-lhes o visto humanitário a partir de 2012⁽¹⁾.

O Brasil contava, em 2016, com 73 mil haitianos registrados na Polícia Federal, buscando emprego, moradia, proteção de direitos e condições dignas de vida. O Estatuto do Estrangeiro (Lei n° 6.815) é o documento brasileiro que garante igualdade de direitos em relação aos nacionais, incluindo o direito à carteira de trabalho, à previdência social e ao Sistema Único de Saúde (SUS). A Constituição Federal Brasileira de 1988 garante igualitariamente os direitos à saúde, educação, alimentação, moradia, trabalho, lazer e segurança aos brasileiros e imigrantes que possuem o visto. No entanto, têm-se dificuldades na efetivação desses direitos, pois muitos imigrantes não possuem trabalho ou apresentam condições inferiores às de brasileiros, acarretando baixas condições socioeconómicas⁽²⁾.

A lei prevê aos imigrantes o direito ao SUS. Geralmente, eles adoecem pelas dificuldades no novo país, como falta de renda e saudade da família, prevalecendo na adaptação o sofrimento biopsicossocial⁽¹⁾, o que os torna vulneráveis. A vulnerabilidade é ampla, considerada uma interdependência recíproca de valores multidimensionais, sendo limitante das capacidades relacionais de afirmação no mundo, podendo gerar fragilidade⁽³⁾.

Apesar do porte do visto, os imigrantes haitianos expe-rienciam condições precárias de vida, moradia e trabalho e violação dos direitos humanos, como racismo e xenofobia⁽¹⁾. As dificuldades de integração social, devido à comunicação e adaptação local, contribuem para o seu isolamento⁽⁴⁾. Ainda, dificuldades financeiras e relacionadas à cisão dos círculos sociais nativos, aliadas à falta de vínculos afetivos no Brasil, contribuem para o adoecimento⁽¹⁾.

Para melhorar a qualidade de vida desse público no Brasil são necessárias políticas públicas voltadas à efetiva aplicação de seus direitos, facilitando a adaptação e diminuição das vulnerabilidades, com vistas à promoção da saúde⁽³⁾ que, na Carta de Ottawa, constitui o processo em que se busca incentivar os indivíduos a controlar e melhorar a sua saúde⁽⁵⁾, envolvendo ações sobre os determinantes sociais de saúde. Quando ambos estão articulados e em conjunto com as políticas públicas, podem contribuir para a efetivação da equidade⁽⁶⁾.

Assim, surgiu a questão de pesquisa: quais as percepções dos imigrantes haitianos sobre as possibilidades para promover a saúde, diante das vulnerabilidades que vivenciam? Faz-se necessário discutir com os próprios imigrantes as possibilidades para promover sua saúde e disseminar suas percepções sobre qualidade de vida para melhorar a sua assistência, consolidar os princípios do SUS e aprimorar as políticas públicas no setor, justificando este estudo. Tem-se como objetivo compreender as percepções dos imigrantes haitianos sobre as possibilidades para promover a saúde, diante das vulnerabilidades que vivenciam.

MÉTODO

Tipo de estudo

Trata-se de um estudo qualitativo, do tipo ação-par-ticipante⁽⁷⁾, fundamentado nos pressupostos teóricos do Itinerário de Pesquisa de Paulo Freire, que compreende três fases interligadas dialeticamente, a saber: Investigação Temática; Codificação e Descodificação; e o Desvelamento Crítico⁽⁸⁾. O Itinerário Freireano desenvolve-se no Círculo de Cultura, que se apresenta pela possibilidade de auxiliar os indivíduos a compreenderem sua realidade por meio de sua experiência e compartilhar saberes, num espaço constituído de diferentes seres e práticas. Assim, na perspectiva pedagógica liberadora, assumem a experiência da práxis do diálogo em relações horizontalizadas, com o intuito de discutir seus problemas e planejar ações concretas e de interesse coletivo^(8-9).

População

Participaram do estudo 10 imigrantes haitianos. Os critérios de inclusão consideravam imigrantes haitianos graduandos dos cursos de uma universidade pública do sul do Brasil, na perspectiva de que já compreendiam o português. Os critérios de exclusão consideravam imigrantes com frequência irregular nas aulas e que estavam afastados por licença de saúde.

Foi enviado um e-mail para os 92 imigrantes haitianos matriculados nos cursos de graduação da universidade, convidando-os para uma reunião referente à pesquisa, à qual compareceram 23. No entanto, eles estudavam em diferentes períodos, sendo possível conciliar horário com 10 imigrantes, que assim se tornaram os participantes do estudo.

Coleta de dados

A coleta de dados ocorreu no segundo semestre de 2019, com a realização de três Círculos de Cultura, organizados quinzenalmente com duração de duas horas. Contou-se com o apoio de gravador de áudio, com a ciência e autorização dos participantes. Além disso, foram realizados registros dos temas levantados nos Círculos de Cultura por meio de um diário de campo.

Este artigo propôs-se a abordar as discussões do terceiro Círculo de Cultura, referente às possibilidades para promover saúde diante das vulnerabilidades da imigração. Para percorrer as etapas do Itinerário de Pesquisa optou-se por realizar uma analogia com a construção de uma casa, que depende de todas as suas estruturas para manter-se edificada, sendo algo significativo para os imigrantes haitianos. Para tanto, as pesquisadoras organizaram um quebra-cabeça para a montagem da casa durante o Círculo de Cultura, o que instigou o diálogo entre os participantes de maneira criativa e lúdica, conforme ilustração da Figura 1.

Figura 1
Itinerário de Pesquisa de Paulo Freire: analogia com a construção de uma casa.

A Investigação Temática, primeira fase do Itinerário de Pesquisa, busca estimular o pensar crítico dos participantes a partir de realidades particulares, o que leva ao surgimento de temas geradores e sua problematização⁽⁸⁾. Os fundamentos da casa foram considerados como a Investigação Temática, sendo transcritos e expostos ao chão os três temas geradores investigados no primeiro Círculo de Cultura sobre as vulnerabilidades da imigração, em que os participantes responderam ao questionamento: quais as vulnerabilidades na vivência da imigração haitiana no Brasil? Os temas foram novamente lidos e ressignificados pelos participantes, iniciando-se a construção da casa.

A segunda etapa corresponde à Codificação e Descodificação, que é o momento em que os diálogos acerca dos temas geradores instigam análise sobre a realidade e suas contradições, na qual cada participante reflete sobre si como capaz de transformar suas ações, modificando suas visões de mundo⁽⁸⁾. Para esta fase construíram-se as paredes e o telhado da casa em discussões mediadas por três questões norteadoras, debatidas em pequenos grupos e, em seguida, socializadas, sendo: quais as sugestões para promover a saúde dos imigrantes haitianos na universidade e no trabalho? Quais as sugestões para promover adaptação dos imigrantes haitianos no Brasil? Quais as sugestões para promover a saúde física e mental dos imigrantes haitianos?

A última etapa do Itinerário de Pesquisa é o Desvelamento Crítico, na qual montaram as portas e janelas da casa, refletindo sobre a realidade e as possibilidades, selando-se o processo de ação-reflexão-ação, sendo que cada participante compreendeu sua capacidade de enfrentar os desafios levantados, compartilhando propostas para uma ação frente ao pensar⁽⁸⁾. Neste momento, os imigrantes também abordaram sobre a relevância de ter participado do Círculo de Cultura.

Análise e tratamento dos dados

No Itinerário de Pesquisa de Paulo Freire, como se trata de etapas interdependentes, a coleta e análise são feitas de forma concomitante. Portanto, durante o Círculo de Cultura os dados foram analisados num processo contínuo, com o envolvimento de todos os participantes por meio do diálogo e reflexão das temáticas investigadas⁽⁹⁾, interpretando-se com criticidade os temas emergentes.

Aspectos éticos

A pesquisa seguiu os princípios éticos da Resolução n. 466/2012, do Conselho Nacional de Saúde. Para garantir anonimato, os imigrantes escolheram nomes de comidas típicas do Haiti para serem identificados no estudo. O Termo de Consentimento Livre e Esclarecido foi lido e assinado pelos participantes. A pesquisa somente foi iniciada após ser aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa, com Parecer n. 3.324.430/19.

RESULTADOS

Os dez participantes do estudo tinham de 21 a 25 anos, sendo oito do sexo masculino e dois do sexo feminino, residentes no município de Chapecó-SC entre cinco meses e seis anos, sendo um acadêmico de Enfermagem, dois de Pedagogia, dois de Engenharia Ambiental, um de Geografia, dois de Matemática e dois de Letras. Os motivos que os levaram a migrar para o Brasil foram a busca por uma vida melhor e oportunidade de estudo.

Após ampla discussão no Círculo de Cultura sobre as vulnerabilidades vividas na imigração, os participantes elegeram três temáticas principais para discussão, conforme representação do Quadro 1, a saber: 1) Estudante e trabalhador; 2) Adaptações no Brasil; 3) Saúde física e mental.

Quadro 1
Representação dos três temas geradores discutidos no Círculo de Cultura.

1. Estudante e trabalhador	2.Adaptações no Brasil	3.Saúde física e mental
Falta tempo para estudar Papel do professor Falta integração Conciliar trabalho e estudo Trabalho pesado Discriminação Preconceito Baixa renda Muita responsabilidade Falta de equidade	Dificuldade linguística Falta aceitação Falta conhecer os direitos Preconceito Discriminação Falta empatia Dificuldade com o clima Saudade da comida do Haiti Alimentação diferente	Falta alimentação saudável Falta de tempo para exercitar Falta tempo para autocuidado Angústia Tristeza Falta de amizades sinceras Falta de lazer Falta integração Saudade da família

Após a definição das três temáticas, os participantes discutiram sobre as possibilidades de promover saúde, buscando superar sua realidade refletida nos fatores de vulnerabilidade que vivenciavam no processo migratório. Na discussão do primeiro tema gerador, os imigrantes compartilharam sobre como buscavam promover seu bem-estar na universidade, sendo proativos e participando das atividades universitárias. Somado a isso, apontaram a necessidade de criar espaços para aproximar imigrantes e brasileiros:

Eu tenho contato com muita gente porque eu busco me envolver, jogar futebol, participo das viagens com a turma, participo do centro acadêmico. Então, eu não fico no meu cantinho sozinho, a gente que é imigrante tem que buscar interagir e fazer amizades aqui (Pitimi).

Participar dos projetos de extensão na universidade porque daí você conhece pessoas novas... é questão de a gente sair do nosso canto e se movimentar (Lambi).

Tem que ser organizado mais momentos de aproximação entre brasileiros e imigrantes,para que haja troca de experiências porque sempre um pode aprender com o outro aqui na universidade (Akamil).

Dentro do espaço universitário, destacou-se o papel do professor como um agente promotor da inclusão dos imigrantes:

O professor é fundamental aqui na universidade para nos ajudar a integrar melhor em sala de aula (Lalo).

O papel do professor é buscar integrar esses estudantes a toda turma e não deixar os haitianos todos juntos num único grupo. O professor tem que trabalhar a inclusão, tem que entender que na sala não tem só brasileiro (Pitimi).

A precária concessão de direitos aos imigrantes haitianos no Brasil ficou evidenciada nos depoimentos relacionados ao trabalho, campo muito ocupado por imigrantes no país; muitas vezes, o imigrante não conhece seus direitos e nem sempre recebe as condições adequadas. Ainda, demonstraram que são julgados como desqualificados por diversos campos de atuação, ficando limitados a uma minoria de oportunidades, tendo como determinante o preconceito. Neste sentido, referiram a necessidade de conhecerem seus direitos no país, em busca de melhores condições de vida:

Outras empresas e setorespoderiam aproveitar melhor e receber os imigrantes haitianos. Por que somente as empresas de frigoríficos tem nos aceitado? Porque éalgo que os brasileiros não querem, e os imigrantes ficam sem outras oportunidades. Só não sei se é porque somos negros ou porque somos haitianos, ou os dois. Tem que acabar com esse preconceito! (Lambi).

O imigrante trabalhador precisa ter os mesmos direitos dos brasileiros. As empresas deveriam aproveitar melhor a mão de obra e o conhecimento eperfil dos imigrantes (Lalo).

Precisamos conhecer os nossos direitos (Griyo).

Ao dialogarem sobre o segundo tema gerador, o domínio da língua portuguesa foi uma das questões mais reconhecidas pelos participantes, sendo mencionada como uma necessidade crucial para estimular a comunicação e a socialização no país. Seus relatos revelaram um amparo mútuo e voluntário entre si, já que ajudam uns aos outros no processo de identificação e ensino da língua:

Quando um imigrante fala o português fica bom pra ele e também para a comunidade onde ele está, então, saber o português interfere em toda saúde e adaptação no Brasil(Akamil).

Já tem um monte de opções para aprender a língua, na universidade e também em vários bairros. É bom todo imigrante buscar aprender (Pitimi).

Eu dou aula para uns 100 haitianos agora, de graça, e eu falo pra eles, que eles têm que tentar entender que eles não estão mais no Haiti, que eles têm que fazer sua parte pra se adaptar aqui no Brasil (Pitimi).

Entre os imigrantes haitianos, manifestou-se a dificuldade de compreensão das leis do Brasil, pois elas apresentam divergências diante das leis do país de origem, mas reforçaram a necessidade de compreendê-las para viver dignamente:

Muitas leis no Brasil são diferentes e precisamos conhecer (Pitimi).

Os imigrantes desvelaram que existem setores sociais beneficentes que auxiliam na adaptação às características do novo país, como o inverno marcante:

No inverno, o imigrante tem que ter muita roupapra se esquentar, mas isso é caro, então, tem que buscar ajuda pra conseguir jaquetas e blusas de lã em igrejas. Aqui na universidade também tem um setor que ajuda (Bonyon).

Durante a discussão do terceiro tema gerador, os imigrantes haitianos desvelaram a falta da alimentação saudável em comparação com a comida nativa e como essa é inerente à manutenção da qualidade de vida, destacando algumas condições para o alimento que consideram saudável:

Promover mais a nossa culinária saudável e quem não sabe cozinhar, poderá aprender com o outro que sabe fazer... (Lambi). Falta comer mais legumes, igual lá no Haiti, eu acho que falta na alimentação do Brasil... legumes com fartura éuma coisa que contribui bastante na saúde (Lalo).

A alimentação saudável é nada que foi produzido com agrotóxicos. Uma saída é tentar a gente mesmo cultivar e tentar ao máximo comer sem esses produtos químicos... (Lambi).

Uma boa alimentação leva você afazer um bom exercício também, que é importantepra saúde física e mental (Griyo).

Os imigrantes expuseram ideias para a realização de atividades físicas na universidade, já que muitos acadêmicos estudam em período integral e/ou trabalham em outros turnos, não dispondo de tempo para desenvolver o seu autocuidado:

A gente poderia fazer um projeto pra realizar exercícios físicos aqui na universidade, durante o intervalo das aulas que ninguém faz nada (Griyo).

Ter bicicletas na universidade para os estudantes e professores andarem nos intervalos pra relaxar um pouco e também promover gincana integrativa como pular corda, jogar bola, assim, também já ajudaria na saúde mental, no autocuidado e na integração de brasileiros e haitianos (Ble).

Outra sugestão foi a necessidade de integração social para preservação da saúde mental, além do uso da tecnologia para manter contato com os que ficaram no país de origem, a fim de amenizar a saudade dos familiares:

Brincar, interagir com outras pessoas, fazer novos amigos, ajuda na questão da depressão (Macós).

Ir pro Haiti é difícil por causa do valor alto da passagem, então, o que nos resta pra matar a saudade é a interação pelo celular (Pitimi).

A tecnologia traz bastante possibilidade como criar um grupo de WhatsApp, fazer ligação pelo Skype, presente a família não tá aqui, mas quase todo dia a gente tá conversando, diminuindo a saudade (Lambi).

Uma proposta significativa dos participantes foi a realização de encontros entre haitianos, diante da percepção da necessidade de criar e/ou manter vínculos, buscando aliviar a tristeza, a ansiedade e a falta do Haiti. Os participantes desvelaram sentir falta de momentos de lazer e de conservar a língua nativa:

Organizar mais encontros entre os haitianos, porque assim a gente vai poder falar um pouco mais a nossa língua e de alguma forma, amenizar a saudade do Haiti e uma forma de lazer pra todos nós e de integração, aliviando ansiedade e tristeza (Ble).

Quando questionados quanto à importância e significado dos Círculos de Cultura realizados, demonstraram gratidão pelos momentos vivenciados que repercutiram em aprendizado, manifestando o desejo de realizar mudanças em prol da promoção da sua saúde:

Esses momentos aqui foram muito bons porque me fizeram pensar em coisas que eu não havia me preocupado. Muito obrigado pela oportunidade! (Griyo).

Eu agradeço pelas discussões que tivemos porque estar junto, mesmo nesse dia frio, nos fez bem, me senti em família, fez eu pensar em mudar alguns hábitos e tinha que ter mais momentos como esse (Lambi).

Quero tentar comer melhor e mesmo com tempo corrido, fazer exercícios e se preocupar mais com a minha saúde (Griyo).

Acho que preciso aproveitar mais as oportunidades que a universidade pode oferecer e tentar fazer novos amigos aqui (Pitimi).

Uma preocupação dos participantes do estudo foi de que os resultados da pesquisa fossem reconhecidos por outras pessoas, principalmente não imigrantes, o que ficou evidenciado nos relatos em que manifestaram o intenso desejo de que as reflexões discutidas fossem compartilhadas:

Eu espero que tudo o que a gente discutiu nos encontros tenha muitos resultados, que saia publicações para mais pessoas refletirem sobre a situação da imigração no Brasil(Lambi).

Espero que outras pessoas também saibam de tudo que discutimos aqui e ajudem a melhorar a saúde dos imigrantes (Adamil).

Durante os Círculos de Cultura os participantes puderam expressar suas vivências e ressignificar vulnerabilidades que os envolviam, buscando possibilidades reais para promover sua saúde. Todos os envolvidos reconstruíram-se com as reflexões, sendo que individualmente e coletivamente, de maneira simbólica, puderam abrir as suas portas e janelas para novos conhecimentos, saindo transformados e empoderados quanto à necessidade de promover sua saúde.

DISCUSSÃO

A vulnerabilidade envolve aspectos individuais, coletivos e programáticos. Os individuais referem-se ao grau e qualidade da informação dos indivíduos sobre o processo saúde-doença. Os coletivos envolvem o acesso aos meios de comunicação, escolarização e recursos materiais. Os programáticos relacionam-se ao entendimento de políticas e instituições, elementos que influenciam em condições de vulnerabilidade⁽¹⁰⁾. Pode-se dizer que os imigrantes haitianos inserem-se nos três planos, tratando-se de um público profundamente vulnerável.

A temática da vulnerabilidade em saúde pode estar associada à ideia de fragilidade, quando se considera a exposição do indivíduo a uma situação que envolve a sua condição de saúde e doença. O fato é que a vulnerabilidade deve ser vista como algo dinâmico, não como um conceito que solidifica a realidade, mas como parte de processos de trabalho em saúde concretos, como integrante de um movimento social e político⁽¹¹⁾. Diante do exposto, é imprescindível renovar as formas de construir saúde, ampliando a compreensão das necessidades individuais e coletivas para além dos conhecimentos biomédicos e epidemiológicos. Os saberes que envolvem vulnerabilidade e saúde originam-se das ciências sociais e humanas, englobando o ser humano em sua totalidade⁽¹²⁾.

No contexto dos imigrantes, ocorrem perdas e transformações sociais decorrentes da quebra dos seus laços com o idioma nativo, familiares, amigos e hábitos culturais, gerando uma desconstrução e subsequente reconstrução de sua identidade, delineada pelas relações sociais e culturais, sendo relevante promover espaços coletivos para aproximá-los da cultura receptora. A relação entre imigrantes haitianos e brasileiros revela uma lacuna social, ainda que apenas dentro da universidade, onde o imigrante comumente encontra resistência à sua cultura e dificuldades na criação de vínculos, o que pode gerar solidão e desamparo ⁽¹⁾.

O distanciamento da sua nacionalidade desencadeia sofrimento físico e psíquico, exigindo novos vínculos e adaptação à nova comunidade⁽¹³⁾. Atividades de lazer são opções que proporcionam socialização, amenizando o estresse e a ansiedade. Estas práticas constituem elementos protetivos para diminuir a saudade dos familiares, amigos e cultura, estruturando uma nova rede de apoio psicossocial ao imigrante⁽¹⁴⁾.

A dificuldade de integração relaciona-se com o desconhecimento da língua portuguesa e consequentes barreiras de comunicação. Isso está associado ao amparo pedagógico proporcionado aos imigrantes, que encontram obstáculos na integração dentro dos espaços de ensino, constituídos, inclusive, pela produção de discriminação e estereótipos, mesmo que camuflados. A integração dos imigrantes depende de fatores de responsabilidade pública, mas fica também a mercê de todos os envolvidos com a instituição de ensino⁽³⁾.

Desde a chegada ao Brasil, vê-se como imediata a necessidade de interação entre o povo haitiano e o brasileiro, como fator que auxiliará no seu dia a dia nos estudos, trabalho, saúde e lazer. Para isso, é importante que o imigrante busque compreender e falar o português, que já é ensinado em alguns ambientes, como empresas, igrejas e universidades⁽¹⁵⁾.

No espaço universitário, desponta-se a relevância do professor como provedor da integração e do conhecimento compartilhado. A relação do professor e estudante deve ser horizontal no processo de ensino-aprendizagem, sendo considerada uma das mais ricas possibilidades para efetivar diálogos, trocas de saberes e envolvimento com as condições e particularidades de cada um, tornando o ato educacional dependente da relação social⁽¹⁶⁾.

É importante destacar que o Brasil se encarrega do processo jurídico de legalidade de inserção do imigrante; porém, nem sempre disponibiliza mecanismos para adaptação sociocultural, mantendo o imigrante sem conhecimento prévio de seus direitos e deveres. Esta falta prejudica sua adaptação, ocupação e condição econômica. Algumas instituições desempenham o papel de prover essas necessidades, como instituições religiosas, órgãos do governo e Organizações Não Governamentais *ONG), auxiliando na moradia, alimentação, ensino da língua, emprego e vestimentas, suprindo algumas carências do imigrado⁽¹⁶⁾.

Ao residir no Brasil, os imigrantes precisam de uma fonte de renda, devido à urgência em construir a vida no novo país. A nova Lei de Migração no Brasil garante o direito de igualdade de trabalho entre brasileiro nato e imigrante regular, devendo assegurá-lo. Porém, a inserção no mercado de trabalho traz à tona uma realidade constituída de desigualdades, que carece de adesão à garantia de direitos básicos à dignidade do imigrante⁽¹⁷⁾.

Um dos enfrentamentos é a sobrecarga de trabalho e as condições precárias e insalubres somadas às vulnerabilidades sociais. O imigrante possui dificuldades financeiras desde a saída do Haiti, podendo refletir em um processo de adoecimento psíquico e somático, que começa a encontrar limites físicos preocupantes⁽¹⁾. Os participantes deste estudo ainda abordaram o preconceito racial e discriminação como fatores que influenciam negativamente na inclusão social, afastando-os de grupos sociais formados por brasileiros⁽³⁾.

As diferenças socioculturais entre Haiti e Brasil também implicam na saúde dos imigrantes, exigindo adaptações a peculiaridades, como ao inverno e à culinária. A alimentação é um determinante de saúde citado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e, devido à falta de renda, de qualidade dos alimentos, de tempo para preparo de alimentos ou de conhecimento para prepará-los e às diferenças culinárias citadas como dificuldades, sua alimentação torna-se fragilizada, geralmente não orgânica, com base no que é acessível⁽¹⁸⁾.

A prática de atividades físicas aliada à alimentação saudável é uma forma de promover a saúde, sendo benéfica física e mentalmente. Contudo, na comunidade acadêmica, onde muitos imigrantes circulam, têm-se dificuldade para praticar essa realidade em detrimento de fatores associados à condição socioeconómica e privação do tempo⁽¹⁹⁾, sendo necessário incentivar práticas saudáveis em prol da qualidade de vida.

Urgem esforços para promover o conceito ampliado de saúde dos imigrantes haitianos, com adoção de ações inter-setoriais e engajamento comunitário, como forma de reduzir as vulnerabilidades sociais. A efetividade dessas ações pode ser alcançada por meio dos princípios da concepção moderna de promoção da saúde, que incentiva a emancipação dos indivíduos, a fim de valorizar a autonomia das pessoas para transformar a realidade, divergente da corrente behaviorista que acredita na mudança de comportamentos individuais como solução para os problemas de saúde⁽²⁰⁾. Nesta perspectiva, as ações de promoção da saúde estão voltadas para as atividades educativas relativas às ameaças comportamentais que podem ser modificadas pelos indivíduos, como o hábito de fumar e as atividades físicas. Portanto, devem-se incentivar as ações com ampliação da participação dos imigrantes no controle do processo saúde-doença, por meio da atuação sobre fatores condicionantes que podem afetar a saúde⁽²¹⁾, reforçando o seu empoderamento frente às vulnerabilidades sociais que vivenciam na imigração.

Atualmente, no Brasil e no mundo, são inúmeros os desafios inerentes às relações entre imigração e saúde. Como desafios destacam-se as políticas sociais de acolhimento e integração dos imigrantes no mundo globalizado, que necessitam enfrentar as situações de desigualdades socioeconómicas, adoecimento e condições de vida precária. É imprescindível promover a equidade de acesso à saúde, ampliar as políticas sociais e incluir a temática das migrações como determinantes sociais que devem ser trabalhados pelos profissionais nos serviços de saúde⁽²²⁾.

Em contrapartida, o Círculo de Cultura proporcionou uma leitura crítica de saberes e fazeres dos imigrantes haitianos, promovendo a ação-reflexão-ação. A construção da casa possibilitou a tomada de consciência sobre o seu momento de vida e a necessidade de buscar a superação dos desafios, desenvolvendo o autocuidado e a promoção da saúde. Este contexto também é importante para os profissionais da saúde, que precisam compreender as atuais demandas para garantir a efetivação dos princípios do SUS, com ênfase na universalidade e equidade.

No entanto, há ainda muito o que aprender e exercer dentro do cuidado ao imigrante, diante das vulnerabilidades que enfrentam no processo saúde-doença. Assim, recomendam-se intervenções que acolham seus sofrimentos, cabendo à Enfermagem e demais profissionais da saúde manter atenção à assistência a esse público, que carece de informação sobre seus direitos na sociedade brasileira. Além disso, é necessária a continuidade de estudos sobre a temática.

CONCLUSÃO

Os imigrantes haitianos citaram vulnerabilidades relacionadas ao fato de ser estudante e trabalhador, às adaptações no Brasil e à saúde física e mental. A universidade é um dos espaços para se estimular e promover a saúde do estudante haitiano, sendo possibilidades: participação em grupos sociais, momentos de aproximação entre brasileiros e haitianos e o efetivo papel do professor na integração do imigrante em sala de aula. Também revelaram ser essencial conhecer seus direitos e lutar por condições e oportunidades de trabalho, destacando que ainda há preconceito e discriminação nas atividades laborais no sul do Brasil.

Quanto à adaptação, consideram necessário dominar a língua portuguesa, o que interfere na interação e adaptação sociocultural nos ambientes frequentados, além de buscar estratégias de adaptação à culinária brasileira. Tratando-se da saúde física e mental, salientaram a falta da alimentação saudável pelas dificuldades econômicas e diferenças culinárias dos países e de atividades esportivas e de lazer para propiciar novos vínculos; sugeriram que a criação de uma rede de apoio psicossocial facilitaria a promoção da saúde mental e proporcionaria qualidade de vida.

A construção da casa possibilitou a discussão prazerosa e lúdica sobre vulnerabilidades e promoção da saúde na perspectiva da imigração, gerando relação com a residência atual dos imigrantes no Brasil e suas repercussões na saúde para o público em estudo, o que tornou o pensamento teórico-filosófico de Paulo Freire prático e transformador.

• Apoio financeiro:
  Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).

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Datas de Publicação

• Publicação nesta coleção
  18 Jun 2021
• Data do Fascículo
  2021

Histórico

• Recebido
  07 Abr 2020
• Aceito
  18 Nov 2020