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Ensino de enfermagem em centro cirúrgico: transformações da disciplina na Escola de Enfermagem da USP (Brasil)

Enseñanza de enfermería en quirófano: transformaciones de la disciplina en la escuela de enfermería de la usp (Brasil)

Resumos

Este artigo tem por objetivos apresentar uma síntese da evolução do conteúdo de bloco cirúrgico na Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo (EEUSP) e uma reflexão sobre as Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Enfermagem (DCN). O estudo se desenvolveu a partir de um breve histórico do desenvolvimento da enfermagem em centro cirúrgico na prática profissional e sua inserção no currículo de graduação da EEUSP. As Diretrizes Curriculares Nacionais têm seu mérito ao assegurar às instituições de ensino superior a liberdade na composição da carga horária a ser cumprida para a integralização dos currículos e na especificação das unidades de estudo a serem ministradas, porém, as competências e habilidades propostas são inespecíficas. Entendemos que o enfermeiro generalista é aquele que tem oportunidades de aprendizado teórico prático para atuar em todos os cenários de cuidado, área e níveis de atenção em saúde.

Educação em enfermagem; Currículo; Enfermagem perioperatória; Enfermagem de centro cirúrgico; Educação superior


El artículo objetiva presentar una síntesis de la evolución del contenido de la unidad quirúrgica en la Escuela de Enfermería de la Universidad de São Paulo (EEUSP) y una reflexión sobre las Normativas Curriculares Nacionales del Curso de Graduación en Enfermería (DCN). Estudio desarrollado a partir de un breve histórico del desarrollo de la enfermería en quirófano en la práctica profesional y su inserción en el currículo de graduación de la EEUSP. Las Normativas Curriculares Nacionales tienen su mérito al asegurar a las instituciones de enseñanza superior la libertad de composición de la carga horaria a cumplirse para la integralización de los currículos y en la especificación de las unidades de estudio a administrarse, aunque las competencias y habilidades propuestas son inespecíficas. Entendemos que el enfermero generalista es aquel que tiene oportunidades de aprendizaje teórico-práctico para actuar en todos los escenarios de cuidado, área y niveles de atención sanitaria.

Educación en enfermería; Curriculum; Enfermería perioperatoria; Enfermería de quirófano; Educación superior


The objectives of this paper are to present a summary of the evolution of the content of perioperative nursing at the University of São Paulo School of Nursing (EEUSP) and reflect on the National Curriculum Directives (NCD) for the nursing course. The study was developed from a brief history of the practice of perioperative nursing and the inclusion of this topic in the nursing curriculum at EEUSP. The National Curriculum Directives are important because they permit undergraduate schools to determine the amount of teaching time for each course that will comprise their curriculum, but the competencies and skills proposed are nonspecific. We believe that the general nurse should have theoretical and practical learning opportunities to work in every area and level of healthcare.

Education, nursing; Curriculum; Perioperative nursing; Operating room nursing; Education higher


REFLEXÃO

Ensino de enfermagem em centro cirúrgico: transformações da disciplina na Escola de Enfermagem da USP (Brasil)

Enseñanza de enfermería en quirófano: transformaciones de la disciplina en la escuela de enfermería de la usp (Brasil)

Ruth Natalia Teresa TurriniI; Ana Lucia Siqueira CostaII; Aparecida de Cassia Giani PenicheIII; Estela Regina Ferraz BianchiIV; Tâmara Iwanow CianciarulloV

IProfessora Doutora do Departamento de Enfermagem Médico Cirúrgica da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo. São Paulo, SP, Brasil, rturrini@usp.br

IIProfessora Doutora do Departamento de Enfermagem Médico Cirúrgica da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo. São Paulo, SP, Brasil, anascosta@usp.br

IIIProfessora Associada do Departamento de Enfermagem Médico Cirúrgica da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo. São Paulo, SP, Brasil, ggphe@usp.br

IVProfessora Associada do Departamento de Enfermagem Médico Cirúrgica da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo. São Paulo, SP, Brasil, erfbianc@usp.br

VProfessora Titular do Departamento de Enfermagem Médico Cirúrgica da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo. São Paulo, SP, Brasil, iwanow.c@uol.com.br

Correspondência Correspondência: Ruth Natalia Teresa Turrini Av. Dr. Enéas de Carvalho Aguiar, 419 – Cerqueira Cesar CEP 05403-000 – São Paulo, SP, Brasil

RESUMO

Este artigo tem por objetivos apresentar uma síntese da evolução do conteúdo de bloco cirúrgico na Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo (EEUSP) e uma reflexão sobre as Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Enfermagem (DCN). O estudo se desenvolveu a partir de um breve histórico do desenvolvimento da enfermagem em centro cirúrgico na prática profissional e sua inserção no currículo de graduação da EEUSP. As Diretrizes Curriculares Nacionais têm seu mérito ao assegurar às instituições de ensino superior a liberdade na composição da carga horária a ser cumprida para a integralização dos currículos e na especificação das unidades de estudo a serem ministradas, porém, as competências e habilidades propostas são inespecíficas. Entendemos que o enfermeiro generalista é aquele que tem oportunidades de aprendizado teórico prático para atuar em todos os cenários de cuidado, área e níveis de atenção em saúde.

Descritores: Educação em enfermagem. Currículo. Enfermagem perioperatória. Enfermagem de centro cirúrgico. Educação superior

RESUMEN

El artículo objetiva presentar una síntesis de la evolución del contenido de la unidad quirúrgica en la Escuela de Enfermería de la Universidad de São Paulo (EEUSP) y una reflexión sobre las Normativas Curriculares Nacionales del Curso de Graduación en Enfermería (DCN). Estudio desarrollado a partir de un breve histórico del desarrollo de la enfermería en quirófano en la práctica profesional y su inserción en el currículo de graduación de la EEUSP. Las Normativas Curriculares Nacionales tienen su mérito al asegurar a las instituciones de enseñanza superior la libertad de composición de la carga horaria a cumplirse para la integralización de los currículos y en la especificación de las unidades de estudio a administrarse, aunque las competencias y habilidades propuestas son inespecíficas. Entendemos que el enfermero generalista es aquel que tiene oportunidades de aprendizaje teórico-práctico para actuar en todos los escenarios de cuidado, área y niveles de atención sanitaria.

Descriptores: Educación en enfermería. Curriculum. Enfermería perioperatoria. Enfermería de quirófano. Educación superior.

INTRODUÇÃO

O surgimento da enfermagem em centro cirúrgico está atrelado ao início da utilização das técnicas assépticas de Lister que permitiram a realização de cirurgias mais complexas e as enfermeiras eram responsáveis pelos cuidados com o instrumental. Na virada do século, com a designação de espaços restritos para a realização dos procedimentos cirúrgicos, a limpeza do ambiente passou a ser importante, aumentava a responsabilidade das enfermeiras, bem como a carga de trabalho, e conhecimentos específicos se desenvolviam distinguindo-as das enfermeiras das unidades assistenciais(1).

Paralelamente, o aprendizado forçado no cuidado aos doentes nos campos de batalha também impulsionava a evolução da prática de enfermagem na arena cirúrgica, configurando-se assim, a enfermeira assistente de centro cirúrgico (CC). Desenvolvimento expressivo ocorreu principalmente durante a II Guerra Mundial pela necessidade de enfermeiras com conhecimento de bloco operatório, incluindo anestesia, para atuar na supervisão das ações do pessoal auxiliar e para cuidar dos pacientes cirúrgicos. Esta situação acelerou o desenvolvimento do conhecimento e das habilidades no cuidar do paciente cirúrgico(2).

Em relato de experiência de uma enfermeira inglesa encontrou-se que em 1968, no segundo ano de treinamento, as estudantes de enfermagem permaneciam 14 semanas no CC, sendo dez semanas nas salas de cirurgia geral e quatro nas salas de procedimentos ortopédicos(3).

Como se percebe, a especificidade de centro cirúrgico foi sendo desenvolvida em campo prático pela necessidade emergente e aos poucos os enfermeiros foram incorporando conhecimento científico para dar sustentação a esse saber.

Na transição dos cursos de formação do enfermeiro diplomado para o bacharel em enfermagem, alguns conteúdos foram sendo excluídos por algumas escolas, dentre eles o de enfermagem em CC(4). Um dos motivos para a exclusão deste conteúdo dos currículos nas escolas americanas, foi a falta de professores para ministrar esse conteúdo e de espaços adequados para a prática clínica(5). A adoção de novas teorias para embasar a assistência de enfermagem também contribuiu para esse fato. Na Georgetown University, o CC deixou de fazer parte dos campos de prática clínica quando a escola adotou em 1969 a teoria de auto-cuidado da Orem no modelo assistencial ensinado aos alunos(6).

Ao afastar o aluno de graduação desse conteúdo, ocorreu nos Estados Unidos uma redução no número de enfermeiros interessados em trabalhar em CC e, conseqüentemente, a demanda nos cursos de aperfeiçoamento em CC também diminuiu. Na tentativa de atrair o interesse para esta área e retornar o conteúdo de bloco cirúrgico aos currículos de graduação, a Association of peroOperative Registered Nurses (AORN) - National Committee on Education elaborou o Primer Perioperative Program com estratégias de parcerias entre hospitais e escolas para o ensino prático, sugestão de conteúdos e bibliografias(5).

Em 2006, a AORN ratificou uma declaração sobre a importância de atividades clínicas em CC para o aprendizado dos alunos de graduação em enfermagem, afirmando que esta formação inicial poderia despertar o interesse do futuro enfermeiro para os cursos de especialização em enfermagem perioperatória(4). Em seguida, a National Student Nurses' Association também encaminhou um posicionamento a algumas entidades de classe americanas pedindo apoio para a inclusão de conteúdos teóricos e práticos relativos à enfermagem perioperatória para melhor atender as necessidades dos pacientes cirúrgicos e seus familiares, em oposição à tendência passada de remoção gradual desse conteúdo dos currículos de enfermagem(7).

Preocupada com a formação e a qualidade dos enfermeiros futuros, a AORN elaborou uma declaração de posição, o Value of Clinical Learning Activities in the Perioperative Setting in Undergraduate Nursing Curricula, para ajudar as escolas de bacharelado em enfermagem a planejarem oportunidades de aprendizado no cuidado perioperatório que desenvolvam competências essenciais para todos os alunos. Essa assistência refere-se aos cuidados pré, intra e pós-operatórios em pacientes submetidos a cirurgias ou outros procedimentos invasivos(8).

A Universidade Australiana de Notre Dame é uma das poucas que tem uma disciplina de enfermagem perioperatória, segundo os tópicos mandatórios da Acreditação em Enfermagem, e, embora, com carga teórico prática pequena, é considerada o suficiente para que o enfermeiro possa iniciar suas atividades em CC e se interessar no futuro por um aperfeiçoamento na área(4).

O currículo na Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo (EEUSP), como ocorreu em outras escolas de enfermagem no Brasil, passou ao longo dos anos por mudanças, de acordo com a época e situações econômicas e políticas do país, embora por muito tempo com uma carga horária total superior à estabelecida pelo currículo mínimo e, talvez por isso, as disciplinas de Enfermagem em CC (ECC) e de Enfermagem em Centro de Material (ECM) tenham conseguido sobreviver, até o presente momento, com identidade própria.

A finalidade deste artigo é apresentar uma síntese da evolução do conteúdo de bloco cirúrgico na EEUSP e uma reflexão sobre as Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Enfermagem (DCN)(9).

A EEUSP foi pioneira ao ministrar o conteúdo de ECC na forma de uma disciplina independente. Na análise de sua evolução histórica verifica-se a trajetória do ensino da assistência perioperatória. Para esta construção recuperaram-se informações dos arquivos da secretaria do Serviço de Graduação da escola e dos relatos de alguns docentes de CC da EEUSP que acompanharam parte da história da disciplina.

Décadas de 40 a 60: O currículo da primeira turma de graduandos em enfermagem era constituído de uma carga teórica muito menor que a carga prática, o que mostra que ainda mantinha a característica dos cursos oferecidos pelos hospitais. A primeira disciplina de abordagem cirúrgica – Clínica Cirúrgica – era composta de 40 horas teóricas e 340 práticas. Em 1947, foi introduzida no currículo a disciplina Sala de Operações com carga prática de 275 horas. Posteriormente, na turma de 1950, a disciplina, agora denominada Técnica de Sala de Operações, apresentava uma carga teórica de 35 horas e 265 de prática e distinguia-se da disciplina Enfermagem em Clínica Cirúrgica. A distribuição de horas teóricas e práticas variou bastante ao longo das mudanças curriculares e, em 1963, a referida disciplina foi substituída pela disciplina propriamente dita de Enfermagem em Centro Cirúrgico com 53 horas teóricas e 115 práticas.

Década de 60: A disciplina ECC era ministrada a todos os alunos no período de dois meses, concentrava-se nas atividades do circulante de sala de operações e era ministrada no segundo ano de graduação por dois docentes, tendo como pré-requisito somente a disciplina Fundamentos de Enfermagem. O conteúdo programático desenvolvido abordava a atuação em CME e CC.

Com a redução do número de semanas do semestre acadêmico, a duração da prática de campo passou de oito para quatro semanas e o programa teve de ser reformulado em termos de profundidade e flexibilidade(10). Desta forma, a disciplina passou a ter 150hs e os seguintes objetivos: planejar e prestar assistência física e psicológica aos pacientes na sala de operações antes, durante e após a cirurgia e fazer as anotações necessárias; planejar o trabalho, preparar a sala de operações e circular em cirurgia gastrintestinal, das vias biliares, de cabeça e pescoço e ginecológica, observando os aspectos éticos envolvidos; citar as fontes de contaminação da ferida operatória e empregar os meios existentes para evitá-las; descrever os métodos de hemostasia e os princípios físicos empregados no funcionamento da unidade de eletrocirurgia e relacioná-los aos cuidados ao paciente durante a cirurgia; descrever e aplicar os princípios físico químicos e microbiológicos nos processos de esterilização do material cirúrgico(10).

De 1970 a 1990: Em 1972, com a introdução dos cursos de habilitação, a disciplina ECC passou a ter 30hs teóricas e 90hs práticas. A exigência cada vez maior quanto ao preparo do enfermeiro para essa área de atuação, culminou com a contratação de mais docentes para a disciplina.

No curso de Habilitação em Enfermagem Médico-Cirúrgica os alunos permaneciam um mês em estágio na coordenação do CC. A habilitação era um ano optativo após a graduação, mas procurada por muitos alunos.

Até o final da década de 70, a disciplina ECC abordava os conteúdos de central de material (CM) e CC. Após diversos seminários, a partir de 1980, o conteúdo de CM passou a compor a uma disciplina própria: ECM que precedia a disciplina ECC e para ambas era pré-requisito ter cursado a disciplina Enfermagem Médico Cirúrgica. Estas disciplinas compunham a grade curricular do terceiro ano da graduação.

Na disciplina de ECC, com 120hs, das quais 60hs de prática em dois campos distintos eram ministrados conteúdos cirúrgicos de cada área médica (cirurgias de abdome, ortopedia, pediátrica, vascular, gastrintestinal) com discussão de abordagem cirúrgica; anestesia; recuperação pós-anestésica; sistema de assistência perioperatória - com escolha de paciente no dia anterior para realizar o processo de enfermagem (PE); atividades de circulante de Sala Operatória, sem o acompanhamento do funcionário em sala, mas na retaguarda da atuação. Como nos seminários de avaliação constatou-se que a circulação de sala era fator de ansiedade para os alunos, modificou-se, então, a condução do estágio e o aluno passou a atuar em conjunto com o funcionário responsável pela circulação da sala e foi introduzida a instrumentação cirúrgica.

Ainda neste período, iniciou-se um movimento para a realização de pesquisas de campo na área de CC. O quantitativo de docentes para as disciplinas ECC e ECM aumentou para sete docentes e as disciplinas eram oferecidas três vezes ao ano, para três grupos em cada rodízio.

Grande mérito das docentes de CC desse período foi o desenvolvimento do PE para a unidade de CC que culminou com a proposta da Sistematização da Assistência de Enfermagem Perioperatória (SAEP)(11) que apresentava todas as etapas do planejamento da assistência, implementação e avaliação do cuidado ao paciente no centro cirúrgico. A assistência de enfermagem necessitava de um modelo para a condução tanto do modo de pensar como da forma de intervir do enfermeiro. Nesse sentido, a disciplina de ECC adotou o enfoque de fator de risco para subsidiar o planejamento da assistência. Na opinião dos alunos, essa forma de observação do ambiente cirúrgico os ajudava a compreender a assistência de enfermagem perioperatória(12).

Um grupo de docentes, em julho de 1988, após constatar que a unidade de CC era uma das áreas que mais se desenvolvia tecnologicamente e que a carga horária destinada ao ensino de graduação era insuficiente para o desempenho exigido do enfermeiro em CC no mercado de trabalho, ofereceu o primeiro curso de especialização na área com 15 vagas. O Estado de São Paulo contribuiu com 82,4% dos candidatos, mas também outros estados como Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Santa Catarina evidenciaram a necessidade destes especialistas, com no mínimo 2,9% de representantes no curso.

Novas mudanças curriculares em 1994 reduziram a carga horária das disciplinas que passaram a ter 30hs a de ECM e 90hs a de ECC. Nesse período, o curso de habilitação já não era mais oferecido e se mantinha o curso de especialização que privilegiava entre seus critérios de seleção a experiência prévia em bloco cirúrgico.

Década de 2000: A estrutura curricular aprovada em 1994 perdurou por 16 anos. Em 2010, no novo projeto pedagógico, a disciplina de ECM se manteve com 30hs, no entanto, o conteúdo da disciplina de ECC foi incluído no Módulo Saúde do Adulto com carga horária pré-definida de 80hs, a ser ministrado a partir de 2012 para alunos do terceiro ano, duas vezes ao ano.

A diminuição da carga horária da disciplina pelas reformas curriculares tem exigido a introdução de novas oportunidades de aprendizado em campo prático por ocasião da Disciplina Estágio Curricular. Como na Disciplina Estágio Curricular o aluno tem supervisão a distância do docente, sua passagem por estes locais só é possível se houve um aprendizado prévio de enfermagem em CC.

Apesar de o total envolvimento das docentes de CC, a disciplina ECC não tem tido mais lugar de destaque na formação do enfermeiro, estando sujeita ao risco de o aluno ter apenas uma vivência prática observacional por ocasião da cirurgia de seu paciente. Com a aposentadoria dos docentes de CC e com a nova estrutura curricular, tem-se notado resistência à continuidade de contratação de docentes especialistas em CC para repor as vagas liberadas, o que progressivamente enfraquecerá as tentativas e os esforços para a manutenção deste conteúdo no currículo de graduação.

No ensino de pós-graduação, sensu strictu, não há programas de mestrado ou doutorado voltados especificamente para CC. As docentes oferecem disciplinas que abordam os temas de assistência perioperatória, controle de infecção e processamento de materiais, inseridas no Programa de Pós-graduação Enfermagem na Saúde do Adulto.

Repercussões das DCN no ensino de centro cirúrgico

As DNC têm seu mérito ao assegurar às instituições de ensino superior a liberdade na composição da carga horária a ser cumprida para a integralização dos currículos e na especificação das unidades de estudo a serem ministradas. Ao serem atreladas aos princípios do Sistema Único de Saúde e à prevalência de morbi-mortalidade de cada região trouxeram um avanço na formação do enfermeiro.

No entanto, as competências e habilidades propostas nas DNC são inespecíficas. Enquanto privilegiam a liberdade de escolha de conteúdos, também permitem a livre interpretação de quais seriam os conteúdos essenciais.

Na tentativa de se adequar à carga horária mínima dos cursos e simultaneamente às políticas de saúde e aos editais de financiamento voltados para a Saúde da Família, alguns conteúdos como o de CC tendem a ser preteridos, como de menor valia na formação do enfermeiro.

O movimento voltado para a formação de um enfermeiro generalista envolveu menor foco nas tarefas técnicas e mais na tomada de decisão e habilidades interdisciplinares, trabalho com diversas clientelas, integração com a pesquisa e a ética, com forte enfoque em enfermagem comunitária e na promoção a saúde(13). Além disso, não há consenso no conceito de enfermeiro generalista e o conteúdo de CC tem sido considerado uma especialidade.

As políticas de saúde têm entre suas prioridades a Saúde da Família, o que também influencia a construção da imagem do enfermeiro generalista. Mas este programa é apenas um componente da prática assistencial. As demandas nos níveis de atenção à saúde secundária e terciária têm forte impacto sobre a formação do enfermeiro que também deve estar preparado a assistir o cliente em ambientes hospitalares cada vez mais sofisticados em termos de tecnologia.

Ao nosso ver, o enfermeiro generalista é aquele que teve oportunidades de aprendizado teórico e de desenvolver habilidades técnicas em todos os cenários de cuidado que o capacite para uma atuação inicial em qualquer estabelecimento ou área da saúde. É o enfermeiro apto a atender demandas do cuidar em qualquer nível de atenção a saúde. Não negamos o caráter de especialidade da enfermagem perioperatória, mas do mesmo modo constitui especialidade a pediatria, saúde mental, saúde coletiva, terapia intensiva, emergência ou qualquer outra fragmentação do conhecimento em sistemas ou área onde se processa o cuidado.

Diz que o enfermeiro deve privilegiar o cuidado integral ao indívíduo, mas se aceita a fragmentação do cuidar ao retirar do aluno a oportunidade de conhecer e exercitar as demandas do cuidar do paciente no intraoperatório e na recuperação anestésica. Para que o graduando ou enfermeiro possa orientar o paciente e atender suas necessidades de cuidado para o momento cirúrgico, ou avaliar complicações pós-operatórias decorrentes de procedimentos realizados na sala operatória é preciso que ele tenha experienciado o cuidar no ambiente cirúrgico.

A distribuição do conteúdo ou da disciplina ECC nas diferentes escolas é variada: algumas têm a disciplina, outras um pequeno conteúdo teórico inserido em outras disciplinas com visitas a unidades de CC e outras não oferecem qualquer conteúdo na graduação.

Mesmo a realidade americana não é diferente da nossa. Algumas escolas oferecem um conteúdo muito superficial na disciplina de enfermagem cirúrgica e a parte prática se constitui em visitas às unidades de CC. Esta exposição rápida ao CC ou mesmo quando o estágio se limita a alguns dias de observação, não permite ao aluno se envolver nas atividades do ambiente perioperatório ou identificar a função do enfermeiro na unidade de CC(14).

Estudo sobre o processo de ensino de enfermagem perioperatória que envolveu 10 escolas da região metropolitana de São Paulo identificou que 70% delas tinham uma disciplina própria de enfermagem em CC e nas demais o conteúdo estava inserido na disciplina Saúde do Adulto. A carga horária teórica em enfermagem em CC variou entre 30 (80%) e 72 horas (20%) e a prática entre 60 horas (60%) e 90 horas (40%)(15).

Pesquisa de opinião com enfermeiros de CC sobre a importância do conteúdo de enfermagem perioperatória na graduação mostrou que tanto os enfermeiros que tiveram o conteúdo na grade curricular quanto aqueles que não o tiveram afirmaram que são necessários conhecimentos da disciplina ECC para atuar no CC e 100,0% e 92,0%, respectivamente, disseram que esse conteúdo deve estar no currículo para a formação do enfermeiro(16).

Apesar das afirmações de que centro cirúrgico é objeto apenas de cursos de especialização e que os hospitais contratam apenas especialistas, sua introdução nos cursos de graduação, ainda é importante, pois a contratação de enfermeiros para atuar CC sem o curso de especialização ainda é a realidade no país. Alguns cursos de especialização ainda mantêm nos critérios de seleção a experiência nessa unidade, condição esta também relevante para que as discussões sobre a assistência perioperatória e a gestão de CC sejam ricas e se possa formar um enfermeiro especialista de qualidade, reflexivo e comprometido com sua prática.

Devido à elevada demanda de profissionais no mercado de trabalho nos Estados Unidos, os serviços de saúde têm contratado enfermeiros sem especialização na área e desta forma as instituições se deparam com um profissional sem preparo e que por desconhecimento nessa área de atuação também não consegue permanecer no serviço(14). Uma avaliação sobre o enfermeiro recém-formado observou que sem a oportunidade de obter experiência das habilidades baseadas no contexto, os recém-graduados tem relatado um sentimento de não se sentirem prontos (17).

Os avanços tecnológicos em cirurgia, a complexidade do cuidado e o estado vulnerável do paciente cirúrgico exigem que a atuação do enfermeiro nessas áreas seja respaldada em conhecimentos evidentes de atuação e de concepção de que o nosso alvo é a realização de assistência perioperatória para o sucesso do ato anestésico cirúrgico com segurança.

Como uma perspectiva mundial, tem-se notado a inserção da enfermagem em CC não somente na área hospitalar, mas também em ambulatórios, consultórios, centros de saúde especializados que realizam pequenos procedimentos cirúrgicos, onde há orientação de pacientes para a realização de cirurgias eletivas ambulatoriais e em hospitais dia ou consultórios. Frente aos avanços tecnológicos, tornou-se premente oferecer ao aluno oportunidade de conhecer novas formas de intervenção cirúrgica. A própria entrada do paciente na instituição hospitalar para ser submetido a cirurgia modificou-se e muitos procedimentos cirúrgicos passaram a ser realizados via ambulatório com internação de um dia.

A necessidade do conteúdo de ECC extrapola a área de centro cirúrgico, os avanços tecnológicos na área de diagnóstico por imagem com a realização de procedimentos minimamente invasivos para diagnóstico ou tratamento, bem como no preparo para determinadas cirurgias têm exigido que os enfermeiros que atuam nesse local tenham conhecimento de enfermagem perioperatória e reprocessamento de material.

Dada a relevância do tema, em 2009 o Ministério da Saúde em parceria com a Organização Pan-Americana da Saúde da Organização Mundial da Saúde (OPAS/OMS) publicaram o Manual de Implementação de Medidas para o projeto Segurança do Paciente: Cirurgias Seguras Salvam Vidas de modo a contribuir para a plena percepção do risco ou o reforço, no sentido de uma prática efetiva de medidas preventivas, que potencializam os avanços tecnológicos observados na assistência cirúrgica(18). Este programa envolve questões da prevenção de infecções de sítio cirúrgico, anestesia segura, equipe cirúrgica segura e indicadores de assistência cirúrgica, questões estas abordadas na disciplina de Enfermagem em Centro Cirúrgico.

Os ataques terrorristas, as guerras, as alterações climáticas e de acomodação geológica têm trazido para o cotidiano do planeta catástrofes de extensa dimensão que requerem ambientes cirúrgicos improvisados para atender os sobreviventes. O enfermeiro precisa ter um conhecimento mínimo de ambiente de sala operatória e assistência perioperatória para que possa atuar em locais inóspitos sem contribuir com a morbi-mortalidade pela falta de conhecimento mínimo.

Não se trata apenas de valorizar o conteúdo de Centro Cirúrgico nos currículos de graduação, mas sim compreender a repercussão da falta deste conteúdo nos cursos de graduação, inclusive para a adesão aos programas da Aliança Mundial para a Segurança do Paciente veiculados pela OMS.

O currículo não deve perder seus conteúdos clássicos, pois é neles que se pauta a ciência do cuidar. O ensino se transforma historicamente pelo desenvolvimento tecnológico e pelas mudanças sócio-econômico-políticas, sendo assim se verifica a necessidade de seus conteúdos serem adequados para o melhor cuidado dos pacientes nos diferentes momentos de seu processo de saúde-doença.

Recebido: 11/05/2010

Aprovado: 11/03/2012

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  • Correspondência:

    Ruth Natalia Teresa Turrini
    Av. Dr. Enéas de Carvalho Aguiar, 419 – Cerqueira Cesar
    CEP 05403-000 – São Paulo, SP, Brasil
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      04 Dez 2012
    • Data do Fascículo
      Out 2012

    Histórico

    • Recebido
      11 Maio 2010
    • Aceito
      11 Mar 2012
    Universidade de São Paulo, Escola de Enfermagem Av. Dr. Enéas de Carvalho Aguiar, 419 , 05403-000 São Paulo - SP/ Brasil, Tel./Fax: (55 11) 3061-7553, - São Paulo - SP - Brazil
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