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Os trabalhadores de enfermagem na pandemia Covid-19 e as desigualdades sociais

A declaração da COVID-19 como urgência internacional chamou a atenção para a necessidade de esforços coletivos e atuação do Estado para proteção da vida e saúde. Verificou-se em pouco tempo que os efeitos da pandemia atingiam os indivíduos e grupos sociais de forma desigual. Também entre os profissionais de saúde e particularmente de enfermagem a distribuição dos casos e mortes se mostrou desigual.

O International Council of Nurses (ICN) conclamou as autoridades do mundo todo a monitorar as infecções pelo novo coronavírus e as mortes dos profissionais de enfermagem e de saúde. Em junho de 2020 o ICN estimava que cerca de 7% de todos os casos da COVID-19, internacionalmente, estavam entre os profissionais de saúde, o que representava 450 mil casos, com a morte de 600 enfermeiros à época. A organização reconhecia, no entanto, a imensa variação entre os países e se perguntava, dentre tantas questões, por que as taxas de mortalidade entre enfermeiros parecem mais altas em alguns países da América Latina(11. International Council of Nurses. More than 600 nurses die from COVID-19 worldwide Internet . Genève: ICN; 2020 cited 2020 July 13 . Available from: https://www.icn.ch/news/more-600-nurses-die-covid-19-worldwide
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). No Brasil, o Conselho Federal de Enfermagem também alertou que o país estava respondendo por 30% das mortes de profissionais de enfermagem por COVID-19 no mundo, e ganhava a triste marca de ser o que mais mata profissionais de enfermagem no planeta(22. Conselho Federal de Enfermagem. Brasil responde por 30% das mortes de profissionais de enfermagem por COVID-19 Internet . Brasília: COFEN; 2020 citado 2020 jul. 13 . Disponível em: http://www.cofen.gov.br/brasil-responde-por-30-das-mortes-de-profissionais-de-enfermagem-por-covid-19_80622.html
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).

Incontáveis são as notícias nos jornais de grande circulação, nas redes sociais e outras fontes, lamentando a perda de colegas nesta pandemia. Há entre nós, professores da universidade pública, enorme consternação e, ao mesmo tempo, um sentimento de responsabilidade para responder à pergunta que nos assombra: Por que este país mata mais trabalhadores da saúde e de enfermagem do que qualquer outro?

A resposta a essa questão tem seu fio condutor nas desigualdades sociais, expressão do eixo estrutural da sociedade de classes, marcada de forma impactante pelas feições neoliberais do Estado brasileiro, impressas nas políticas estatais. Particularmente é preciso procurar elementos dessas desigualdades nas condições de trabalho e nas características da força de trabalho de enfermagem.

A força de trabalho de enfermagem no país é constituída por cerca de 2.300.000 trabalhadores, sendo 24,5% enfermeiros, 57,4% técnicos de enfermagem e 18,1% auxiliares de enfermagem(33. Conselho Federal de Enfermagem. Enfermagem em números Internet . Brasília: COFEN; 2020 citado 2020 jul. 15 . Disponível em: http://www.cofen.gov.br/enfermagem-em-numeros
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). As diferentes categorias representam a divisão de trabalho na enfermagem, constituída com base na desigualdade de classes sociais e na cisão entre concepção e execução(44. Mendes-Gonçalves RB. Práticas de saúde: processo de trabalho e necessidades. In: Ayres JRCM, Santos L, organizadores. Saúde, sociedade e história. São Paulo: Hucitec; 2017. p. 298-374.). O múltiplo itinerário de formação e de atuação dos profissionais de enfermagem nos serviços de saúde marca o perfil heterogêneo de expressiva força de trabalho, muitas vezes, indiscriminada nas suas diferenças técnicas, visto que categorias profissionais distintas, como auxiliares e técnicos de enfermagem, executam trabalho equivalente e frequentemente recebem remuneração que não corresponde à distinta educação profissional. As desigualdades raciais e de gênero também são fundamentais para a compreensão da força de trabalho de enfermagem e suas condições de trabalho e merecem ser exploradas adequadamente com base em dados e abordagens específicas.

As condições de trabalho da enfermagem estão também marcadas, no enfrentamento da pandemia, pela distribuição desigual dos casos e mortes pela COVID-19 no Brasil. Pesquisa na cidade de São Paulo mostrou que a soroprevalência do SARS CoV 2 é 2,5 vezes maior nos distritos mais pobres em comparação com os distritos mais ricos e que diminui com o aumento da escolaridade, sendo 4,5 vezes maior entre os que não completaram o ensino fundamental e 2,5 vezes maior entre os participantes que se identificaram como pretos do que entre os que se identificaram como brancos(55. Tess BHC, Alves MCGP, Reinach F, Granato CFH, Rizzati EG, Pintão MC, et al. Inquérito domiciliar para monitorar a soroprevalência da infeccão pelo vírus SARS-CoV-2 em adultos no município de São Paulo Internet . São Paulo; 2020 citado 2020 jul. 15 . Disponível em: https://0dea032c-2432-4690-b1e5-636d3cbeb2bf.filesusr.com/ugd/6b3408_08bbcd940e9e4b84a29a7e64fce02464.pdf
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). Nos espaços mais pobres, a enfermagem atua marcadamente em serviços quase sempre sucateados do Sistema Único de Saúde (SUS), enfrentando as consequências de extrema desigualdade social, com milhares na pobreza e sem perspectiva de melhoria.

Em um país com tão profunda e intensa desigualdade social, como o Brasil, essas características da força de trabalho de enfermagem constituem o substrato no qual se configuram as precárias condições de trabalho evidenciadas no processo de enfrentamento da pandemia de COVID-19. A ausência de recursos ou o fornecimento de materiais impróprios para execução do trabalho e para proteção do trabalhador, como os equipamentos de proteção individual (EPI); o quadro insuficiente ou inadequado na composição dos profissionais de enfermagem, as longas jornadas de trabalho com dobras de plantão e múltiplos vínculos, por um lado, expõem os trabalhadores de enfermagem a riscos de contaminação e da ocorrência de erros, e por outro, acarretam crônica sobrecarga de trabalho e desgastes físico e mental, que se desdobram em adoecimento, intenso sofrimento emocional e até morte dos profissionais de enfermagem. Cabe destacar - os trabalhadores de saúde e de enfermagem não deveriam morrer no exercício do trabalho.

O Conselho Regional de Enfermagem de São Paulo recebeu em abril deste ano 842 denúncias relacionadas à falta de EPIs, das quais 495 se referiam à negação de equipamentos pela chefia das instituições(66. Conselho Regional de Enfermagem de São Paulo. EPIs para a enfermagem durante a pandemia de COVID-19 Internet . São Paulo: COREN-SP; 2020 citado 2020 jul. 13 . Disponível em: https://portal.coren-sp.gov.br/wp-content/uploads/2020/04/sondagem-EPI-27042020-para-site.pdf
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), num claro desrespeito e desvalorização do trabalho de enfermagem. Em maio imagens de enfermeiros e técnicos de enfermagem dormindo no chão do hospital de campanha do Rio de Janeiro evidenciaram o descaso com as categorias de enfermagem e o enorme abismo no tratamento recebido entre as diferentes profissões da saúde(77. Uol Rio. Hospital de Campanha do Maracanã tem enfermeiros dormindo no chão. Internet . Rio de Janeiro: UOL; 2020 citado 2020 jul. 17 . Disponível em: https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2020/05/15/rio-hospital-de-campanha-do-maracana-tem-enfermeiros-dormindo-no-chao.htm
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).

As difíceis condições de trabalho da enfermagem também são consequência da adoção plena pelo Estado brasileiro da perspectiva neoliberal, nos últimos anos, que acarretaram aumento das iniquidades, concentração de renda e pobreza(88. Freitas CM, Silva IVM, Cidade NC. COVID-19 AS A GLOBAL DISASTER: challenges to risk governance and social vulnerability in Brazil. Ambient Soc. 2020;23:e0115. doi: https://doi.org/10.1590/1809-4422asoc20200115vu2020l3id
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). A flexibilização das leis trabalhistas e o desmantelamento do sistema de proteção ao trabalhador intensificaram o contexto já preocupante em 2013, no qual um terço dos enfermeiros apresentava mais de um vínculo empregatício, com 41.5% trabalhando mais do que 40 horas semanais e 71,7% referindo desgaste na atividade profissional(99. Machado MH. Perfil da enfermagem no Brasil: relatório final. Rio de Janeiro: NERHUS/DAPS/ENSP/FIOCRUZ; 2017.).

A compreensão em profundidade e enfrentamento desta realidade, aqui apenas esboçada, requer que os enfermeiros se organizem para: cobrar compromissos ético-políticos das universidades públicas e instituições de fomento para o desenvolvimento de pesquisas na área; demandar de sindicatos, associações e conselhos profissionais a organização de debates sobre a perda de direitos trabalhistas, previdenciários e as atuais formas de exploração no trabalho, bem como a organização de lutas políticas em defesa do trabalhador e por melhores condições de trabalho; conclamar e unir-se às organizações da sociedade civil no debate e estabelecimento de formas de luta coletivas contra as desigualdades sociais, de classe, gênero e raça; bem como desenvolver ações junto a usuários do SUS para garantir o seu funcionamento pleno e a efetivação do direito à saúde para toda população brasileira.

References

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Set 2020
  • Data do Fascículo
    2020
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