RESUMO
Objetivo: Interpretar as vivências de mulheres em situação de violência, que solicitam revogação da medida protetiva de urgência.
Método: Utilizou-se a Teoria Fundamentada nos Dados (TFD), de Strauss e Corbin, e o Interacionismo Simbólico, na Delegacia da Mulher de um município paulista, por meio de entrevistas com 28 participantes de dois grupos amostrais: mulheres em situação de violência e profissionais da delegacia.
Resultados: Os resultados foram organizados em categorias relacionadas aos componentes do modelo teórico, “Vivenciando a solicitação da retirada da medida protetiva de urgência”, evidenciando os desafios emocionais e contextuais enfrentados pelas mulheres na busca por ajuda formal. Esses desafios são permeados por sentimentos ambivalentes, experiências de revitimização e diferentes estratégias de enfrentamento para ressignificar suas trajetórias de vida.
Considerações Finais: A revogação relaciona-se às consequências familiares - culpa, arrependimento e tristeza -, apesar de reconhecerem a violência. A incompreensão do sistema judicial e o vínculo afetivo com o perpetrador demonstram a necessidade de contemplar os significados simbólicos das interações na atuação da enfermagem da Atenção Primária.
DESCRITORES
Violência Doméstica; Violência contra a Mulher; Violência por Parceiro Íntimo; Direitos de Gênero; Teoria Fundamentada
ABSTRACT
Objective: To interpret the lived experiences of women in situation of violence who request the revocation of emergency protective orders.
Method: Strauss and Corbin’s Grounded Theory (GT) and Symbolic Interactionism were used at the Women’s Police Station in a town in the State of São Paulo, through interviews with 28 participants from two sample groups: women experiencing violence and police station professionals.
Results: The results were organized into categories related to the components of the theoretical model, “Experiencing the Request to revoke an Emergency Protective Order,” highlighting the emotional and contextual challenges faced by women seeking formal help. These challenges are permeated by ambivalent feelings, experiences of revictimization, and different coping strategies to reframe their life trajectories.
Final Considerations: The revocation is related to family consequences - guilt, regret, and sadness -, despite acknowledging the violence. The lack of understanding of the judicial system and the emotional bond with the perpetrator demonstrate the need to consider the symbolic meanings of interactions in primary care nursing practice.
DESCRIPTORS
Domestic Violence; Violence Against Women; Intimate Partner Violence; Gender Rights; Grounded Theory
RESUMEN
Objetivo: Interpretar las experiencias de mujeres en situación de violencia que solicitan la revocación de medidas de protección de urgencia.
Método: Se utilizaron la Teoría Fundamentada de Strauss y Corbin (TF) y el Interaccionismo Simbólico en la Comisaría de la Mujer de un municipio del Estado de São Paulo, a través de entrevistas a 28 participantes de dos grupos muestrales: mujeres en situación de violencia y profesionales de la comisaría.
Resultados: Los resultados se organizaron en categorías relacionadas con los componentes del modelo teórico «Experimentar la solicitud de revocación de una medida de protección de urgencia», poniendo de relieve los desafíos emocionales y contextuales a los que se enfrentan las mujeres que buscan ayuda formal. Estos desafíos están atravesados por sentimientos ambivalentes, experiencias de revictimización y diferentes estrategias de afrontamiento para resignificar sus trayectorias vitales.
Consideraciones finales: La revocación se relaciona con consecuencias familiares - culpa, arrepentimiento y tristeza -, a pesar del reconocimiento de la violencia. La falta de comprensión del sistema judicial y el vínculo afectivo con el agresor evidencian la necesidad de considerar los significados simbólicos de las interacciones en la práctica de la enfermería de atención primaria.
DESCRIPTORES
Violencia Doméstica; Violencia contra la Mujer; Violencia de Pareja; Derechos de Género; Teoría Fundamentada
INTRODUÇÃO
As lideranças de diferentes países em todo o mundo delinearam estratégias significativas com vistas ao desenvolvimento sustentável, realizando ações que almejam fomentar a equidade em diversos contextos, em conformidade com os direitos e a dignidade humana(1). Nessa perspectiva, pela primeira vez na história, uma agenda de desenvolvimento global investe na urgência da igualdade de gênero enfatizada por intermédio da Meta 5 dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), com implicações em diversas dimensões, seja em educação, economia, saúde, práticas culturais nocivas, como os casamentos forçados e na erradicação de todas as formas de violência contra as mulheres e meninas(2).
Notavelmente, o parceiro íntimo emerge como o principal perpetrador da violência(3). Mundialmente, estima-se que entre 38% e 50% dos homicídios de mulheres ocorram pelas mãos de parceiros íntimos(4), resultantes de um padrão contínuo de abuso, faltando uma compreensão mais significativa sobre os contextos e as motivações que influenciam na decisão de permanecer ou romper o relacionamento violento(5).
No Brasil, país que ocupa o 5º lugar mundial em feminicídios, em média, uma mulher é morta a cada quatro horas, o que totaliza uma taxa diária de 4,3 homicídios femininos por 100 mil mulheres, quase o dobro da média global(6). Essa realidade é mais pronunciada em contextos socioeconômicos desfavoráveis, frequentemente invisibilizados e estigmatizados. Portanto, os esforços para alterar as circunstâncias que essas mulheres enfrentam ainda são insuficientes(7).
A violência perpetrada por parceiros íntimos (VPI) é um fenômeno que afeta tanto homens quanto mulheres. No entanto, este estudo concentra-se na violência de parceiros íntimos cometida por homens contra mulheres, especificamente aquelas que estão em união estável ou coabitantes, cisgêneros, heterossexuais e sexo biológico feminino. É importante ressaltar que, na América Latina e no Caribe (ALC), incluindo o Brasil, os discursos discriminatórios e posturas aparentemente protetoras, expressos por meio do sexismo hostil ou benevolente, reforçam estereótipos de gênero normativos que restringem a autonomia das mulheres(8,9).
Frequentemente, após a formalização da denúncia que qualifica criminalmente o perpetrador, por meio da Lei Maria da Penha (2006), a medida protetiva de urgência é instaurada e o perpetrador é impedido de manter contato ou se aproximar dessa mulher. A medida só poderá ser revogada judicialmente, mesmo que haja qualquer solicitação de sua revogação(10).
Destaca-se que a maioria das intervenções está voltada apenas para a segurança das mulheres em situação de violência doméstica, sem considerar a totalidade dos desdobramentos e das complexidades decorrentes do contato contínuo dessas famílias com os perpetradores. Tais complexidades decorrem das dinâmicas interacionais, da natureza progressiva e cíclica tanto das tentativas de rompimento quanto das relações parentais, elementos imprescindíveis para construção de intervenções efetivas que impactem a experiência das famílias que buscam por ajuda formal(7,10,11).
Ademais, o fenômeno da VPI e a posterior revogação das medidas protetivas configuram uma problemática complexa(10), que demanda uma abordagem interdisciplinar. Por isso, é fundamental que o setor da saúde amplie sua compreensão sobre o tema e fortaleça sua atuação na prevenção desse agravo, na intervenção e na promoção da saúde, sendo a atenção primária à saúde (APS), por meio das unidades de saúde, a referência de cuidado mais próxima e potencial para mulheres em situação de violência. As consultas de enfermagem podem desempenhar papel estratégico na resposta à VPI, ao favorecer a prevenção e a intervenção da VPI com base no cuidado longitudinal das famílias(12).
O estudo busca contribuir para o avanço no campo do cuidado ao evidenciar as nuances frequentemente invisibilizadas nas análises tradicionais sobre a revogação de medidas protetivas por mulheres atendidas nos serviços especializados. Nessa perspectiva, esta investigação busca interpretar as vivências de mulheres em situação de violência, que solicitam revogação da medida protetiva de urgência, por meio da pergunta de pesquisa: quais as vivências de mulheres que solicitam a revogação da medida protetiva?
MÉTODO
Desenho de Estudo
Este estudo qualitativo utilizou como método a Teoria Fundamentada nos Dados (TFD) proposta por Strauss e Corbin(13), e como referencial teórico, o Interacionismo Simbólico (IS)(14). A TFD (que tem como base o IS) consiste em um método indutivo-dedutivo voltado para interpretação de vivências das pessoas inseridas em um determinado contexto social e preza pela criação de teorias fundamentadas sobre o fenômeno em estudo, que é expresso pelo modelo paradigmático. O IS considera a realidade social construída pela interação simbólica entre os indivíduos, em que se atribuem significados às coisas e aos eventos com base nas interações sociais, motivadores de suas ações e interpretações do mundo(14).
A condução do estudo seguiu os pressupostos do Consolidated Criteria For Reporting Qualitative Research (COREQ)(15).
Local do Estudo
O local foi o Departamento de Polícia Judiciária de São Paulo Interior (DEINTER 4) em uma de suas seccionais, que contemplava uma Delegacia de Defesa da Mulher (DDM), localizada em um município de médio porte do Centro-Oeste do Estado de São Paulo, Brasil.
Participantes e Critérios de Seleção
O estudo envolveu mulheres acima de 18 anos em situação de violência com registro de boletim de ocorrência que vieram à Delegacia para solicitar a revogação da MPU no período de setembro de 2021 a julho de 2022. A expressão de gênero não foi considerada critério de inclusão ou exclusão, assumindo-se, implicitamente, a expressão de gênero feminina. Foram excluídas aquelas que apresentaram qualquer comprometimento na capacidade de fornecer informações. O primeiro contato foi realizado pelos profissionais da delegacia que, ao prestarem atendimento, informavam sobre o estudo e, caso houvesse interesse e disponibilidade, a pesquisadora - doutoranda com vasta experiência profissional na área da saúde da mulher na atenção primária e na técnica de entrevistas qualitativas - era acionada. A pesquisadora aproximava-se da mulher, acolhia suas necessidades e explicitava as orientações sobre a participação na pesquisa. Foi utilizada a estratégia de permanência em plantões semanais às segundas e sextas-feiras para maior captação. As mulheres foram selecionadas progressivamente até se observar a ausência de novas informações para a compreensão do fenômeno em pauta, definido por meio de anuência dos autores.
De acordo com a amostragem teórica definida pela TFD(13), desenvolveram-se conceitos que direcionaram os pesquisadores a novos questionamentos e à elaboração de hipóteses que foram respondidas na nova coleta de dados. Portanto, esse novo processo se deu concomitantemente à coleta e à análise dos dados, contando com o suporte dos memorandos. Percebeu-se que, por um lado, as mulheres se sentiam constrangidas de retornar à delegacia para o pedido de revogação, mas, , por outro lado, observou-se o grande envolvimento dos profissionais da delegacia, na tentativa de acolher essas mulheres, apontando para as consequências de voltar ao convívio com o perpetrador. Assim, estabeleceu-se o segundo grupo amostral composto por oito profissionais, ou seja, pela totalidade em atividades na Delegacia de Defesa da Mulher (DDM), sem recusas.
Coleta E Organização Dos Dados
Para adequação do roteiro semiestruturado, foram realizadas três entrevistas piloto, em visitas domiciliares e na delegacia, resultando em pequenas adaptações. No primeiro grupo amostral, foram realizadas 20 entrevistas, que seguiram o roteiro semiestruturado com questões sobre as repercussões da medida protetiva, a decisão da sua retirada, os significados e sentimentos envolvidos. No decorrer das entrevistas, novos questionamentos foram incorporados, incluindo a solicitação para que as participantes descrevessem, detalhadamente, o evento que motivou o pedido da medida protetiva. A estratégia considerou que, no momento da retirada, as mulheres se expressaram de forma divergente ao conteúdo inicial do registro de ocorrência, influenciadas por múltiplos fatores emocionais, sociais e contextuais.
As entrevistas duraram, em média, 40 minutos, e foram acordadas por meio de contato telefônico para definir o local e horário de preferência das entrevistadas, considerando a necessidade de privacidade e segurança tanto da entrevistada quanto da pesquisadora. Assim, foram realizadas quatro entrevistas no domicílio, com a garantia de que os parceiros não estariam presentes, e as 16 restantes ocorreram em sala privada da delegacia.
Para o segundo grupo amostral, foram realizadas oito entrevistas agendadas, no local de trabalho, seguindo um roteiro semiestruturado contendo, além dos dados de identificação, questão sobre como eles percebem a situação das mulheres que solicitam a revogação da medida protetiva de urgência durante o atendimento na delegacia. Essas entrevistas tiveram duração média de 30 minutos, foram áudio gravadas com uso do MP3 Player, conduzidas e transcritas na íntegra pela pesquisadora principal, doutoranda com experiência profissional na área da saúde da mulher e na técnica de entrevistas qualitativas. A transcrição ocorreu logo após a realização de cada entrevista, dando início ao processo de análise para identificar a necessidade de aprofundamento nos dados, assim como proposto pela TFD.
Análise Dos Dados
Em conformidade com as etapas do método da Teoria Fundamentada nos Dados (TFD) Straussiana(13), a análise teve início com a codificação aberta. Nessa fase, os dados foram examinados minuciosamente, linha a linha, por meio de constantes questionamentos, com a finalidade de conceitualizar os significados expressos pelos participantes, permitindo compreender o que cada dado representa. Na segunda etapa, com a codificação axial, os dados foram reagrupados conforme suas relações e conexões, desenvolvendo explicações mais abrangentes sobre o fenômeno investigado. Este processo visa torna-los mais direcionados e conceituais, por intermédio de um movimento indutivo e dedutivo, que possibilita a identificação de padrões e relacionamentos entre os dados. Nesta etapa, houve uma integração entre as categorias, e o ponto principal foi a descoberta da categoria central ou fenômeno. Na codificação seletiva, foram escolhidas as categorias mais relevantes que integraram os dados em uma teoria mais abrangente(13); o software NVIVO Plus, versão 11 foi utilizado.
Nesse contexto, tem-se o modelo paradigmático, abrangendo os seguintes componentes: condições, ações-interações e consequências. As condições referem-se às razões ou explicações pelas pessoas do porquê/como respondem às situações problemáticas. As ações/interações são significados atribuídos por elas aos eventos/situações problemáticas vivenciadas e como manejam/alcançam seu objetivo. As consequências são resultantes das ações/interações(14).
Salienta-se que todo o processo de análise dos dados foi realizado, inicialmente, pela pesquisadora principal e, na sequência, analisado por uma das pesquisadoras com experiência na técnica de análise, ocasião em que foram realizados apontamentos e reflexões que levaram ao consenso sobre os códigos, categorias e subcategorias. A validação da interpretação dos dados ocorreu por meio do retorno às mulheres e aos profissionais da delegacia, bem como ao grupo de pesquisadores envolvidos, com a apresentação dos resultados e das reflexões acerca das inter-relações que culminaram no modelo teórico.
Aspectos Éticos
O estudo integra o Projeto de Pesquisa - “A violência doméstica contra as mulheres: vivências e repercussões com a solicitação de revogação da medida protetiva de urgência” - aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa (CEP) da Instituição proponente, conforme o Parecer nº 4.735.433. O Termo de Consentimento Livre e Esclarecido foi obtido de todos os participantes envolvidos no estudo, por escrito, pessoalmente. Soma-se, aos preceitos éticos, a substituição dos nomes dos entrevistados para menção das falas no texto, sendo M (Mulher) e D (profissional da delegacia), seguido do número referente à ordem de realização da entrevista.
RESULTADOS
Na caracterização das 20 mulheres em situação de violência, identificou-se prevalência na faixa etária de 36 a 45 anos, autodeclaração da cor (cor parda ou negra), com conclusão do ensino médio. Quanto aos profissionais, a maioria é de mulheres na faixa etária acima de 40 anos, que se declararam de cor branca, com tempo médio de atuação na Delegacia de Defesa da Mulher (DDM), entre um e cinco anos. O processo de análise dos dados suscitou 1.192 códigos substantivos, 16 subcategorias e 4 categorias. No Quadro 1, observa-se a distribuição das categorias e respectivas subcategorias, que culminam no fenômeno: “Vivenciando a solicitação da retirada da medida protetiva de urgência”.
Distribuição das Categorias e Subcategorias do Fenômeno “Vivenciando a solicitação da retirada da medida protetiva de urgência” – Marília, SP, Brasil, 2025.
Na interpretação do fenômeno central “Vivenciando a solicitação da retirada da medida protetiva de urgência”, considera-se como condição a categoria: “Contextualizando as consequências pela formalização da denúncia”; o componente ações-interações foi verificado nas categorias: “Reconhecendo a dinâmica cíclica da violência e seus condicionantes” e “Justificando a revogação da medida protetiva de urgência”. Foi definido como consequência a categoria: “Buscando caminhos para ressignificar a vida”.
Neste contexto, foi possível constatar que, após a realização do boletim de ocorrência e da solicitação de medida protetiva de urgência, as mulheres experienciam repercussões em suas próprias vidas, em seus filhos e na vida do perpetrador, provocando um misto de emoções, além de aflorarem dificuldades e necessidades que carecem de enfrentamentos, o que nem sempre é possível diante dos recursos emocionais e sociais dos quais dispõem.
Apesar da condição de solicitação da retirada da medida protetiva, elas reconhecem a existência da violência manifestada de diferentes formas, com destaque para a agressão física, a violência psicológica e moral, bem como a reiteração implacável desses episódios. Ademais, as motivações elencadas por essas mulheres para os eventos violentos referem-se à demanda por separação, interligações com o uso de substâncias psicoativas, como álcool e/ou drogas ilícitas. Porém, nesse movimento de ação e interação, buscam justificar a solicitação de revogação da medida protetiva de urgência, sugerindo uma oscilação entre o desejo de proteção e o pesar por suas decisões. Como consequência, constata-se a intencionalidade de superação dessa condição por meio da busca pela independência do perpetrador e o apego à religiosidade.
As interpretações do fenômeno também se sustentam nas observações dos profissionais da Polícia Judiciária, que destacam a gravidade progressiva dos episódios de violência e a utilização da medida protetiva como estratégia de proteção e, contraditoriamente, de poder e controle sobre o perpetrador.
A análise permitiu a elaboração do modelo paradigmático apresentado (Figura 1) a partir da Teoria Fundamentada nos Dados. Essa construção surge da interpretação do fenômeno central - “Vivenciando a solicitação da retirada da medida protetiva de urgência” - como um processo experiencial cíclico e dinâmico de tomada de decisão, influenciado e transversalizado por dimensões sociais, emocionais e contextuais.
Fenômeno “Vivenciando a solicitação da retirada da medida protetiva de urgência”. Marília, SP, Brasil, 2025.
Condição - Contextualizando as Consequências Pela Formalização da Denúncia
A realização do boletim de ocorrência e da solicitação de medida protetiva de urgência traz consequências para a vida dessas mulheres, de seus filhos e, também, para os próprios perpetradores. Os filhos, mesmo querendo a proteção de suas mães, vivenciam a ausência do pai e sofrem com isso. Os perpetradores utilizam-se do desejo de regressar ao convívio familiar, expressados e relatados pelas mulheres pelos pedidos de reconciliação, temor da prisão e o impacto negativo no vínculo profissional. Para as mulheres, os registros de ocorrência suscitaram impactos emocionais descritos por sentimentos diversos, como culpa, arrependimento, medo, frustração e vergonha por ter realizado a denúncia e ter iniciado o processo judicial. Para os profissionais da delegacia, aumentam-se as atenções em virtude dos riscos de coação para a revogação das MPU.
[...] a minha pequena essa semana teve febre, ela perguntou: mãe, quando o papai vai voltar. (M4)
[...] nós estamos bem mas muito chateado com o que aconteceu e com medo dele ser preso. (M11)
[...] ele ficou desesperado, mandava um monte de mensagem pedindo perdão para voltar para casa [...] (M17)
Do fato de eu ter que vir aqui fazer o boletim de ocorrência, eu me senti muito envergonhada perante as pessoas. (M13)
[...] quando elas voltam para retirar a medida, eu entendo que se arrependeram, muitas vezes, perdoaram. [...]eu acredito, que elas seriam coagidas a solicitar a retirada, mas geralmente, alegam a cabeça quente mesmo e o perdão. (D3)
[...] há preocupação em saber se de fato não está sendo coagida[...] (D6)
Ação-Interação --Reconhecendo a Dinâmica Cíclica da Violência e Seus Condicionantes
Apesar de solicitarem a revogação da medida protetiva, as entrevistadas reconhecem que passaram por diferentes tipos de violência. A violência física manifestou-se em atos, como socos, chutes, espancamentos e estrangulamentos, deixando perceptível a maldade e crueldade do ato. A violência patrimonial manifestou-se em formas distintas e caracterizadas pela destruição de pertences e patrimônio, acarretando prejuízos. As violências psicológica e moral foram demonstradas por falas do perpetrador carregadas de ameaças e chantagens emocionais, termos ofensivos, desvalorizantes e depreciativos, até mesmo com a aparência física.
Os relatos destacam a dinâmica da conjugalidade baseada na recorrência da violência e negligência a medidas judiciais anteriores. Para os profissionais da Polícia Judiciária, há a sensação de progressiva gravidade dos atos e aumento dos casos com padrões de repetição.
Ele virava o meu braço assim, com tanta maldade, com tanta crueldade, que você via no olhar dele que queria quebrar mesmo. (M6)
Aí, continuou me chamando de vagabunda... você está gorda e feia [...]se eu largasse dele, ele me mataria. (M1)
[...]ele não fica agressivo comigo, mas ele joga objetos dentro de casa. (M15)
Porque tinha medida protetiva, mas ele nunca respeitou[...] (M19)
[...]porque o que era um xingamento, passou a ser um tapa, uma ameaça, quebrou o braço, quebrou um dente. A gente fala, o próximo vai ser um BO de seu óbito? Mas elas não se abalam. (D2)
[...]a violência doméstica é muito raro ela ir melhorando, o comum é que ela vai piorando. (D6)
Inclusive, ela acabou de falar que no início do ano, ela tinha feito uma protetiva e revogou porque ela acreditou nas promessas do marido. (D7)
As mulheres destacam fatores que desencadeiam a violência, incluindo comportamentos, como ciúmes, possessividade, controle sobre a vítima, descontrole emocional, desconfiança, bem como solicitação da separação. Há relatos de vivência em situação de violência ao longo da vida, tanto por parte das mulheres quanto dos perpetradores, incluindo experiências de relacionamentos abusivos anteriores e traumas de infância. Associam, fortemente, o consumo abusivo de álcool e drogas ilícitas à violência, pelo perpetrador ou por ambos, resultando em perda de controle e comportamentos agressivos.
[...]ele me ameaçou que se eu separasse ou pedisse o divórcio que faria da minha vida um inferno, que iria no meu trabalho, que tiraria o carro[...] (M12)
Ele é ciumento, muito conturbado [...] Idas e vindas, brigas, muito possessivo, ele enxergava coisas [...] (M10)
[...]quando ele bebe, ele tem lado machista, o gênio ruim, ele fala: eu sou ruim mesmo, não sou bom. (M5)
[...]tem um histórico violento [...] M6
Cada caso é um [...] muitos casos a vítima já vem de uma infância assim, para ela é normal. (D8)
Nesse contexto, considera-se que a motivação para procurar a Delegacia se deu pela busca por alívio da situação.
[...] aí criei coragem e vim na delegacia. (M4)
[...] para mim, a delegacia foi um ponto de alívio. (M1)
[...]você volta a ser útil! Um exemplo, uma instrução, de falar para a pessoa o que pode fazer para melhorar aquela situação [...]É uma experiência que eu vou levar para minha vida. (D7)
Ação-Interação - Justificando a Revogação da Medida Protetiva de Urgência
Apesar de reconhecerem a brutalidade da violência e que os fatores inerentes a ela, muitas vezes, compreendem hábitos que dificilmente serão eliminados, as mulheres entrevistadas justificam a revogação pela a crença de que a violência não se repetirá. Há uma busca em refazer a imagem do perpetrador, seja por admitir culpa, alegando precipitação e, até mesmo, alegando que mentiram no momento da denúncia. Outrossim, há o desejo de manutenção da família, arrependimento do perpetrador, sentimentos de amor, dependência emocional e financeira.
Os profissionais da Polícia Judiciária, por sua vez, indicam que a utilização da medida protetiva representa uma forma de exercer o poder e o controle sobre as ações do perpetrador. Ademais, o desconhecimento sobre a Lei Maria da Penha leva à utilização da MPU como um recurso de proteção temporária e de fácil revogação.
E acontecer de novo não vai [...]ele foi bem claro que ele não queria fazer isso. Pediu desculpas [...] (M2)
Eu precipitei porque não precisava[...] estamos bem, indo na igreja, se um dia não der, eu separo e pronto. (M12)
[...] o vínculo emocional é muito forte. (D4)
Vou ter que falar a verdade, eu menti mesmo correndo o risco de ser processada [...] (M11)
[...]às vezes é a única forma que elas têm diante do que elas vivem, de ter um poder, o controle na mão, uma moeda de troca. (D2)
[...]ela se convence que a pessoa vai mudar porque ela quer se convencer, porque ela gosta da pessoa, então acha que fazendo a medida e depois tirar, vai resolver, e não, não resolve. (D4)
Consequências - Buscando Caminhos Para Ressignificar a Vida
As entrevistadas revelam o desejo de reconstruir suas vidas, com ou sem a presença do perpetrador, motivadas pela busca por independência financeira e alternativas legais, como o seguimento de processos civis de separação. Ainda há aquelas que mobilizaram recursos emocionais e espirituais para prosseguir com o parceiro, reconhecendo suas próprias potencialidades, a necessidade de diálogo e do afastamento de familiares “potencialmente prejudiciais”.
Os profissionais da Polícia Judiciária indicam a necessidade de uma rede de cuidados efetiva em casos de violência doméstica, visando à redução das revitimizações e à revogação de medidas protetivas.
Quero trabalhar, entregar currículo. [...]estou com advogado e vou me separar. (M1)
[...] quero voltar a trabalhar, estando com ele ou não. (M4)
Comecei a fazer os cursos que eu queria fazer, a viver a minha vida [...] a pensar diferente, ver que eu posso fazer coisas sem ele. (M3)
[...] estamos conversando bastante, indo na igreja e respeitando um ao outro. (M12)
[...]eu acredito que Deus vai mudar o jeito dele [...]é o que tem me dado força, minha fé. (M17)
[...] eles precisam de tratamento psicológico mesmo [...] (D2)
[...] precisa ter uma equipe multidisciplinar para fazer o primeiro acolhimento[...]os profissionais de saúde, assistência social, e a defensoria pública, seria o necessário. (D4)
DISCUSSÃO
Entre as mulheres em situação de violência doméstica deste estudo, os dados socioeconômicos, como cor, faixa etária e escolaridade, revelam características de pleno desenvolvimento reprodutivo e potencial para ascensão econômica e social, o que, paradoxalmente, reforça as condições de vulnerabilidade dessas mulheres. Nesse contexto, os trajetos em busca de ajuda nos espaços jurídico-policiais são permeados por intensos sentimentos e sofrimentos, além de expressões progressivas e cíclicas da violência(16).
Faz-se necessária uma reflexão sobre a interação complexa entre normas socioeconômicas e gênero, uma vez que desafiar elementos estruturantes da sociedade que incidem sobre a violência e moldam os papeis de gênero pode desencadear outros fatores estressores. Esses, por sua vez, aparecem nas justificativas apresentadas pelas mulheres entrevistadas, com riscos de redução de toda complexidade inerente ao papel de gênero esperado na sociedade. Além disso, na ótica da masculinidade hegemônica, haveria a manutenção do status quo social e, mais uma vez, a culpabilização da mulher(8,9).
Essa compreensão favorece discussões sobre a importância da promoção de aspectos protetores e emancipadores, como a expansão dos direitos e segurança econômica, autonomia, adequado nível educacional e uma atenção à saúde efetiva, retomando a potencialidade das consultas de enfermagem na APS para detectar, aconselhar e intervir nas situações de VPI(12).
Na interpretação dos dados das entrevistas que revelam o fenômeno “Vivenciando a solicitação da retirada da medida protetiva de urgência”, os profissionais da delegacia alegaram que, diferentemente de outras violações de direitos que acompanhavam, a violência doméstica contra as mulheres sofre grande influência emocional. Esse fator torna-se uma barreira para o rompimento da relação, seja pela aceitação dos pedidos de desculpas e demonstrações de arrependimento, seja por barreiras sociais relacionadas à conjugalidade, dificuldades financeiras e a responsabilidade sobre os filhos(17).
Na mesma linha da presente investigação, estudos realizados nos Estados Unidos sobre a revogação de Ordens de Proteção identificaram que, ao formalizarem as petições dessas ordens, as mulheres expressavam temor e, posteriormente, incorporavam conceitos do amor romântico à reconciliação e ao potencial de transformação. Esse processo culminava em esforço retórico para reconstruir a imagem do perpetrador, valorizando a paternidade e as promessas de mudança do parceiro – o ciclo da violência(18,19).
Portanto, as razões para a revogação das medidas, assim como nesta investigação, transcendem a mera percepção de dependência econômica dos parceiros íntimos, visto que envolvem fatores multidimensionais(10). Esses fatores justificam a contrariedade de sentimentos que permeiam o processo de revogação, relatados pelas mulheres envolvidas nesse fenômeno. Tal fato demonstra que as escolhas conscientes de manutenção do relacionamento estão, frequentemente, na crença de que enfrentar as possíveis consequências de uma saída da relação poderia resultar na piora da situação, como um comportamento adaptativo advindo de distorções cognitivas(20,21), configurando jornada cíclica vivenciada por essas mulheres e confirmada pelos profissionais da delegacia.
A condição de ausência de contato imposta pela medida protetiva de urgência, nos termos da lei, gera a sensação de prejuízos à paternidade do perpetrador. Por isso, os processos judiciais envolvendo crianças exigem maior atenção para garantir a segurança e o bem-estar da criança e da mãe, outrora vitimizada(17). A crença de que a necessidade dos filhos estaria acima das suas próprias orienta a permanência dessas mulheres no relacionamento, mesmo que isso signifique exposição ao risco de revitimização(17,18).
Embora tenham solicitado a revogação da MPU, a interpretação dos dados revela que elas reconhecem a ocorrência de diferentes tipos de violência, incluindo a agressão física, frequentemente caracterizada por atos brutais com lesões físicas e emocionais duradouras, aumentando os impactos sobre a saúde mental, como depressão e ansiedade(22). O reconhecimento da violência psicológica e moral, por sua vez, apresenta-se como a tipificação de violência mais dolorosa e insidiosa com repercussões que reverberam na autoestima e saúde mental, resultando em sintomas psíquicos e transtorno do estresse pós-traumático. Configura-se como um sistema sutil e asfixiante de controle e poder, marcado pela submissão e medo, mergulhando essas mulheres em um espiral de angústia e vulnerabilidade(23).
Outrossim, nos relatos coletados, observa-se uma dinâmica familiar violenta, de caráter cíclico e progressivo, que impacta na capacidade da mulher de estabelecer conexões e dificulta a solicitação de ajuda. Além disso, esse padrão reverbera em outras relações e interações sociais da família, fragilizando o papel parental(24). Esses achados remetem aos pressupostos do interacionismo simbólico, o qual postula que os seres humanos agem no mundo segundo os significados atribuídos nas interações sociais, moldados por sua capacidade comunicativa(14).
Adicionalmente, o álcool e demais substâncias psicoativas estão fortemente associados à violência doméstica contra as mulheres. Os padrões de violência perpetrada por homens embriagados são imprevisíveis e ilógicos, desencadeando uma errática percepção de culpa nas vítimas, que não conseguem prever ou evitar tais atos(25). Nesse contexto, as condições de vida e as relações sociais direcionam a percepção dos indivíduos no seu modo de viver(14).
Embora os resultados apontem o ciúme masculino como fator desencadeante de conflitos e violência, o ciúme feminino também pode desempenhar esse papel. Contudo, há uma justificativa socialmente aceitável de que o ciúmes masculino seria uma ação reativa ao comportamento da mulher, uma responsabilização culposa(26). Essa ideia advinda da masculinidade hegemônica reforça os estereótipos e estigmas que envolvem a temática da violência contra as mulheres.
Os fatores anteriormente discutidos e atrelados ao histórico pessoal dos perpetradores, influenciado por perspectivas socioculturais e familiares, pode ser uma variável explicativa para a violência doméstica na idade adulta, com implicações para futuras práticas parentais(27).
As emoções desempenham um papel mediador de significados, especialmente quando se considera o IS. O medo, a culpa e o apego são ressignificados dentro da dinâmica da relação, e a permanência em uma condição de risco passa a fazer sentido para mulheres em situação de violência, reforçando o apego emocional aos perpetradores. A percepção das nuances emocionais e psicológicas dessas mulheres, aliada a estratégias de apoio, é fundamental para uma assistência de enfermagem que visa promover o rompimento deste ciclo perverso(14,23,24).
Os recursos da assistência à saúde devem ser aliados à aplicação da lei, a fim de proporcionar à sociedade a atenção devida, uma vez que a violência doméstica configura uma violação dos direitos humanos, alinhando-se aos pressupostos globais de erradicação da violência contra as mulheres(1,2). Nesse sentido, é necessária uma abordagem que considere não apenas os aspectos legais, mas também os significados e as dinâmicas simbólicas que sustentam essas atitudes(14).
A percepção do risco imposto por um relacionamento violento motiva as mulheres a buscar ajuda, o que pode ser justificado pela escalada da violência, pelo desejo de proteção dos filhos, pelo rompimento da intergeracionalidade da violência, pela sensação de medo em relação à própria vida e/ou à vida dos filhos, e por mudanças na percepção do vínculo romântico com o perpetrador, fatores que convergem com os achados do presente estudo(28). Esse processo ressalta que os significados se transformam conforme a interpretação que a pessoa faz dos eventos de seu cotidiano, sempre imersos nas relações sociais(14).
A coragem da mulher em situação de violência, ao enfrentar o sistema legal, reflete o desejo de pôr fim à espiral de violência, tornando pública a violação de seus direitos. A tipificação específica da violência doméstica nos códigos legais de diversos países reflete a necessidade de responsabilizar os perpetradores, contrapondo-se à cultura de impunidade e garantindo a proteção das vítimas(29). Para garantir essa proteção, a Lei Maria da Penha, no Brasil, prevê a instauração de medidas protetivas de urgência, por meio da solicitação das vítimas, deflagrando a ativação dos demais mecanismos judiciais ao recorrer à Delegacia de Polícia Judiciária(10).
O silêncio de muitas mulheres e a revogação das medidas protetivas refletem um padrão de sobrevivência que não deve ser interpretado como passividade. Em vez disso, deve ser compreendido como uma resposta às condições de alta vulnerabilidade, moldada por múltiplos fatores, como estilos de comunicação, estratégias de autorregulação emocional, habilidades de resolução de conflitos e percepção dos fatos. A escolha da mulher em manter o relacionamento abusivo pode ser vista como uma tentativa de lidar com a incerteza e os riscos associados, especialmente quando o suporte institucional e social é limitado(20). À luz do Interacionismo Simbólico, esse comportamento é moldado pelos significados que essas mulheres atribuem às suas experiências(14).
Muitas mulheres vivenciam uma dissonância cognitiva diante dos primeiros sinais de violência, oscilando entre negar o perigo e justificar o comportamento(20). Esse julgamento é um processo mental profundamente influenciado pelas interações simbólicas(14), como as mensagens recebidas do seu contexto social, sobretudo do perpetrador e dos filhos.
Equívocos e preconceitos perpetuam percepções estereotipadas, subjugando a autonomia das mulheres em momentos críticos em que poderiam exercê-la. O apoio sistemático e formal demonstrou ser duas vezes mais eficaz para a saída dos relacionamentos violentos nos dois anos subsequentes, em comparação com aquelas que não receberam esses serviços(30). Além disso, outras tipologias de violência não foram descritas, reforçando a ideia de naturalização desse fenômeno na sociedade, especialmente em relação às masculinidades e feminilidades tradicionais que reforçam os comportamentos estereotipados(8,9).
É necessário uma mudança estrutural e cultural sobre como a violência é percebida, muitas vezes ocultada por dinâmicas emocionais complexas. Deve-se investir em estratégias preventivas e de apoio que capacitem as mulheres a recuperar sua autonomia e segurança, favorecendo o protagonismo da Enfermagem da Atenção Primária no acompanhamento de mulheres em situação de violência.
Limitações do Estudo
Considera-se um fator limitante do estudo a especificidade da abordagem, que se concentrou nas mulheres em situação de violência que recorreram à delegacia para solicitar a revogação da medida protetiva de urgência. Outros aspectos do complexo universo das mulheres em situação de violência limitam a generalização dos resultados, como aquelas que abandonaram os processos judiciais encaminhados ao Fórum, as que não revogaram formalmente a medida protetiva e ressignificaram suas vivências, bem como as vítimas de feminicídio.
Contribuições Para a Área da Enfermagem, Saúde Ou Políticas Públicas
O estudo contribui com uma abordagem abrangente sobre a temática da violência doméstica contra as mulheres, destacando a potencialidade dos profissionais da saúde, em especial da enfermagem na APS, que nas suas práticas comunicativas podem auxiliar essas mulheres a ressignificar suas vidas. Reforça-se a perspectiva dos direitos de gênero, promovendo a autonomia das mulheres nas tomadas de decisões e na proteção contra a revitimização, um papel essencial para a enfermagem na busca pela erradicação dessa violência. Almeja-se contribuir com o campo do processo de cuidar, na perspectiva da interdisciplinaridade, aliado às políticas atualizadas de aplicação da lei para uma abordagem livre de compreensões estereotipadas que tendem a subjugar a autonomia.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Na interpretação das vivências de mulheres em situação de violência doméstica que solicitaram a revogação das medidas protetivas de urgência, evidencia-se a complexidade e a magnitude dos desafios enfrentados por elas. Ao optarem pela retirada das medidas, elas avaliam as repercussões da decisão não apenas sobre si mesmas, mas sobre os filhos e o perpetrador, sendo atravessadas por sentimentos ambíguos, como culpa, arrependimento e tristeza, mesmo quando reconhecem a vivência violenta e os fatores que contribuem para sua continuidade.
As dificuldades em compreender e sustentar o processo judicial criminal, associadas à persistência do ideal do amor romântico e ao vínculo parental com os perpetradores, constituem motivações frequentes para a revogação das medidas protetivas. Em muitos casos, as mulheres resistem em romper completamente com a dinâmica familiar violenta, acreditando que sua manutenção assegura algum tipo de estabilidade emocional ou material aos filhos ou para o núcleo familiar.
Contudo, estratégias para ressignificar suas vidas emergem de forma significativa, revelando que, mesmo diante de um cenário adverso e de decisões complexas, essas mulheres demonstram intencionalidade na reconstrução de suas trajetórias. Esse processo não ocorre de maneira linear ou imediata, manifesta-se na busca por autonomia, no fortalecimento da fé e na construção de novas perspectivas de vida, indicando movimentos de superação e resistência.
Salienta-se que os referenciais teóricos adotados - IS e TFD - foram oportunos para a interpretação das vivências das mulheres em situação de violência doméstica, permitindo dar visibilidade às dinâmicas simbólicas e emocionais que influenciam suas decisões e percepções. Espera-se que novos estudos na área possam contribuir para a qualificação do cuidado, promovendo intervenções sensíveis e eficazes, que viabilizem a ruptura do ciclo de violência e a construção de novas possibilidades sociais para as mulheres.
DISPONIBILIDADE DE DADOS
O conjunto de dados referentes aos resultados trabalhados no software NVIVO Plus, versão 11, encontram-se disponíveis em: https://doi.org/10.48331/SCIELODATA.RRXQOX.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
05 Dez 2025 -
Data do Fascículo
2025
Histórico
-
Recebido
03 Fev 2025 -
Aceito
03 Set 2025


