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A terceirização e o "desmonte" do emprego estável em hospitais* * Extraído da dissertação: "A interpretação do trabalho em enfermagem no capitalismo financeirizado: um estudo na perspectiva teórica do fluxo tensionado". Universidade de São Paulo, Faculdade de Saúde Pública, 2015.

Resumo

OBJETIVO

Relacionar a estrutura organizativa dos hospitais como núcleo de uma rede de serviços subcontratados e a flexibilização dos vínculos contratuais dos profissionais de saúde no contexto de capitalismo financeirizado, analisando os regimes de trabalho condicionados centralmente pelo vínculo empregatício.

MÉTODO

Pesquisa qualitativa através de etnografia, realização de entrevistas, análise de dados e utilização de estudo de caso. Os estudos de caso concentram-se em três hospitais localizados Região Metropolitana de São Paulo com gestões distintas: administração pública; administração terceirizada para Organização Social de Saúde (OSS); e administração privada.

RESULTADOS

Destacamos a tendência da terceirização, do desmonte do emprego estável e a conformação de relações trabalhistas assimétricas para as profissões em saúde.

CONCLUSÃO

Esses aspectos são característicos do período do capitalismo contemporâneo e da organização pós-fordista do trabalho. Nesse contexto, o subfinanciamento do Estado inviabiliza uma política de recursos humanos efetiva, configurando o ambiente propício para as terceirizações e flexibilidade do vínculo empregatício para os trabalhadores de saúde.

Descritores
Capitalismo; Força de Trabalho; Emprego; Serviços Terceirizados; Pessoal de Saúde; Recursos Humanos em Hospital

Abstract

OBJECTIVE

To relate hospitals' organizational structure as the core of a web of outsourced services and flexible employment bonds among healthcare professionals in the context of finance capitalism, analyzing work arrangements based mainly on the type of employment bond.

METHOD

Qualitative research through ethnography, interviews, data analysis, and case studies. The case studies were concentrated in 3 hospitals located in the São Paulo metropolitan region under different management types: public administration; outsourced administration via a healthcare social organization (HSO); and private administration.

RESULTS

This study highlights a trend in outsourcing, dismantling of steady jobs, and shaping working relations asymmetrically in terms of healthcare professions.

CONCLUSION

These aspects are characteristic of contemporary capitalism and post-Fordist work organization. In this context, the state under sponsorship cripples the very existence of an effective human resources policy, creating a favorable environment for outsourcing and flexibility of employment bonds among healthcare workers.

Descriptors
Capitalism; Labor Force; Employment; Outsourced Services; Health Personnel; Personnel, Hospital

Resumen

OBJETIVO

Relacionar la estructura organizativa de los hospitales como núcleo de una red de servicios subcontratados y la flexibilización de vínculos contractuales de los profesionales sanitarios en el marco del capitalismo financierizado, analizando los regímenes laborales condicionados centralmente por el vínculo de empleo.

MÉTODO

Investigación cualitativa mediante etnografía, realización de entrevistas, análisis de datos y utilización de estudio de caso. Los estudios de caso se concentran en tres hospitales ubicados en la Región Metropolitana de São Paulo con gestiones distintas: administración pública; administración tercerizada para Organización Social de Salud (OSS); y administración privada.

RESULTADOS

Destacamos la tendencia de la tercerización, del desmonte del empleo estable y la conformación de relaciones laborales asimétricas para las profesiones sanitarias.

CONCLUSIÓN

Dichos aspectos son característicos del período del capitalismo contemporáneo y la organización post-fordista del trabajo. En ese marco, la subfinanciación del Estado inviabiliza una política de recursos humanos efectiva, configurando el ambiente propicio para las tercerizaciones y la flexibilidad del vínculo de empleo para los trabajadores de la salud.

Descriptores:
Capitalismo; Fuerza de Trabajo; Empleo; Servicios Externos; Personal de Salud; Personal de Hospital

Introdução

A discussão sobre a inserção no mercado de trabalho não é tema recente no campo da Saúde Coletiva e das profissões em saúde. Inclusive, o trabalho em saúde foi abordado sob essa perspectiva pioneiramente por Donnangelo em seu célebre livro "Medicina e Sociedade: o médico e seu mercado de trabalho"11 Donnangelo MC. Medicina e sociedade: o médico e seu mercado de trabalho. São Paulo: Pioneira; 1975.. Contudo, a partir da década de 1990, observamos a tendência da terceirização parcial ou total dos serviços hospitalares por meio do instrumento de transferência de gestão do ente público para as Organizações Sociais de direito privado22 Andreazzi MFS, Bravo MIS. Privatização da gestão e organizações sociais na atenção à saúde. Trab Educ Saúde. 2014;12(3):499-518. -33 Carneiro CCG, Martins MIC. Novos modelos de gestão do trabalho no setor public de saúde e o trabalho do agente comunitário de saúde. Trab Educ Saúde. 2015;13(1):45-65. , com reflexos significativos no cotidiano dos profissionais de saúde, especialmente as categorias da Enfermagem, por serem majoritárias nos hospitais, sendo aspecto fundamental para se refletir atualmente sobre a realidade dos recursos humanos do segmento44 Silva LIMC, Peduzzi M. Os recursos humanos de enfermagem da perspectiva da força de trabalho: análise da produção científica. Rev Esc Enferm USP. 2005;39(n.esp.):589-96.. Neste artigo apresentamos como os serviços hospitalares organizam-se conforme a estrutura "núcleo-periferia"55 Durand JP. A refundação do trabalho no fluxo tensionado.Tempo Soc. 2003;15(1):139-58. , associada ao desmonte do emprego estável. Apontamos ainda os diversos elementos da política econômica e da legislação do Estado Nacional66 Pierantoni CR. As reformas do Estado, da saúde e recursos humanos: limites e possibilidades. Ciênc Saúde Coletiva. 2001;6(2):341-60.-77 Lourenço EAS. Terceirização: a derruição de direitos e a destruição da saúde dos trabalhadores. Serv Soc Soc. 2015;(123):447-75. forjadores do contexto propício para tal precarização do contrato de trabalho.

A análise do vínculo empregatício é determinante para o entendimento da conformação dos regimes de trabalho88 Burawoy M. A Transformação dos regimes fabris no capitalismo avançado [Internet]. São Paulo; 1990 [citado 2015 ago. 15]. Disponível em: Disponível em: http://www.anpocs.org.br/portal/publicacoes/rbcs_00_13/rbcs13_02.htm
http://www.anpocs.org.br/portal/publicac...
-99 Nichols T, Cam S, Wen-chi GC, Soonok C, Wei Z, Tongqing F. Factory regimes and the dismantling of established labor in Asia: a review of cases from large manufacturing plants in China, South Korea and Taiwan [abstract] . Work Employ Soc. 2004;18(4):663-85.) dos profissionais nos serviços de saúde. Nessa perspectiva, diversos aspectos do cotidiano têm o tipo de contrato como pressuposto, tais como poder no local de trabalho, autonomia, mercado interno de trabalho (promoção, transferências, demissão), remuneração, ação coletiva entre outros1010 Pessanha EGF, Artur K. Direitos trabalhistas e organização dos trabalhadores num contexto de mudanças no mundo do trabalho: efeitos sobre os trabalhadores da saúde. Ciênc Saúde Coletiva. 2013;18(6):1569-80.

11 Cordeiro L, Soares CB. Work process in Primary Health Care: action research with Community Health Workers. Ciênc Saúde Coletiva. 2015;20(11):3581-8.
-1212 Martins MIC, Molinaro A. Reestruturação produtiva e seu impacto nas relações de trabalho nos serviços públicos de saúde no Brasil. Ciênc Saúde Coletiva. 2013;18(6):1667-76.. A nosso ver, os aspectos concernentes à terceirização e à flexibilização do vínculo laboral dos profissionais de saúde devem ser debatidos no temário do balanço da efetivação do Sistema Único de Saúde (SUS) no capitalismo contemporâneo, sob a dominância do capital financeiro1313 Campos CMS, Viana N, Soares CB. Transformations in contemporaneous capitalism and its impact on state policies: the SUS in debate. Saúde Soc. 2015;24 Suppl 1:82-91.

14 Mendes A. Brazilian public health in the context of a State crisis or a crisis of capitalism? Saúde Soc. 2015;24 Suppl.1:63-78.
-1515 Mendes A. The long battle for SUS funding [editorial]. Saúde Soc. 2013;22(4):991-3..

O direito universal à saúde inscrito na Constituição de 1988 foi constrangido pelo subfinanciamento nestes últimos 27 anos, que são justamente aqueles em que o capital financeiro (o capital portador de juros segundo Marx)1616 Marx K. El capital: crítica de la economía política. México: Fondo de Cultura Económica; 1987. Libro III. , principalmente na sua forma mais perversa de capital fictício, manteve-se soberano entre os diferentes tipos de capital - industrial e comercial. Sua forma de atuação tem, entre outros efeitos, debilitado os orçamentos do fundo público, o que compromete a manutenção dos direitos relacionados ao que se convencionou chamar de Estado do Bem-Estar Social ou a concretização dos novos direitos em países tardios nesse processo, tal como o Brasil1717 Mendes A. O fundo público e os impasses do financiamento da saúde universal brasileira. Saúde Soc. 2014;23(4):1183-97..

A presença considerada do capital fictício não pode ser tomada como um descontrole ou distorção, mas, especialmente, como parte da busca incessante do capital valorizar-se - no contexto de recuo do capital industrial - mesmo ela sendo fictícia, sem produzir mais-valia e funcionando de maneira especulativa1515 Mendes A. The long battle for SUS funding [editorial]. Saúde Soc. 2013;22(4):991-3.

16 Marx K. El capital: crítica de la economía política. México: Fondo de Cultura Económica; 1987. Libro III.
-1717 Mendes A. O fundo público e os impasses do financiamento da saúde universal brasileira. Saúde Soc. 2014;23(4):1183-97.. Como argumenta Marx no livro III de O Capital1616 Marx K. El capital: crítica de la economía política. México: Fondo de Cultura Económica; 1987. Libro III. , trata-se da forma mais fetichista do capital: dinheiro que faz dinheiro, sem passar pela produção.

Na realidade, o fundamento da crise estrutural do capitalismo reside na existência de duas principais tendências, articuladas entre si, especialmente a partir do final dos anos 1960: a tendência de declínio da taxa de lucro nas economias capitalistas, e como resposta a essa tendência, a hipertrofia do capital financeiro, especificamente o capital fictício, que passa a ocupar a liderança na dinâmica do capitalismo nesse período, sendo central nas relações econômicas e sociais do mundo, principalmente depois de 19801515 Mendes A. The long battle for SUS funding [editorial]. Saúde Soc. 2013;22(4):991-3.

16 Marx K. El capital: crítica de la economía política. México: Fondo de Cultura Económica; 1987. Libro III.
-1717 Mendes A. O fundo público e os impasses do financiamento da saúde universal brasileira. Saúde Soc. 2014;23(4):1183-97..

Do ponto de vista da organização do trabalho, constatou-se o esgotamento relativo do fordismo como veículo da acumulação do capital, evidente na metade dos anos 1970 nos Estados Unidos e em alguns países europeus, o foi respondido de diferentes maneiras pelo capital, na tentativa de recompor sua lucratividade/rentabilidade. Essas alterações são denominadas amplamente de reestruturação produtiva, toyotismo (ohnismo) ou pós-fordismo e alteraram significativamente a produção de bens e a atividade econômica de serviços.

Essas alterações visaram combater a tendência de queda dos lucros e consistiam no just-in-time (prática de diminuição dos estoques e a produção correspondente com a demanda do mercado); flexibilidade das relações de trabalho; círculos de controle de qualidade; terceirização e subcontratação. Consequentemente, para o mercado de trabalho, houve o crescimento do desemprego de longa duração e do trabalho parcial e temporário sem os direitos do período anterior existentes nos países capitalistas centrais. Os novos postos concentraram-se nas atividades de serviços.

Nos serviços de saúde, não identificamos necessariamente o método just-in-time típico das fábricas ou dos serviços de transportes, onde a preocupação com a movimentação de materiais e informações é o centro da racionalização. No entanto, no processo de trabalho a ideia de fluxo é vital, pois o atendimento dos pacientes organiza-se dessa forma exatamente pela reatividade da demanda, e o fluxo determina o modo de trabalhar e disciplina o trabalhador.

O just-in-time é mais uma aplicação e não é o princípio em si do fluxo tensionado. O paradigma do fluxo tensionado55 Durand JP. A refundação do trabalho no fluxo tensionado.Tempo Soc. 2003;15(1):139-58. manifesta-se na ampla maioria das atividades fabris e também nos serviços, como cadeias de fast-food, supermercados e, especificamente, nas unidades hospitalares. A combinação no local de trabalho é de cobrança desproporcional em relação às condições dadas aos profissionais, principalmente pelo grande número de pacientes atendidos por poucos trabalhadores, assim como a insuficiência de materiais em alguns momentos, gerando intensificação de trabalho e sobrecarga, porque a obrigação é atender a todos, cumprir o objetivo do estabelecimento, mesmo sem as condições mínimas. Essa lógica também condiciona o mercado de trabalho e, consequentemente, a tendência dos vínculos empregatícios temporários e precários.

Os efeitos diretos da crise contemporânea do capitalismo na saúde pública brasileira ocorreram basicamente na apropriação do fundo público pelo capital em busca de sua valorização1717 Mendes A. O fundo público e os impasses do financiamento da saúde universal brasileira. Saúde Soc. 2014;23(4):1183-97.. Esse movimento do capital nos últimos 35 anos coicide com a implementação do SUS1414 Mendes A. Brazilian public health in the context of a State crisis or a crisis of capitalism? Saúde Soc. 2015;24 Suppl.1:63-78.-1515 Mendes A. The long battle for SUS funding [editorial]. Saúde Soc. 2013;22(4):991-3.. Houve prioridade de diferentes estratégias para refazer a taxa de lucro, por meio de vários mecanismos de redução dos direitos sociais, especialmente mantendo o subfinanciamento da saúde pública e assegurando a intensificação da terceirização e a precariedade das condições de trabalho na saúde através de vínculos contratuais de trabalho deteriorados para os profissionais de saúde e atendimento de qualidade deficitária para os usuários.

Destacamos dois fenômenos relevantes para o propósito do artigo: a expansão do capital para as áreas de serviços para a realização de seu valor, por exemplo, os serviços de saúde; e a apropriação do orçamento estatal através do instrumento da dívida pública1515 Mendes A. The long battle for SUS funding [editorial]. Saúde Soc. 2013;22(4):991-3.

16 Marx K. El capital: crítica de la economía política. México: Fondo de Cultura Económica; 1987. Libro III.
-1717 Mendes A. O fundo público e os impasses do financiamento da saúde universal brasileira. Saúde Soc. 2014;23(4):1183-97.. Desse modo, o contexto dos serviços de saúde na dinâmica da valorização do capital, sob dominância financeira e do subfinanciamento da saúde por meio do Estado, conforma um setor de serviços privados de saúde disposto a pressionar o preço da força de trabalho e na perspectiva dos serviços públicos obstaculiza o desenvolvimento de uma política efetiva de recursos humanos por parte do Estado.

Esses aspectos estão representados na continuidade de políticas macroeconômicas restritivas adotadas pelo governo federal desde o governo de Fernando Henrique Cardoso (FHC), que deram origem a constantes dificuldades impeditivas ao pleno desenvolvimento da saúde universal no país, dada a situação de subfinanciamento que impõem ao SUS. Os governos federais têm cumprido à risca o papel subordinado ao capital financeiro, adotando uma política econômica fundamentada no tripé metas de inflação, superávit primário e câmbio flutuante, gerando cortes de gastos públicos e priorizando o pagamento de juros e amortização da dívida pública, e ainda mantendo diversos mecanismos de transferência do fundo público para o setor privado em saúde. A rigor, tais políticas vêm resultando em forte redução de despesas das políticas de direitos sociais, com montantes insuficientes e inseguros para a saúde pública.

Além disso, pode-se acrescentar que, principalmente após o início da década de 1990, os recursos públicos vêm sendo disputados com o capital financeiro que lidera o movimento do capital e cujo interesse mantém-se pelo pagamento dos juros da dívida pública e acesso a recursos antes a ele proibidos. Não se pode deixar de considerar nesse quadro as legislações do Estado nacional, conformando a inviabilidade institucional de uma política efetiva de recursos humanos para o sistema público de saúde, tais como: a lei de responsabilidade fiscal, que criou limites para o crescimento do gasto de pessoal, inclusive na área da saúde, e a transferência de hospitais públicos para organizações sociais, prevista pela reforma gerencial do Estado brasileiro, com crescentes repasses de recursos públicos para essas instituições.

O objetivo deste artigo é analisar a estrutura organizativa dos hospitais e o tipo de vínculo contratual dos profissionais de saúde como central para a configuração do regime de trabalho nas unidades investigadas, no âmbito do capitalismo contemporâneo financeirizado. A análise desenvolver-se-á sob três perspectivas. A primeira aborda o hospital como núcleo de rede de serviços subcontratados. A segunda discute o regime de trabalho nos hospitais e a centralidade do vínculo de emprego. A terceira discorre sobre a tendência de "desmonte" do emprego estável.

Parte-se do pressuposto de que o presente estudo contribui para o entendimento dos aspectos cotidianos do trabalho em saúde, particularmente da prática de enfermagem no recente tempo histórico. Entende-se que tal discussão propicia o cotejamento entre as problemáticas centrais dos serviços de saúde e a necessária produção teórica, assegurando assim um avanço para o conhecimento científico do campo, apoiado na realidade concreta.

Método

Para a análise da situação da flexibilização dos vínculos contratuais dos profissionais de saúde utilizou-se a técnica dos estudos de caso. Esses casos concentraram-se em três hospitais localizados na Região Metropolitana de São Paulo com gestões distintas: administração pública, administração terceirizada para Organização Social de Saúde (OSS) e administração privada. É importante reconhecer que os resultados da pesquisa circunscrevem-se à realidade desses hospitais, não sendo possível sua generalização. Todos são hospitais gerais que não dispõem de atividade de ensino e estão situados nas regiões centrais de suas cidades, além de contarem com atividades ambulatoriais e hospitalares semelhantes, desde a baixa-média complexidade ambulatorial até alta complexidade hospitalar. Somente o hospital gerido por Organizações Sociais descreveu suas atividades a partir da média complexidade no âmbito ambulatorial.

Os meios de pesquisa consistiram em técnicas etnográficas e entrevistas semiestruturadas, cujo roteiro abrangeu aspectos a respeito da integralidade do trabalho, tais como: formação educacional, trajetória e perspectiva profissional, situação do mercado de trabalho, remuneração, qualificação profissional, processo de trabalho, relação com a tecnologia, aspectos da terceirização, conflitos no local de trabalho, mercado interno de trabalho, ação coletiva, perguntas para compreensão da subjetividade envolvida no trabalho e saúde do trabalhador. A mensuração do tipo de vínculo empregatício dos profissionais teve como base de dados o Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES).

A pesquisa ocorreu durante o primeiro semestre do ano de 2014 e comparou as realidades das unidades investigadas. O levantamento etnográfico fundamentou-se no estudo de caso ampliado1818 Burawoy M. The extended case method: four countries, four decades, four great transformations and one theoretical tradition. California: University of California Press; 2009. constituído em etnografia forjadora de conexões entre aspectos micro e macro por meio da reconstrução da teoria social1919 Soares CB, Campos CMS, Yonekura T. Marxism as a theoretical and methodological framework in collective health: implications for systematic review and synthesis of evidence. Rev Esc Enferm USP. 2013;47(6):1403-9. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/S0080-623420130000600022.
http://dx.doi.org/10.1590/S0080-62342013...
. Tais técnicas etnográficas utilizadas para a apreensão dos dados da realidade constituem elementos importantes para compor a análise dialética, correlacionando os resultados com a totalidade social, orientação fundamental do estudo aqui realizado, que se apoia no materialismo histórico e dialético.

Como guia norteador de parâmetros éticos, utilizamos a Resolução nº 466, de 12 de dezembro de 2012, do Conselho Nacional de Saúde (CNS), para a pesquisa desde o primeiro contato com o indivíduo entrevistado à divulgação dos resultados de pesquisa conforme parecer consubstanciado nº 766.156 do Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo em 2014. Nessas unidades auxiliares, técnicos e enfermeiros foram sujeitos de pesquisa. Entrevistamos profissionais graduados e profissionais de nível médio em cada um dos hospitais estudados.

Resultados

Estrutura dos hospitais investigados

Apesar das diferenças de clientela e objetivos das instituições, todos têm o princípio organizativo da descompartimentação e externalização2020 Guimarães CM, Carvalho JC. Terceirização em cuidados continuados: uma abordagem de gestão de risco. Ciênc Saúde Coletiva. 2012;17(5):1179-90. de suas atividades ou a constituição do hospital-rede nas três formas de administração. No período anterior à década de 1990, as unidades hospitalares tinham seções e divisões próprias em todo seu funcionamento, segundo relatos dos profissionais entrevistados. Na atualidade, diversas funções (centrais ou não) são terceirizadas para subcontratantes variados, tais como determinadas clínicas médicas, como a pediatria no hospital público e outros setores de exames e atividades de apoio; a seção de radiologia, o banco de sangue, o laboratório de análises patológicas, a limpeza, a cozinha e outros. Essa alteração é nítida nos hospitais (público e terceirizado). O hospital privado foi fundado na década de 2000, logo, sua constituição já ocorreu a partir do princípio da subcontratação, mas mesmo assim esse processo foi se acentuando. Por exemplo, o setor de recepção foi terceirizado durante a pesquisa.

A enfermeira (gerente de qualidade) do hospital privado assim descreve essa tendência:

Aqui terceirizou quase tudo, a enfermagem não é terceirizada porque não pode, porque ela é atividade-meio, ela é o único setor que não pode ser terceirizado, terceirizou todo o atendimento (...). Os médicos são autônomos mesmo, médico não é CLT em hospital nenhum, eles são profissionais autônomos, mas você vê que na maioria dos hospitais, não só aqui, todos os hospitais estão migrando para terceirização, porque hoje está muito difícil para pessoa sobreviver no nosso país com essa carga tributária enorme. (...) Farmácia, Fonoaudiologia, Fisioterapia, Nutrição, Atendimento, Segurança, Higienização.

Pela declaração da profissional fica perceptível a impossibilidade da enfermagem ser terceirizada por constituir atividade-fim. Sinteticamente, a definição de atividade-meio é aquela não configurada como atividade principal do objetivo da organização (empresa ou ente público), embora possam ser atividades fundamentais para a execução dos objetivos primários. Por sua vez, a atividade-fim refere-se ao objetivo e à atividade central da organização. Neste caso específico, as ocupações em saúde enquadram-se como atividade-fim nas unidades hospitalares, porém a presença de "burlas" por parte dos empregadores é comum, subcontratando profissionais de saúde. Esse é o principal aspecto a ser alterado pelo Projeto de Lei n. 4330/2014, proponente da terceirização irrestrita das atividades laborais2121 Câmara mantém terceirização de todas as atividades. Folha de S. Paulo [Internet]. 2015 abr. 23 [citado 2015 ago. 12]; Mercado B5. Disponível em: Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/mercado/2015/04/1619938-camara-mantem-terceirizacao-de-todas-as-atividades-e-estende-direitos-ao-setor-publico.shtml
http://www1.folha.uol.com.br/mercado/201...
.

Depreendemos do relato a dinâmica da estrutura núcleo e periferia. Quando consideramos o hospital como o núcleo de uma rede, observamos que a situação do trabalhador terceirizado, via de regra, é mais precária e instável em relação aos empregados estáveis do hospital-núcleo. Os terceirizados são submetidos à pressão advinda da concorrência das empresas prestadoras de serviços que se mantém sobre os funcionários das subcontratadas. Exemplificamos essa pressão por episódio relatado no hospital público, onde determinada empresa de radiologia atrasou salários por três meses e os trabalhadores continuaram a trabalhar, porque caso manifestassem alguma resistência, a empresa à qual estavam vinculados poderia perder a prestação serviço e, consequentemente, perderiam seus empregos. As respostas sobre o ocorrido foram contraditórias. Os proprietários da empresa responsabilizavam a administração municipal por atrasar pagamentos. Na outra ponta, a direção do hospital afirmava o não cumprimento contratual por parte das empresas. Como desfecho, a administração rompeu o contrato com essa prestadora.

Ainda sobre o setor da radiologia, relatamos o caso do hospital privado. Há alguns anos, os proprietários terceirizaram o setor. A empresa subcontratada era de propriedade de um ex-funcionário de outro estabelecimento hospitalar que se desvinculou do regime regular ordenado pela Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT). Desse modo, o técnico tem representação como firma jurídica. No primeiro momento, esse trabalhador considerou uma boa oportunidade, mas, com o passar do tempo, percebeu que seus rendimentos não aumentaram proporcionalmente às horas trabalhadas e não contava mais com direitos trabalhistas. O limite atribuído pela legislação prevê a jornada de 24 horas semanais para sua categoria2222 Brasil. Lei n. 7.394, de 29 de outubro de 1985. Regula o exercício da profissão de Técnico em Radiologia, e dá outras providências [Internet]. Brasília; 1985 [citado 2014 fev. 26]. Disponível em: Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7394.htm
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/le...
. Na situação terceirizada, o técnico trabalhava 60 horas por semana no hospital privado. Recentemente, devido à mobilização sindical, o setor teve sua terceirização revertida, na contramão da maré de aprofundamento das terceirizações.

Na opinião dos gestores dos três hospitais, a terceirização não é só necessária, como imprescindível. Segundo os próprios, a economia e os problemas transferidos aos terceiros compensa os problemas recorrentes dos contratos com as subcontratadas. Contraditoriamente, os gestores e os profissionais dos três hospitais criticaram a qualidade dos serviços subcontratados2020 Guimarães CM, Carvalho JC. Terceirização em cuidados continuados: uma abordagem de gestão de risco. Ciênc Saúde Coletiva. 2012;17(5):1179-90., por exemplo: os atrasos na entrega de resultado de exames realizados pelos laboratórios terceirizados foram idênticos nas três unidades terceirizadas. Destacamos o relato do enfermeiro do hospital público sobre a qualidade dos serviços terceirizados de alimentação:

Então, uma das coisas que me chocam um pouco porque tem noite que o profissional daqui não tem como jantar porque não sobra comida (...). Tem o problema com os pacientes porque as copeiras não deixam a comida. É para todos os pacientes, tem até às 8 horas para fazer a solicitação de mandar uma dieta, se não for até às 8, é só um chazinho e bolacha. Aí eu digo para você, paciente que tem uma tuberculose que precisa comer uma comida balanceada (...) ele já não almoçou, chega a noite e ele não jantou...

Vínculos empregatícios dos profissionais de saúde

Segundo dados do CNES, aproximadamente 90% dos médicos tinham contratos temporários em caráter de "urgência" no hospital público. A respeito das categorias da enfermagem, aproximadamente 54% dos vínculos eram de contratados por prazo determinado no mesmo hospital. Nos hospitais terceirizado e privado, o contrato celetista é majoritário para as categorias de enfermagem. A prática dos contratos temporários expande-se para os demais profissionais em saúde.

Dessa forma, foi possível localizar a terceirização direta dos profissionais nos hospitais investigados, particularmente no hospital privado. Por exemplo, tanto os médicos quanto os fisioterapeutas eram subcontratados por determinada empresa, sendo "autônomos" como pessoa jurídica à subcontratada e não ao hospital. Embora a prática mais comum seja a flexibilização de vínculos com a pejotização, diretamente por parte de nutricionistas, terapeutas ocupacionais, fonoaudiólogos e psicólogos em relação ao hospital privado, no hospital gerido por Organização Social não localizamos o artifício da pejotização, porém, os profissionais com mais de um vínculo afirmam existir essa conduta em outros hospitais geridos por Organizações Sociais. Cabe esclarecer que esse termo pejotização ou pejotismo refere-se à prática de contratação de trabalhador por meio de ajustes formais que lhe dão aparência de empresa, na maioria das vezes, por meio de contratação por prestação de serviços. Tal prática configura burla do contrato de trabalho e dos direitos preconizados pela CLT e, em nossa abordagem, refere-se à situação do trabalhador como um empregado comum, sem acesso aos direitos trabalhistas, principalmente, a maior estabilidade advinda do vínculo empregatício.

Em relação às categorias de enfermagem, a bibliografia aponta a existência da tendência de terceirização do segmento à medida que unidades de diagnósticos e terapêutica especializada são externalizados2323 Zamberlan C, Siqueira HCH. A terceirização nos serviços e consequências no cuidar em enfermagem. Rev Bras Enferm. 2005;58(6):727-30.. Dito de outro modo, as unidades especializadas de exames de diagnósticos são terceirizadas (rede) em relação ao hospital (núcleo), por consequência, os profissionais da enfermagem dessas unidades sofrem as consequências desse modelo, porém, em nossos três estudos de caso não encontramos essa forma de terceirização. Por exemplo, nenhum hospital terceiriza a contratação e o emprego do corpo de profissionais no espaço hospitalar sob a direção de empresa subcontratada, porém, na medida em que a externalização é uma tendência da organização pós-fordista na relação de serviços, a terceirização de subserviços especializados é comum.

Na entrevista da enfermeira do hospital privado, a profissional cita mecanismo contemporâneo da precarização do vínculo das categorias da enfermagem com o prisma do empregador. Ela relata:

Desses profissionais de atendimento e higiene, eu não tenho muita dificuldade deles serem terceiros, para ser bem honesta, mas quando eu fui gerente de enfermagem (...), a gente trabalhava com cooperativa de auxiliar, técnico e enfermeiro, então os primeiros meses eles eram cooperados, depois daquele tempo eles eram efetivados pela empresa. Quando eu assumi a gerência tive muita dificuldade porque aquele funcionário cooperado não tem responsabilidade nenhuma com você porque ele ganhava por dia (...) começava como cooperado e depois de três meses a gente podia prorrogar até por mais um (mês), depois de três ou seis meses seria CLT nosso. Então eu vejo que o cooperado, como ele está ganhando por dia e se ele arrumar outro trabalho vai estar ganhando CLT, ele não tem compromisso com você. Agora dessas outras áreas não, o negócio já está tão amplo que o pessoal já (aceita tal situação).

Posteriormente, outros trabalhadores relataram a tentativa dos proprietários do hospital em ampliar o número de cooperados em seus quadros, inclusive com a prática constante da não efetivação de alguns após o período temporário. Essa aplicação não teve sucesso porque os trabalhadores, ao perceberem essa "manobra", preferiram outros hospitais com a garantia de vínculo desde o início.

Evidentemente, essa dinâmica condiciona todo o cotidiano do trabalho dos profissionais. Nas visitas à unidade privada, observamos relações trabalhistas acirradas, como por exemplo, a demissão do auxiliar de enfermagem entrevistado por não ser considerado cooperativo, quando na realidade tinha estabilidade por ser membro da Comissão Interna de Prevenção de Acidentes (CIPA). O auxiliar foi readmitido após decisão judicial de reintegração. Em nossa interpretação, a decisão sobre transferência, promoções e gratificação é totalmente definida pela empresa. Dos entrevistados das unidades com vínculo celetistas, todos disseram que esses requisitos eram definidos pela direção, seja do hospital particular, seja do terceirizado.

Ao se aprofundar sobre o tipo de relação de trabalho, observamos no hospital público a necessidade de maior consentimento por parte dos servidores estatutários. Foi-nos relatado nas visitas que uma antiga enfermeira praticava assédio moral e houve embate com os trabalhadores e o sindicato, gerando o afastamento dessa profissional do cargo de chefia. Esse fato representa a impossibilidade no estabelecimento de relação despótica devido ao regime de trabalho estabelecido e a relação de forças entre trabalhadores e administração do hospital. No mesmo sentido, no hospital público ocorreu ação coletiva dos trabalhadores em forma de greve nos últimos anos por questões salariais e de condições de trabalho. Tal episódio é inimaginável para os trabalhadores dos hospitais gerido por Organização Social e pelo privado lucrativo.

Discussão

O Hospital como núcleo de uma rede de serviços subcontratados

Identificamos nos hospitais a organização análoga à integração firma-rede de outros setores econômicos. Essa integração reticular prevê descompartimentalização das atividades e hierarquização da rede de serviços, externalizando suas atividades ou subdividindo no mesmo espaço serviços sob a responsabilidade das empresas contratadas. A pressão nos nós dessa rede correlaciona-se com a organização interna na qual cada trabalhador é equiparado a uma "empresa", devendo oferecer serviços no momento correto para suprir as necessidades do empregador ou contratante. A situação dos profissionais com a contratação por pessoa jurídica, sendo equiparados a "empresas" ou dos contratados temporariamente, responde a uma lógica de redução de custos e de intensificação do trabalho55 Durand JP. A refundação do trabalho no fluxo tensionado.Tempo Soc. 2003;15(1):139-58. ,2424 Pina JA, Stoutz EN. Intensificação do trabalho e saúde do trabalhador: uma abordagem teórica. Rev Bras Saúde Ocup. 2014;39(130):150-60.. Por conseguinte, instaura-se a relação "cliente-fornecedor" no cotidiano do trabalho, como forma de aplicação do fluxo tensionado.

A consequência desse processo nos serviços de saúde é uma diminuição significativa dos funcionários estatutários ou celetistas convivendo cada vez mais com as várias empresas e trabalhadores "prestadores" de serviços auxiliares e, muitas vezes, de serviços vitais para o funcionamento da unidade. Sobre essa característica, o hospital como núcleo de uma rede submete setores e trabalhadores, pressionando-os para a execução de determinadas tarefas e serviços em tempo exíguo. A noção de concorrência é construída a partir da ideia de que uma empresa subcontratada ou um profissional sem vínculo empregatício podem ser facilmente substituídos a qualquer momento, caso o contratante esteja insatisfeito. Essa configuração serve como pressuposto para a redução das porosidades de tempo no processo de trabalho. Dito de outro modo, os trabalhadores da periferia da rede tem ritmo de trabalho mais intenso, pois convivem com a insegurança, a instabilidade e muitas vezes com direitos trabalhistas relativizados. Esses aspectos da "empresa reticular"55 Durand JP. A refundação do trabalho no fluxo tensionado.Tempo Soc. 2003;15(1):139-58. cabe perfeitamente na análise dos hospitais investigados.

Apesar de a terceirização ser uma tendência geral, essa atinge os setores profissionais com intensidades distintas. A utilização de cooperativas para trabalhadores técnicos tem maior incidência de precarização se comparada à terceirização de uma especialidade como a pediatria no hospital público para uma cooperativa de médicos, devido ao aspecto de qualificação. Também existe gradação entre a terceirização de um setor dentro do estabelecimento e da externalização desse como serviço especializado2323 Zamberlan C, Siqueira HCH. A terceirização nos serviços e consequências no cuidar em enfermagem. Rev Bras Enferm. 2005;58(6):727-30.. Os efeitos da terceirização sobre outras categorias de trabalhadores da saúde têm maior agravo na primeira configuração, sobretudo em relação à pressão sobre o cotidiano do trabalho.

Nos exemplos citados dos "cooperativismos", pejotismos e dos contratados temporários "eternos", projetamos que essas medidas patronais configurarão uma situação mais agravada em períodos nos quais a oferta de emprego seja escassa para determinadas ocupações, como as da enfermagem, por exemplo, ou exista mudança da legislação trabalhista nacional.

A tendência de "desmonte" do empregado estável

Tal como outros setores produtivos da economia mundial99 Nichols T, Cam S, Wen-chi GC, Soonok C, Wei Z, Tongqing F. Factory regimes and the dismantling of established labor in Asia: a review of cases from large manufacturing plants in China, South Korea and Taiwan [abstract] . Work Employ Soc. 2004;18(4):663-85., apontamos o desmonte do emprego permanente e estável enquanto tendência para os profissionais de saúde2525 Oliveira RS, Morais HMM, Goes PSA, Botazzo C, Magalhães BG. Relações contratuais e perfil dos cirurgiões-dentistas em centros de especialidades odontológicas de baixo e alto desempenho no Brasil. Saúde Soc. 2015;24(3):792-802., apesar de não estar nítido quais são os instrumentos mais presentes para a flexibilização dos contratos de trabalho (cooperativismo, trabalho parcial e temporário, contrato por agência de emprego ou agency labour, contratação temporária por projetos e programas, pejotismo, etc.). Deve-se considerar também a inter-relação dessas formas na contratação dos profissionais. Essa instabilidade não é referente somente a salários, mas também a outros benefícios e direitos (material support - interpretado como condições materiais de subsistência para reprodução da força de trabalho). Assim, a flexibilização é a tendência geral.

O tipo de vínculo empregatício é determinante nos contrastes das relações laborais e do funcionamento das unidades hospitalares estudadas. A diferença de vínculo é o aspecto mais importante para os trabalhadores em relação aos tipos de gestão. Sinteticamente, os servidores públicos inserem-se em regimes estatutários. O cargo efetivo tem mais direitos em comparação aos empregados celetistas ou temporários como, por exemplo, a previsão de abonos de faltas, licença-prêmio por assiduidade e, principalmente, estabilidade na qual só existirá sanção ou exoneração após definição de processo administrativo disciplinar com direito de ampla defesa do trabalhador.

Em situações de transferência da administração direta para gestão de Organizações Sociais, os estabelecimentos contratam novos empregados sem vínculo sob o regime estatutário com a administração pública (embora parte significativa dos hospitais públicos já tenha contratos temporários). Eles terão vínculo com o regime de trabalho previsto pela CLT, diferenciado do regime estatutário pela forma de contratação, demissão e direitos. O sistema "celetista" não prevê estabilidade como o cargo estatutário.

Além da alteração de vínculo, a técnica de enfermagem do hospital gerido por Organização Social informou-nos a recorrência de atrasos salariais e o pagamento após a pressão do sindicato. Na ocasião, a profissional preocupou-se em falar com um tom de voz que outras pessoas não ouvissem. O rol dos direitos trabalhistas sob o regime celetista também é aplicado de forma precária.

No setor público, a exoneração do funcionário efetivo não se justifica automaticamente por algum tipo de incompetência. No setor privado, a possibilidade de demissão e, consequentemente, a instabilidade é fator de intensificação do trabalho, pois o trabalhador submete-se de forma mais intensa motivado pelo medo. Confirmamos nas entrevistas e nas visitas aos hospitais a rotatividade como característica do vínculo celetista, tanto na unidade terceirizada quanto na da iniciativa privada, embora ela também seja mencionada no hospital público, principalmente pelos profissionais temporários.

Sobre os profissionais médicos, Donnangelo11 Donnangelo MC. Medicina e sociedade: o médico e seu mercado de trabalho. São Paulo: Pioneira; 1975. expõe a heterogeneidade do tipo de inserção dos médicos no mercado de trabalho oscilando entre os polos de assalariamento e a autonomia por exercício liberal ou empresarial. A partir dessa heterogeneidade, a autora diagnostica a tendência de perda de autonomia do trabalho médico no contexto da década de 1970. Essa reflexão revela-se atual quando se considera as observações nos casos estudados, em que essa heterogeneidade amplia-se. A ela se soma, por exemplo, a prática comum dos empregadores do setor privado da contratualização pejotista ou contratação temporária, majoritária no hospital público estudado.

Na bibliografia sobre o trabalho em enfermagem existe o apontamento da tendência de flexibilização do regime de trabalho2626 Baraldi S, Car M. Labor flexibilization and deregulation for nursing workers in Brazil: the profae case. Rev Latino Am Enfermagem. 2008;16(2):205-11., a contratação temporária por projetos ou programas governamentais. Essa tendência é acentuada pela escassez de concursos públicos em determinados segmentos e muitos profissionais qualificados com vínculos de emprego complementam renda com duplos vínculos precários.

Depreendemos da análise empírica que a estrutura do hospital como núcleo de uma rede com a externalização de atividades, assim como a flexibilização de vínculos contratuais, ocorre com combinações variadas, porém, expressam a tendência de desmonte do emprego estável e configuram uma situação na qual os profissionais trabalham como assalariados, mas não recebem os direitos correspondentes.

A partir dos exemplos deve-se refletir sobre os impasses do emprego em saúde, visto que os anos posteriores à implantação do SUS ficaram conhecidos como "o período de antipolítica de recursos humanos"2727 Machado MH. Trabalho e emprego em saúde. In: Giovanella L, Escorel S, Lobatoo LVC, Noronha JC, Carvalho AI, organizadores. Políticas e sistemas de saúde no Brasil. 2ª ed. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2011. p. 309-30., gerando diversos problemas para a gestão do trabalho. Especificamente, sobre a qualidade dos serviços subcontratados e das condições de trabalho, esse contexto demonstra suas mazelas, porém segue sendo defendido incisivamente em nome da economia de recursos e da rentabilidade. Do ponto de vista da gestão dos serviços, existe o problema de continuidade e de constituição de equipes, pois a efemeridade do vínculo impede a estabilidade necessária ao envolvimento e ao desenvolvimento profissional, tendo consequências na vida dos trabalhadores, inclusive os mais qualificados.

Embora o escopo do estudo seja a realidade nacional no âmbito hospitalar localizado em região metropolitana, consideramos que o fenômeno tem dinâmica mundializada do capital sobre o emprego em saúde. Mesmo não sendo objetivo sintetizar as múltiplas particularidades do contexto internacional, localizamos na bibliografia internacional abordagens a respeito desse novo tipo de emprego flexível com posições teóricas e políticas plurais.

Nos Estados Unidos, especificamente no estado de Nova Iorque, o predomínio de empregos com baixos salários e a baixa escolarização na projeção da força de trabalho em saúde diagnostica a pressão econômica na a indústria da saúde para que utilize a força de trabalho com maior eficiência e efetividade2828 Martiniano R, Surdu S, Moore J; Center for Health Workforce Studies. Health care employment projections: an analysis of bureau of labor statistics settings and occupational projections, 2012-2022 [Internet]. Rensselaer; 2014 [cited 2015 Aug 12]. Available from: Available from: http://chws.albany.edu/archive/uploads/2014/08/blsproj2014.pdf
http://chws.albany.edu/archive/uploads/2...
. No Canadá, um artigo discute a crescente presença de agência de empregos temporários em um contexto de escassez de emprego e o quanto os profissionais estão insatisfeitos com essa forma de empregabilidade2929 Tremblay M, Chênevert D, Hébert A. Le rôle des conditions de travail dans la satisfaction et la loyauté des infirmières d'agence au Québec. Relat Ind [Internet]. 2012 [cited 2015 Aug 12];67(3):477-504. Available from: Available from: http://www.erudit.org/revue/ri/2012/v67/n3/1012540ar.pdf
http://www.erudit.org/revue/ri/2012/v67/...
..Na França, localizamos publicação sobre o desemprego e a precarização das condições de trabalho em pesquisa realizada pela federação nacional de estudantes de enfermagem, que constatou que 14% dos recém-graduados estão à procura de emprego, enquanto 44% estão em regime de trabalho parcial não renovável3030 Fabregas B. Chômage infirmier et précarisation: la vérité par les chiffres...[Internet]. 2014 [cited 2015 Aug 12]. Available from: Available from: http://www.infirmiers.com/emploi/emploi/chomage-infirmier-et-precarisation-la-verite-par-les-chiffres.html
http://www.infirmiers.com/emploi/emploi/...
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Conclusão

A investigação aponta que todas as formas de gestão da força de trabalho em saúde (pública, terceirizada para Organização Social e privada) instituem processos de terceirização e de flexibilização dos vínculos, cumprindo o papel de redução de custos com o desmonte do emprego estável e, consequentemente, dos direitos trabalhistas, tanto no setor público quanto no privado. Contudo, na gestão da iniciativa privada, observamos maior aplicação da terceirização e da precarização, seguida pela gestão terceirizada das Organizações Sociais e, posteriormente, pela administração direta com o artifício da contratação temporária.

A respeito da dimensão das relações trabalhistas e do poder no local de trabalho, caracterizamos como distintas nos três hospitais investigados. Depreendemos dos aspectos vinculados aos tipos de vínculo empregatício a instabilidade do regime celetista e da contratação temporária sustentada na gestão da força de trabalho baseada na insegurança.

Nas unidades hospitalares privadas e terceirizadas a assimetria de poder entre os trabalhadores e a direção da empresa conduz ao despotismo permeado por relações pessoais e arbitrárias. A autonomia do trabalhador é maior no setor público, sendo o alicerce a estabilidade advinda do regime estatutário. Para os demais trabalhadores temporários a condição é análoga ao regime celetista.

Assim como no estudo de caso do hospital privado, a cooperativa foi a tentativa de aplicação da tendência do desmonte do emprego estável para os profissionais de enfermagem. O pejotismo é a prática para os profissionais graduados, como fonoaudiólogos, nutricionistas e psicólogos. Para os médicos e fisioterapeutas, os contratos de pessoa jurídica ocorrem com empresa subcontratada e não com o hospital. No hospital gerido por Organização Social, toda a contratação celetista substitui a contratação de servidores públicos por regime estatutário. O hospital público utiliza-se do artifício da contratação temporária "eterna".

Assim, pode-se afirmar que a terceirização e o desmonte do emprego estável é tendência do movimento de valorização do capital e da organização pós-fordista do trabalho, agravada, contudo, pela intervenção do Estado nacional. Tal assertiva foi constatada na pesquisa realizada nos três hospitais localizados na Região Metropolitana de São Paulo sob a administração pública, a administração terceirizada para Organização Social de Saúde (OSS) e a administração privada. Nesse contexto, cabe aos trabalhadores de saúde a construção de ações coletivas por melhorias nas condições laborais e nos serviços destinados à população, combatendo as políticas gerais de austeridade, precarização e intensificação do trabalho.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Mar-Apr 2016

Histórico

  • Recebido
    17 Set 2015
  • Aceito
    29 Jan 2016
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