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Corpos em trânsito: espaços, emoções e representações que (des) constroem realidades

Resumo

OBJETIVO

Analisar as representações sociais do corpo entre pessoas transexuais brasileiras e costa-riquenhas por meio das suas histórias de vida.

MÉTODO

Pesquisa qualitativa, multicêntrica e descritiva. A população do estudo foi composta por 70 participantes. Contou-se com a colaboração de duas organizações, em Florianópolis, SC-Brasil e em San José, capital da Costa Rica para coletar as informações. Os dados foram analisados segundo a Análise de Conteúdo.

RESULTADOS

A partir dos resultados, desvelou-se uma única representação social associada à corporeidade: “Corpos modelados: sobre a elasticidade da corporeidade”. Esta representação descreveu duas unidades de contexto elementar (matrizes do discurso) claras. A primeira delas associa o corpo a um objeto inconcluso, transitório, volátil, maleável, moldável e fluido, enquanto a segunda relaciona o corpo com uma instituição própria, mas regulada e controlada pelos outros.

CONCLUSÃO

Conclui-se que o corpo transexual é uma instituição volúvel, efêmera, transformável e atravessada pelas marcas de um tempo historizante e historizável, que se inscreve não só naquilo que pode ser nomeado diante do emprego de signos linguísticos, mas também naquilo que pertence ao registro do inominável em termos de percepções e sensações socioculturais.

Descritores
Transexualismo; Imagem Corporal; Enfermagem em Saúde Pública; Psicologia Social.

Abstract

OBJECTIVE

To analyze the social representations of the body among Brazilian and Costa Rican transsexual people through their life stories.

METHOD

Qualitative and descriptive multicenter research. The study population consisted of 70 participants. Two organizations cooperated to collect the information, one in Florianópolis, SC-Brazil and one in San José, the capital of Costa Rica. Content Analysis was used to analyze the data.

RESULTS

Based on the results, a single social representation of corporeality was unveiled: “Modeled bodies: about the elasticity of corporeality”. This representation described two clear elementary context units (discourse matrices). The first associates the body with an inconclusive, transitory, volatile, pliable, moldable and fluid object, while the second relates the body with a separate institution, but regulated and controlled by others.

CONCLUSION

In conclusion, the transsexual body is a volatile, transient, transformable institution, crossed by the marks of a historicizing and historicizable time, which comes within the scope not only of what can be named by means of linguistic signs, but also of what belongs to the unnamable in terms of sociocultural perceptions and feelings.

Descriptors
Transsexualism; Body Image; Public Health Nursing; Psychology, Social

Resumen

OBJETIVO

Analizar las representaciones sociales del cuerpo entre personas transexuales brasileñas y costarricenses a través de sus historias de vida.

MÉTODO

Investigación cualitativa, multicéntrica y descriptiva. La población del estudio consistió en 70 participantes. Se contó con la colaboración de dos organizaciones en Florianópolis, SC, Brasil y San José, capital de Costa Rica para recopilar información. Los datos se analizaron mediante Análisis de Contenido.

RESULTADOS

A partir de los resultados, se dio a conocer una sola representación social asociada con la corporalidad, "Cuerpos modelados: la elasticidad de la corporalidad". Esta representación describió dos unidades de contexto elementales (matrices del discurso) claras. La primera asocia al cuerpo a un objeto sin terminar, transitorio, volátil, maleable, conformable y fluido, mientras que la segunda relaciona al cuerpo con una institución específica pero regulado y controlado por otros.

CONCLUSIÓN

Se llegó a la conclusión de que el cuerpo transexual es una institución voluble, efímera, transformable y atravesada por las marcas de un tiempo historizante e historizable, inscripto no sólo en lo que puede ser identificado en el uso de los signos lingüísticos, sino también lo que pertenece al registro de lo indecible en términos de percepciones y sensaciones socioculturales.

Descriptores
Transexualismo; Imagen Corporal; Enfermería en Salud Pública; Psicología Social

Introdução

Antes de introduzir a temática que nos convoca o presente manuscrito, parece-nos conveniente questionar: O que é um corpo? O âmbito do corpo se encontra imerso na ordem natural ou no âmbito cultural? Ainda, intriga-nos interrogar: Os corpos são constructos moldados pelos diversos determinantes sociais ou são dados materiais (irremediavelmente) outorgados por uma divindade (sobre) natural?

Nesse sentido, os questionamentos poderiam seguir outras direções, que superam a aleatoriedade que nos instiga a escrever sobre a intensidade das representações sociais do corpo entre as pessoas transexuais em dois polos do continente americano.

Assim, consideramos importante destacar que, por meio da experiência que vivenciamos como pesquisadores desta aventura acadêmica, começamos a pensar que nós possuímos um corpo, mas que também somos um corpo, ou bem, que somos o corpo que habitamos. Daí que declaremos que o corpo, mais que um fato dado da realidade, é uma presença e uma experiência vivida, pois ele se constrói socioculturalmente, e é nesse sentido que ao possuirmos um corpo também o produzimos.

Nesta visão paradigmática, o corpo parece constituir-se num campo coisificado pela racionalização moderna, pois se configura como objeto de poder e saber por intermédio de diferentes tecnologias e dispositivos imbricados nas diversas capas do tecido social. Por essa razão, acreditamos que ele se converte em um campo de forças que são tanto ativas quanto reativas.

Vislumbrado desde o início como singular em relação a outras estruturas físicas e simbólicas, gostaríamos de pensar que o corpo não é simplesmente um fato biológico da nossa presença no mundo, senão uma visão, um objetivo, um ponto de chegada (e partida) das forças que conformam a vida.

Com efeito, concordamos com a visão de alguns autores que argumentam que o corpo é uma experiência que circula além das fronteiras do anatômico; pois ele se configura também como uma categoria cultural, por meio da qual podemos identificar uma determinada visão do mundo em uma sociedade histórica específica, porque, ao final, a cultura (do corpo) constitui uma chave significativa que nos fala de uma determinada sociedade, em uma determinada época11 Pennac D. Journal d’um corps. Paris: Gallimard; 2012.

2 Drummond M. The meaning of boys' bodies in physical education. J Men's Stud. 2013;11(2):131-43.
-33 Echeverría J. La revolución tecnocientífica. Madrid: Fondo de Cultura Económica; 2013..

Dito de outro modo, consideramos que o corpo é uma construção humana sobre um elemento da natureza, que a sociedade modela continuamente. A nosso ver, suas proposições assentam-se e circulam no interior de um terreno epistemológico mais amplo, difícil de ser materializado pelo imaginário sociológico da contemporaneidade.

De acordo com esse pressuposto, acreditamos que ele foi se configurando em um objeto da racionalização social ao longo dos anos ‒ processo que tem sido expresso por meio de uma gama complexa e múltipla de práticas bio/necropolíticas que tendem a controlar e normalizar dissimuladamente as populações, com a finalidade de domesticar os corpos politicamente e rentabilizá-los economicamente44 Agamben G. Homo sacer: el poder soberano y la nuda vida. Valencia: Pré-Textos; 2003.-55 Foucault M. Vigilar y castigar. México: Siglo XXI; 2010. .

É nesse cenário (in)tempestivo no qual desejamos imprimir as velocidades deste texto que a rigor objetiva analisar as representações sociais do corpo ‒ atribuídas pelas pessoas trans (pessoas que se autoidentificam dentro do spectrum genérico como transexuais) brasileiras e costa-riquenhas por meio das suas histórias de vida ‒ e identificar como estas se nutrem também das construções sociais e promovem tensões que (re)desenham os imaginários de uma estética corporal.

Método

Este texto se propõe a realizar uma análise dos processos dialógicos de confirmação intra/inter/trans-subjetiva nos quais se performatizam as representações sociais do corpo, a partir de alguns parâmetros sociais vigentes, em que se valorizam as imagens e outras estruturas determinadas que constituem (ou destituem) a pessoa trans, dentro do seu entorno.

Assim sendo, esta é uma pesquisa qualitativa, de cunho sócio-histórico, que utilizou o paradigma teórico das representações sociais66 Camargo BV. Um primeiro estudo histórico e conceitual do seminário “Epistemologia e representações sociais”, conduzido por Serge Moscovici e Denise Jodelet em 1994. Psicol Saber Soc. 2016;5(1):5-17.-77 Caravaca-Morera JA, Padilha MI, Silva DGV, Sapag J. Aspectos teóricos e metodológicos das representações sociais. Texto Contexto Enferm. 2015; 24(4):1157-65. como referencial teórico e as histórias de vida completa como técnica processual para coletar os dados durante os anos 2014-2015, por intermédio da implementação de um roteiro de entrevista semiestruturado, que foi traduzido do português para o espanhol e posteriormente avaliado linguística e semanticamente por meio da realização de duas entrevistas-piloto em São José (Costa Rica) no mês de fevereiro, 2015.

A entrevista foi complementada com a técnica de desenho livre, a qual consistiu em solicitar à/ao participante que desenhasse livremente com alguns marcadores coloridos, após a menção em voz alta da palavra indutora “corpo”.

A população do estudo foi composta por 70 participantes trans: 60 transmulheres (indivíduos que foram identificadas no nascimento como pertencentes ao “sexo” masculino e que se autoidentificam com o gênero feminino) e 10 trans-homens (pessoas que foram identificadas no nascimento como pertencentes ao “sexo” feminino e que se autoidentificam com o gênero masculino) de dois países escolhidos intencionalmente: 35 brasileiras (os) e 35 costa-riquenhas (os), contemplando dessa maneira pessoas trans da América Central e da América do Sul, assim como os dois idiomas prioritários dessa região: português e espanhol.

Para o desenvolvimento desta pesquisa, contamos com a colaboração de duas organizações não governamentais: a Associação em Defesa dos Direitos Humanos com enfoque na Sexualidade (ADEH) e a Asociación de Apoyo a la Población Trans (TransVida); a primeira localizada em Florianópolis, capital do estado de Santa Catarina, Brasil, e a segunda localizada em San José, capital da Costa Rica.

A seleção dos participantes ocorreu por meio da técnica snowball, que consistiu em que participantes iniciais vinculadas (os) às instituições acima citadas apontaram novas (os) possíveis participantes (pares) que poderiam contribuir para o objeto de estudo desta pesquisa, formando, assim, uma rede de indicações.

No caso do Brasil, a população estudada restringiu-se exclusivamente a pessoas que moravam no estado de Santa Catarina. Na Costa Rica, a população contemplada pertencia às sete províncias dessa nação, já que existiram algumas dificuldades para localizar participantes que desejassem compartilhar suas histórias voluntariamente que morassem exclusivamente em San José.

Neste último país, devido às razões de temor à exposição diurna e porque, principalmente, a maioria das transmulheres realizavam atividades de sexo-serviço noturno, a realização das entrevistas foi prejudicada por ter sido feita durante o período diurno ou meridiano.

Os critérios de inclusão utilizados foram: ser maior de 18 anos, moradores e cidadãos legais desses dois países, que se consideravam transexuais (tanto transmulheres, quanto trans-homens), que se encontravam no início, no meio ou no final do processo de transição, ou que não desejassem realizar nenhuma mudança física, mas que lutassem pela reivindicação do uso do seu nome e pronome social, sendo excluídos unicamente os participantes intersexuais (aquelas pessoas que possuíam condições de ambiguidade genital de acordo com critérios anatômicos, histológicos e/ou citológicos no nascimento).

O projeto foi submetido à respectiva avaliação por parte do Comitê de Ética e Pesquisa com Seres Humanos (CEP) da UFSC, conforme Portaria 466/2012 do Conselho Nacional Saúde, diante da Resolução n° 875.931/2014. Buscando garantir o anonimato das participantes, as entrevistas foram identificadas pelos termos trans-homem e transmulher, seguido por um número arábico, o país de procedência e o ano de realização da entrevista.

A data e o lugar para a realização das entrevistas foram escolhidos pelas(os) participante(s) a priori. Após a autorização diante da assinatura dos Temos de Consentimento traduzidos, as falas foram gravadas em um gravador digital, portátil, com funções múltiplas, e posteriormente realizou-se o processo de transcrição/transcriação para viabilizar a análise dos depoimentos.

Adicionalmente, foram realizados dois grupos focais com 10 participantes, para avaliar/verificar se as análises preliminares das informações estavam sendo conduzidas apropriadamente e com o intuito de corroborar expressões culturais e semânticas que talvez não foram compreendidas totalmente durante alguma das entrevistas.

Com o intuito de garantir o rigor da análise utilizada nesta pesquisa, assim como de enriquecer a leitura dos dados obtidos e compreender criticamente o sentido e significado dos diálogos compartilhados pelas(os) participantes, orientamo-nos pelos pressupostos da análise de conteúdo.

Sendo assim, na primeira fase da pré-análise, tomamos o material coletado, o sistematizamos e o organizamos com a finalidade de torná-lo mais funcional. Concomitantemente, realizamos uma leitura exaustiva, dinâmica e flutuante para mergulhar no contexto das falas e nos conteúdos explícitos pelas/pelos participantes. Seguidamente, demarcamos os documentos que iriam ser analisados de acordo com os objetivos que já tínhamos pré-estipulado e destacamos os indicadores relevantes e regularidades próprias dos depoimentos.

Na segunda fase exploramos o material, por meio da particularização e refinamento dos dados que contribuíram para o diagnóstico e fundamentação tácita e rigorosa das representações externadas. Nessa fase realizamos a identificação de unidades de significado que a posteriori facilitaram a definição categórica e a formulação do corpus final das representações sociais do corpo analisadas.

Finalmente, na terceira fase tratamos e interpretamos os resultados propriamente ditos. Nesta etapa, destacamos e condensamos as informações e os depoimentos com o objetivo de realizar uma interpretação inferencial e uma análise crítico-reflexiva daquilo que foi expressado nos depoimentos que estivesse atrelado ao senso comum para a construção das representações sociais do corpo. Para tanto, elaboramos subcategorias preliminares que posteriormente deram origem à categoria: Corpos modelados: sobre a elasticidade da corporeidade.

Por outro lado, para analisar os desenhos das associações livres das/os participantes, essas foram resumidas em uma matriz dividida em tópicos de acordo com os principais significados que seus desenhos representavam. Assim, foram designados para cada entrevistado(a) um código na forma de trans-homem ou transmulher, seguido pelo país de origem e por um número arábico, de modo que cada associação pudesse ser relacionada com uma entrevista durante o processo da análise final de conteúdo que guiou o processo88 Bardin L. Análise de conteúdo. 3ª ed. Lisboa: Edições 70; 2011..

Dessa forma, devemos reconhecer que, em seu conjunto, as estratégias metodológicas utilizadas favoreceram a identificação concisa da representação multicêntrica do corpo trans e explicitaram a complexidade dos espaços e emoções nos quais se encontram ancoradas suas corporeidades.

Resultados

Ao abordar a análise para caracterizar a representação social do corpo trans ‒ e após a análise organizacional realizada ‒, foi possível desvelar uma única representação social associada à corporeidade, assim elencada: Corpos modelados: sobre a elasticidade da corporeidade.

Essa representação descreveu duas unidades de contexto elementar (matrizes do discurso) claras. A primeira delas associou o corpo a um objeto inconcluso, transitório, volátil, maleável, moldável e fluido:

Meu corpo não é perfeito, ele ainda não está acabado, falta muito por modelar, tem ainda muito para mostrar (Transmulher 9, Costa Rica, 2015 ‒ tradução própria).

No entanto, a segunda matriz discursiva relacionou o corpo com uma instituição própria, mas regulada e controlada pelos outros:

(...) Meu corpo é um estranho, eu habito nele, mas não tenho o controle sobre porque são os outros os que ditam como ele deve ser e como ele deve se comportar (Trans-homem 3, Costa Rica, 2015, grupo focal ‒ tradução própria).

Por essa razão, ele (na maioria das vezes) deve ser transformado, ao ser considerado um meio que facilita a adaptação social e cultural: Eu faço uso do hormônio para aceitar-me e ser aceita pelos outros (Transmulher 4, Brasil, 2014).

Ao abordar a primeira unidade de contexto elementar para caracterizar a representação do corpo vinculada a uma estrutura inconclusa e em constante transformação (seja esta pelas diversas tecnologias estéticas, cirurgias ou pelo uso de hormônios), encontraram-se elementos associados aos conceitos de transitoriedade, incoerência, maleabilidade, movimento, desejos, plasticidade, metáforas/comparações com argila e massinha de modelar, fluidez, transformação, volatilidade, incoerência, complexidade e instabilidade, como demonstrado a seguir:

Figura 1
Desenhos por associação livre com a palavra indutora “Corpo” associados aos conceitos de transição e transformação da participante transmulher costa-riquenha 2 e da transmulher brasileira 35 - San José, Costa Rica, 2015.

Nunca gostei disto com o que nasci (fazendo referência ao próprio corpo), eu nunca fui um homem; tudo foi um engano da natureza, por isso um belo dia decidi comprar um bisturi, comprei anestesia de dentista, pesquisei na internet como a gente fazia para parar de produzir testosterona e também pesquisei como arrancar os meus testículos do meu corpo, porque realmente eu não queria seguir produzindo mais testosterona e queria parar de tomar tanto hormônio porque estava me fazendo mal em algumas coisas. Eu sempre soube que o corpo podia ser mudado, senão como fazem os cirurgiões plásticos? Então estudei na internet por três meses, era tal o desespero que achei que era médica e fiz essa burrada, comecei a fazer uma incisãozinha lá na metade do saco e comecei cortar para tirar esses malditos dos testículos que para mim eram a fábrica da testosterona e realmente eu não queria eles dentro de mim (Transmulher 25, Brasil, 2014).

Me sentía realmente insatisfecha con ese cuerpillo que me fue dado, Dios se equivocó, quiso bromear conmigo. Ese cuerpo no es mío, él no me pertenece, por eso el suicidio convivió conmigo mi vida entera, nací en un cuerpo equivocado, yo nunca fui una mujer, siempre fui un hombre, solo que mi cuerpo nunca fue capaz de entenderlo, por eso rezaba todos los días para que al día siguiente se acabara toda esta tragedia (...)no quería más tener la “monstruación”, no quería tener más tetas, quería tener un cuerpo masculino con barba y muchos pelos (...) pero eso nunca pasó (Trans-homem 8, Costa Rica, 2015).

Um ponto que chama a atenção na fala anterior é a palavra “monstruación” que foi expressa pelo participante para se referir ao processo menstrual. Dita expressão está carregada de um significado semântico associado à dor, não aceitação e repúdio, pois, nas palavras dele, a menstruação enviava uma mensagem mortificadora, que lhe fazia lembrar o trauma da sua desconformidade corporal.

Por outro lado e complementarmente, foram explicitadas nas histórias de vida e nos desenhos as estratégias interativas realizadas por meio de diversas tecnologias de transformação (cirurgias, uso de hormônio, injeção de silicone industrial) que fazem com que o corpo revele sua maleabilidade, como corroborado a seguir:

Sobre a maleabilidade dos corpos:

(...) ya te lo dije, todos nascemos como una hoja en blanco, ahí usted escribe en esa hoja lo que le da la gana, nacemos inacabados, incompletos, bueno así lo veo yo, Dios le da el chance de hacer lo que usted quiera con esa hoja, usted puede transformar su cuerpo como lo quiera, puede hasta volverlo al revés si así lo quiere (Transmulher 7, Costa Rica, 2015).

O corpo me dá a sensação de ser um produto que não tem fim (...) hoje tu fazes isto, amanhã fazes aquilo, tu podes moldá-lo do jeito que tu queres, não gostas do teu nariz? Então fazes diferente; não gostas da tua barriga? Então fazes uma lipo (Trans-homem 11, Brasil, 2014).

Mi cuerpo es movimiento, él se mueve, él tiene un inicio, pero no tiene un fin, él se mueve de acuerdo a mis sueños, no es una cosa cerrada, nada es cerrado en esta vida,(...) por ejemplo si querés te inyectás más silicón, te quitás la grasa, tomás más pastillitas (hormônio), etc (Transmulher 28, Costa Rica, 2015).

O corpo é uma coisa muito doida, tu podes fazer o que quiseres com ele, agora mais do que nunca, porque a tecnologia está muito avançada (Trans-homem 11, Brasil, 2014).

De acordo com os depoimentos mostrados anteriormente, o corpo trans se caracteriza pela ambivalência: equivale por um lado a um espaço ameaçado (adverte-se sua provável eliminação ou mutilação por meio dos compressores estatutos caseiros, médicos e cisnormativos) enquanto funciona como possível insurgência diante da alienação capitalista/pós-colonial: converte-se em instância produtiva de materialidades, espaços e sentidos; em ponto de partida e de destino.

Ao abordar a segunda unidade de contexto elementar que caracteriza o corpo como uma instituição própria, mas regulada e controlada pelos outros, encontraram-se elementos associados aos conceitos de não aceitação, vontade/necessidade de ser aceita, encaixar, proteção e escudos, como demonstrado a seguir:

Corpo como instrumento para aceitar-me e ser aceita pelos outros

Yo todo lo que hago por cambiar mi cuerpo es para complacer a los demás, nunca quise tener tetas grandes con unas pequeñitas me hubiera bastado (...) he hecho de todo por complacer a los demás (...) he puesto mi vida en riesgo para ser aceptada en mi barrio (...) mi opinión en esta sociedad no importa (Transmulher 12, Costa Rica 2015).

Tudo o que eu tenho feito é para os outros, todas as mudanças são de acordo com o que os outros acham lindo ou acham que eu devo de fazer, eu sou das que pensam que não precisa ter um corpo com uma silhueta feminina para ser mulher, eu bem poderia ser uma mulher com barba, voz grossa e sem peitos, mas coloquei tudo isso para ser aceita mais facilmente pelos outros (Transmulher 28, Brasil, 2014).

Eu fui percebendo, quando cheguei em Floripa, que devia fazer e atuar como as trans daqui atuavam e na época me lembro que estava na moda ser loira e ter o cabelo liso, então imagina eu, morena e com cabelo cacheado, me via horrorosa de loira e com o cabelo esticado à força com chapinha, era um horror (...) mas para não desentoar muito, fiz tudo isso. (Transmulher 8, Brasil, 2014)

Ahí fue donde me di cuenta que no podía ser la mujer que yo quería ser, tenía que actuar como el resto de las ticas sumisas actuaban y dejarme tratar como ellos las trataban, no podía ser una mujer muy “machona” porque los demás iban a verme como un bicho raro (Transmulher 18, Costa Rica, 2015).

A representação social elaborada sobre o complexo corpo trans que se modifica para ser aceito por um determinado círculo societal exprime códigos de proteção comportamental definidos pelos diversos movimentos de interação social. Esse corpo é captado em sua aparência, pensado em sua (des)potência e (des)localizado em um lugar de reconhecimento social.

Nesse mesmo âmbito, os discursos evidenciam a vulnerabilidade do corpo que o obrigam a refugiar-se atrás de estruturas resistentes, armações, conchas ou escudos, a qual surge como resultado do contexto que as/os criou e como consequência direta de ancoragens infraestruturais no patriarcado operante durante toda sua história de vida.

Figura 2
Desenhos por associação livre com a palavra indutora “Corpo” associados a elementos de resistência da participante transmulher costa-riquenha 31 (Carapaça de tartaruga) e do trans-homem costa-riquenho 10 (Armadura) - San José, Costa Rica, 2015.

A leitura flutuante dos desenhos acima nos instiga a afirmar que o corpo trans é o entorno primário que se habita. É uma estrutura que vai além da fronteira física que o identifica com um contexto temporal e cultural. Por outro lado, mas complementarmente, seguindo a análise proposta pela segunda matriz de discurso que caracteriza a representação do corpo como uma instituição vulnerável aos interditos públicos, surgem alguns elementos relacionados com a luta, a resistência e a contínua transformação como produto dos padrões impostos socioculturalmente.

Nesse cenário sociocognitivo, devemos declarar que algumas instituições que funcionaram como porta-vozes na objetivação das representações sociais podem ser identificadas nos poderes hegemônicos (genéricos, estéticos, políticos, econômicos, familiares e morais), pois legitimaram seu papel persuasivo e (des)informativo.

Para concretizar isso, recorreram a um uso intencional e arbitrário de normas, transformando-as por meio de tecnologias que vincularam as necessidades pessoais e/ou coletivas a um objeto de consumo que sentenciam em si mesmo a satisfação da necessidade e ofertam a ideia de um corpo que deve ser modificado com o intuito de ser aceito, como explicitado abaixo:

Claro que no me amo, claro que no me acepto, solo voy a aceptarme cuando tenga un cuerpo totalmente masculino, ese es mi estandarte, esa es mi lucha, y continuará hasta lograrlo, no importa si debo torturar mi cuerpo con un pichazo (muitas) de hormonas, inyecciones y suplementos (Trans-homem 6, Costa Rica, 2015).

Nunca me aceitei. Foi então que comecei a tomar um coquetel de hormônios em farmácias. Ao início foi mágico ver que o meu corpo estava ficando tão feminino (...) Queria ser aceita (Transmulher 6, Brasil, 2014).

Paralelamente, a partir dos resultados, é possível declarar que o corpo trans não é uma instituição estática ou imutável, senão flexível, em constante construção, (re)configurável e transformável de acordo com os parâmetros impostos pela alteridade. Pensamos que, a partir da representação social expressa pelas/pelos participantes, o corpo trans é como uma instituição que habita lugares, mas que também produz espaços. É um corpo que se estende para além da epiderme e que amplia a capacidade sensorial, ante uma visão excessivamente discursiva ou construtivista.

Discussão

Conexo às concepções mostradas pelos depoimentos e desenhos, ficou evidente que os processos de elaboração da representação social do corpo na pessoa trans e seu devir subjetivo e plural configuraram-se a partir da efetivação do ato de sujeição por meio de um jogo de intercâmbios de ações, crenças, discursos e imaginários em uma sociedade superficial e ainda patriarcal nas duas realidades pesquisadas.

Como visto, pensar no corpo trans como objeto de estudo supõe sortear um problema de corte epistemológico. Em uma primeira aproximação ao tema que nos interessa desvelar, podemos afirmar que esse corpo se configura como um espaço físico, cuja limitante (e limitada) superfície externa, ao mesmo tempo que oculta sob sua geografia uma complexa interioridade biológica, desdobra-se no âmbito cultural que o rodeia.

Em cada corpo trans, por essência vulnerável, maleável, fugaz e deteriorável, vivenciam-se e representam-se histórias de vida que retratam o mundo vivido no qual ele transita, convive e interage com outros (muitos) corpos. Neste processo, ele dispõe especificamente de sentimentos e palavras como instrumentos de comunicação, enquanto sua imagem (diante dos outros corpos e diante de si, no espelho) vai mudando de modo quase (im)perceptível, ao longo do seu crescimento e desenvolvimento cotidiano.

O corpo trans é uma estrutura natural e social, cujos comportamentos adquirem significações no âmbito de um determinado contexto temporal e territorial. Deste modo, é visto (o ver carece de intencionalidade) por alguns corpos e olhado (o olhar é um modo de examinar através do cristal ideológico de quem observa) por inumeráveis pessoas com lentes que muitas vezes impõem incoerências e contradições na sua autopercepção.

Muitas são as intencionalidades do olhar o corpo trans como objeto: o julgamento masculinizador, o feminizador, o moralizador, o político, o artístico, o fetichista, o cispunitivo, o heteronormativo, o filosófico, o religioso e, entre outras muitas, o julgamento médico.

Embora neste manuscrito sobre a corporeidade trans tenhamos que pensar no corpo em todas essas perspectivas, nesta análise nos centramos na reflexão do corpo trans como objeto sujeito à postura da domesticação e (des)naturalização política e pública.

Logo de partida falamos de uma tendência de domesticação do corpo que se expressa nos diversos discursos científicos: estética, sexualidade, higiene, nutrição, medicina e esporte. O denominador comum a todos esses discursos é sua pretensão de (trans)formar as pessoas e encaixá-las dentro de ideais concretos de modernidade, como demonstrado em algumas (outras) pesquisas que abordam a temática em questão99 Niemeyer F, Kruse MHL. Constituindo sujeitos anoréxicos: discursos da revista Capricho. Texto Contexto Enferm. 2008;17(3):457-465.

10 Ibáñez RM, Pérez ES. Cuerpos y diferencias. Madrid: Plaza y Valdés; 2013.

11 Berg M, Krich MA. Bodies on trial: performances and politics in medicine and biology. Body Soc. 2014;10(3):1-12.
-1212 Springgay S. Thinking through bodies: bodied encounters and the process of meaning making in an e-mail Generated Art Project. Stud Art Educ. 2015;47(1):34-50..

Ao afirmar essa visão domesticadora, postulamos que os corpos trans funcionam como paradigmas de (re)produção das configurações sociais específicas, que promovem uma não aceitação das suas (auto)imagens. Evidencia-se simultaneamente que o corpo trans é portador de infinitas mensagens: ele é tanto depositório de significações quanto criador delas.

Esse corpo fala a partir de gestos que possuem um alto valor simbólico; evidencia imediatamente a personalidade da que são envoltórios e, em uma relação dialética, expõe por meio do seu reflexo a figura linguística que a/o constitui22 Drummond M. The meaning of boys' bodies in physical education. J Men's Stud. 2013;11(2):131-43.,1313 Blackman L, Eatherstone M. Re-visioning body & society. Body Soc. 2014;16(1):1-5..

Poderíamos garantir também por meio da análise das duas matrizes discursivas que a dimensão da corporeidade trans tem sido (re)tomada para exibir sua construção sócio-histórica, na qual se torna fundamental situar os determinantes sociais que produzem algumas construções estilísticas corporais.

Igualmente, é relevante resgatar a ideia de que o corpo é constituído por significados socialmente atribuídos, assim como por agentes que expressam (i)lógicas sociais complexas no diário acontecer; por isso vemos o corpo trans como algo que é duplamente constituído e constituinte.

Em consonância com alguns estudos, devemos reconhecer o dinamismo da relação corpo-tecnologias-sociedade, na qual os sujeitos (trans) não só dispõem de sua individualidade corpórea como recurso de ação como também a constroem por meio de estratégias interativas de adaptação ao meio, por intermeio de diversas tecnologias de transformação que fazem com que o corpo revele sua maleabilidade1414 Gardner RM, Brown DL. Body image assessment: a review of figural drawing scales. Pers Individ Dif. 2010;48(2):107-11.

15 Costera-Meijer I. "Which difference makes the difference? On the conceptualization of sexual difference". In: Hermsen JJ, Van Lenning A, editors. Sharing the difference: feminist debates in Holland. New York: Routledge; 2011.
-1616 Zabludovsky G. Bodies and affection as study objects in Latin America: thematic interests and recent process of institutionalization. Sociológica. 2011;26(74):33-78..

Atentos a esse paradoxo, gostaríamos de colocar a premissa de que os corpos trans, tanto seu “estar” como seu (con)“viver”, contribuem para a significação dos espaços urbanos e topográficos da nossa realidade contextual. Dita afirmação pressupõe que a representação social anteriormente mostrada opera como uma matriz de percepção que configura esquemas de significados transcoletivos, a partir dos quais se desdobram processos comunais e individualizáveis de significação e sentido da realidade que representa; não só com a assinação de um rótulo simbólico, mas também com a atribuição valorativa que coloca o corpo diante de uma antinomia: devo mudar o corpo de acordo com o que os outros ditam, com a finalidade de encaixar e evitar processos de estigmatização.

Daí que, nas representações que circulam nos discursos sociais sobre o corpo trans, a estética e a imagem de um corpo transformado desencadeie nos sujeitos uma série de atuações nas quais se interpelam seus modos de pensar e sentir, de acordo com consensos impostos pelo sistema de convenções arbitrárias, que enunciam suas condições de (im)possibilidade e modelagem.

De face às anteriores narrativas, a significação sobre o corpo trans já não está somente vinculada à ideia de um corpo trans(/tornado/)formado, senão à de um corpo que muda (e deve mudar) constantemente, à de um corpo suscetível de ser significado e enunciado como predicado. Isto é, um corpo moldável, maleável, sem forma ou facilmente deformável, e que se transforma para encaixar e que pode ser captado/capturado nos significados da representação encontrada1515 Costera-Meijer I. "Which difference makes the difference? On the conceptualization of sexual difference". In: Hermsen JJ, Van Lenning A, editors. Sharing the difference: feminist debates in Holland. New York: Routledge; 2011.,1717 Bru J. El cuerpo como mercancía. In: Nogué J, Romeron J, editores. Las otras geografías. Valencia: Editorial Tirant lo Blanch; 2012.-1818 Zafra R. Sujeto y red: potencia y limitación política del (des)hacer los cuerpos online. Cad Pagu. 2015;(44):13-30. .

Nesse exato sentido, concordamos com alguns autores, que argumentam que, pela operatória da cis-heteronormatividade, o simbólico constrói nos sujeitos (aqui trans) modalidades de posicionamento ao acontecer temporal e de suas repercussões biográficas sobre a realidade corporal1616 Zabludovsky G. Bodies and affection as study objects in Latin America: thematic interests and recent process of institutionalization. Sociológica. 2011;26(74):33-78.-1717 Bru J. El cuerpo como mercancía. In: Nogué J, Romeron J, editores. Las otras geografías. Valencia: Editorial Tirant lo Blanch; 2012..

Nesse paradigma, o transcorpo ‒ fugaz e etéreo ‒ “ideal” funciona como mecanismo por meio do qual os setores hegemônicos (cisnormativos) impõem suas categorias culturais e elevam o sujeito à categoria de consumidor de ideias/presunções que colonizam as necessidades básicas e, consequentemente, a vida cotidiana.

Identidades e subjetividades essas que aludem à construção de estilos de corpo que se elevam à categoria de estereótipos, que são funcionais aos interesses dos grupos dominantes (e às indústrias patriarcais)1919 Torras M, Acedo N, editores. Encarnaciones: teoría(s) de los cuerpos. Madrid: Editorial UOC; 2008.

20 Britto D. That stupid girl nice: moldings bodies, women undergoing. Canada: Polis Network; 2015.

21 Bento B. A reinvenção do corpo: sexualidade e gênero na experiência transexual. Rio de Janeiro: Garamond; 2006.
-2222 Bergeron SM, Senn CY. Body image and sociocultural norms: a comparison of heterosexual and lesbian women. Psychol Women Q. 2008;22(3):385-401..

Nessa (i)lógica de dominação e imposição das cisnormas historicamente patriarcais, a utilização de uma ancoragem discursiva baseada na superfície da estilística corporal significa uma forma de negociar com as normas de gênero que legitima como normais as práticas referenciadas no discurso da determinação natural da aparência.

Por outro lado, mas complementarmente abordando o corpo trans como um produto modificável para ser aceito, poderíamos criar uma metáfora vinculada à conjuntura neocapitalista onde comparamos o corpo com uma mercancia, em que tem se convertido em um objeto predileto de consumo, sendo considerado simultaneamente como capital e como fetiche1515 Costera-Meijer I. "Which difference makes the difference? On the conceptualization of sexual difference". In: Hermsen JJ, Van Lenning A, editors. Sharing the difference: feminist debates in Holland. New York: Routledge; 2011..

Efetivamente, a importância dada ao corpo e à sua aparência capital e “fetichista” é um fato cultural e social que se vai modificando em função da sociedade e da época, por isso reiteramos essa estrita relação do corpo com as relações e normas sociais e culturais. Nessa (i)lógica, o corpo é visto como um objeto moldável, e a beleza é definitivamente considerada como um elemento que facilita esse “fit in” social dentro de um contexto específico.

É evidente que o corpo (trans) tem sido utilizado como objeto e alvo do necro/biopoder; como objeto no sentido em que tem sido visto e valorizado como instrumento produtivo, exigindo alguns exercícios e manobras para dito fim, e como alvo de necro/biopoder. Retomando essa ideia, consideramos que esse pensamento introduz a ideia de um corpo trans que está sendo afetado por outros e simultaneamente afeta aos outros.

Nessa linha de raciocínio, ser corpo trans é entrar em uma interminável relação de afetos e efeitos. Por isso, o corpo transvivido ‒ esse corpo que é encarnado durante qualquer horário do dia ‒, longe de ser coerente e singular, está continuamente movendo-se em entornos contraditórios ou usufruindo, ao menos, (in)coerências parciais.

De acordo com o exposto anteriormente, ser/possuir um corpo é estar habilitado/habitado por um universo de cadeias significantes que se unem na ação de significar algo suscetível de ser aprendido por meio da representação.

Assim, finalizamos estes argumentos declarando que o corpo trans, de maneira individual e coletiva, resiste e desestabiliza os significados cristalizados sobre as rotinas urbanas, transforma a paisagem e instala outras imagens e atos alternativos que permitem ampliar os limites da possibilidade corporal e o social. Ele é um sítio primário de contestação social e individual; isto é, o ponto de enfoque para a opressão e o empoderamento simultaneamente.

Conclusão

De frente às etéreas malhas que envolvem as representações do corpo trans (e do mundo consigo), retorna como dado contundente a fragilidade e maleabilidade do ser ontológico, mediados e afantochados (a maioria do tempo) pelos poderes hegemônicos ‒ sejam estes sociais, religiosos, raciais ou cisnormativos ‒ que se esforçam por clausurar as portas de outros modos de ser/estar/possuir/viver (em) um corpo.

A representação metafórica do corpo (e suas consequentes matrizes de discurso) que foi apresentada constitui a tentativa do campo individual por atribuir um código de significação que oriente o sentido que adquire a realidade corporal com relação à experiência do acontecer temporal.

Nesse sentido, o corpo trans volúvel, efêmero, transformável e (in)desejável é (sempre) atravessado pelas improntas de um tempo historizante e historizável, que se inscreve não só daquilo que pode ser nomeado diante do emprego de signos linguísticos, senão também daquilo que pertence ao registro do inominável em termos de percepções e sensações.

A representação social do corpo trans encobriu aquilo que não podia ser significado senão por meio do sentido, e é por essa razão que solapam a incerteza que a (i)racionalidade do perecedouro deixa aberta ao entendimento compartilhado.

Essa representação vincula, desde uma perspectiva complementar, os fios que constituem o primordial do vital e humano, que não é outra coisa senão a potencialidade da finitude que engloba em seu abraço a transexualidade, como representante material do inegável da contextualidade que queda inscrita nos registros corporais.

Os argumentos que apresentamos trazem que o corpo trans é utilizado como uma forma de expressão e manifestação das vivências e falências culturais. Assim, ele é um locus de produção de discursos e contradiscursos à ordem das proibições do gênero.

Os diferentes discursos, categorias, sentimentos e pensamentos das/os protagonistas reais desta pesquisa foram unificados na representação descrita dentro de algumas coordenadas temporais e configuraram um esquema simbólico, estruturado e estruturante da imagem corporal que é reconhecida pelo sujeito transexual que a possui.

Para finalizar estes apontamentos, consideramos necessário declarar que a história do corpo não pode ser separada ou deslocada dos dispositivos de construção do biopoder e da necropolítica, porque, como mencionamos nas tenras etapas da introdução, o corpo é um texto, um texto socialmente construído, isto é, um arquivo vivo da história do processo da produção e reprodução dos lineamentos socioculturais hegemônicos.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2017

Histórico

  • Recebido
    14 Jul 2016
  • Aceito
    20 Dez 2016
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