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Vulnerabilidades para o adoecimento de mulheres em garimpos na fronteira do Escudo das Guianas* * Extraído da dissertação de mestrado: “Mulheres no garimpo: percepção sobre saúde e doença na Fronteira Panamazônica”, Universidade Federal do Amapá, 2019.

RESUMO

Objetivo:

Analisar as vulnerabilidades para o adoecimento de mulheres em áreas de garimpos da fronteira do Escudo das Guianas: Brasil, Guiana Francesa e Suriname.

Método:

Pesquisa de campo, descritiva, exploratória, de abordagem qualitativa. A coleta de dados ocorreu com 19 mulheres que vivenciavam o contexto de garimpagem, em abril de 2018. As entrevistas foram gravadas e transcritas na íntegra e posteriormente analisadas à luz do conceito de vulnerabilidade.

Resultados:

Mulheres com idade entre 30 e 39 anos, predominantemente pretas e pardas, união estável, multíparas, baixa escolaridade e com atividades de trabalho relacionadas à garimpagem. Emergiram três categorias empíricas: Exposição às condições ambientais e de vida nos garimpos: vulnerabilidades para o adoecimento de mulheres; Saúde sexual e reprodutiva no contexto de fronteiras: a invisibilidade entre a legalidade e a ilegalidade; Facetas gendradas da violência nos garimpos da fronteira do escudo das Guianas.

Conclusão:

A vulnerabilidade é acentuada nas três dimensões do conceito, quais sejam: a dificuldade de acesso aos serviços de saúde, tratamento descontinuado e disparidade nas políticas de saúde entre os países, que são aspectos importantes à vulnerabilidade e condições de saúde.

DESCRITORES
Saúde da mulher; Mineração; Saúde na fronteira; Vulnerabilidade em Saúde; Populações vulneráveis

ABSTRACT

Objective:

To analyze the the vulnerabilities to illnesses in women living on the border of the Guiana Shield mines: Brazil, French Guiana, and Suriname.

Method:

Descriptive, exploratory field study with a qualitative approach. Data collection took place with 19 women who were living in the mining context, in April 2018. The interviews were recorded and transcribed in full and subsequently analyzed in the light of the concept of vulnerability.

Results:

Women aged between 30 and 39 years, predominantly black and brown, on a common-law marriage, multiparous, of low level of education, and with work activities related to mining. Three empirical categories emerged: Exposure to environmental and life conditions in the mines: vulnerabilities to illnesses in women; Sexual and reproductive health in the context of borders: the invisibility between legality and illegality; Gendered facets of violence in the mines on the border of the Guiana Shield.

Conclusion:

Vulnerability is marked in the three dimensions of the concept: in the difficult access to health services, in the discontinued treatment, and in the disparity in health policies within countries, which are important aspects of vulnerability and health conditions.

DESCRIPTORS
Women’s Health; Mining; Border Health; Health Vulnerability; Vulnerable Populations

RESUMEN

Objetivo:

Analizar las vulnerabilidades por la enfermedad de las mujeres en zonas mineras en la frontera del Escudo Guayanés: Brasil, Guayana Francesa y Surinam.

Método:

Investigación de campo, descriptiva, exploratoria, con enfoque cualitativo. La recolección de datos se realizó con 19 mujeres que vivían el contexto de las minerías, en abril de 2018. Las entrevistas fueron grabadas y transcritas en su totalidad y posteriormente analizadas a la luz del concepto de vulnerabilidad.

Resultados:

Mujeres de 30 a 39 años, predominantemente negras y pardas, unión estable, multíparas, baja escolaridad y con actividades laborales afines a la minería. Surgieron tres categorías empíricas: Exposición a las condiciones ambientales y de vida en las minerías: vulnerabilidades de las mujeres a enfermarse; salud sexual y reproductiva en el contexto de las fronteras: la invisibilidad entre la legalidad y la ilegalidad; facetas de género de la violencia en las minerías de la frontera del escudo guayanés.

Conclusión:

La vulnerabilidad se acentúa en las tres dimensiones del concepto, a saber, el difícil acceso a los servicios de salud, la interrupción del tratamiento y la disparidad en las políticas de salud entre países, son aspectos importantes para la vulnerabilidad y las condiciones de salud.

DESCRIPTORES
Salud de la Mujer; Minería; Salud Fronteriza; Vulnerabilidad en Salud; Poblaciones Vulnerables

INTRODUÇÃO

O Brasil e a Guiana Francesa estão separados por uma região fronteiriça de 730,4 km. Já a delimitação territorial entre Brasil e Suriname estende-se por 593 km. Nessas áreas de fronteiras é comum o trânsito de pessoas para trabalho, comércio, atividades sociais e tratamento de saúde. Todavia, estes limites territoriais possuem aspectos culturais próprios, diferenças de acesso às oportunidades sociais, econômicas e de assistência à saúde, que deixam os indivíduos em condições de vulnerabilidades(11. Mendes LMC, Gomes-Sponholz F, Monteiro JCDS, Pinheiro AKB, Barbosa NG. Women who live in mining on the French-Brazilian border: daily challenges. Rev Bras Enferm. 2022;75(6):e20210688. doi: http://dx.doi.org/10.1590/0034-7167-2021-0688pt. PubMed PMID: 36000596.
https://doi.org/10.1590/0034-7167-2021-0...
,22. Douine M, Mosnier E, Le Hingrat Q, Charpentier C, Corlin F, Hureau L, et al. Illegal gold miners in French Guiana: a neglected population with poor health. BMC Public Health. 2017;18(1):23. doi: http://dx.doi.org/10.1186/s12889-017-4557-4. PubMed PMID: 28716015.
https://doi.org/10.1186/s12889-017-4557-...
).

Investigações realizadas em áreas de fronteira precisam considerar aspectos como a dinâmica da ocupação desses espaços, a composição das populações, a mobilidade e as interações transfronteiriças(22. Douine M, Mosnier E, Le Hingrat Q, Charpentier C, Corlin F, Hureau L, et al. Illegal gold miners in French Guiana: a neglected population with poor health. BMC Public Health. 2017;18(1):23. doi: http://dx.doi.org/10.1186/s12889-017-4557-4. PubMed PMID: 28716015.
https://doi.org/10.1186/s12889-017-4557-...
). Neste sentido, buscar-se-á situar o cenário nosográfico da fronteira brasileira com a Guiana Francesa e o Suriname. Nesta faixa de fronteira insere-se, do lado brasileiro, o município de Oiapoque-Amapá, a vila militar de Clevelândia do Norte, o Parque Nacional Montanhas do Tumucumaque (PNMT), as Terras Indígenas (TI) Uaçá e a comunidade de Ilhabela, sendo esta última um lugar de operacionalização das atividades de garimpagem clandestina, que comumente ocorrem do lado estrangeiro da fronteira(33. Silva No AS, Landim No FO. Conflitos socioambientais entre a comunidade da sede distrital de Vila Brasil, Oiapoque - Amapá e o Parque Nacional Montanhas do Tumucumaque: a fronteira franco brasileira em debate. Rev Eletrôn PRODEMA. 2017;11(Suppl 1). doi: http://dx.doi.org/10.22411/rede.v11i1.468). Do lado guianense situa-se a cidade gêmea de Saint George e, também, vivem os indígenas Waiãpi, na comuna de Camopi. Nessa área há vários garimpos clandestinos ocupados por brasileiros, dentre os quais ­destaca-se o Sikini. Já a proximidade da fronteira entre o Brasil e o Suriname é uma região pouco habitada e há, em alguns locais, aldeias indígenas e comunidades ribeirinhas(33. Silva No AS, Landim No FO. Conflitos socioambientais entre a comunidade da sede distrital de Vila Brasil, Oiapoque - Amapá e o Parque Nacional Montanhas do Tumucumaque: a fronteira franco brasileira em debate. Rev Eletrôn PRODEMA. 2017;11(Suppl 1). doi: http://dx.doi.org/10.22411/rede.v11i1.468).

Os habitantes dessa região são predominantemente garimpeiros, pequenos comerciantes e mulheres que exercem atividades apendiculares à extração aurífera no ambiente de garimpagem, como, fretistas, marreteiras e profissionais do sexo(11. Mendes LMC, Gomes-Sponholz F, Monteiro JCDS, Pinheiro AKB, Barbosa NG. Women who live in mining on the French-Brazilian border: daily challenges. Rev Bras Enferm. 2022;75(6):e20210688. doi: http://dx.doi.org/10.1590/0034-7167-2021-0688pt. PubMed PMID: 36000596.
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33. Silva No AS, Landim No FO. Conflitos socioambientais entre a comunidade da sede distrital de Vila Brasil, Oiapoque - Amapá e o Parque Nacional Montanhas do Tumucumaque: a fronteira franco brasileira em debate. Rev Eletrôn PRODEMA. 2017;11(Suppl 1). doi: http://dx.doi.org/10.22411/rede.v11i1.468). Verifica-se que estas mulheres vivenciam sobreposições de vulnerabilidades, em que possuem baixa ou nenhuma escolaridade, moradias precárias e, muitas vezes, são agenciadas ao trabalho no garimpo por parcerias íntimas e/ou com endividamento financeiro(11. Mendes LMC, Gomes-Sponholz F, Monteiro JCDS, Pinheiro AKB, Barbosa NG. Women who live in mining on the French-Brazilian border: daily challenges. Rev Bras Enferm. 2022;75(6):e20210688. doi: http://dx.doi.org/10.1590/0034-7167-2021-0688pt. PubMed PMID: 36000596.
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).

A migração pendular e desordenada, realizada intensamente, associada aos desafios que a floresta impõe para o acesso às equipes de saúde, a clandestinidade e o fato de tratar-se de pessoas invisíveis ao Estado, favorecem a rápida disseminação de doenças(44. Heemskerk M, Le Tourneau FM, Hiwat H, Cairo H, Pratley P. In a life full of risks, COVID-19 makes little difference. Responses to COVID-19 among mobile migrants in gold mining areas in Suriname and French Guiana. Soc Sci Med. 2022;296:114747. doi: http://dx.doi.org/10.1016/j.socscimed.2022.114747. PubMed PMID: 35123372.
https://doi.org/10.1016/j.socscimed.2022...
66. Houcke S, Resiere D, Lontsingoula GR, Cook F, Lafouasse P, Pujo JM, et al. Characteristics of snakebite-related infection in French Guiana. Toxins (Basel). 2022;14(2):89. doi: http://dx.doi.org/10.3390/toxins14020089. PubMed PMID: 35202117.
https://doi.org/10.3390/toxins14020089...
). Os problemas de saúde em potencial incluem influenza A, malária, beribéri, distúrbios digestivos, leishmaniose, dermatites, verminoses, sífilis, Chikungunya, Dengue, Covid19, HIV/Aids e outras infecções, além de picadas de serpentes(11. Mendes LMC, Gomes-Sponholz F, Monteiro JCDS, Pinheiro AKB, Barbosa NG. Women who live in mining on the French-Brazilian border: daily challenges. Rev Bras Enferm. 2022;75(6):e20210688. doi: http://dx.doi.org/10.1590/0034-7167-2021-0688pt. PubMed PMID: 36000596.
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,44. Heemskerk M, Le Tourneau FM, Hiwat H, Cairo H, Pratley P. In a life full of risks, COVID-19 makes little difference. Responses to COVID-19 among mobile migrants in gold mining areas in Suriname and French Guiana. Soc Sci Med. 2022;296:114747. doi: http://dx.doi.org/10.1016/j.socscimed.2022.114747. PubMed PMID: 35123372.
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66. Houcke S, Resiere D, Lontsingoula GR, Cook F, Lafouasse P, Pujo JM, et al. Characteristics of snakebite-related infection in French Guiana. Toxins (Basel). 2022;14(2):89. doi: http://dx.doi.org/10.3390/toxins14020089. PubMed PMID: 35202117.
https://doi.org/10.3390/toxins14020089...
).

Acerca da saúde das mulheres, o conhecimento atual é extremamente limitado(11. Mendes LMC, Gomes-Sponholz F, Monteiro JCDS, Pinheiro AKB, Barbosa NG. Women who live in mining on the French-Brazilian border: daily challenges. Rev Bras Enferm. 2022;75(6):e20210688. doi: http://dx.doi.org/10.1590/0034-7167-2021-0688pt. PubMed PMID: 36000596.
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). As mulheres na área de garimpo constituem um grupo vulnerável, considerando a intersecção entre desigualdades de gênero, estigma, clandestinidade, origem, associadas ao isolamento geográfico da região. Esses aspectos aumentam o risco destas mulheres a agravos à saúde, como infecções sexualmente transmissíveis (IST/HIV), diminuição de acesso à testagem rápida, dificuldades para uso sustentado do preservativo, dificuldades para realização e recebimento do exame de rastreamento do câncer de colo de útero, exposição à violência sexual, expondo fragilidades relacionadas ao gênero e à saúde reprodutiva nessa perspectiva(11. Mendes LMC, Gomes-Sponholz F, Monteiro JCDS, Pinheiro AKB, Barbosa NG. Women who live in mining on the French-Brazilian border: daily challenges. Rev Bras Enferm. 2022;75(6):e20210688. doi: http://dx.doi.org/10.1590/0034-7167-2021-0688pt. PubMed PMID: 36000596.
https://doi.org/10.1590/0034-7167-2021-0...
,55. Thoisy B, Duron O, Epelboin L, Musset L, Quénel P, Roche B, et al. Ecology, evolution, and epidemiology of zoonotic and vector-borne infectious diseases in French Guiana: transdisciplinarity does matter to tackle new emerging threats. Infect Genet Evol. 2021;93:104916. doi: http://dx.doi.org/10.1016/j.meegid.2021.104916. PubMed PMID: 34004361.
https://doi.org/10.1016/j.meegid.2021.10...
).

Foi nesse contexto que surgiram as inquietações e motivações para realização desta pesquisa, que se propõe a analisar as vulnerabilidades para o adoecimento de mulheres em áreas de garimpos da fronteira do Escudo das Guianas- Brasil, Guiana Francesa e Suriname.

MÉTODO

Tipo de Estudo

Pesquisa de campo, descritiva, exploratória, de abordagem qualitativa, cujo processo de análise foi baseado no conceito de Vulnerabilidade(77. Ayres JRCM, França Jr I, Calazans GJ, Saletti Fo HC. O conceito de vulnerabilidade e as práticas de saúde: novas perspectivas e desafios. In: Czeresnia D, Freitas CM, editors. Promoção da saúde: conceitos, desafios, tendências. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2009. p. 117–40.). Este conceito surgiu em meados de 1990, em resposta à epidemia de HIV/Aids, com a observação que a epidemia respondia a determinantes que extrapolavam a ação patogênica do vírus(88. Ayres JR, Castellanos MEP, Baptista TWF. Entrevista com José Ricardo Ayres. Saude Soc. 2018;27(1):51–60. doi: http://dx.doi.org/10.1590/s0104-12902018000002
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). Podemos sumarizá-lo como o modelo de se considerar a chance de exposição das pessoas ao adoecimento, como resultante de um conjunto de aspectos, não somente individuais, mas também coletivos, contextuais, que acarretam maior suscetibilidade ao adoecimento e a probabilidade de se alcançar recursos para se proteger(77. Ayres JRCM, França Jr I, Calazans GJ, Saletti Fo HC. O conceito de vulnerabilidade e as práticas de saúde: novas perspectivas e desafios. In: Czeresnia D, Freitas CM, editors. Promoção da saúde: conceitos, desafios, tendências. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2009. p. 117–40.,88. Ayres JR, Castellanos MEP, Baptista TWF. Entrevista com José Ricardo Ayres. Saude Soc. 2018;27(1):51–60. doi: http://dx.doi.org/10.1590/s0104-12902018000002
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).

Foram utilizadas, em cumprimento ao rigor metodológico, as diretrizes do Equator para pesquisas qualitativas, dispostas no Critério Consolidado de Relato de Pesquisa Qualitativa (COREQ).

Cenário do Estudo

O estudo foi realizado no distrito de Ilhabela-AP, pequena ilha utilizada para descanso dos garimpeiros que desempenham atividades clandestinas na região da fronteira do Brasil com o Escudo das Guianas(11. Mendes LMC, Gomes-Sponholz F, Monteiro JCDS, Pinheiro AKB, Barbosa NG. Women who live in mining on the French-Brazilian border: daily challenges. Rev Bras Enferm. 2022;75(6):e20210688. doi: http://dx.doi.org/10.1590/0034-7167-2021-0688pt. PubMed PMID: 36000596.
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). O local foi escolhido por questões logísticas e de segurança, pois o acesso aos garimpos em território da França ou Suriname se dão ilegalmente, em longos percursos a pé e/ou de canoa, com perigos inerentes à vivência na floresta.

População, Critérios de Inclusão e Exclusão, Amostragem

As participantes do estudo foram selecionadas mediante a técnica de snowball, bola de neve, por amostragem exponencial, utilizada para alcançar grupos de difícil acesso(99. Vinuto J. A amostragem em bola de neve na pesquisa qualitativa: um debate em aberto. Temáticas. 2014;22(44):203–20. doi: http://dx.doi.org/10.20396/tematicas.v22i44.10977
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). Deste modo, as próprias participantes informaram à pesquisadora outras possíveis mulheres para integrar o estudo. Destaca-se que, pela alta mobilidade exercida por estas mulheres para incursão aos garimpos, foi extremamente difícil conseguir abordá-las.

Foram elencados como critérios de inclusão ser brasileira, do sexo feminino e vivenciar a rotina de trabalho em garimpos clandestinos na referida fronteira. Todas as mulheres convidadas aceitaram participar da pesquisa. No total, 20 mulheres foram incluídas e concederam entrevistas. Uma participante foi excluída, devido a ruídos de catraias apresentados na gravação do áudio, o que impossibilitou a transcrição, uma vez que, no dia posterior à transcrição, a participante havia partido para o garimpo. A coleta de dados foi encerrada quando as temáticas trazidas pelas mulheres durante as entrevistas começaram a se repetir, demonstrando saturação do conteúdo(1010. Nascimento LCN, Souza TV, Oliveira ICS, Moraes JRMM, Aguiar RCB, Silva LF. Theoretical saturation in qualitative research: an experience report in interview with schoolchildren. Rev Bras Enferm. 2018;71(1):228–33. doi: http://dx.doi.org/10.1590/0034-7167-2016-0616. PubMed PMID: 29324967.
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).

Coleta de Dados

A imersão no campo estendeu-se por 15 dias. As entrevistas ocorreram no período de maio a junho de 2018. O período foi escolhido intencionalmente pela pesquisadora, pois coincidia com o rigoroso inverno amazônico e cheia dos rios, tornando a viagem de embarcações mais rápida e com menores riscos.

O primeiro contato foi realizado com o líder comunitário, que explicou às mulheres que as atividades realizadas com elas seriam para investigação das condições de saúde e as tranquilizou quanto à questão da clandestinidade.

A coleta ocorreu mediante a utilização de três capacitores para obtenção de dados: 1- observação não participante, que tomou como foco a interação social das participantes, destacando aspectos culturais nos modos e práticas em saúde; 2- registro em diário de campo, utilizado como ferramenta importante para tomar notas durante o período de imersão em campo; 3- aplicação de questionário sociodemográfico, seguido de entrevista semiestruturada, em ambiente reservado, que ocorreu nos barrancos - como as mulheres referem-se às suas residências - feitos de madeira e telhado de amianto, à beira do Alto Rio Oiapoque. As técnicas de coleta de dados não foram fixas e rígidas. Elas intercalaram-se entre si, ocorrendo muitas vezes concomitantemente, a depender da relação construída entre os pesquisadores e as mulheres.

Os dados também foram descritos diariamente no diário de campo, simultaneamente à primeira fase de análise do que foi dito e observado, e envolve posturas, gestos, silêncios, risadas, choros, valores políticos, morais e religiosos. A escrita no diário de campo e a reflexão sobre a experiência vivenciada também ocorreram concomitantemente à transcrição na íntegra das entrevistas, o que possibilitou que o material bruto pudesse ser revisto e que fosse possível sanar dúvidas que surgissem durante as transcrições.

As entrevistas foram realizadas pela autora principal deste artigo, enfermeira, doutoranda em Ciências e docente de uma instituição de ensino superior, com experiência na condução e análise de pesquisa qualitativa. As consignas do estudo foram: conte-me um pouco sobre como você percebe sua saúde, as doenças que você tem sempre e como você faz para lidar com isso. Quando você está doente, você procura algum tratamento? Como isso ocorre? Qual o lugar que você procura? Destaca-se que em algumas entrevistas foi necessário utilizar recursos linguísticos para melhor compreensão dos discursos, como conectivos “como”, “quando”, “porque”.

Foi realizado um estudo piloto com uma participante para averiguação da abrangência da consigna. Não foi detectada necessidade de adequação. Os dados do estudo piloto fizeram parte do estudo. Algumas das entrevistadas ofereceram poucos dados esclarecedores, mas outras acabaram sendo informantes chaves. A entrevista teve duração que variou de 20 minutos a três horas.

Análise dos Dados

Com o material transcrito, iniciou-se a leitura analítico-reflexiva, que sintetizou os dados, em torno de falas capazes de representá-los. Destaca-se que as categorias foram construídas mediante duas estratégias de exposição. A primeira foi a frequência da ocorrência e explicitação das vulnerabilidades durante as falas; e a segunda, as condições específicas, inerentes ao cenário de garimpagem observadas e anotadas em diário de campo pela pesquisadora responsável pela coleta dos dados. Deste modo, as categorias nominais dispostas pelas mulheres neste estudo foram estruturadas em: i) Exposição às condições ambientais e de vida nos garimpos: vulnerabilidades para o adoecimento de mulheres; ii) Saúde sexual e reprodutiva no contexto de fronteiras: a invisibilidade entre a legalidade e a ilegalidade; iii) Facetas gendradas da violência nos garimpos da fronteira do Escudo das Guianas.

A apresentação dos dados ocorreu mediante o método hermenêutico-dialético, em que se verifica que a compreensão das falas é produzida por meio da consideração do contexto em que se inserem os indivíduos e no raio da especificidade histórica em que é produzido(1111. Minayo MCS. Abordagens metodológicas das ciências sociais aplicadas à saúde: hermenêutica-dialética como caminho do pensamento social. In: Minayo MCS, Deslandes SF, editors. Caminhos do pensamento: epistemologia e método. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2008. p. 82–108. doi: http://dx.doi.org/10.7476/9788575414118
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). As codificações foram realizadas manualmente por duas pesquisadoras. Um terceiro pesquisador foi consultado quando foram encontradas divergências na identificação das temáticas.

A análise das codificações foi fundamentada no conceito de vulnerabilidade(77. Ayres JRCM, França Jr I, Calazans GJ, Saletti Fo HC. O conceito de vulnerabilidade e as práticas de saúde: novas perspectivas e desafios. In: Czeresnia D, Freitas CM, editors. Promoção da saúde: conceitos, desafios, tendências. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2009. p. 117–40.). A vulnerabilidade envolve a avaliação articulada de três eixos interligados: 1. Componente individual: grau e qualidade da informação de que os indivíduos dispõem sobre um problema, de modo a incorporá-la ao seu repertório cotidiano de preocupações, bem como o interesse em transformar essas preocupações em práticas protegidas e protetoras. Entende-se que a mudança de comportamentos nem sempre está diretamente atrelada à vontade individual, mas também aos contextos de vida e relações interpessoais cotidianas. 2. Componente social: obtenção de informações, poder de incorporá-las a mudanças práticas. Não depende somente dos indivíduos, mas de aspectos como o acesso a meios de comunicação, saúde, moradia, escolaridade, possibilidade de enfrentamento de barreiras culturais, estar livre de coerções violentas. A vulnerabilidade social reflete, portanto, as condições que levam ao bem-estar social. 3. Componente programático: recursos sociais que os indivíduos necessitam para não se expor ao dano e que estes sejam disponibilizados efetivamente e democraticamente. Corresponde à disponibilidade e à qualidade de recursos, gerência e monitoramento de programas nacionais, regionais e locais para prevenção e cuidado. Contudo, as barreiras de acesso aos serviços assistenciais, as inflexões nos programas, planos de ação e financiamento podem expor as pessoas à vulnerabilidade programática(77. Ayres JRCM, França Jr I, Calazans GJ, Saletti Fo HC. O conceito de vulnerabilidade e as práticas de saúde: novas perspectivas e desafios. In: Czeresnia D, Freitas CM, editors. Promoção da saúde: conceitos, desafios, tendências. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2009. p. 117–40.).

Percebe-se que a vulnerabilidade se propõe a expressar os potenciais de adoecimento/não adoecimento relacionados ao todo e a cada um dos indivíduos que compartilham a vivência de um certo conjunto de condições; neste sentido, a vivência em garimpos clandestinos, situados na floresta amazônica, numa fronteira internacional.

Aspectos Éticos

A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Amapá, com parecer nº 2.615.138, em 23 de abril de 2018, e obedeceu à resolução 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde. Para manutenção do anonimato das entrevistadas, adotou-se código alfanumérico nas falas. Logo, para a primeira entrevistada, adotou-se o código E1, para segunda, código E2 e, assim, sucessivamente.

RESULTADOS

Quanto aos dados sociodemográficos, a faixa etária predominante esteve entre 30 e 39 anos (36,84%). com mulheres procedentes das regiões Norte (57,89%) e Nordeste (31,57%). Em relação à cor, predominantemente se autodeclararam pretas e pardas (68,42%), justapondo-se a um perfil de baixa escolaridade, com mulheres que nunca foram alfabetizadas (31,57%) ou que não possuíam o ensino fundamental concluído (31,57%). Contudo, uma mulher declarou possuir ensino superior completo (5,26%). Todas as participantes declararam-se cisgênero, com predomínio de mulheres heterossexuais (94,73%), com atividade sexual com parceiro fixo nos últimos três meses (63,15%). Quanto ao estado civil, predominou a união estável (73,68%), sobressaindo mulheres com filhos (89,47%). Em relação à testagem rápida para IST, predominaram mulheres que nunca haviam realizado o exame (63,15%). As profissões exercidas no ambiente de garimpagem foram trabalho no lar, doméstica, cozinheira, garimpeira, marreteira, frentista e cabeleireira.

A análise temática das falas permitiu a emergência de duas categorias empíricas, já mencionadas anteriormente e aprofundadas no decorrer do texto a seguir.

Exposição às Condições Ambientais e de Vida nos Garimpos: Vulnerabilidades Para o Adoecimento de Mulheres

Uma preocupação presente em todas as entrevistas foi a possibilidade de estarem contaminadas por metilmercúrio. O metilmercúrio é amplamente utilizado nas atividades de mineração aurífera rudimentares. As participantes do estudo estão conscientes de suas condições de vulnerabilidade em saúde e aos efeitos deletérios da exposição ao metilmercúrio, mas possuem poucas ou nenhuma estratégia ao seu alcance para se manterem saudáveis e protegidas. Este fato desvela uma precariedade nas condições de vida e de trabalho que deveriam ser mediadas pelo Estado brasileiro.

A gente fica preocupada, né? Porque essa água aí (do rio) é toda cheia de azougue (como chamam o metilmercúrio). E a gente bebe essa água, né? E faz nossa comida. Aí a gente se sente fraca, eu tenho muita fraqueza, eu acho que é por causa disso, sabe? Fico mole o dia inteiro. (E8).

O controle e tratamento de doenças é uma questão desafiadora quando se trata de populações em migração pendular. Nas áreas de garimpos clandestinos, sobreposições de vulnerabilidades são imputadas ao acesso aos serviços de saúde, uma triangulação entre ausência do poder público nestes sítios, somados à situação de clandestinidade, que se intersectam com questões de gênero, classe e raça de quem ocupa esses espaços; logo, também, sobre quem permanece desassistido.

As facetas das desigualdades de gênero no acesso aos serviços de saúde podem contribuir para o acirramento das condições de saúde das mulheres, a exemplo da ausência de rede de apoio para ir em busca do tratamento nos sítios longínquos em que são disponibilizados os serviços de saúde. Muitas vezes, as mulheres não encontram alternativas para buscarem os serviços de saúde, por serem as responsáveis pela logística e manutenção da rotina e cuidado nos garimpos, como cozinhar, marretar, enviar ouro para terceiros que cuidam de seus filhos na sede urbana de Oiapoque, ou, ainda, pela necessidade de realizar extenso deslocamento geográfico, somada à penosidade do percurso, condicionado às viagens em embarcações, às condições climáticas; tudo isso se torna uma grande barreira para que estas mulheres sejam atendidas por profissionais de saúde. Deste modo, o acesso à saúde é violado por múltiplos eventos, dentre os quais destaca-se a dificuldade de conseguir consultas e medicamentos em tempo oportuno, exames gratuitos, orientações e educação em saúde.

Eu não posso ir pra Oiapoque e perder meu lugar de cozinheira, entende? Porque aí vem outra e como é que eu vou sustentar meus filhos que tão estudando lá no Oiapoque? (E9).

A gente vai pra cidade aí manda pegar remédio e aí não tem, manda fazer exame, aí não tem, aí eu não tenho dinheiro, né, fia? Pra descer esse rio é dois grama de ouro e aí ainda tem que voltar, não dá pra ficar indo lá não, ainda mais debaixo de chuva (E6).

Populações ribeirinhas destas áreas vivenciam endemias de doenças infectocontagiosas negligenciadas, a exemplo da malária e da leishmaniose, em paralelo a um aumento da prevalência de Doenças Crônicas Não Transmissíveis. As diferentes medicações disponibilizadas pelos Estados brasileiro e francês tornam-se uma barreira de acesso para a continuidade do tratamento de doenças das pessoas que vivem nesta fronteira, corroborando o agravamento de suas condições de saúde.

Eu tenho pressão alta, aí peguei uns remédios em São Jorge, aí os médicos de Oiapoque não sabiam pra que era, aí eu não consegui pegar mais (E4). Eu já tive ‘leish’, mas não fiz o tratamento no posto, não. Fiquei boa na raça! (E7).

Mediante a dificuldade de acesso aos serviços de saúde, a automedicação ocorre em demasia nestes sítios. Durante a estadia no campo, também foi possível verificar que insumos para curativos e para outros tratamentos de saúde eram comercializados pelas marreteiras, bem como procedimentos como curativos para leishmaniose, com o custo, em 2018, de seis gramas de ouro (correspondente a aproximadamente R$820,00).

Saúde Sexual e Reprodutiva no Contexto de Fronteiras: a Invisibilidade Entre a Legalidade e a Ilegalidade

A situação de clandestinidade de mulheres compõe com as demais situações abordadas na categoria anterior e caracteriza a vulnerabilidade social e programática das mulheres nos garimpos.

A precária estrutura dos serviços de saúde, falta de profissionais e da oferta de exames e medicamentos em tempo oportuno impedem que as mulheres grávidas realizem os cuidados pré-natais adequadamente. As disparidades de acesso à saúde entre os Estados brasileiro e francês são apresentadas nas falas das mulheres; o acesso aos exames de diagnósticos e de rastreamento exibem grande diferença na oferta e disposição.

A gente não faz não (pré-natal), não tenho médico aqui, quando a gente tá lá (Suriname), não pode atravessar, porque mandam a gente (deportam) para Belém, Manaus... aí fica lá mesmo, no meio do mato, não tem como ficar descendo rio e aí chegar lá e não ter consulta. (E1). A gente tem muita dificuldade, porque assim... eu fiz um exame lá em Cayenna, aí o médico disse que eu tinha um caroço no útero e tinha que operar, mas eu vim pra cá, aí o exame não tinha em Iapoque [Oiapoque], aí eu num fui mais atrás, se tiver que morrer, morre, né fia? O dia da gente quem sabe é Deus! (E18).

Neste sentido, a exposição às infecções maláricas, bem como suas recidivas, foram referenciadas em todas as falas das mulheres; por algumas, com certa angústia, e por outras, como algo trivial e corriqueiro. Constata-se que a malária na gestação é um evento recorrente entre essas mulheres. De tão presente, as próprias mulheres sabem identificar o tipo de plasmódio que as acometeram. Com o maior risco de complicações obstétricas, estas mulheres buscam assistência médica em Macapá, capital do estado do Amapá (AP), situada a quase 600 quilômetros do município de Oiapoque, AP, cujo percurso possui 100 quilômetros de estrada de barro, condicionada a pontos de atoleiros durante o inverno amazônico, que tornam as estradas intransitáveis por veículos não tracionados. Nem sempre conseguem ser assistidas em Saint George e referenciadas a Cayenna, capital da Guiana Francesa, que se encontra a duzentos quilômetros de Oiapoque.

Eu tive malária umas 20 vezes, uma vez tive malária falciparum... acontece que estava grávida, grávida de 7 meses, tive que ir pra Macapá, sofri demais, foi horrível... horrível... eu perdi o bebê, sofri demais. (E14). Uma vez eu tive malária grávida, aí fui atendida em São Jorge [Saint George] porque o pai era de lá, me mandaram de avião pra Cayenna, aí eu quase não tô aqui pra contar história, abortei, fiquei mais de 40 dias no hospital, não paguei nada, nada, queriam até me mandar pra França. (E12).

Verificou-se que a Interrupção Voluntária da Gestação (IVG) emerge num cenário muito específico, uma vez que em território francês é legalizada até a 14ª semana gestacional e no território brasileiro, exceto em casos de feto anencefálico, risco à saúde da mãe e gravidez resultante de estupro(1212. Brasil. Decreto-lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Diário Oficial da União [Internet]; 7 dez 1940 [cited 2023 Apr 16]. Available from: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848.htm
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/dec...
) é considerada crime. Deste modo, há divergências legais nas legislações sobre a temática da IVG entre países que compartilham esta fronteira, motivando as mulheres brasileiras a migrarem para a Guiana Francesa a fim de realizar o abortamento legalizado ou de adquirirem medicações que provocam contrações uterinas.

A multiparidade e a dificuldade de provimento dos filhos foi elencada como motivação para a busca pelo procedimento. O relato dessas mulheres ainda dispõe sobre a diferença de tratamento dos profissionais de saúde na assistência à mulher que recorre à IVG entre os dois países. No Brasil verificou-se um atendimento pouco respeitoso e humanizado, com relatos de violência no contexto obstétrico e acesso dificultado, interrompido ou negado a recursos farmacológicos que atenuem a dor durante os procedimentos.

Eu já tinha quatro filhos, né, colega? Aí não tinha como, não, senhora, alimentar mais um, sozinha nesse mundo. Eu tinha acabado de chegar aqui. Tive que ir pra lá [aponta para o outro lado do rio, indicando a Guiana Francesa] pra tirar [interromper a gravidez]. Lá eles me trataram bem, me deram remédio e tudo. Eu tive uma colega, ela tá aqui [chama a vizinha], que foi pro hospital de Oiapoque e fizeram tudo no sangue frio. A coitada até hoje tem dor e sangra feito uma condenada. Aí é isso, né, colega? É isso ou ver o menino passar fome e isso a gente num quer, né? (E19).

Facetas Gendradas da Violência nos Garimpos da Fronteira do Escudo das Guianas

Além da violência no contexto obstétrico, estas mulheres enfrentam, no dia a dia da vida no garimpo, violências visíveis e explícitas, bem como violências veladas que emergem em virtude do contexto estrutural da hegemonia masculina. Com maior frequência, a violência física é presenciada nos espaços dos garimpos clandestinos; a violência física, sexual e psicológica ocorre no ambiente doméstico, perpetrada pela parceria íntima, além da violência Estatal, via força policial, relacionada à contingência da clandestinidade e ao tráfico do ouro.

As parcerias íntimas com estrangeiros foram consideradas mecanismos de ascensão social e de mudança de status entre a comunidade garimpeira. As entrevistadas costumam chamar de “elefante branco” mulher ou homem que consegue cidadania francesa a partir de um relacionamento amoroso com uma pessoa de origem francesa.

Tem também os elefantes brancos, que são os que ficam atrás de casamento com o pessoal de lá (apontam para o outro lado do rio, no sentido da Guiana Francesa), aí voltam tudo metido a besta, se achando francês. Os maridos são tudo feito de trouxa (E7).

O sentido é o mesmo da expressão idiomática utilizada coloquialmente, ou seja, caracteriza a posse de algo que seu proprietário não pode se livrar e cujo custo, em especial o de manutenção, é desproporcional à sua utilidade ou valor. Assim, observa-se que as pessoas que vivem do lado brasileiro desta fronteira são subjugadas a uma posição hierarquicamente inferior, produzindo um campo de força de relações assimétricas entre brasileiros e franceses. Este sistema de crenças dissemina-se no imaginário social coletivo da comunidade que comunga a vida nos dois lados da mesma fronteira. E legitima, por sua vez, a violência física, simbólica e/ou sexual, principalmente contra as mulheres.

A violência gendrada é potencializada no ambiente de garimpo. A violência doméstica foi associada pelas mulheres ao consumo de álcool pelas parcerias.

Ele me bateu tanto que eu não consegui me levantar, quem me socorreu foi o marido da Nega, que ele chegou lá pra acudir, ele bebe todo dia, todo santo dia e aí diz que eu não presto que eu sou puta, essas coisas...mas ele vai pra essas boates daqui sai todo dia com uma mulher diferente e eu tenho que aguentar calada, e tem 10 pessoas aqui com aquela doença (HIV)... eu vim parar aqui só por causa dele, eu sinto falta da minha família no Maranhão, às vezes eu penso em largar dele e voltar, mas aí não tenho coragem, eu sei que ele vai atrás de mim e me mata, ele mata mesmo, eu lá quase morri da surra que ele me deu... é orar pra Deus. (E18)

As mulheres descrevem formas de poliginia entre os homens, e circunscrevem o medo que esta prática influencie a circulação de IST/HIV, que também é retratada como presente na pequena Ilha. Algumas participantes informaram que suas parcerias íntimas possuem objetos inseridos entre o prepúcio e o corpo cavernoso do pênis, chamados de dominó ou bouglou. Estes objetos aumentam o prazer durante o ato sexual, mas também elevam a vulnerabilidade destas mulheres às IST, corroborando a condição de vulnerabilidade em saúde por categorias gendradas.

Tem peão que vai pro Oiapoque só pra colocar dominó, meu marido tem cinco. Pagou 5 grama de ouro em cada (...). A mulher gosta demais, porque o negócio é bom! [gargalhadas]. (E5).

Algumas relatam também acerca do sofrimento que é viver longe de amigos e familiares, esboçando um certo saudosismo da terra natal. Outras veem o garimpo como refúgio a uma história de vida em que a violência foi transversalizada em todas as fases da vida. Foi possível perceber que o medo é um componente cotidiano na vivência das mulheres, o medo de apanhar, o medo de se contaminar, o medo de morrer e, também, o medo de falar, que podem levar ao ocultamento e à falta de denúncia por parte das mulheres, dificultando ações protetivas e preventivas por políticas públicas.

Essas vidas revelam como as questões de gênero, raça e miséria são acionadas como autorização à violência, não apenas sobre os corpos destas mulheres, mas também sobre suas subjetividades, suas possibilidades de construírem suas vidas. Destaca-se que grande parte das violências experienciadas pelas mulheres são invisibilizadas, toleradas e naturalizadas, sobretudo aquelas orquestradas pelo poder público. Destaca-se a urgência de que as vulnerabilidades dessas mulheres sejam nomeadas e discutidas, de forma que os prejuízos evitáveis a pessoas humanas ocasione perplexidade e deixem de ser assimilados como ordinários.

DISCUSSÃO

Verificou-se a existência de vulnerabilidades referentes ao cenário em que as participantes se inserem como a contaminação por metilmercúrio, a clandestinidade, a pobreza, a incidência e reincidência de doenças transmissíveis negligenciadas. Também ocorrem as vulnerabilidades gendradas, que cotidianamente são impelidas a estas mulheres, a exemplo da violência simbólica, violência perpetrada pela parceria, violência doméstica, assédio sexual, assédio verbal, estupro e agressão física. Para além disso, verifica-se que as mulheres vivenciaram condições de vulnerabilidades que perpassam a questão do gênero, como contaminação por metilmercúrio no trabalho, clandestinidade, pobreza, doenças transmissíveis e recidiva das mesmas, tocando desta forma em outras questões no âmbito individual, social e programático. Estas vulnerabilidades são indissociáveis e não podem ser analisadas de forma isolada, elas estão interligadas e são mutuamente referidas(77. Ayres JRCM, França Jr I, Calazans GJ, Saletti Fo HC. O conceito de vulnerabilidade e as práticas de saúde: novas perspectivas e desafios. In: Czeresnia D, Freitas CM, editors. Promoção da saúde: conceitos, desafios, tendências. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2009. p. 117–40.). Essas condições também foram encontradas em outros estudos que investigaram o contexto de garimpo e fronteiras na mesma região(11. Mendes LMC, Gomes-Sponholz F, Monteiro JCDS, Pinheiro AKB, Barbosa NG. Women who live in mining on the French-Brazilian border: daily challenges. Rev Bras Enferm. 2022;75(6):e20210688. doi: http://dx.doi.org/10.1590/0034-7167-2021-0688pt. PubMed PMID: 36000596.
https://doi.org/10.1590/0034-7167-2021-0...
,22. Douine M, Mosnier E, Le Hingrat Q, Charpentier C, Corlin F, Hureau L, et al. Illegal gold miners in French Guiana: a neglected population with poor health. BMC Public Health. 2017;18(1):23. doi: http://dx.doi.org/10.1186/s12889-017-4557-4. PubMed PMID: 28716015.
https://doi.org/10.1186/s12889-017-4557-...
).

Foi observado, contudo, que as mulheres possuem conhecimento sobre alguns aspectos que podem favorecer ao adoecimento, a exemplo da presença de metilmercúrio nas águas do rio Oiapoque, fonte de subsistência. Esta preocupação é fundamentada, cientificamente, uma vez que os rios desta bacia hidrográfica são contaminados e apresentam alta concentração de crômio e metilmercúrio nos peixes e na água(1313. Hacon SS, Oliveira-da-Costa M, Gama CS, Ferreira R, Basta PC, Schramm A, et al. Mercury exposure through fish consumption in traditional communities in the Brazilian Northern Amazon. Int J Environ Res Public Health. 2020;17(15):5269. doi: http://dx.doi.org/10.3390/ijerph17155269. PubMed PMID: 32707799.
https://doi.org/10.3390/ijerph17155269...
). Revisão sistemática demonstrou que alguns dos níveis mais altos de exposição humana ao metilmercúrio ocorrem na América do Sul, especialmente entre as populações ribeirinhas da Amazônia(1414. Basu N, Horvat M, Evers DC, Zastenskaya I, Weihe P, Tempowski J. A state-of-the-science review of mercury biomarkers in human populations worldwide between 2000 and 2018. Environ Health Perspect. 2018;126(10):106001. doi: http://dx.doi.org/10.1289/EHP3904. PubMed PMID: 30407086.
https://doi.org/10.1289/EHP3904...
).

Dados confirmam sintomas típicos da Doença de Minamata, atualmente detectáveis em comunidades amazônicas e associados a altos níveis de exposição ao metilmercúrio, como alterações visuais(1414. Basu N, Horvat M, Evers DC, Zastenskaya I, Weihe P, Tempowski J. A state-of-the-science review of mercury biomarkers in human populations worldwide between 2000 and 2018. Environ Health Perspect. 2018;126(10):106001. doi: http://dx.doi.org/10.1289/EHP3904. PubMed PMID: 30407086.
https://doi.org/10.1289/EHP3904...
). A presença de metilmercúrio em lóbulos mamários de amostras de mastectomia que continham um carcinoma invasivo foi detectada, sugerindo que novos estudos busquem compreender o papel do metilmercúrio na patogênese do câncer de mama(1515. Sharma BM, Sáňka O, Kalina J, Scheringer M. An overview of worldwide and regional time trends in total mercury levels in human blood and breast milk from 1966 to 2015 and their associations with health effects. Environ Int. 2019;125:300–19. doi: http://dx.doi.org/10.1016/j.envint.2018.12.016. PubMed PMID: 30735961.
https://doi.org/10.1016/j.envint.2018.12...
). Esses dados são alarmantes e demonstram uma clara necessidade de intervenção em saúde pública imediata em comunidades ribeirinhas amazônicas frente à exposição ao metilmercúrio.

As falas das mulheres referiram-se à vulnerabilidade programática e à necessidade urgente de uma análise sobre as dimensões da cooperação transfronteiriça em saúde para possibilitar e facilitar o acesso aos serviços de saúde nestas regiões. Os acordos de cooperação, formais ou informais, constituem uma iniciativa possível para monitoramento, detecção e controle de doenças(1616. Santos-Melo GZ, Andrade SR, Ruoff AB. Health integration across international borders: an integrative review. Acta Paul Enferm. 2018;31:102–7. doi: http://dx.doi.org/10.1590/1982-0194201800015
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).

Neste sentido, atualmente existe um acordo formal entre Brasil e França, para que os dois países se tornem corresponsáveis por prestar auxílio em situações de urgência e emergência às populações destas fronteiras. Contudo, existe uma contradição em relação ao discurso oficial, com endurecimento das regras de mobilidade transfronteira e de assistência à saúde(1717. Silva GV, Granger S, Tourneau FM. Défis de la circulation à la fronteire entre Brésil et la Guyane Française (France). Mercator (Fortaleza). 2019;18:e18018. doi: http://dx.doi.org/10.4215/rm2019.e18018).

No que diz respeito aos serviços de saúde na região Amazônica, há escassez e dificuldade de fixação de profissionais qualificados, além da baixa oferta de tecnologias. As equipes de Saúde Ribeirinha e Saúde Fluvial, da Política Nacional de Atenção Básica, aumentaram a cobertura assistencial; no entanto, no município de Oiapoque não há cobertura destas equipes(1818. Cabral I, Cella W, Freitas SR. Reproductive behavior in riverside women: health survey in an isolated community in the Middle Solimões, Amazonas, Brazil. Saúde Debate. 2020;44(127):1066–78. doi: http://dx.doi.org/10.1590/0103-1104202012709i
https://doi.org/10.1590/0103-11042020127...
).

Foi observado que a assistência pré-natal realizada pelas mulheres entrevistadas foi possivelmente inadequada. Alguns inquéritos de saúde verificaram que a Região Norte do Brasil apresentou os piores escores do Programa de Melhoria do Acesso e da Qualidade pré-natal(1919. Mario DN, Rigo L, Boclin KLS, Malvestio LMM, Anziliero D, Horta BL, et al. Qualidade do pré-natal no Brasil: pesquisa nacional de saúde 2013. Cien Saude Colet. 2019;24(3):1223–32. doi: http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232018243.13122017. PubMed PMID: 30892541.
https://doi.org/10.1590/1413-81232018243...
). A literatura aponta que há alguns obstáculos à adesão ao pré-natal em áreas longínquas e que se inserem nos contextos dos aspectos socioculturais vivenciados no cotidiano fronteiriço amazônico, a respeito das precárias relações trabalhistas, violência de gênero, variabilidade linguística e cultural; ausência das redes de apoio, além da desorganização dos serviços, que se encontram distantes, têm morosidade quanto ao sistema de marcação e possuem restrições que necessitam de aporte financeiro pelas usuárias. Estes apontamentos podem favorecer a ausência de ações e orientações para prevenção de recidivas de malária, apontadas pelas participantes(2020. Mendes LMC, Sudré GA, Oliveira JV, Barbosa NG, Monteiro JCS, Gomes-Sponholz FA. Representações sociais de puérperas sobre a adesão ao pré-natal na fronteira franco-brasileira. NTQR. 2021;8:130–7. doi: http://dx.doi.org/10.36367/ntqr.8.2021.130–137.
https://doi.org/10.36367/ntqr.8.2021.130...
).

A malária gestacional foi observada como recorrente nesta região de fronteira. A transmissão envolve fatores ecológico-ambientais, biológicos e sociais que se expressam na elevada vulnerabilidade social da população que circula na zona fronteiriça, favorecendo a ocorrência de surtos e a permanência da enfermidade(2121. Gomes MSM, Machado RLD. Malaria in the borders between Brazil and French Guiana: social and environmental health determinants and their influence on the permanence of the disease. Saude Soc. 2020;29(2):e181046. doi: http://dx.doi.org/10.1590/s0104-12902020181046
https://doi.org/10.1590/s0104-1290202018...
).

Outra situação relatada pelas mulheres foi a multiparidade e ausência de recursos para recorrerem à IVG. No Brasil, entre 2006 e 2015, ocorreram 770 óbitos maternos, havendo como causa básica o aborto. Entre os óbitos declarados como aborto, 1% esteve relacionado a razões médicas e legais, contudo 56,5% foram registrados como óbitos não especificados(2222. Cardoso BB, Vieira FMDSB, Saraceni V. Abortion in Brazil: what do the official data say? Cad Saude Publica. 2020;36(Suppl 1):e00188718. doi: http://dx.doi.org/10.1590/01002-311x00188718. PubMed PMID: 32130313.
https://doi.org/10.1590/01002-311x001887...
). O perfil de mulheres em maior risco de óbito por aborto foram as de cor preta e as indígenas, de baixa escolaridade, com menos de 14 e mais de 40 anos, vivendo na região Norte e sem companheiro(2222. Cardoso BB, Vieira FMDSB, Saraceni V. Abortion in Brazil: what do the official data say? Cad Saude Publica. 2020;36(Suppl 1):e00188718. doi: http://dx.doi.org/10.1590/01002-311x00188718. PubMed PMID: 32130313.
https://doi.org/10.1590/01002-311x001887...
). Por outro lado, a Guiana Francesa segue a legislação da França metropolitana e a IVG pode ocorrer até a 14ª semana gestacional(2323. France. Gouvernement. Le site officiel sur l’IVG: les réponses à vos questions sur l’interruption volontaire de grossesse [Internet]. 2023 [cited 2023 June 18]. Available from: https://ivg.gouv.fr
https://ivg.gouv.fr...
).

Nas últimas décadas, o Brasil apresentou elevada queda de fecundidade. No entanto, diferenças sociodemográficas ainda impactam no acesso ao planejamento reprodutivo no país(2424. Brasil em Síntese [Internet]. Taxa de fecundidade total – Brasil 2000 a 2015. IBGE; 2023 [cited 2023 Apr 12]. Available from: https://brasilemsintese.ibge.gov.br/populacao/taxas-de-fecundidade-total.html
https://brasilemsintese.ibge.gov.br/popu...
). A Pesquisa Nacional de Saúde encontrou diferenças entre o tipo de contracepção utilizada entre as regiões do Brasil. Destacam as mulheres residentes na região Norte como as mais esterilizadas e o preservativo masculino é o método contraceptivo mais utilizado, quando comparadas às mulheres das regiões Sul e Sudeste que utilizam mais o contraceptivo oral(2525. Trindade RE, Siqueira BB, Paula TF, Felisbino-Mendes MS. Uso de contracepção e desigualdades do planejamento reprodutivo das mulheres brasileiras. Ciênc Saúde Coletiva. 2021;26:3493–504. doi: http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232021269.2.24332019
https://doi.org/10.1590/1413-81232021269...
).

Este fato pode estar associado à dificuldade que as mulheres da Região Norte têm para o recebimento de insumos para planejamento reprodutivo, que envolvem as questões de logística, distribuição, transporte e armazenamento. A literatura verifica que esta região apresentou os piores níveis de disponibilidade, mantendo-se abaixo de 80% para todos os insumos avaliados nos três ciclos, exceto preservativo masculino com prevalência de 92,4%. O dispositivo intrauterino só esteve presente em um terço das Unidades Básicas de Saúde avaliadas na região Norte e obteve disponibilidade de apenas 11%(2626. Ruivo ACO, Facchini LA, Tomasi E, Wachs LS, Fassa AG. Disponibilidade de insumos para o planejamento reprodutivo nos três ciclos do Programa de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica: 2012, 2014 e 2018. Cad Saude Publica. 2021;37(6):e00123220. doi: http://dx.doi.org/10.1590/0102-311x00123220. PubMed PMID: 34231769.
https://doi.org/10.1590/0102-311x0012322...
).

Recentemente, o Ministério da Saúde do Brasil ampliou o escopo de atuação de enfermeiras/os para a inserção, revisão e remoção do DIU a fim de favorecer o acesso a este método de alta eficácia e longa permanência, na busca por garantir direitos sexuais e reprodutivos e promover a autonomia da mulher(2727. Brasil. Ministério da Saúde. Nota Técnica Nº 31/2023-COSMU/CGACI/DGCI/SAPS/MS [Internet]. 2023 [cited 2023 June 15]. Available from: http://www.gov.br/saude/pt-br/centrais-de-conteudo/publicacoes/notas-tecnicas/2023/nota-tecnica-no-31-2023-cosmu-cgaci-dgci-saps-ms/view
http://www.gov.br/saude/pt-br/centrais-d...
). Destaca-se que esta diretriz é oportuna para promover a redução das iniquidades em saúde e sociais entre mulheres que experienciam vivências muito distintas num país continental e desigual como o Brasil. A precariedade de acesso ao planejamento reprodutivo e contracepção de gravidez indesejada denota vulnerabilidades individuais, sociais e programáticas relacionadas à busca pela IVG pelas mulheres participantes deste estudo.

Estudo realizado em área de mineração observou que as mulheres que tiveram abortos prévios apresentaram maiores chances de sofrerem violência sexual por não parceiros e/ou desconhecidos(2828. Steele SJ, Abrahams N, Duncan K, Woollett N, Hwang B, O’Connell L, et al. The epidemiology of rape and sexual violence in the platinum mining district of Rustenburg, South Africa: Prevalence, and factors associated with sexual violence. PLoS One. 2019;14(7):e0216449. doi: http://dx.doi.org/10.1371/journal.pone.0216449. PubMed PMID: 31365536.
https://doi.org/10.1371/journal.pone.021...
). O alto fluxo imigratório em regiões de garimpagem perpetua um ambiente social onde o estupro e outras formas de violência sexual são prevalentes(2828. Steele SJ, Abrahams N, Duncan K, Woollett N, Hwang B, O’Connell L, et al. The epidemiology of rape and sexual violence in the platinum mining district of Rustenburg, South Africa: Prevalence, and factors associated with sexual violence. PLoS One. 2019;14(7):e0216449. doi: http://dx.doi.org/10.1371/journal.pone.0216449. PubMed PMID: 31365536.
https://doi.org/10.1371/journal.pone.021...
).

O uso abusivo de álcool foi um aspecto associado à violência física perpetrada pela parceria íntima nos depoimentos das mulheres. Dados do I Levantamento Nacional sobre Padrões de Consumo de Álcool no Brasil mostraram que quatro em cada dez homens relataram a ingestão de bebida alcoólica durante o episódio de violência contra mulher(2929. Laranjeira R, Pinsky I, Zaleski M, Caetano R. I Levantamento Nacional sobre os padrões de consumo de álcool na população brasileira. Brasília: Secretaria Nacional Antidrogas, 2007.). Deste modo, a violência física esteve relacionada às vulnerabilidades sociais ligadas ao uso abusivo de álcool por parceria íntima e às programáticas mediante ausência de programas de apoio e prevenção às mulheres vítimas de violência.

Sobre a violência às mulheres no ambiente de garimpagem é importante frisar que estas mulheres estão nestes espaços de clandestinidade compelidas por condições de miséria extrema ou porque encontraram no garimpo escapatórias para situações de abusos e maus-tratos vivenciadas na infância, violência doméstica, violência sexual e violência por parte dos companheiros conjugais(11. Mendes LMC, Gomes-Sponholz F, Monteiro JCDS, Pinheiro AKB, Barbosa NG. Women who live in mining on the French-Brazilian border: daily challenges. Rev Bras Enferm. 2022;75(6):e20210688. doi: http://dx.doi.org/10.1590/0034-7167-2021-0688pt. PubMed PMID: 36000596.
https://doi.org/10.1590/0034-7167-2021-0...
). Estas violências deflagradoras que operaram na transição das mulheres à fuga para os garimpos clandestinos e constrições impostas às suas trajetórias e possibilidades de vida perpetuam-se ou mesmo acirram-se quando essas mulheres se deparam com a dura realidade de viver nos garimpos.

A compreensão dos aspectos relacionados à vulnerabilidade da mulher para a violência é um indicador das iniquidades e das desigualdades gendradas que superam o conceito probabilístico de risco. A característica da violência conforma-se também com a cosmovisão de uma determinada comunidade acerca dos papéis de gênero. Naturalizar as violências impelidas e estruturadas nesta categoria seria dispor que não existem formas de intervenção eficientes para dirimi-las(3030. Piosiadlo LCM, Fonseca RMGS, Gessner R. Subalternidade de gênero: refletindo sobre a vulnerabilidade para violência doméstica contra a mulher. Esc Anna Nery. 2014;18(4):728–33. doi: http://dx.doi.org/10.5935/1414-8145.20140104
https://doi.org/10.5935/1414-8145.201401...
).

A partir da presente investigação foi possível verificar que a vulnerabilidade ao adoecimento é acentuada e interligada às três dimensões referentes ao conceito de Ayres et al.(77. Ayres JRCM, França Jr I, Calazans GJ, Saletti Fo HC. O conceito de vulnerabilidade e as práticas de saúde: novas perspectivas e desafios. In: Czeresnia D, Freitas CM, editors. Promoção da saúde: conceitos, desafios, tendências. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2009. p. 117–40.). Na dimensão individual, o acesso restrito à informação especializada sobre saúde impede a incorporação de conhecimentos, comportamentos e atitudes nas ações cotidianas. Na dimensão social, a histórica desigualdade de gênero potencializa as vulnerabilidades para o adoecimento das mulheres. Já na dimensão programática, a ausência e/ou a inefetividade das políticas públicas de saúde atuam para reforçar a dependência das mulheres em relação aos homens e às atividades clandestinas de garimpagem, bem como marginalizá-las do acesso aos serviços de saúde.

Como limitações do estudo, destaca-se que a coleta de dados ocorreu em um posto de descanso, situado no lado brasileiro da fronteira, o que impossibilitou a observação das condições de vulnerabilidade em saúde nos ambientes de garimpagem propriamente ditos. No entanto, apesar dessas limitações, referentes a questões de segurança e legalidade, este estudo permitiu dar voz às mulheres que, por um longo período, foram silenciadas e colocadas à margem das políticas públicas de saúde do Estado.

CONCLUSÃO

O estudo analisou as vulnerabilidades das mulheres em garimpos na fronteira do Escudo das Guianas. Estas mulheres em condição de clandestinidade e que vivem em locais de difícil acesso enfrentam diferentes formas de vulnerabilidade individual, social e programática. Observou-se a exposição exacerbada ao metilmercúrio, susceptibilidade às doenças negligenciadas e infectocontagiosas, precariedade dos serviços de saúde no lado brasileiro da fronteira, dificuldade de acesso a serviços de prevenção e promoção à saúde, tratamento descontinuado e disparidade nas políticas de saúde entre os países que comungam a fronteira (entre elas a diferença da dispensação de medicamentos entre os países e a legislação distinta quanto à IVG). Ainda foram destacadas pelas mulheres a inadequação do acesso à assistência pré-natal, multiparidade e miséria como motivação à busca pela IVG, violências gendradas, simbólicas, psíquicas e físicas.

O cuidado qualificado de Enfermagem e da equipe multiprofissional é essencial para aumentar a cobertura e resolutividade da assistência à saúde das mulheres em região de garimpo. A assistência à saúde das mulheres em áreas remotas de garimpos pode ser melhorada por meio da oferta de serviços de saúde locais ou itinerantes, com a inclusão e fortalecimento da atenção primária nestes espaços, que utilizem os locais de descanso e de apoio, como estratégia de alcance a essas populações que exercem mobilidade pendular. Torna-se fundamental a oferta de orientações por meio da educação em saúde, agenciamento individual e coletivo para o enfrentamento das vulnerabilidades, cooperação intersetorial para dirimir a violência perpetrada contra estas mulheres. Também, é notória a necessidade de políticas públicas de saúde direcionadas e parcerias de cooperação internacional, adaptadas às situações geográficas, socioculturais e de saúde características da região fronteiriça, bem como a presença do Estado brasileiro nestes espaços.

  • Apoio financeiro
    O presente trabalho foi desenvolvido com apoio financeiro da Universidade Federal de Juiz de Fora e Universidade Federal do Amapá.

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Editado por

EDITOR ASSOCIADO

José Caldas

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Set 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    03 Fev 2023
  • Aceito
    05 Jul 2023
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