Acessibilidade / Reportar erro

Opinião dos portadores de transtorno mental sobre o fumo e sua proibição na internação psiquiátrica* * Extraído da dissertação "Dependência de tabaco na esquizofrenia, sua relação com indicadores clínicos e o sentido para o usuário", Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, 2012.

Resumos

Objetivo: Identificar a opinião dos portadores de transtorno mental sobre o fumo e sua proibição durante a internação psiquiátrica. Método: Estudo exploratório com 96 portadores de transtorno mental, tabagistas, internados em enfermaria psiquiátrica de hospital geral. As entrevistas foram realizadas individualmente, utilizando-se o instrumento elaborado para este estudo. O conteúdo verbalizado nas entrevistas foi gravado, transcrito e submetido à análise de conteúdo temático. Resultados: Identificou-se que os portadores de transtorno mental veem o tabagismo na internação psiquiátrica como ajuda para suportar a dificuldade de convívio e a falta de atividades. A permissão do tabagismo é vista como sinal de respeito às suas necessidades. Os sujeitos relatam não aceitar a proibição total do tabagismo. Conclusão: O tabagismo ajuda a enfrentar dificuldades e conflitos na internação psiquiátrica. Existe resistência quanto à possibilidade de retirar totalmente a permissão para fumar na internação.




Tabagismo; Transtornos mentais
; Unidade Hospitalar de Psiquiatria
; Áreas proibidas ao tabagismo
; Enfermagem psiquiátrica



Objective: To identify the opinion of patients with mental disorder about tobacco and its prohibition during psychiatric hospitalization. Method: An exploratory study with 96 patients smokers with mental disorders hospitalized in a psychiatric ward of a general hospital. The interviews were conducted individually, using an instrument designed for this study. The content from the interviews was recorded, transcribed and submitted to a thematic content analysis. Results: The patients with mental disorder were identified as perceiving smoking during the psychiatric hospitalization as a help to support the difficulties in socialization and in the lack of activities. The permission for smoking is seen as a signal of respect to their needs. The subjects mentioned to not accept the total smoking prohibition. Conclusion: Tobacco helps to face difficulties and conflicts in the psychiatric hospitalization. There is resistance regarding the possibility to totally withdraw the smoking permission during hospitalization.



Smoking; Mental disorders
; Psychiatric Departament Hospital
; Non- smoking areas
; Psychiatric nursing



Objetivo:Construir un modelo teórico que configure la vivencia del apoyo de la red social por las personas en cuidado domiciliario. Método: Estudio de abordaje cualitativa, con la utilización del método Teoría Fundamentada en los Datos. La recopilación y el análisis concomitante de los datos hizo viable la interpretación del significado del fenómeno La vivencia del apoyo de la red social por las personas implicadas en el cuidado domiciliario. Resultados: Se destacó la postura pasiva de la población en la construcción de su bienestar. Reconociendo que debe existir una responsabilidad compartida entre las partes implicadas, población y Estado. Conclusión: Se sugiere que los enfermeros sean estimulados a ampliar el cuidado que realizan en el domicilio para atender las demandas de los cuidadores; y que sean elaborados nuevos estudios con distintas poblaciones, con el fin de validar o complementar el modelo teórico propuesto.


Tabaquismo; Trastornos mentales
; Servicio de Psiquiatría en Hospital
; Áreas prohibidas a fumadores
; Enfermería psiquiátrica



Introdução

A frequência de fumantes e o grau de dependência nicotínica entre os portadores de transtorno mental costumam ser mais elevados do que os encontrados em outros grupos da população. Os prejuízos do fumo nesses indivíduos são graves, com comprometimento da integridade física e da gravidade do transtorno. Tem sido sugerido que o transtorno mental influencia o início e a manutenção do uso de tabaco devido à ocorrência e interação de diferentes fatores preditivos – sociais, ambientais, psicológicos, neurobiológicos e genéticos(101 1.Lawrence D, Mitrou F, Zubrick SR. Smoking and mental illness: results from populations surveys in Australia and the United States. BMC Public Health [Internet]. 2009 [cited 2013 Jan 22]; 9:285. Available from: http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC2734850/
http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles...

02 2.Winterer G. Why do patients with schizophrenia smoke? Curr Opin Psychiatry. 2010;23(2):112-9

03 3.Aubin HJ, Rollema H, Svensson TH, Winterer G. Smoking, quitting, and psychiatry disease: a review. Neurosci Biobehav Rev. 2012;36(1):271-84
-404 4.Oliveira RM, Furegato ARF. Esquizofrenia y dependencia del tabaco: una revisión integradora. Rev Enferm Global. 2012;11(1):381-402).

Dentre os fatores sociais e ambientais, destacam-se as características dos serviços de internação psiquiátrica, como o elevado número de fumantes nesses ambientes, o isolamento decorrente da internação e o tempo ocioso. Esses fatores contribuíram para o processo de transformação dos hábitos do tabagismo nas instituições(505 5.Dwyer T, Bradshaw J, Happell B. Comparison of mental health nurses’attitudes towards smoking and smoking behavior. Int J Ment Health Nurs. 2009;18(6):424-33

06 6.Keizer I, Descloux V, Eytan A. Variations in smoking after admission to psychiatric inpatients units and impact of a partial smoking ban on smoking and on smoking-related perceptions. Int J Soc Psychiatry. 2009;55(2):109-23

07 7.Solway E. Windows of opportunity for culture change around tobacco use in mental health settings. J Am Psychiatr Nurses Assoc. 2009;15(1):41-9
-808 8.Ratschen E, Britton J, Mcneill A. The smoking culture in psychiatry: time for change. Br J Psychiatry. 2011;198(1):6-7).

A cultura do tabagismo nos serviços psiquiátricos, evidenciada pelo uso do cigarro como recompensa para incentivar o portador de transtorno mental a aderir às atividades terapêuticas, controlar o comportamento e facilitar o estabelecimento de relações com a equipe e os demais pacientes, parece ser decisiva para a continuação do uso de tabaco durante a internação psiquiátrica. Entretanto, a Lei 12.546, de 2011, por meio da proibição do fumo em locais coletivos fechados, impõe aos serviços psiquiátricos brasileiros uma mudança de seu modelo cultural no que se refere à permissão e ao incentivo do uso de cigarros pelos pacientes e profissionais da área(505 5.Dwyer T, Bradshaw J, Happell B. Comparison of mental health nurses’attitudes towards smoking and smoking behavior. Int J Ment Health Nurs. 2009;18(6):424-33,707 7.Solway E. Windows of opportunity for culture change around tobacco use in mental health settings. J Am Psychiatr Nurses Assoc. 2009;15(1):41-9

08 8.Ratschen E, Britton J, Mcneill A. The smoking culture in psychiatry: time for change. Br J Psychiatry. 2011;198(1):6-7
-909 9.Brasil. Lei n. 12.546, de 14 de dezembro de 2011. Art. 49. Altera os Arts. 2º e 3º da Lei n. 9.294, de 15 de julho de 1996 [Internet]. Brasília; 2011 [citado 2013 jan. 22]. Disponível em: http://www.receita.fazenda.gov.br/Legislacao/leis/2011/lei12546.htm
http://www.receita.fazenda.gov.br/Legisl...
).

A substituição de uma cultura tradicional, motivada por uma pressão política, envolve um processo conhecido como assimilação. Quando esse processo ocorre em grandes proporções e de forma impositiva, repercute negativamente nas pessoas que o vivenciam, pois a assimilação abrupta de uma nova cultura pode levar à perda de identidade sociocultural e à resistência para lidar com a nova realidade(1010.Tseng WS. Culture change and coping. In: Tseng WS. Handbook of cultural psychiatry. Toronto: Academic Press; 2001. p. 683-694). Isso revela a necessidade de se investigar a mudança da cultura do fumo nos serviços psiquiátricos, pois o modo com que os portadores de transtorno mental e os profissionais vivenciam o processo de mudança influencia sua eficácia.

Reconhecendo o papel histórico e cultural do tabagismo nos serviços de psiquiatria, este estudo pretende responder ao seguinte questionamento: O que os portadores de transtorno mental pensam sobre proibir que eles fumem enquanto estão internados?

O objetivo foi identificar a opinião dos portadores de transtorno mental sobre o fumo e sua restrição durante a internação psiquiátrica.

Método

Trata-se de um projeto que estuda diferentes aspectos relacionados ao tabagismo entre portadores de transtorno mental e que conta com o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

Este estudo apresenta os resultados exploratórios da coleta dos dados qualitativos informados pelos portadores de transtorno mental, tabagistas, internados em uma enfermaria psiquiátrica de hospital geral, público estadual, do interior paulista. A enfermaria tem capacidade para 18 leitos de internação com percentual de 80% de ocupação e intervalo de substituição dos leitos de aproximadamente três dias.

Atualmente, o tabagismo na enfermaria psiquiátrica é permitido somente aos pacientes que possuíam o hábito antes da internação, sendo oferecido o cigarro em seis horários predeterminados, conforme solicitação do paciente junto à equipe de enfermagem, desde que o paciente ou os familiares tragam o produto de casa e o confiem à enfermagem para controle.

Dos 433 pacientes internados no período da coleta dos dados, 163 (37,6%) foram excluídos: 23,3% tinham menos de 15 anos de idade; 11% tinham diagnóstico de retardo mental; 21,5% não apresentaram preservação das funções mentais (comportamento, funções cognitivas, processo de pensamento e percepções); 19,6% se recusaram a participar; e 24,5% receberam alta hospitalar sem planejamento prévio, o que inviabilizou a realização da entrevista.

Dos 270 sujeitos selecionados (amostra inicial), 174 (64,4%) declararam não serem tabagistas; embora tenham sido coletadas informações sociodemográficas e clínicas desses sujeitos, elas não foram incluídas no presente estudo. Noventa e seis portadores de transtorno mental, tabagistas, selecionados de modo probabilístico (precisão de 95%), responderam às questões analisadas neste estudo.

O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (EERP/USP 1173/2010), teve autorização do Hospital das Clínicas de Marília para coleta dos dados e o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) foi assinado pelos sujeitos.

As entrevistas foram realizadas individualmente, utilizando-se o Instrumento de Identificação de Tabagistas em Unidade Psiquiátrica de hospital geral – ITUP, elaborado para este estudo. O ITUP é composto por questões estruturadas sobre dados sociodemográficos (sexo, idade, escolaridade, estado civil, arranjo domiciliar, ocupação) e clínicos (diagnóstico médico, início da doença e internações psiquiátricas anteriores), bem como por questões abertas que investigam a opinião dos portadores de transtorno mental sobre o fumo de cigarros e sua restrição na internação psiquiátrica.

O conteúdo verbalizado nas entrevistas foi gravado, transcrito e submetido à análise de conteúdo temático(1111.Bardin, L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70; 2011): 1) leitura flutuante; 2) destaque dos núcleos de sentido; 3) identificação dos temas; e 4) definição das categorias. A discussão dos resultados foi baseada na literatura científica.

Resultados

Os resultados são apresentados em dois tópicos: A) Caracterização dos sujeitos e B) Análise temática de conteúdo.

A) Caracterização dos sujeitos

A amostra foi composta predominantemente por sujeitos do sexo feminino (61,5%), com média etária de 38,2 anos (15 a 69 anos). A maioria dos sujeitos tinha apenas ensino fundamental (53,1%), residia em área urbana (91,7%) e declarou ter algum tipo de ocupação (61,5%). Houve maior proporção de solteiros (43,8%) e de sujeitos que viviam sem companheiro, mas com outras pessoas (50%).

As principais informações clínicas dos sujeitos são apresentadas na Tabela 1.

Tabela 1
Caracterização clínica dos 96 portadores de transtorno mental, tabagistas, internados na enfermaria psiquiátrica – Marília SP, 2010 a 2012

B) Análise temática de conteúdo

Foram identificadas duas categorias temáticas: 1) Tabagismo na internação: influência dos mitos sobre abstinência nicotínica em portadores de transtorno mental; e 2) Opinião sobre o fumo e sua restrição na internação psiquiátrica.

1) Tabagismo na internação: influência dos mitos sobre abstinência nicotínica em portadores de transtorno mental.

A permissão para fumar durante a internação surpreendeu os sujeitos do estudo, que indagaram seus motivos, possibilitando a identificação dos principais mitos sobre a retirada do tabaco em portadores de transtorno mental, como o aumento do estresse e da agressividade.

Eu achei até meio estranho eles deixarem fumar [na internação]. Agora eu que pergunto para você: por que eles deixam a gente fumar? É porque os pacientes são depressivos, se não [fumar] vão ficar mais nervosos, estressados? É por isso? (T 5).

Às vezes, se ficar sem fumar vai acabar agredindo alguém (T 36).

Eu acho que para os profissionais [o cigarro] é uma segurança. (…) Os casos da psiquiatria têm agressividade, depressão, já é uma coisa mais grave (T 81).

Os sujeitos acreditam que a abstinência nicotínica pode agravar a apresentação do transtorno mental.

Eu acho que é normal deixar [fumar na internação], porque se é um cara que fuma há muito tempo, se internar aqui ele já vai se sentir mal; agora, se tirar o cigarro dele, pode dar um treco nele (T 11).

Se você for tirar [o cigarro] de uma pessoa que já tem uma dependência psicológica ela vai ficar pior. (…) É a mesma coisa de tirar o leitinho doce de uma criança. [Se tirar o cigarro] os pacientes vão se decepcionar e vão cair no chão (T 15).

A gente já está nervosa, vem aqui com depressão, se tirar o cigarro a gente fica pior (T 17).

A permissão para fumar durante a internação psiquiátrica, envolta por mitos como aumento do estresse e da agressividade e agravo do transtorno mental, suscita nos portadores de transtorno mental o sentimento de diferença e a percepção de que dependem mais do cigarro do que as demais pessoas.

Acho que aqui pode fumar porque a gente tem uns pininhos fora do lugar (T 12).

Como é uma ala de psiquiatria que mexe muito com a mente, acho que eles deixam o cigarro livre por causa disso, porque sabem que a gente depende do cigarro (T 19).

Dessa forma dá para pensar que a instituição diferencia os pacientes psiquiátricos e os não psiquiátricos. Por que aqui [enfermaria de psiquiatria] é permitido fumar e nas outras [enfermarias] não é? (T 80).

2) Opinião sobre o fumo e sua restrição na internação psiquiátrica

Os sujeitos reconhecem o papel do cigarro para ajudar a suportar algumas situações da internação, como a dificuldade do convívio com os demais pacientes e a falta de atividades.

Aqui tem brigas, desavenças, um dia a pessoa amanhece bem, no outro dia já está perturbada. Tem variação, eles variam, né, falam coisas que não têm nexo, aí que me dá apreensão e dá vontade de fumar. Eu fico me segurando, aí começo a tremer, sabe aquela crise de vício mesmo? (T 8).

Eu não sei se é porque aqui a gente fica preso, não tem muita atividade; então, você acaba sentindo mais vontade de fumar. (…) Na minha outra internação, tinha um paciente que tinha deixado de fumar já há algum tempo.

Entrou aqui, viu todo mundo fumar e pegou o cigarro também: ‘eu vejo todo mundo fumando, não tem o que fazer, então vou fumar (T 9).


Quando você fuma o tempo passa mais rápido (T 10).

Quando eu vejo coisa errada fico nervosa e me dá mais vontade de fumar. (…) Eu sinto dó de ver certas coisas [contenção física], mexem comigo (T 13).

Aqui, ele [cigarro] diminui a ansiedade. Aqui, a gente está entre pessoas que são psicóticas, né? O convívio aqui é difícil. (T 15).

Aqui você tem o dia inteiro para o nada. (…) Aqui tem muito tempo vago e com o tempo vago a gente sente ansiedade, vontade de fazer alguma coisa e aí dá vontade de fumar. (…) O cigarro funciona aqui como uma fuga: ‘Poxa! Deu o horário! Vou poder pegar um cigarro para fumar! (T 29).

Sem o cigarro, minha internação aqui seria um tédio (T 65).

Para os sujeitos, permitir o tabagismo durante a internação é sinal de respeito às suas necessidades.

Eu não acho uma má ideia [permitir fumar durante a internação] porque a pessoa vem com um vício de lá de fora, né? Já está com problema; se está aqui e não tiver o cigarro, como ela vai se sentir? (…) Tem que ter o cigarro (T 2).

Eu acho que é saudável [permitir fumar na internação] para que a pessoa não sinta seus direitos repentinamente retirados. (…) É importante que a pessoa possa ser minimamente ela mesma. O cigarro é uma forma de ela ser minimamente o que ela era (T 48).

As pessoas imaginam como seria a internação se a permissão para fumar fosse totalmente retirada, mostrando resistência quanto à possibilidade da implantação dessa medida.

Se eu ficasse sem meu cigarro, em vinte dias que estou aqui, acho que eu já teria enlouquecido. (…) Se não pudesse fumar de jeito nenhum, acho que eu já teria ido embora, viu? (T 5).

Se não pudesse fumar seria desesperador, desesperador mesmo, porque você tem esse vício, né? (T 13).

Já pensou uma pessoa fumante não ter nenhum cigarro para fumar? Eu ia ficar nervoso, ia ficar agressivo. (…) Se me proibir o cigarro aqui, eu não vou seguir o tratamento certo. (…) Eu não brigo aqui dentro porque tenho o cigarro (T 28).

Já pensou se eles não liberassem nada? Eu já teria rachado minha cabeça na parede. Eu sou a favor [de ser permitido fumar na internação] porque cortar [o cigarro] radicalmente dói. (…) Eles sabem que cortar o cigarro radicalmente faz endoidar (T 30).

Discussão

A maioria dos sujeitos do estudo era composta por mulEste estudo mostra que o tabagismo ajuda os portadores de transtorno mental a enfrentar as dificuldades geradas pela internação psiquiátrica. Os sujeitos recorrem ao cigarro, durante a internação, para enfrentar duas principais dificuldades: a falta de atividades na enfermaria (ociosidade) e a dificuldade do convívio com os demais pacientes, situações geradoras de estresse e ansiedade.

Estudo longitudinal com portadores de transtorno mental da Suíça comparou a percepção dos pacientes sobre o tabagismo em dois momentos distintos, antes e após a implantação da restrição parcial. O estudo mostrou que metade dos pacientes acredita que a internação psiquiátrica influencia o fumo e essa percepção não foi alterada após a implantação da restrição. Para os portadores de transtorno mental, os principais motivos que os incentivaram a fumar durante a internação foram a falta de atividades (39%) e o nervosismo/estresse (37%) decorrentes das situações vivenciadas na enfermaria(606 6.Keizer I, Descloux V, Eytan A. Variations in smoking after admission to psychiatric inpatients units and impact of a partial smoking ban on smoking and on smoking-related perceptions. Int J Soc Psychiatry. 2009;55(2):109-23).

A falta de atividades nas enfermarias psiquiátricas contribui para que a internação seja reconhecida como um momento de privações, com regras e rotinas que fazem com que o portador de transtorno mental sinta o controle de suas ações retirado. Nesse sentido, os sujeitos deste estudo reconhecem a permissão ao tabagismo na internação como uma forma de terem seus direitos garantidos e suas necessidades respeitadas, o que vem ao encontro do pensamento de autores(1212.Shattell MM, Andes M. Smoking bans in acute care psychiatric settings: a Machiavellian smoke screen? Issues Ment Health Nurs. 2008;29(2):201-3) quando afirmam que a restrição ao tabagismo tem implicações éticas, pois é retirado do paciente o direito de escolha quanto ao que considera melhor para si.

Além de a internação ser um momento de privações, ela pode ser vivenciada como um momento impactante para aquelas pessoas sem história de internação nesses serviços. Presenciar situações como surto psicótico e contenção mecânica é doloroso para alguns pacientes que obtêm no cigarro o alívio da angústia e da ansiedade geradas a partir dessas vivências. No entanto, as dificuldades geradas pela internação e o papel do tabaco para ajudar a superá-las não podem ser pretexto para a continuação do tabagismo na internação psiquiátrica.

É necessária mudança de atitude dos profissionais, de modo que assumam o seu papel e responsabilidade ao ajudarem os pacientes a enfrentar os conflitos da internação. É hora de os profissionais chamarem a responsabilidade do cuidado para si, de modo que a principal ferramenta do cuidado seja os recursos terapêuticos revelados por meio de sua prática profissional, e não mais o cigarro, como utilizado há muitos anos nesses serviços.

Reconhece-se que o cigarro como meio de ajudar o paciente a lidar com os conflitos da internação é a primeira escolha de muitos profissionais, pois o efeito de automedicação da nicotina nos sintomas de angústia, ansiedade e estresse é imediato. Essa prática, presente nos dias atuais, acompanhou várias gerações de profissionais de enfermagem, reconhecendo que mudar esse modo de agir é romper com uma herança histórica e cultural desses serviços.

Para romper com a cultura do tabagismo nas instituições psiquiátricas é preciso rever as concepções e o papel do enfermeiro, assim como as possibilidades do estabelecimento de um relacionamento terapêutico eficaz com os pacientes. Por meio do relacionamento terapêutico e do estabelecimento de confiança, o enfermeiro pode ajudar o portador de transtorno mental a compreender os conflitos vivenciados na internação e a encontrar recursos internos para enfrentá-los. As possibilidades que o relacionamento terapêutico traz para o paciente psiquiátrico são duradouras e possíveis de serem aplicadas em outras situações de conflitos de sua vida, enquanto o efeito do cigarro é temporário(1313.Freeth R. Humanising psychiatry and mental health care. New York: Radcliffe; 2007

14.Furegato ARF, Scatena MCM. Bases do relacionamento interpessoal em enfermagem. In: Leite MMJ. PROEFN – Programa de Atualização em Enfermagem Saúde do Adulto. Porto Alegre: Artmed; 2009
-1515.Moreira LHO, Loyola CMD. Involuntary commitment: implication for psychiatric nursing practice. Rev Esc Enferm USP [Internet]. 2011 [cited 2013 Jan 22];45(3):692-9. Available from: http://www.scielo.br/pdf/reeusp/v45n3/en_v45n3a21.pdf
http://www.scielo.br/pdf/reeusp/v45n3/en...
).

Neste trabalho foi questionada a diferença existente entre a restrição ao tabagismo aos pacientes psiquiátricos e aos pacientes clínicos, visto que no hospital geral em estudo há permissão para o tabagismo apenas na enfermaria de psiquiatria. Acredita-se que deixar de intervir no tabagismo dos portadores de transtorno mental reforça o sentimento de diferença entre eles e os demais pacientes; é como se fossem deixados para trás(808 8.Ratschen E, Britton J, Mcneill A. The smoking culture in psychiatry: time for change. Br J Psychiatry. 2011;198(1):6-7).

Além do sentimento de desigualdade, permitir o tabagismo apenas na enfermaria psiquiátrica significa transmitir aos portadores de transtorno mental a mensagem de que os profissionais não acreditam em sua capacidade e motivação para parar de fumar. O fato de se sentir desacreditado pode fazer com que o paciente psiquiátrico atribua ao tabaco um valor maior do que ele realmente tem, sentindo-se mais dependente e incapaz de abandoná-lo.

Além do incentivo para fumar, decorrente da falta de atividades na internação psiquiátrica, tabagistas de um estudo australiano relataram se sentir motivados a fumar pelos profissionais que também são tabagistas. Os momentos em que fumam acompanhados por esses profissionais são descritos como os mais prazerosos da internação, pois se sentem aceitos(1616.Lawn SJ, Pols RG, Barber JG. Smoking and quitting: a qualitative study with community –living psychiatric clients. Soc Sci Med. 2002;54(1):93-104).

Pesquisa realizada na Irlanda com 300 enfermeiros de diferentes especialidades de um hospital universitário constatou que quase metade dos profissionais que atuava no setor de psiquiatria era tabagista. Dentre os enfermeiros que faziam uso de tabaco, estão os profissionais que menos acreditam em seus malefícios e menos apoiam sua restrição durante a internação(1717.O'Donovan G. Smoking prevalence among qualified nurses in the Republic of Ireland and their role in smoking cessation. Int Nurs Rev. 2009;56(2):230-6). A influência que os profissionais tabagistas exercem nos pacientes reforça a cultura do tabagismo nos serviços psiquiátricos, sugerindo a necessidade da realização de estudos que investiguem o tabagismo nas instituições psiquiátricas a partir da perspectiva dos profissionais.

Um dos pontos que fortalece a continuação da cultura do tabagismo nas instituições psiquiátricas está relacionado à crença do aumento da agressividade do portador de transtorno mental com a retirada do tabaco. Esse é um dos mitos reconhecidos pelos sujeitos deste estudo que revelaram que a oferta de cigarros ajuda os profissionais a se sentir seguros no cuidado prestado. Essa percepção dos sujeitos é coerente com uma pesquisa que mostrou o risco de violência como uma das principais preocupações dos profissionais de enfermagem durante a internação(1818.Oliveira RM, Siqueira Júnior AC, Furegato ARF. Cuidado de enfermagem implementado em internações psiquiátricas. Rev Enferm UFPE On Line.2012;6(7):1599-607).

O mito do aumento da agressividade foi contestado por estudo canadense que investigou o prontuário de 90 pacientes internados quando era totalmente proibido fumar na enfermaria psiquiátrica e 90 pacientes internados após a abertura de uma sala para os fumantes. A comparação dos prontuários dos 180 pacientes não revelou diminuição significativa do comportamento disruptivo (agressões verbais, agressões direcionadas a objetos, agressões contra pessoas, necessidade de restrição mecânica) dos portadores de transtorno mental após permissão do fumo na enfermaria(1919.Crockford D, Kerfoot K, Currie S. The impact of opening a smoking room on psychiatric inpatient behavior following implementation of a hospital –wide smoking ban. J Am Psychiatr Nurses Assoc. 2009;15(6):393-400).

Outra crença reconhecida pelos sujeitos deste estudo diz respeito ao agravo do transtorno mental com a limitação do uso de cigarros, pois acreditam que o tabaco tem efeito de automedicação. Esse mito é contestado ao considerar que, dentre os portadores de transtorno mental, os tabagistas são os pacientes mais graves, pois o tabaco interfere na terapêutica medicamentosa e na produção de alguns sintomas, predispondo os indivíduos ao desencadeamento de surtos(202 2.Winterer G. Why do patients with schizophrenia smoke? Curr Opin Psychiatry. 2010;23(2):112-9-303 3.Aubin HJ, Rollema H, Svensson TH, Winterer G. Smoking, quitting, and psychiatry disease: a review. Neurosci Biobehav Rev. 2012;36(1):271-84).

Pesquisa realizada com esquizofrênicos de um hospital psiquiátrico de Israel ajuda a desmistificar a crença do agravo do transtorno mental com a retirada do tabaco; após os sujeitos terem sido submetidos a intervenções para redução da quantidade de cigarros, constatou-se melhora significativa dos sintomas psiquiátricos(2020.Gelkopf M, Noam S, Rudinski D, Lerner A, Behrbalk P, Bleich A, et al. Nonmedication smoking reduction program for inpatients with chronic schizophrenia: a randomized control design study. J Nerv Ment Dis. 2012;200(2):142-6).

Quando questionados sobre a possibilidade de retirar totalmente a permissão para fumar durante a internação psiquiátrica, os portadores de transtorno mental deste estudo se mostraram resistentes, pois não acreditam que sejam capazes de enfrentar a internação sem o cigarro como apoio.

A resistência quanto à possibilidade de implantação da restrição total ao tabagismo é encontrada em um estudo suíço, o qual comparou a opinião dos portadores de transtorno mental com a da equipe da enfermaria sobre a proibição total do fumo em dois momentos, antes e após sua implantação. O estudo mostrou que, antes da proibição, 87% dos sujeitos declararam serem contra essa medida; no entanto, após sua implantação, parece ter havido melhor aceitação, com 55% dos sujeitos considerando-a muito severa(2121.Etter M, Etter JF. Acceptability and impact of a partial smoking ban in a psychiatric hospital. Prev Med. 2007;44(1):64-9-2222.Etter M, Khan AN, Etter JF. Acceptability and impact of a partial smoking ban followed by a total smoking ban in a psychiatric hospital. Prev Med. 2008;46(6):572-8).

Um estudo canadense realizado com 816 profissionais de serviços psiquiátricos mostrou que a porcentagem de profissionais que declararam apoiar a proibição ao fumo nos serviços aumentou, conforme o tempo de sua implantação. Dos 430 profissionais investigados, dois a três meses após a proibição do fumo, 72,6% declararam apoiar totalmente a proibição, enquanto, dos 386 profissionais investigados após dois anos e meio da proibição, 78,2% declararam serem favoráveis(2323.Voci S, Bondy S, Zawertailo L, Walker L, George TP, Selby P. Impact of smoke-free policy in a large psychiatric hospital on staff attitudes and patient behavior. Gen Hosp Psychiatry. 2010;32(6):623-30).

Acredita-se que a resistência inicial que os portadores de transtorno mental e os profissionais da área apresentam em relação à retirada da permissão para fumar nos serviços psiquiátricos não pode fadar essa medida ao insucesso. Os profissionais precisam ser preparados para trabalhar com a proibição do fumo nas instituições psiquiátricas, de modo que a cultura do tabagismo possa dar espaço a uma cultura que priorize a promoção da saúde, o respeito, o diálogo e as potencialidades do portador de transtorno mental.

Limitações do estudo: 1 – não foi investigada a opinião dos ex-fumantes e dos não fumantes, embora também sejam expostos ao fumo durante a internação; 2 – elevada frequência de recusas.

Conclusão

O tabagismo ainda é considerado um suporte para o portador de transtorno mental na internação psiquiátrica. A opinião prevalente de que o tabagismo ajuda o portador de transtorno mental a enfrentar as dificuldades e os conflitos da internação pode influenciar a decisão sobre parar de fumar e aumentar a resistência quanto à possibilidade da implantação da restrição total nesses serviços.

Este estudo traz contribuições importantes para a enfermagem ao desmistificar algumas crenças sobre a proibição do fumo de cigarros durante a internação psiquiátrica. O conhecimento produzido prepara o enfermeiro para assumir com mais responsabilidade seu papel durante a internação, ajudando os pacientes a enfrentar os conflitos e a superar a dificuldade da abstinência nicotínica.

  • *
    Extraído da dissertação "Dependência de tabaco na esquizofrenia, sua relação com indicadores clínicos e o sentido para o usuário", Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, 2012.

Agradecimentos

Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) pelo financiamento desta pesquisa – Edital MCT/CNPQ no 70/2009 (Processo no 145781/2010-0). Ao Hospital das Clínicas de Marília por permitir a coleta dos dados.

Conflitos de Interesse


Os autores declaram não haver conflitos de interesse.

References

  • 01
    1.Lawrence D, Mitrou F, Zubrick SR. Smoking and mental illness: results from populations surveys in Australia and the United States. BMC Public Health [Internet]. 2009 [cited 2013 Jan 22]; 9:285. Available from: http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC2734850/
    » http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC2734850/
  • 02
    2.Winterer G. Why do patients with schizophrenia smoke? Curr Opin Psychiatry. 2010;23(2):112-9
  • 03
    3.Aubin HJ, Rollema H, Svensson TH, Winterer G. Smoking, quitting, and psychiatry disease: a review. Neurosci Biobehav Rev. 2012;36(1):271-84
  • 04
    4.Oliveira RM, Furegato ARF. Esquizofrenia y dependencia del tabaco: una revisión integradora. Rev Enferm Global. 2012;11(1):381-402
  • 05
    5.Dwyer T, Bradshaw J, Happell B. Comparison of mental health nurses’attitudes towards smoking and smoking behavior. Int J Ment Health Nurs. 2009;18(6):424-33
  • 06
    6.Keizer I, Descloux V, Eytan A. Variations in smoking after admission to psychiatric inpatients units and impact of a partial smoking ban on smoking and on smoking-related perceptions. Int J Soc Psychiatry. 2009;55(2):109-23
  • 07
    7.Solway E. Windows of opportunity for culture change around tobacco use in mental health settings. J Am Psychiatr Nurses Assoc. 2009;15(1):41-9
  • 08
    8.Ratschen E, Britton J, Mcneill A. The smoking culture in psychiatry: time for change. Br J Psychiatry. 2011;198(1):6-7
  • 09
    9.Brasil. Lei n. 12.546, de 14 de dezembro de 2011. Art. 49. Altera os Arts. 2º e 3º da Lei n. 9.294, de 15 de julho de 1996 [Internet]. Brasília; 2011 [citado 2013 jan. 22]. Disponível em: http://www.receita.fazenda.gov.br/Legislacao/leis/2011/lei12546.htm
    » http://www.receita.fazenda.gov.br/Legislacao/leis/2011/lei12546.htm
  • 10
    Tseng WS. Culture change and coping. In: Tseng WS. Handbook of cultural psychiatry. Toronto: Academic Press; 2001. p. 683-694
  • 11
    Bardin, L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70; 2011
  • 12
    Shattell MM, Andes M. Smoking bans in acute care psychiatric settings: a Machiavellian smoke screen? Issues Ment Health Nurs. 2008;29(2):201-3
  • 13
    Freeth R. Humanising psychiatry and mental health care. New York: Radcliffe; 2007
  • 14
    Furegato ARF, Scatena MCM. Bases do relacionamento interpessoal em enfermagem. In: Leite MMJ. PROEFN – Programa de Atualização em Enfermagem Saúde do Adulto. Porto Alegre: Artmed; 2009
  • 15
    Moreira LHO, Loyola CMD. Involuntary commitment: implication for psychiatric nursing practice. Rev Esc Enferm USP [Internet]. 2011 [cited 2013 Jan 22];45(3):692-9. Available from: http://www.scielo.br/pdf/reeusp/v45n3/en_v45n3a21.pdf
    » http://www.scielo.br/pdf/reeusp/v45n3/en_v45n3a21.pdf
  • 16
    Lawn SJ, Pols RG, Barber JG. Smoking and quitting: a qualitative study with community –living psychiatric clients. Soc Sci Med. 2002;54(1):93-104
  • 17
    O'Donovan G. Smoking prevalence among qualified nurses in the Republic of Ireland and their role in smoking cessation. Int Nurs Rev. 2009;56(2):230-6
  • 18
    Oliveira RM, Siqueira Júnior AC, Furegato ARF. Cuidado de enfermagem implementado em internações psiquiátricas. Rev Enferm UFPE On Line.2012;6(7):1599-607
  • 19
    Crockford D, Kerfoot K, Currie S. The impact of opening a smoking room on psychiatric inpatient behavior following implementation of a hospital –wide smoking ban. J Am Psychiatr Nurses Assoc. 2009;15(6):393-400
  • 20
    Gelkopf M, Noam S, Rudinski D, Lerner A, Behrbalk P, Bleich A, et al. Nonmedication smoking reduction program for inpatients with chronic schizophrenia: a randomized control design study. J Nerv Ment Dis. 2012;200(2):142-6
  • 21
    Etter M, Etter JF. Acceptability and impact of a partial smoking ban in a psychiatric hospital. Prev Med. 2007;44(1):64-9
  • 22
    Etter M, Khan AN, Etter JF. Acceptability and impact of a partial smoking ban followed by a total smoking ban in a psychiatric hospital. Prev Med. 2008;46(6):572-8
  • 23
    Voci S, Bondy S, Zawertailo L, Walker L, George TP, Selby P. Impact of smoke-free policy in a large psychiatric hospital on staff attitudes and patient behavior. Gen Hosp Psychiatry. 2010;32(6):623-30

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jun 2014

Histórico

  • Recebido
    06 Fev 2013
  • Aceito
    24 Abr 2014
Universidade de São Paulo, Escola de Enfermagem Av. Dr. Enéas de Carvalho Aguiar, 419 , 05403-000 São Paulo - SP/ Brasil, Tel./Fax: (55 11) 3061-7553, - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: reeusp@usp.br