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O sentido da vida percebido pelos enfermeiros no trabalho em cuidados paliativos oncológicos: estudo fenomenológico* * Extraído da tese: “Percepção do sentido da vida pelo enfermeiro no trabalho em cuidados paliativos oncológicos”, Escola de Enfermagem Aurora Afonso Costa, Universidade Federal Fluminense, 2020.

RESUMO

Objetivo:

Compreender o sentido da vida percebido pelos enfermeiros no trabalho em cuidados paliativos oncológicos.

Método:

Estudo de natureza qualitativa, com abordagem fenomenológica, fundamentado no referencial teórico-filosófico de Viktor Emil Frankl. Desenvolveu-se com enfermeiros em uma unidade especializada em cuidados paliativos oncológicos localizada no município do Rio de Janeiro por meio de entrevista fenomenológica. Os dados foram tratados pelo método fenomenológico de Amedeo Giorgi.

Resultados:

Participaram 34 enfermeiros. O trabalho veicula para os enfermeiros uma mensagem existencial por meio da autotranscendência. Pelo trabalho, representam a própria identidade que é diretamente impactada pela forma como percebem a liberdade e responsabilidade perante as ações assumidas. Constroem a sua realidade e o viabilizam como fonte de vida. O cuidado prestado deixa de ser apenas

uma tarefa para ser qualificado como uma condição solidária, relacional, existencial, dinâmica e temporal.

Conclusão:

A experiência no cenário da finitude da vida possibilita a estes profissionais o encontro autêntico com seu eu, o despertar de valores que dão sentido a seu existir e à autotranscendência, contribuindo profundamente à sociedade por meio de uma assistência mais humana, integral e de qualidade.

DESCRITORES
Neoplasias; Enfermagem Oncológica; Cuidados Paliativos; Existencialismo; Espiritualidade

ABSTRACT

Objective:

To understand the meaning of life as perceived by nurses at work in oncology palliative care.

Method:

This is a qualitative study, with a phenomenological approach, based on the theoretical-philosophical framework by Viktor Emil Frankl. It was developed with nurses in a unit specialized in oncology palliative care located in the city of Rio de Janeiro and used phenomenological interviews. Data were processed using the phenomenological method by Amedeo Giorgi.

Results:

Thirty-four nurses participated in the study. The study conveys an existential message to nurses through selftranscendence. Through their work, they represent their own identity, which is directly impacted by the way they perceive freedom and responsibility in the face of actions taken. They build their reality and make work viable as a source of life. The care provided is no longer just a task to be qualified as a solidary, relational, existential, dynamic, and temporal issue.

Conclusion:

The experience in a scenario of life finitude allows these professionals to experience an authentic encounter with their self, the awakening of values giving meaning to their existence, and self-transcendence, deeply contributing to society through a more human, comprehensive, and quality assistance.

DESCRIPTORS
Neoplasms; Oncology Nursing; Palliative Care; Existentialism; Spirituality

RESUMEN

Objetivo:

Comprender el sentido de la vida percibido por los enfermeros en su trabajo con los cuidados paliativos oncológicos.

Método:

Estudio de carácter cualitativo, con abordaje fenomenológico, fundamentado en el referencial teórico-filosófico de Viktor Emil Frankl. Se desarrolló con enfermeros de una unidad especializada en cuidados paliativos oncológicos ubicada en el municipio de Río de Janeiro mediante entrevistas fenomenológicas. Los datos fueron tratados con el método fenomenológico de Amedeo Giorgi.

Resultados:

Han participado 34 enfermeros. Para ellos, el trabajo transmite un mensaje existencial a través de la autotrascendencia. Con su trabajo, representan su propia identidad, que se ve directamente impactada por la forma en la que perciben la libertad y la responsabilidad hacia las acciones practicadas. Construyen su realidad y la convierten en una fuente de vida viable. El cuidado que se presta deja de ser una mera tarea para calificarse como una condición solidaria, relacional, existencial, dinámica y temporal.

Conclusión:

La experiencia en el escenario de la finitud de la vida permite a estos profesionales el auténtico encuentro con sí mismos, el despertar de los valores que dan sentido a su existencia y la autotrascendencia, contribuyendo profundamente hacia la sociedad a través de una asistencia más humana, integral y de calidad.

DESCRIPTORES
Neoplasias; Enfermería Oncológica; Cuidados Paliativos; Existencialismo; Espiritualidad

INTRODUÇÃO

O sentido da vida como um dos principais questionamentos existenciais do ser humano tem sido investigado desde o século XX por correntes filosóficas tradicionais centradas na direção e finalidade última da vida que não podiam ser resolvidas pela razão.

Calçado na vertente fenomenológico-existencial, o sentido da vida se dá por meio da descrição da estrutura específica do fenômeno e está ancorado nas experiências vividas e nos significados que o sujeito lhes atribui(11 Roehe MV. Psicologia e filosofia na abordagem fenomenológico-existencial: um estudo sobre Frankl e Heidegger. Rev Abordagem Gestalt. 2019;25(3):323-30. doi: http://dx.doi.org/10.18065/RAG.2019v25n3.11
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). Esse sentido percebido possui um movimento ininterrupto de significações à medida que o indivíduo vivencia, percebe, lembra, pensa, julga, valoriza e deseja algo através da experiência intencional resultante da sincronicidade entre ele e o mundo vivenciado(22 Merleau-Ponty M. Fenomenologia da percepção. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes; 2015.).

Respaldado pelo referencial teórico fenomenológico--existencial de Viktor Frankl, no que tange ao universo profissional dos enfermeiros, ao pensar sobre o sentido da vida há a necessidade de compreendê-lo em sua singularidade e subjetividade principalmente, por estar vinculado à experiência no contexto dos cuidados paliativos. Os significados existenciais no trabalho desses profissionais são alcançados pelas raízes do que é vivido, e a realização do mundo interno se dá pela maneira como ele é sentido e não pelo seu referencial peculiar que é o ato de cuidar da vida e do outro como forma de produção da saúde(33 Lee SA. Concept analysis of 'meaning in work' and its implications for nursing. J Adv Nurs. 2015;71(10):2258-67. doi: 10.1111/jan.12695
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).

Um estudo internacional aponta que a inclinação para as ações dos enfermeiros neste cenário de finitude da vida parte daquilo que os fazem movimentar-se e agir perante algo que valorizam como alcance de profundo prazer, paz espiritual e chances de autorrealização(44 Pérez-Vega ME, Cibanal-Juan L. Personal narratives of nurses who care for patients at the end of life. Int J Palliat Nurs. 2020;26(1):14-20. doi: 10.12968/ijpn.2020.26.1.14
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). Verifica-se que essas motivações primárias, quando bem estruturadas, conduzem esses profissionais a exercerem suas atividades com maior autonomia técnica, liberdade de julgamento, responsabilidade e melhor tomada de decisão ética(55 Rocha RCNP, Pereira ER, Silva RMCRA. A dimensão espiritual e sentido da vida na prática do cuidado de enfermagem: enfoque fenomenológico. Rev Min Enferm. 2018;22:e-1151. doi: http://www.dx.doi.org/10.5935/1415-2762.20180082
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).

Os cuidados paliativos são uma modalidade de assistência altamente especializada que tem como objetivo promover qualidade de vida aos pacientes e seus familiares que se deparam com uma doença ameaçadora da continuidade existencial(66 Gomes ANZ, Othero MB. Palliative care. Estud Av. 2016;30(88):155-66. doi: http://dx.doi.org/10.1590/s0103-40142016.30880011
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). Esta terapêutica respaldada pela Política Nacional de Prevenção e Controle do Câncer, estabelecida na Portaria n° 874/2013, garante o direito integral, equânime e universal à saúde desses cidadãos que necessitam da manutenção da qualidade de vida e controle dos sintomas até o momento da finitude da vida.

Em seu trabalho, profissionais atuantes em cuidados paliativos, ao se confrontarem com questões existenciais dos pacientes pelo seu destino inexorável, desencadeiam flutuações emocionais e reflexões expressivas sobre suas próprias vidas e sobre a importância do seu cuidado prestado ao paciente(77 Moreno-Milan B, Cano-Vindel A, Lopez-Dóriga P, Medrano LA, Breitbart W. Meaning of work and personal protective factors among palliative care professionals. Palliat Support Care. 2019;17(4):381-7. doi: 10.1017/S1478951518001 13X
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). O trabalho dos enfermeiros não deve ser configurado como uma tarefa ou atividade única, mas como uma forma de expressão, de relacionamento consigo mesmo, com o outro e com o mundo ao qual se conecta e, portanto, como abertura de sentido para a vida(88 Parola V, Coelho A, Sandgren, A, Fernandes O, Apóstolo J. Caring in palliative care: a phenomenological study of nurses' lived experiences. J Hosp Palliat Nurs. 2018;20(2):180-6. doi: 10.1097/NJH.0000000000000428
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).

A literatura nacional e internacional é escassa no que diz respeito à valorização de questões existenciais dos enfermeiros e, em sua maioria, volta-se para os pacientes enfrentando barreiras em suas práticas laborais. O estudo foi motivado pela constatação da necessidade de estudar sobre a subjetividade que permeia o sentido da vida desses profissionais no trabalho em cuidados paliativos oncológicos na premissa de que, por meio desse conhecimento, eles sejam colocados por inteiro frente à sua função, unindo-os ao paciente de maneira consistente e integral.

Entende-se que o estudo é relevante por abrir uma janela estratégica de reflexão aos enfermeiros acerca de suas concepções, valores e experiências sobre o sentido do seu existir, com destaque para sua atividade laboral. Assim, por meio da construção do saber, significam um propósito às suas vidas no contexto em que estão inseridos e, diante disso, desenvolvem estratégias que os impulsionam a habilitarem, além do autodesenvolvimento pessoal e profissional, uma produção de saúde mais dinâmica, autêntica, com compromisso ético e moral aos pacientes e suas famílias.

E importante elucidar que o presente estudo coaduna com a Agenda Nacional de Prioridades de Pesquisa em Saúde(99 Brasil. Ministério da Saúde. Agenda Nacional de Prioridades de Pesquisa em Saúde. [Internet]. Brasília; 2018 [citado 2020 mar. 16]. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/agenda_prioridades_pesquisa_ms.pdf
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) divulgada pelo Ministério da Saúde por ter como pressuposto atender às demandas das dimensões bio-psico-social e espiritual dos enfermeiros que interferem diretamente sobre as questões existenciais a que estão expostos e que provocam uma série de implicações à saúde, segurança e resultado no próprio trabalho.

Portanto, a temática é fortalecida como prioridade de pesquisa por funcionar como um instrumento que induz iniciativas de estudos e alocação de recursos que impactem na tonificação dos serviços de saúde com benefícios múltiplos tanto para quem cuida quanto para quem está recebendo esses cuidados.

Ressalta-se que, por meio de ações de expansão das redes de serviços que visem à melhoria da qualidade da atenção aos profissionais de saúde, bem como de intervenções que possam firmar a existência dos enfermeiros no "mundo" do trabalho dos cuidados paliativos, é possível reduzir a lacuna assistencial que possa vir a interferir na melhor oferta de cuidado ao paciente.

Considerando os supraditos, elaborou-se a seguinte questão norteadora: Qual o sentido da vida percebido pelos enfermeiros no trabalho em cuidados paliativos oncológicos? Para responder a questão do estudo, o objetivo consistiu em compreender o sentido da vida percebido pelos enfermeiros no trabalho em cuidados paliativos oncológicos.

MÉTODO

Tipo de estudo

Trata-se de um estudo de natureza qualitativa, com abordagem fenomenológica, fundamentado no referencial teórico-filosófico de Viktor Emil Frankl que, tomado pelo método fenomenológico, retrata que o sentido da vida está pautado pela busca de significados da existência do ser humano e que essa corresponde à sua principal força motivadora para manter o seu existir(1010 Frankl VE. Em busca de sentido: um psicólogo no campo de concentração. Petrópolis: Vozes; 2017.).

Cenário

O campo de estudo escolhido foi a unidade hospitalar de cuidados paliativos pertencente a um Centro de Referência de Assistência de Alta Complexidade em Oncologia do Ministério da Saúde, localizado no Município do Rio de Janeiro.

População

Os participantes do estudo foram 34 enfermeiros que trabalhavam na unidade hospitalar de cuidados paliativos oncológicos e exerciam suas atividades na modalidade assistencial e/ou administrativa.

O critério de inclusão foi ter mais de um ano de experiência nesta modalidade de assistência por ser um período mínimo para engajamento como trabalhador inserido na dinâmica da instituição. Foram excluídos enfermeiros afastados do serviço por questões de licença médica, maternidade ou férias no período das entrevistas. Registra-se que o número de participantes deste estudo foi delimitado quando se detectou a saturação dos dados e, consequentemente, o objetivo do estudo proposto.

Coleta de dados

A coleta de dados foi realizada pela pesquisadora responsável pelo estudo, doutoranda do Programa Acadêmico de Pós-Graduação em Ciências do Cuidado em Saúde e enfermeira da unidade hospitalar utilizada como campo de estudo.

Os dados foram apreendidos pela técnica da entrevista fenomenológica entre março e junho de 2019. A entrevista fenomenológica, por ser uma técnica voltada para a demanda subjetiva, reforça algumas características peculiares tais como: evitar preconceitos, juízo de valores, categorizações, bem como evitar interpretações antecipadas da realidade estudada.

Para tanto, a condução da entrevista pela pesquisadora previamente capacitada foi pautada na ambientação, empatia e intersubjetividade(1111 Alves FAM, França LRF, Melo AK. Entre o nascer e o morrer: cuidados paliativos na experiência dos profissionais de saúde. Rev Bras Promoção Saúde. 2018;31(1):1-10. doi: 10.5020/18061230.2018.6712
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). Essas medidas possibilitaram o desenvolvimento do compromisso entre a pesquisadora e os participantes do estudo, proporcionando entre ambos uma abertura à escuta além do aparente para que se pudesse alcançar a verdadeira expressão de significados no momento real da entrevista.

Na condução da entrevista fenomenológica, foi utilizado um roteiro contendo uma questão de aproximação: - "Como é sua experiência em trabalhar em cuidados paliativos oncológicos?"; e uma questão norteadora: - "Diga-me, qual o sentido da sua vida extraído no trabalho em cuidados paliativos oncológicos?" As informações foram gravadas e transcritas nos dias subsequentes às entrevistas. Complementando a caracterização dos participantes do estudo, foi aplicado um formulário sociodemográfico e profissional, clarificando a compreensão do perfil estudado.

Análise e tratamento dos dados

Para a compreensão das experiências relatadas nos dados coletados das entrevistas, recorreu-se ao método fenomenológico de investigação proposto por Amedeo Giorgi. Neste método de análise, propõe-se uma abordagem descritiva do fenômeno, baseada nas essências ou estruturas das experiências, tendo como finalidade trazer para o mundo falado as experiências vividas dos participantes, no que concerne ao significado e sentido por eles atribuídos"(88 Parola V, Coelho A, Sandgren, A, Fernandes O, Apóstolo J. Caring in palliative care: a phenomenological study of nurses' lived experiences. J Hosp Palliat Nurs. 2018;20(2):180-6. doi: 10.1097/NJH.0000000000000428
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). Este método é ope-racionalizado em 4 etapas: 1 - Leitura da descrição da experiência, a fim de alcançar o sentido geral do todo. 2 - Releitura do texto e definição das unidades significativas "redução do texto em partes menores com significados importantes que estão concentrados nesta "unidade"). 3 - Transformação de cada unidade de significação em linguagem psicológica (após discriminar as unidades significativas, a linguagem de senso comum é transformada em linguagem psicológico-científica desvelando o sentido psicológico vivido pelos participantes). 4 - Síntese das unidades significativas em uma estrutura geral dos fenômenos estudados, compondo assim, a experiência do sujeito por meio de uma estrutura descritiva geral(1212 Silva RV, Oliveira WF. The phenomenological method in health researches in Brazil: an analysis of scientific production. Trab Educ Saúde. 2018;16(3):1421-41. doi: https://doi.org/10.1590/1981-7746-sol00162
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).

Nesta etapa, os fragmentos das entrevistas que tiveram sentido e que responderam a questão norteadora do estudo foram identificados e agrupados por semelhança, categorizados, discutidos e interpretados na perspectiva do referencial teórico-filosófico de Viktor Frankl.

Aspectos éticos

No estudo, o cuidado ético foi prevalecido em observância à Resolução do Conselho Nacional de Saúde n. 466/2012, que regulamenta as normas para pesquisas que envolvem seres humanos.

O estudo foi iniciado após aprovação do Comitê de Ética e Pesquisa sob os pareceres 2.985.607/2018 e 3.063.980/2018, da Universidade Federal Fluminense e Instituto Nacional do Câncer respectivamente. Os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido para participar do estudo. Para garantir o sigilo das informações e o anonimato dos enfermeiros participantes do estudo, os depoimentos foram codificados pela letra maiúscula "E" acrescida do número arábico correspondente à ordem cronológica crescente das entrevistas.

RESULTADOS

Constatou-se que, dos 34 enfermeiros entrevistados, 31 (91,17%) eram mulheres, entre 29 e 69 anos. A maioria, 33 (97,05%), relatou estar atrelada a algum tipo de religião. Em relação ao desempenho de suas funções, 29 (85,29%) relataram desenvolverem suas atividades em caráter assistencial. No que se refere à escala de trabalho, 14 (41,17%) assumiram ser plantonistas e 5 (14,70%) deles especificamente no período noturno. Pautando-se no tempo transcorrido de formação em Enfermagem, 20 (58,82%) expuseram ter mais de cinco anos e apenas 12 (35,29) trabalhavam há menos de 5 anos na instituição. Todos, 34 (100%), relataram terem pós-graduação Lato Sensu em nível de especialização ou Residência em oncologia.

Após a análise dos depoimentos coletados juntos aos enfermeiros, com base nas quatro etapas do método de Amedeo Giorgi, emergiram 4 categorias temáticas descritas a seguir: o trabalho como sentido próprio; liberdade e responsabilidade condicionantes ao encontro do sentido da vida; o sentido sobre a alteridade no cuidado e as inter-relações; a autotranscendência da vida pelo trabalho realizado em cuidados paliativos oncológicos.

O trabalho como sentido próprio

Para os enfermeiros, a natureza do próprio trabalho apresenta-se como uma condição fundamental da própria existência. Por meio dele, os enfermeiros representam a própria identidade, constroem a sua realidade e o viabilizam como fonte de vida.

É um encontro com sua identidade. Sabe por quê? Porque quando você vê o paciente no seu momento mais frágil de sofrimento e tal, você acaba identificando (...), exercitando seu lado mais humano, seu lado mais sensível e você se reconhece. Você identifica suas limitações, você identifica suas potencialidades, você identifica suas qualidades, seus defeitos (E17).

Eu acho que o que a gente escolhepra gente fazer da nossa vida, faz parte da nossa identidade. É aquilo que você é! É um encontro com você mesma (E13).

Trabalhando aqui eu tenho uma retribuição financeira onde eu posso dar educação, alimentação eplano de saúde com qualidade para as minhas meninas (...). Mas também eu ensino para elas a partir de tudo que vivemos aqui, a respeitar as diferenças do próximo, eu ensino a respeitar todas as diferenças (social, cultural, doença) (E12). Me fortalece, me significa, me constrói, me dá sentido (....). Eu estou aqui porque eu nasci para isso aqui (E5).

Liberdade e responsabilidade condicionantes ao encontro do sentido da vida

A vida provida de sentido a partir do trabalho é permitida por meio de conexões decisivas entre a prática laboral dos enfermeiros e a liberdade e a responsabilidade. Neste estudo, a liberdade de escolha pelo trabalho desempenhado versa em essência no "ser" responsável dos enfermeiros pelas suas ações e posturas assumidas.

É um caminho que eu escolhi trilhar. Existem escolhas, e eu fiz sim essa escolha (...). Eu tento me aperfeiçoar pra fazer cada vez melhor. "Pra" eu oferecer o melhor, eu preciso tecnicamente me aperfeiçoar porque o sofrimento não espera, e se eu não tiver certeza do que eu tô fazendo pelo outro, eu posso perder momentos importantes de qualidade, de alívio, de conforto. É fazer o melhor que pode ser feito. É ter mudanças no seu mundo, no seu modo, na sua existência. É ter empatia pelo sofrimento alheio, auxiliando no processo, mas que entenda que o problema, o sofrimento, é do outro e não o nosso (E3). Quando eu fui chamada no concurso, quis vir para o Inca IVEu conhecia um médico que trabalhava aqui e ele disse: "O depósito?" Eu disse: é, é ele mesmo que eu quero (E9).

Quando eu paro pra refletir sobre minha vida, minha família, minha comunidade, meu trabalho, eu me sinto muito assim: Eu sou parte e responsável pelo meio em que eu vivo. Então eu tenho que ter dó, carisma e oferecer o que há de melhor em mim aos pacientes (E29).

O Sentido sobre a alteridade no cuidado e as inter-relações

O cuidado é a razão existencial do trabalho dos enfermeiros e neste estudo é sentido por meio da inter-relação enfermeiro/paciente/família em caráter de alteridade.

É dar o que eu me propus afazer, que é o melhor de mim no cuidado com o outro, com as pessoas, com as relações (E22).

O trabalho traz para mim, para além da minha profissão. É algo que eu estou fazendo de melhoria na qualidade de vida do outro ser, de um paciente de uma família sofrida. É ser útil em ter ajudado alguém, de ter feito parte da vida de alguém (E34). É tentar tirar a dor do paciente. É tentar amenizar o sofrimento do paciente da melhor forma possível. Nem que seja tentando mudar a prescrição, fazer um SOS. Não é esperar o colega fazer. É ir lá correndo fazer, porque eu acho que cada minuto vai diminuir aquela angústia do paciente (E15).

É dar paz onde é difícil ter paz, né! É dar paz ao paciente e trazer de alguma forma um sentido de vida para ele mesmo diante do sofrimento (E33).

Autotranscendência da vida pelo trabalho realizado em cuidados paliativos oncológicos

O pleno encontro do sentido da vida, estruturado pela dimensão espiritual, desperta a autotranscendência do existir dos enfermeiros e manifesta-se pelas descobertas de valores que se mostravam encobertos antes da experiência em Cuidados Paliativos Oncológicos.

A espiritualidade me dá uma base para eu conseguir entender um pouco as coisas que a gente vive no trabalho, dos vários questionamentos que eu não consigo resposta aqui (E30).

Você aprende a valorizar ações simples que para muitos passam despercebidas, tais como se alimentar com as próprias mãos e pela boca, respirar sozinha e sem esforço, andar, entre outras. É um aprendizado diário que você olha pro lado e vê que você é muito feliz, né! (E1).

Eu dou mais valor à vida. Eu sou mais agradecida, menos reclamona. Dou mais valor a minha família e a estar com as pessoas que eu gosto. Os valores materiais são outros (E27).

Eu acredito que é uma transformação enquanto pessoa, enquanto ciência, enquanto profissional. É a verdadeira borboleta em transformação constante (E12).

É um crescimento de experiência de vida, de espiritualidade, desenvolvimento emocional e desenvolvimento familiar (E13). É ser um elo positivo. É acreditar quando as pessoas já desistiram de acreditar. É saber que mesmo trabalhando com muita dor, sofrimento, angústia, mesmo naquela seara difícil ali, tem sempre algo que a gente está podendo dar e ao mesmo tempo aprender algo dali (E32).

DISCUSSÃO

O fenômeno de perceber sentidos da vida pelo trabalho configura, para enfermeiros, um constructo multidimensional e dinâmico que abrange um conjunto de variáveis de acordo com suas experiências, vivências e iniciativas em cuidados paliativos oncológicos.

Este estudo possibilitou compreender que o trabalho aparece como um ato que faz os enfermeiros estarem entrelaçados nas formas de serem e estarem no mundo e que os reconduzem ao encontro de suas totalidades (22 Merleau-Ponty M. Fenomenologia da percepção. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes; 2015.). O sentido conferido ao trabalho é dado na medida em que o indivíduo consegue se reconhecer pelo modo que ele significa sua relação "no", "do" e "com" o próprio trabalho (77 Moreno-Milan B, Cano-Vindel A, Lopez-Dóriga P, Medrano LA, Breitbart W. Meaning of work and personal protective factors among palliative care professionals. Palliat Support Care. 2019;17(4):381-7. doi: 10.1017/S1478951518001 13X
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). É indubitável que o ser humano é lançado no mundo do trabalho a fim de suprir suas necessidades, principalmente de ordem socioeconómica, como garantia mínima de sobrevivência(1313 Neves DR, Nascimento RP, Felix Junior MS, Silva FA, Andrade ROB. Sentido e significado do trabalho: uma análise dos artigos publicados em periódicos associados à Scientific Periodicals Electronic Library. Cad EBAPE.BR. 2018;16(2):318-30. doi: https://doi.org/10.1 590/1679395159388
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).

Porém, estudos anteriores apontam que o fator financeiro é considerado complementar e não essencial para que o trabalho faça sentido em suas vidas. Para os profissionais enfermeiros a remuneração funciona como um fator extrínseco para a motivação no trabalho, já que a classificam, em sua maioria, como inadequada, injusta e não condizente com as expectativas e necessidades sobre seu papel para com os pacientes e instituições de saúde(1414 Duarte JMG, Simões ALA. Significados do trabalho para profissionais de enfermagem de um hospital de ensino. Rev Enferm UERJ. 2015;23(3):388-94. doi: https://doi.org/10.12957/reuerj.2015.6756
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). Evidencia-se que o sentido é representativo de uma dimensão mais pessoal e não se trata apenas de uma independência financeira, mas de valores pessoais impostos por cada um.

Relacionado ao campo dos cuidados paliativos oncológicos que está voltado a atender pacientes gravemente enfermos com potencial de morte iminente, o trabalho, ao evocar a reflexão desses profissionais sobre suas vidas e a percepção sobre o real valor do seu existir, amortece os efeitos destrutivos à sua saúde, como por exemplo, sintomas da síndrome de burnout e vazio existencial(1515 Ong KK, Ting KC, Chow Y. The trajectory of experience of critical care nurses in providing end-of-life care: a qualitative descriptive study. J Clin Nurs. 2018;27(1-2):257-68. doi: https://doi.org/10.1111/jocn.13882
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).

O trabalho está alinhado com seu ser e representa a sua expressão de "homem" no mundo. Corroborando com o estudo desenvolvido no campo internacional, é representado como a própria identidade; aparece como caráter de algo único de sua existência e que, diante disto, possibilita anteciparem as consequências de suas ações(1616 Malloy DC, Fahey-McCarthy E, Murakami M, Lee Y, Choi E, Hirose E, et al. Finding meaning in the work of nursing: an international study. Online J Issues Nurs. 2015;20(3):7. doi: https://doi.org/10.3912/OJIN.Vol20No03PPT02
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). Tudo isso por melhor compreenderem a finalidade e propósito da sua tarefa tanto no próprio trabalho quanto nas suas vidas.

Não é o trabalho que oferece ao homem a possibilidade de atingir a plenitude. Esse estado de completude ocorre ao assumir-se a realização do mundo interno pela realização do mundo com o outro, como no caso dos enfermeiros que atuam em cuidados paliativos oncológicos(1717 Gómez-Salgado J, Navarro-Abal Y, López-López MJ, Romero-Martín M, Climent-Rodríguez JA. Engagement, passion and meaning of work as modulating variables in nursing: a theoretical analysis. Int J Environ Res Public Health. 2019;16(1):108. doi: 10.3390/ijerph16010108
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). O trabalho representa o campo de caráter de algo único, recebendo o seu verdadeiro sentido e valor quando o indivíduo tem a consciência moral de dedicar-se a uma tarefa ou a alguém que não seja apenas em benefício exclusivo(1818 Frankl VE. Psicoterapia e o sentido da vida. 6ª ed. São Paulo: Quadrante; 2019.). Assim, o trabalho em si não é o suficiente para tornar o homem parte de um todo e insubstituível; o que ele faz é simplesmente dar-lhe a capacidade de vir a sê-lo(1818 Frankl VE. Psicoterapia e o sentido da vida. 6ª ed. São Paulo: Quadrante; 2019.-1919 Frankl VE. A vontade de sentido: fundamentos e aplicações da logoterapia. São Paulo: Paulus; 2017.).

Essa relação dos enfermeiros com os outros (pacientes/ familiares) e consigo mesmo no mundo dos cuidados paliativos é impactada pela forma que percebem a sua liberdade e sua responsabilidade. O homem é um ser concebido como agente que decide e responde responsavelmente à liberdade que o mundo lhe coloca(2020 Frankl VE. Logoterapia e análise existencial: texto de seis décadas. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2017.). A liberdade aparece como o campo da possibilidade de escolha dos enfermeiros que se determinaram a trabalhar na condição da finitude humana. Além disso, essa liberdade não significa estarem livres de algo, mas sim serem capazes de tomar decisões por meio do núcleo de seu ser, configurando dessa forma o seu ser no mundo(22 Merleau-Ponty M. Fenomenologia da percepção. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes; 2015.). Essa liberdade de escolha versa em essência o ser responsável que esses profissionais são pelas suas ações e posturas assumidas. Ou seja, para que os resultados do trabalho realizado sejam claros e significativos, é importante que tenham senso da realização de suas tarefas sobre condutas éticas, morais, valorização pessoal, social e espiritual.

A tarefa principal e razão existencial do trabalho dos enfermeiros é o cuidado; e, neste estudo, aparece como um estado ou uma condição em que eles percebem suas existências pelo contato com o "outro" *pacientes/ famílias) por aquilo que eles não são. Há que se aludir que quando no cuidar há uma intencionalidade que parte dos enfermeiros em direção aos pacientes em uma verdadeira expressão de alteridade, o próprio termo "cuidado" deixa de ser apenas uma tarefa para ser qualificado como uma condição solidária, relacional, existencial, dinâmica e temporal(55 Rocha RCNP, Pereira ER, Silva RMCRA. A dimensão espiritual e sentido da vida na prática do cuidado de enfermagem: enfoque fenomenológico. Rev Min Enferm. 2018;22:e-1151. doi: http://www.dx.doi.org/10.5935/1415-2762.20180082
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).

Na relação enfermeiros/pacientes, transpassam o relacionamento apenas funcional e impessoal para o relacionamento pessoal em que se instaura uma relação de "tu a tu" com o outro, sendo um mundo de "nós"(2121 Baggio MA, Erdmann AL. A circularidade dos processos de cuidar e ser cuidado na conformação do cuidado "do Nós". Rev Enf Ref. 2015; ser IV(7):11-20. doi: http://dx.doi.org/10.12707/RIV15012
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). Isso remete ao entendimento de que ao mesmo tempo em que os enfermeiros cuidam do outro, eles estão cuidando de si mesmos por ser a sua possibilidade mais próxima de ser. Ao se abrirem por meio do cuidado a outrem, assumem a natureza deliberada para aquilo que importa, ou melhor, o que é importante em si mesmo, envolvendo a ética, moralidade e afetividade.

O sentido da vida no trabalho está em doar-se e refletir sobre o seu modo de ser, principalmente ao assumir o cuidado como um valor imperativo moral proveniente de uma consciência meditativa que resgata singularmente o próprio valor na condição de humano(1818 Frankl VE. Psicoterapia e o sentido da vida. 6ª ed. São Paulo: Quadrante; 2019.). Para Frankl, "dar-se" um ao outro como absoluta alteridade é a maneira interexistencial em que o "ser" de uma pessoa "em" outra é reconhecido como tal indo além(2020 Frankl VE. Logoterapia e análise existencial: texto de seis décadas. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2017.). Portanto, os sentidos atribuídos ao trabalho não partem de um altruísmo que excede o ser, mas pensado na pluralidade da relação humana, de um nó intersubjetivo, em um contexto mundano.

Na contramão, alguns fatores que permeiam o exercício profissional dos enfermeiros, como a desvalorização da força de trabalho, sobrecarga, "descuidado" da instituição em relação às suas necessidades subjetivas, jornada de trabalho exaustiva, além da própria temporalidade da existência destes num local permeado pela morte, dor, angústia e sofrimento dos pacientes, representam uma ameaça às suas saúdes emocionais, como também interferem no potencial de motivação intrínseca que implica na qualidade do atendimento prestado ao paciente, em longo prazo(2222 Portero de la Cruz S, Abellán MV. Professional burnout, stress and job satisfaction of nursing staff at a university hospital. Rev Latino Am Enfermagem. 2015;23(3):543-52. doi: 10.1590/0104-1169.0284.2586
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).

Como ponto de equilíbrio, na seara internacional, identificam-se instituições de saúde adotando intervenções educacionais na dinâmica do trabalho, como programas de treinamento revestidos de valores pessoais, com o intuito de abastecer esses profissionais de autoconsciência existencial, autoeficácia, autodesenvolvimento pessoal e profissional, considerando os benefícios amplos acerca da produção de suas tarefas para a sociedade(2323 Frey R, Balmer D, Boyd ML, Robinson JA. Palliative care nurse specialists' reflections on a palliative care educational intervention in longterm care: an inductive content analysis. BMC Palliat Care. 2019;18(1). doi: 10.1186/s12904-019-0488-4
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-2424 Henoch I, Strang S, Browal M, Danielson E, Melin-Johansson C. Development of an existential support training program for healthcare professionals. Palliat Support Care. 2015; 13(6):1701-9. doi: https://doi.org/10.1017/S1478951515000632
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).

A espiritualidade é identificada como a dimensão que possibilita aos enfermeiros enfrentarem adversidades encontradas no trabalho. Essa dimensão mostra-se significativa para estes profissionais pelo fato de se apresentar como catalizadora e decodificadora dos fenómenos existenciais vivenciados(2525 Medeiros AYBBV, Rocha RCNP, Pereira ER, Silva RMCRAS, Gil Moncayo FL. El sentido de la vida como recurso espiritual para el cuidado en oncología. Rev Cuba Enferm [Internet]. 2018 [citado 2019 nov. 1 9];34(4). Disponible en: http://www.revenfermeria.sld.cu/index.php/enf/article/view/2243
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). A dimensão espiritual é a essência fundante da espécie humana e que permite ao homem manifestar sua liberdade, responsabilidade, capacidade de valorar, posicionar-se, decidir e questionar-se pelo sentido do seu existir(2020 Frankl VE. Logoterapia e análise existencial: texto de seis décadas. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2017.). Essa dimensão é instância abissal, primária e genuinamente humana que mobiliza esses profissionais a concretizarem suas existências e conferirem a possibilidade de autotranscenderem pelo pleno encontro consigo mesmos.

Contudo, é preciso considerar a singularidade de cada ser humano; ou seja, o fato de que cada um é irrepetível, paradoxal e aberto a infinitas possibilidades e valores que o possibilitam afirmar sua vontade motivadora de realizar gerando sentido à sua existência(1010 Frankl VE. Em busca de sentido: um psicólogo no campo de concentração. Petrópolis: Vozes; 2017.,1919 Frankl VE. A vontade de sentido: fundamentos e aplicações da logoterapia. São Paulo: Paulus; 2017.). Esses valores são princípios que influenciam o comportamento do ser humano, tanto em suas condutas, quanto em seu modo de pensar(55 Rocha RCNP, Pereira ER, Silva RMCRA. A dimensão espiritual e sentido da vida na prática do cuidado de enfermagem: enfoque fenomenológico. Rev Min Enferm. 2018;22:e-1151. doi: http://www.dx.doi.org/10.5935/1415-2762.20180082
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). Representam as convicções básicas do ser humano naquilo que acredita ser bom, correto ou desejável, e determinam a maneira como se comporta e interage.

Na abordagem fenomenológica de Frankl, esses valores estão mencionados como aquilo que é considerado significativo, motivador e que cristaliza sentido à vida de cada indivíduo(1010 Frankl VE. Em busca de sentido: um psicólogo no campo de concentração. Petrópolis: Vozes; 2017.,1919 Frankl VE. A vontade de sentido: fundamentos e aplicações da logoterapia. São Paulo: Paulus; 2017.). A título de exemplo, nesse estudo, os valores estiveram velados e subjacentes ao universo experiencial dos enfermeiros, e a essência de tais valores esteve relacionada com a valorização da vida, saúde, a transformação pessoal, o reencontro como profissional, a experiência e o aprendizado.

Os enfermeiros "atravessados" pela experiência da finitude humana, ao saírem de si e irem ao encontro do outro (pacientes/familiares) por meio do seu labor, modificam-se internamente, o que viabiliza uma nova postura em relação à vida(2525 Medeiros AYBBV, Rocha RCNP, Pereira ER, Silva RMCRAS, Gil Moncayo FL. El sentido de la vida como recurso espiritual para el cuidado en oncología. Rev Cuba Enferm [Internet]. 2018 [citado 2019 nov. 1 9];34(4). Disponible en: http://www.revenfermeria.sld.cu/index.php/enf/article/view/2243
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). Essa modificação por sua vez é manifesta pela qualidade essencial da existência humana, a autotranscendência.

A autotranscendência evoca o sentido da plenitude da vida e ocorre pelo caminho das experiências temporais e da historicidade de cada um(2626 Guerrero-Castañeda RF, Prado ML, Menezes TMO, Galindo-Soto JA, Ojeda-Vargas MG. Life experiences that favor the plenitude and transcendence of the elderly being: a phenomenological-hermeneutical study. Rev Esc Enferm USP. 2019;53:e03476. doi: https://doi.org/10.1590/s1980-220x2018029303476
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). Pelo olhar fenomenológico existencial, a autotranscendência não parte de vias conceituais e pré-determinadas e sim da compreensão autêntica do ser na existência que surge por meio da sua condição de estar no mundo, na sua relação com ele próprio e com o outros e por meio da construção de sua história no tempo(22 Merleau-Ponty M. Fenomenologia da percepção. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes; 2015.).

O referencial teórico-filosófico estudado compreende que a existência não é um fim em si mesma limitada a uma constante busca do prazer, poder e prestígio, ou ainda fadada a condicionamentos biopsicossociais(1818 Frankl VE. Psicoterapia e o sentido da vida. 6ª ed. São Paulo: Quadrante; 2019.). Pelo contrário, transborda e abre-se ao mundo quando o homem compreende que sempre está, primariamente, orientado para algo que não ele mesmo, pela dedicação a uma tarefa, a serviço de uma causa, uma obra ou no amor a outra pessoa(1010 Frankl VE. Em busca de sentido: um psicólogo no campo de concentração. Petrópolis: Vozes; 2017.). Em outras palavras, à medida em que o homem preenche um sentido lá fora, no mundo é que ele realizará a si mesmo.

Pelo movimento de sair de si, enfermeiros têm a possibilidade de contemplarem a beleza da vida e o encontro existencial por meio da entrega e doação ao outro, fato este possibilitado pelo trabalho executado(2727 Hwang HL, Tu CT, Chan HS. Self-transcendence, caring and their associations with well-being. J Adv Nurs. 2019;75(7):1473-83. doi: 10.1111/jan.13937
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). Identifica-se que a autotranscendência corresponde ao caminho mais profundo que penetra no espaço verdadeiramente humano (dimensão espiritual) e, diante disso, possibilita a realização plena do sentido da vida de maneira genuína para além dos seus próprios limites.

Espera-se que esse estudo atraia a reflexão social e em nível de gestão sobre a prática profissional dos enfermeiros não mais como um esforço rotineiro e repetitivo de suas atribuições. Acredita-se que o melhor desempenho do trabalho e composição da integralidade da assistência resplandecem quando a essência individual/pessoal é conhecida e valorizada, encurtando assim a distância dos propósitos entre ambos no ambiente de trabalho.

Coloca-se em posição de destaque a participação dos gestores dos serviços de saúde sobre as questões estruturais e organizacionais que interferem diretamente na prática e sentido existencial desses profissionais no ambiente laboral. É profícuo que os gestores estejam alinhados em suas responsabilidades e condutas em relação ao seu papel junto aos enfermeiros, para que, se necessário, elaborem e adotem medidas que atendam de forma condizente às necessidades dessa população específica, atitude imprescindível no cumprimento das metas da organização institucional.

O estudo reúne subsídios para que enfermeiros reflitam sobre o norteador de suas existências no trabalho e otimizem a sua prática profissional em uma dinâmica de potencialidades, liberdade e responsabilidade com atitudes dignas e valorosas aos pacientes.

Concernente às limitações do estudo, cita-se a realização em um único cenário de cuidados paliativos oncológicos no contexto hospitalar que impossibilita a generalização dos dados para todo território nacional.

CONCLUSÃO

A natureza deste estudo possibilitou compreender que o trabalho em cuidados paliativos veicula aos enfermeiros uma mensagem existencial por meio da autotranscendência. Conduzido pela perspectiva fenomenológico-existencial, desvelou-se que o sentido da vida desses profissionais está atrelado ao caráter de unicidade e irrepetibilidade do seu existir por meio do trabalho.

A experiência no cenário da finitude da vida possibilita aos enfermeiros o encontro autêntico com seu eu e a possibilidade de ancorarem a vida com maior motivação e assertividade. Por trás dos valores esconde-se a chave mestra que motiva esses profissionais a darem sentido a seu trabalho e a autotranscenderem com benefícios potenciais para uma assistência mais humana, integral e de qualidade.

A enfermagem como ciência realizadora do cuidado sob as dimensões biológicas, psicológicas, sociais e espirituais de outro ser também precisa ter a essência individual reconhecida e valorizada, tanto por si mesma quanto pelos gestores, encurtando a distância dos propósitos entre ambos no ambiente de trabalho.

Apesar de o tema sobre sentido da vida ser um assunto em divulgação no âmbito da saúde, na enfermagem ele ainda é incipiente e necessita de ampliação nas investigações desse conhecimento com a prerrogativa desses profissionais sustentarem a capacidade de autotranscenderem e despertarem sentidos para as razões de ser e estar no mundo com profundas contribuições à sociedade.

  • *
    Extraído da tese: “Percepção do sentido da vida pelo enfermeiro no trabalho em cuidados paliativos oncológicos”, Escola de Enfermagem Aurora Afonso Costa, Universidade Federal Fluminense, 2020.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Jun 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    23 Abr 2020
  • Aceito
    01 Jan 2021
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